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O QUE É JUSTIÇA? A JUSTIÇA, O DIREITO E A POLÍTICA NO ESPELHO DA CIÊNCIA
HANS KELSEN
Prefácio e capítulo 1: Mariana
Capítulo 2: Laís
Capítulos 03 e 04: Paula
Capítulo 05: Mateus
Capítulos 06 e 07: William Yamakawa
Capítulos 08 e 09: Olenka Lins
Capítulos 10: Tertuliano
Capítulo 11: Patrícia Oliva
Capítulo 12: Henrique
Capítulo 13: Ana Gabriela
Capítulo 14: Leone e Priscila (dois resumos separados)
1. Prefácio Os ensaios reunidos no livro tratam dos problemas da justiça e de suas relações com o Direito, a filosofia e aciência.
2. O que é justiça? Hans Kelsen inicia o tema a partir da pergunta feita por Pilatos a Jesus, sobre o que é verdade. Entendeemergir da pergunta de Pilatos outra questão, bem mais veemente, a eterna questão da humanidade: oque é justiça? Pergunta que continua até hoje sem resposta.
A Justiça como um problema de resolução de conflitos de interesses ou de valores A justiça é, antes de tudo, uma característica possível, porém não necessária, de uma ordem social. Umhomem é justo quando seu comportamento corresponde a uma ordem dada como justa. Uma ordem ser
justa significa essa ordem regular o comportamento dos homens de modo a contentar a todos, e todosencontrarem sob ela a felicidade. O anseio por justiça é o eterno anseio do homem por felicidade. Nãopodendo encontrá-la como indivíduo isolado, procura essa felicidade dentro da sociedade. Kelsen diz queJustiça é felicidade social, é a felicidade garantida por uma ordem social.
Segundo Platão: só o justo (aquele que se comporta de acordo com a lei) é feliz e o injusto, infeliz. Emboraadmita que, em um ou outro caso, talvez um homem justo possa ser infeliz e o injusto, feliz, Platão entendeser necessário que os cidadãos subordinados ao ordenamento legal acreditem na afirmação de quesomente o justo é feliz, ainda que essa afirmação não seja verdadeira. Assim, para Platão, justiça está acimado valor verdade.
Felicidade não deve ser entendida como sentimento subjetivo, individual de cada um, mas como a maior
felicidade possível ao maior número possível de pessoas (Jeremy Bentham). Felicidade não pode serentendida num sentido subjetivo-individual, porque indivíduos diferentes têm concepções bem diferentesdaquilo que seja felicidade. A felicidade capaz de ser garantida por uma ordem social só o é num sentidoobjetivo-coletivo (aquela indicada pelo legislador e aplicada pelo governante). Por felicidade somentepoderemos entender a satisfação de certas necessidades reconhecidas como tais pela autoridade social-o legislador.
Somente onde há conflitos de interesses ou de valores (ou seja, quando um interesse só possa ser satisfeito àcusta de outro), que a justiça se torna um problema. E o problema só poderá ser solucionado mediante um
juízo que, em última instância, é determinado por fatores emocionais e possui, portanto, carátersubjetivo/relativo.
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Hierarquia de valores As necessidades individuais estão ligadas a juízos de valor, e quando há conflitos desses valores a solução épor meio de um caráter subjetivo, sendo avaliada através de uma hierarquia de valores. Mas qual seria ovalor hierarquicamente maior? Direito à vida ou interesse e honra da nação? Liberdade individual ousegurança econômica da população? Verdade ou compaixão? Verdade ou Justiça (ex. Platão)? Asrespostas serão sempre subjetivas, válidas apenas para o sujeito que julga, e não uma constatação válidapara todos. É o elemento emocional e não racional da nossa atividade consciente que soluciona o conflito.Juízo de valor subjetivo (relativo, portanto), que não permite uma verificação racional-científica.
A Justiça como um problema de justificação do comportamento humano O fato de juízos de valor legítimos serem subjetivos, e por isso ser possível a existência de juízos de valor bemdiversos, conflitantes entre si, não significa absolutamente que cada individuo tenha seu próprio sistema devalores. Na verdade, um sistema de valores positivo não é uma criação arbitrária de um indivíduo isolado,mas resultado de uma influência exercida no âmbito de um determinado grupo- família, tribo, clã, casta,profissão, etc. Todo sistema de valores é um fenômeno social. A unanimidade sobre um juízo de valor existente entre muitos indivíduos não pressupõe a veracidade do
juízo, isto é, não significa que seja objetivamente válido. Exemplifica: na sociedade primitiva- acreditava-se justa a responsabilidade coletiva, enquanto na sociedade moderna a responsabilidade individual quecorresponde ao sentimento de justiça. Embora a pergunta sobre o que realmente vem a ser justiça não possa ser respondida racionalmente, o
juízo subjetivo e relativo com que essa pergunta é de fato respondida usualmente constitui a afirmação de
um valor objetivo, ou seja, de uma norma de valor absoluto. É uma singularidade do homem que ele possuauma necessidade profunda de justificação ou racionalização. O homem procura justificar seucomportamento através da razão, impelido pelo temor e pelo desejo, que se relacionam a um determinadomeio, através do qual um determinado fim será atingido. Quando um comportamento humano é justificável como meio para um determinado fim, torna-se inevitávelperguntar se o fim também é justificável. Ex. democracia é justificável como regime justo somente sob apremissa de a preservação da liberdade individual ser o fim maior. Se, em vez da liberdade individual, asegurança econômica for presumida como fim maior, então outra forma de regime deverá ser aceita como
justa. Outros fins exigem outros meios. O homem busca justificar seu comportamento como fim último, que corresponda a um valor absoluto.Alguns buscam na religião e na metafísica essa justificação, isto é, a justiça absoluta. Outros, que nãoconseguem aceitar uma tal solução metafísica para o problema da justiça, sustentam a ideia de valoresabsolutos, na esperança de poder determiná-los de modo racional-científico.
Platão e Jesus O representante clássico do tipo metafísico é Platão. Para solução do problema da justiça, desenvolve suafamosa doutrina de idéias, que são substancias transcendentais, existentes em um outro mundo, numaesfera inteligível, inacessível. Em sua essência, representam valores absolutos. Idéia do Bem absoluto: desempenha na filosofia de Platão um papel idêntico ao de Deus na teologia de qualquer religião. A idéiado Bem inclui a de justiça. “O que é justiça?” corresponde a “O que é bom ou o que é o Bem?”. Platãoremete a um método especifico de pensamento abstrato, livre de toda representação sensorial, assimdenominada dialética, que capacita aquele que a domina à apreensão das idéias. Sobre a idéia do Bemabsoluto, ela se encontra alem de todo conhecimento racional. Não pode haver resposta à questão da
justiça, já que a justiça é um mistério que Deus confia a poucos escolhidos, e que continuará sendo segredodestes. A filosofia de Platão se assemelha nesse aspecto à pregação de Jesus, cujo fundamento maiortambém era a justiça. Jesus anuncia como a verdadeira justiça o princípio do amor: retribuir o mal não com
o mal, mas com o bem, não resistir ao mal, mas amar o malfeitor, até mesmo o inimigo. O amor que essa justiça representa não pode ser o sentimento humano que chamamos de amor. É o amor de Deus. Justiça éconcedida por Deus somente através da Fé, a fé que opera através do amor.
As fórmulas vazias da justiça Kelsen destaca algumas fórmulas vazias utilizadas por filósofos do Direito (ex. que a Justiça seria dar “a cadaum o que é seu”, que “o bem paga-se com o bem, o mal com o mal”, que “todos os homens são iguais pornatureza e todos eles devem ser tratados com igualdade”, “igualdade perante a lei”, “não faças aos outroso que não queres que te façam”). Sabedoria grega define justiça como conceder a cada um aquilo que é seu. Mas, para HK, é uma fórmulavazia, pois permanece sem resposta o que cada um pode considerar como sendo seu. Para definir o que éde cada um, necessário um ordenamento social, instituído como ordem moral ou jurídica positiva, por meioda tradição ou da legislação. Só que o seu é distinto em cada ordem social, sendo valor relativo, portanto.
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Princípio da retaliação (o bem paga-se com o bem, o mal com o mal): é apresentado como essência da justiça. Mas o que é bem? O que é mal? Resposta diverge muito entre povos distintos e em épocasdiferentes. O principio da retaliação associa o mal do injusto ao mal da consequência do injusto. Mas esse éo princípio no qual se baseiam todas as normas jurídicas positivas e, por isso, toda ordem jurídica pode ser
justificada como concretização do principio da retaliação. Uma vez que retaliação significa retribuir igualcom igual, ela é uma das múltiplas variedades nas quais aparece o principio da igualdade, que também éconsiderado a essência da justiça. Para Kelsen, é falsa a premissa de que todos os homens são iguais pornatureza. Porque toda e qualquer diferença poderá ser considerada pelo ordenamento social na
concessão de direitos e na imposição de deveres. Princípio da igualdade perante a lei: os órgãos jurídicos não devem fazer distinções que a próprialegislação a ser aplicada não faça. Para kelsen, trata-se do principio da legalidade ou juridicidade, nãotendo quase nada a ver com a igualdade.
Karl Marx defende que a igualdade verdadeira e, portanto, a justiça verdadeira, somente poderá serconcretizada numa economia comunista, onde vale o axioma: cada um conforme suas capacidades,reconhecidas pela ordem social comunista; a cada um conforme suas necessidades, determinadas poruma ordem social positiva.
O axioma denominado regra de ouro também é uma aplicação do principio da igualdade: não faças aosoutros o que não queres que te façam . Mas é comum que homem sinta prazer em causar dor a outros. Estaé a questão da justiça. Mas, se levarmos ao pé da letra a regra de ouro, não poderíamos castigar
criminosos. Na verdade, critério não deve ser subjetivo. A regra de ouro deve ser entendida no sentido deestabelecer um critério objetivo: comporte-se perante os outros do mesmo modo que os outros devemcomportar-se perante você, ou seja, comporte-se de acordo com uma regra objetiva. Mas como devem aspessoas se comportar? Essa é a questão da justiça. E a resposta a ela não é dada através da regra de ouro,mas é por ela pressuposta. E somente pode sê-lo pelo fato de que é a ordem da moral positiva e do direitopositivo que está sendo pressuposta.
Kant Se o critério subjetivo contido no teor da regra de ouro é substituído, por meio da interpretação, por umcritério objetivo, então essa regra se resume ao seguinte: comporte-se de acordo com as normas gerais daordem social. Regra levou Kant à formulação do imperativo categórico: aja somente de acordo com amáxima que você possa desejar que se transforme em lei geral. O comportamento humano é bom ou justose for determinado por normas que o homem, ao agir, pode ou deve esperar que sejam obrigatórias para
todos. Mas quais são essas normas que podemos ou devemos esperar que sejam genericamente obrigatórias? Éessa a questão decisiva da justiça e, a ela, o imperativo categórico- da mesma forma que a regra de ouro-seu modelo- não dá resposta.
Aristóteles Kelsen afirma que a ética de Aristóteles foi outra tentativa infrutífera de definir o conceito de justiça absolutaatravés de um método-racional, científico. Trata-se de uma ética da virtude, ou seja, ela visa a um sistemade virtudes, entre as quais a justiça é a virtude máxima, a virtude plena. Para Aristóteles, virtude está nomeio-termo entre dois extremos, ou seja, nem a escassez, nem o excesso. Exemplifica: a virtude da coragemé o meio-termo entre o vício da covardia e o vício da temeridade. Esse é o ensinamento da mesótes. Umavirtude é o oposto ao vício: se a tendência à mentira é um vício, o apego à verdade é uma virtude.Aristóteles pressupõe a existência desses vícios como indiscutível, só que a definição dos vícios ou dos
extremos cabia à moral positiva e ao direito positivo, à ordem social estabelecida. Ao pressupor comoválida a ordem social estabelecida, essa ética a justifica. Para Kelsen, a questão da justiça não é respondida pela fórmula mesótes. Diz Kelsen: “comportamento justoé o meio-termo entre praticar o injusto e sofrer o injusto. No primeiro caso tem-se de menos; no segundo,tem-se demais. Assim, a fórmula- a virtude é o meio-termo entre dois vícios- não faz sentido nem mesmocomo metáfora, pois o injusto que se pratica e o injusto que se sofre não são absolutamente dois vícios oumales; são um único e mesmo injusto, que um pratica contra outro e que outro sofre. E a justiça é,simplesmente, o oposto desse injusto. A questão decisiva- o que é injusto- não é respondida através dafórmula da mesótes”.
O direito natural A doutrina do direito natural afirma existir uma regulamentação absolutamente justa das relações humanasque parte da natureza em geral ou da natureza do homem como ser dotado de razão. A natureza é
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apresentada como uma autoridade normativa (legislador). Por meio natureza, poderemos encontrar asnormas a ela imanentes, que prescrevem a conduta humana correta, ou seja, justa. Se supõe que anatureza é criação divina, então as normas do direito natural são expressão da vontade de Deus (carátermetafísico). Se supõe que a natureza é criação da razão humana, então doutrina se reveste de caráterracionalista. Afirma que, na medida em que a doutrina racionalista do direito natural tenta deduzir da natureza normaspara o comportamento humano, baseia-se em um sofisma que, segundo Kelsen, pode comprovar tudo e,portanto, nada.
Adeptos da doutrina do Direito natural deduziram princípios de justiça extremamente diversos, exemplo:para Robert Filmer, a autocracia é a única forma de governo natural, justa; para John Locke, somente ademocracia pode ser justa, pois apenas ela corresponde à natureza. Para Kelsen, o direito natural não resolve o problema, não convence como justiça absoluta, inalcançávelpela nossa razão, traduzindo quase um território místico.
Absolutismo e relativismo Impossível generalizar-se uma idéia de justo, tanto na lide do conhecimento racional como no campo dosensível. Ao analisar o absolutismo e relativismo na justiça, ensina que a razão humana não nos pode levar auma norma absolutamente válida de comportamento justo, pois a razão humana só conseguecompreender valores relativos. Ou seja, o juízo, por meio do qual algo é declarado como justo, nuncapoderá ser emitido com a reivindicação de excluir a possibilidade de um juízo de valor contrário. Para Kelsen, Justiça absoluta é um ideal irracional. A norma absoluta gera conflitos de interesses por nunca
se ter um juízo de valor que declare algo justo sem se ter outro juízo que o considere injusto. Para Kelnse, o princípio moral que fundamente a doutrina relativista de valores é o princípio da tolerância (éa exigência de compreender com benevolência a visão religiosa ou política de outros, mesmo que não acompartilhemos). É a tolerância no âmbito do ordenamento jurídico positivo, que garanta paz aossubmetidos a essa justiça, proibindo-lhes o uso da violência. Desordem surge da intolerância. Como democracia significa liberdade e liberdade significa tolerância, para Kelsen nenhuma outra forma degoverno é mais favorável à ciência que a democracia. Assim, na visão de Kelsen, a Justiça é o agir com tolerância - e essa seria uma moral da filosofia da justiçarelativista - e com valores relativos a respeito da norma positivada. Encerra Kelsen, concluindo que: “Não sei e não posso dizer o que seria justiça, a justiça absoluta, esse belosonho da humanidade. Devo satisfazer-me com uma justiça relativa, e só posso declarar o que significa
justiça para mim: uma vez que a ciência é minha profissão e, portanto, a coisa mais importante em minhavida, trata-se daquela justiça sob cuja proteção a ciência pode prosperar e, ao lado dela, a verdade e a
sinceridade. É a justiça da liberdade, da paz, da democracia, da tolerância”.
CAPÍTULO 2: A IDEIA DE JUSTIÇA NAS SAGRADAS ESCRITURAS
O CARÁTER TRANSCENDENTAL DA JUSTIÇA DIVINA
Na religião cristã, Deus tem como uma de suas principais características o ser justo, desempenhando
assim um papel na vida social. Destarte, o aspecto religioso transcende para o cotidiano da vida em
sociedade.
A justiça absoluta de Deus entra em conflito com outro aspecto, qual seja, a sua onipotência, isto
porque se Ele é onipotente tudo o que acontece no mundo é consoante a sua vontade. Se efetivamente
existe a injustiça, como conciliar essa ideia com a da sua justiça absoluta?
Este conflito é insolúvel de forma que os homens têm que acreditar na existência da justiça absoluta
ainda que não sejam capazes de entender o que ela realmente significa assim como se deve acreditar na
existência de Deus ainda que não compreendam sua natureza.
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A JUSTIÇA NA REVELAÇÃO DIVINA E NA MORALIDADE CRISTÃ MODERNA
Deus revela-se de duas maneiras: por seus atos e suas palavras. Logo, no universo, que foi sua
criação, e na bíblia, que é a sua palavra, é possível encontrar as respostas para o que é justo ou não.Todavia, esses são meios contraditórios.
No mundo pode-se perceber que não há auxílio mútuo, que há uma incessante luta em que o mais
forte destrói o mais fraco. A bíblia, que seria a outra revelação, é mais clara, só que as instituições que ela
apresenta estão em franca oposição aos sentimentos de justiça dos cristãos modernos tais como a
poligamia, a escravidão e a vingança de sangue.
A REVELAÇÃO DAS ESCRITURAS CONTRADITÓRIAS ENTRE SI
As revelações contidas na escritura sagrada não apenas são contrárias à moralidade como
também são contraditórias entre si. A este exemplo, pode-se citar algumas histórias tal como a de Sara e
Abraão que eram casados e meio-irmãos apesar de em outras passagens a escritura condenar
veementemente a relação sexual entre irmãos.
Havia ainda Jacó que se casou com duas irmãs, Lia e Raquel, sendo que no livro Levítico (18,18) está
escrito : “ Não tomarás como esposa a irmã de tua mulher nem farás dela rival de sua irmã, e não terá s
relações com ela enquanto a outra for viva. “.
Outro ponto bastante contraditório na bíblia é o divórcio. Em um trecho do Deuteronômio contém a
regra que quando um homem se casar e a mulher não lhe agradar, porque encontrou nela alguma
indecência, poderá divorciar-se e, quando ela deixar sua casa, poderão casar-se novamente. Entretanto,Jesus em suas pregações posicionava-se contrariamente ao divórcio, afirmando que o que Deus uniu o
homem não separa.
Estas contradições são perfeitamente inteligíveis se analisadas sob a perspectiva de que foram
escritas em diferentes momentos históricos, em um processo de evolução jurídica. Mas esta não é a
interpretação adequada à revelação da justiça divina.
RETRIBUIÇÃO E AMOR – DIREITO E JUSTIÇA
Ainda dentro do leque das contradições existentes na bíblia, é apontada a oposição entre o
princípio da retribuição e o do amor. Trata-se do antagonismo entre a regra: “paga o mal com o mal e o
bem com o bem” e a regra: “ama o teu inimigo e paga o mal com o bem”.
Relacionado com esse antagonismo estão duas visões diferentes da relação entre justiça e o direito
positivo que podem ser encarados como idênticos ou então como conflitantes.
Javé como rei e legislador: No antigo testamento, predomina a idéia de Javé como chefe de
Estado, e, como tal, também é legislador. Logo, a lei é uma emanação direta da vontade de Deus como,
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por exemplo, quando os 10 mandamentos foram apresentados por Deus a Moisés. Desta forma, a lei se
confunde com a própria justiça divina.
Javé como juiz : Mais característico ainda do que a função legislativa de Javé é o seu poder
judiciário. É Deus quem emite os julgamentos através de instrumentos humanos, isto se infere de diversas
passagens bíblicas como no julgamento das filhas de Salfaad, que morreu sem filhos homens: “ Então Moiséslevou seu caso a Javé, e Javé disse a Moisés : ‘As filhas de Salfaad estão certas no que dizem; com certeza
deve-se dar-lhes a posse da herança com os parentes de seu pai, transferindo a herança de seu pai para
elas.” ( Númer os 27,3 ss.)
Por ser onisciente, conhecendo todos os pensamentos e sentimentos mais secretos dos homens,
Javé é o juiz ideal. É com o julgamento justo que Deus aplica a “vingança” e demonstra a função
retribuidora do seu julgamento.
Javé como “testemunha” e parte de um contrato: Ainda em outros trechos da sagrada escritura,
Javé revela-se como uma testemunha, expressando o caráter forense da justiça de Deus. Ademais, esta metáfora expressa uma das ideias básicas da teologia judaica, que a relação entre o
Deus e o homem é construída por um contrato, a aliança que Javé firmou com seu povo que foi
estabelecida sucessivamente por Adão, Abrãao Moisés, Davi.
A concepção de relação contratual entre Deus e o homens, tem por fim conferir um caráter
racional a esta relacionamento. Basicamente consiste na obrigação de Deus, enquanto parte de um
contrato, a cumpri-lo, garantindo a proteção do povo. Já o povo está obrigado a obedecer e lei divina.
Assim, Javé era tido com um Deus zeloso por cumprir sua parte do contrato e poderia exigir o
cumprimento das cláusulas pela outra parte bem como punir aqueles que infringiam a aliança. Mais uma
vez, a justiça divina está fundamentada no princípio da retribuição.
Javé como Deus de justiça: Deus personifica a Justiça, buscar por ele é ao mesmo tempo buscar
pela justiça divina. A justiça é tão essencial a Javé que às vezes ele é identificado com essa qualidade.
A JUSTIÇA DE JAVÉ: A RETRIBUIÇÃO
Na leitura do Antigo Testamento fica claro que para o povo judeu justiça significa retribuição, os
próprios fenômenos naturais eram explicados com base nesse princípio. Isso significa que os eventos temidos
eram tidos como punição enquanto aqueles desejados eram recompensas, ambos advinham de Deus já
que a natureza foi uma criação Dele.
A interpretação da natureza segundo o princípio da retribuição: Para os judeus, a morte, o trabalho
e as dores de parto eram males tidos como castigos divinos. A mulher tem que passar por fortes dores no
parto porque caiu na tentação do fruto da árvore proibida e o homem tem que trabalhar e conseguir seu
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sustento pelo próprio suor pois também aceitou o fruto proibido. Ao fim, ambos são obrigados a retornar ao
pó, de onde vieram.
No mesmo sentido, várias outras histórias bíblicas são citadas como exemplos de punição aos
pecados humanos como o dilúvio, as pragas do Egito, a torre de Babel. É por intermédio da natureza que
Deus pune os malfeitores.
Punição e recompensa no Antigo Testamento: Assim como há exemplos de punição no Antigo
Testamento, tais como os já citados e ainda os casos das cidades de Sodoma e Gomorra que pereceram
sob uma chuva de enxofre, Caim que foi amaldiçoado por ter matado Abel, também há as recompensas.
Abraão foi abençoado com inúmeros descendentes por não ter se recusado a sacrificar o seu único
filho, Isaac. Vezes e vezes Javé promete a Israel sua benção caso obedeça à sua lei.
Javé como deus de vingança: Além do relato de histórias de punição e recompensa, há, no texto
do antigo testamento, diversas e enfáticas ameaças aos inimigos de Israel e ao próprio povo de Israel, caso
se neguem a obedecer às leis divinas. As penas são as mais cruéis que a imaginação humana podeinventar. Um exemplo encontra-se no Levítico 26, 14 ss.
Jus talionis: A justiça como retribuição é em primeiro lugar punição e em segundo plano,
recompensa. Observa-se que a punição e a recompensa não têm a mesma importância.
A importância principal da punição está de acordo com a técnica específica do direito positivo,
que é a ameaça de punição por conduta indesejável em detrimento da recompensa pela conduta
adequada.
Destarte, consagra-se a lei do talião que também está presente na bíblia, no Deuteronômio 19, 19 ss.
“Portanto não deves ter piedade: vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé.”
VINGA-TE, MAS AMA O PRÓXIMO
Em uma análise mais apressada, pode-se concluir que o princípio da retribuição não está de acordo
com o mandamento “Amarás o próximo como a ti mesmo” (Levítico 19,18.33 s.), mas isso depende da
interpretação que se dá ao termo “próximo”.
O mandamento em questão nada mais é do que uma norma de solidariedade nacional, pois o
próximo é compreendido como um membro da comunidade judaica. Trata-se muito mais de uma regra
política de convivência que nada tem haver com o princípio da retribuição.
A REJEIÇÃO DO PRINCÍPIO DA RETRIBUIÇÃO POR JESUS: A NOVA JUSTIÇA DO AMOR
O princípio do amor em oposição ao Direito positivo: Em suas pregações, Jesus coloca-se contra o
princípio da retribuição. Defende que não mais se pague o mal com outro mal equivalente, mas sim com o
bem. Recusa-se a reconhecer o Direito até então positivado e o Estado constituído.
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Infere-se que a punição do malfeitor, provida pelo Direito e aplicada pelo juiz, não pode estar em
conformidade com a justiça divina, a nova justiça: o amor de Deus. É uma doutrina revolucionária uma vez
que se opõe ao direito vigente.
Este ensinamento não soluciona o problema social que é a justiça, mas sim acaba com ele de vez,
pois pressupõe a adoção de uma nova concepção de justiça, apartada da retribuição.
Da interpretação das passagens bíblicas, conclui-se que Jesus tinha plena consciência de quetentava estabelecer um novo parâmetro, não mais compatível com a lei de Moises.
A doutrina de Jesus sobre a família: Uma das instituições vigente que Jesus contestou foi o divórcio.
Asseverou que o homem que se divorcia e casa novamente comete crime de adultério e que melhor seria
que jamais tivesse se casado.
Jesus pregava que alguns homens não tinham os dons necessários para se casar nestas
circunstâncias e que, portanto, era melhor optarem pelo celibato, o que também era uma afronta aos
costumes. À época os rabinos acreditavam que o homem que chegasse aos 20 anos sem se casar
desobedecia a uma ordem divina. No Reino de Deus não há casamento, as relações familiares entre marido e mulher, pais e filhos são
mitigadas pelo amor a Deus acima de todas as coisas. Inclusive o próprio Jesus e seus discípulos abriram
mão das suas famílias para seguirem a Deus e à vida de pregação.
O ensinamento de Jesus sobre os impostos : Mais uma vez, os ensinamentos de Jesus revelam-se
contrários à ordem vigente. Na famosa passagem quando ele é interrogado sobre o pagamento de
impostos em que responde: “Daí a Cesar o que é de César e a Deus o que é de Deus” não diz
explicitamente que se deve pagá-los.
Na lei judaica há a previsão de pagamento de tributo do templo e, novamente quando
questionado sobre se devia ou não pagá-lo, responde que o povo judeu não deveria pagá-lo, apenas os
estrangeiros, mas mesmo assim o paga com dinheiro obtido por meio de milagre.
O ensinamento de Jesus sobre a propriedade: Os que seguem a doutrina de Jesus não devem ter
dinheiro nem propriedades. Os discípulos eram proibidos de carregar dinheiro consigo, não poderiam
carregar nem mesmo duas camisas.
Famosa é a parábola em que Jesus afirma que é mais fácil um camelo passar pelo olho de uma
agulha do que um rico entrar no reino dos céus. O messias é contra o dinheiro não por ser a favor de uma
economia baseada no sistema de trocas, mas por ser contra qualquer tipo de economia, de produção de
bens para a satisfação de necessidades humanas. No Reino de Deus nenhum trabalho será necessário, pois
Deus alimentará, vestirá e abrigará diretamente o seu povo.
O ensinamento de Jesus sobre o direito do homem de julgar o homem: Por fim, o conflito mais
evidente, está no mandamento do homem não mais julgar outras pessoas. Todo o mal deve ser retribuído
com amor, por conseguinte, não faz sentido haver julgamentos.
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Uma passagem clássica que exemplifica esta proibição é a da prostituta que havia sido condenada
ao apedrejamento e Jesus conclama aquele que não tenha nenhum pecado para atirar a primeira pedra.
A IDEIA MESSIÂNICA
Ao mesmo tempo em que Jesus apregoa a nova justiça do amor, em contrariedade ao princípio daretribuição, ele é considerado como o juiz do mundo e Messias, o que constitui uma contradição gritante e
insuperável.
O reino de Deus como um reino de justiça neste mundo: O ponto central dos ensinamentos de Jesus
era a vinda messiânica do Reino de Deus, um reino de perfeita justiça e felicidade, uma espécie de
segundo paraíso.
Importante ressaltar que este paraíso se instauraria neste mundo e tem como ponto fundamental a
justiça perfeita do amor. Para tanto é necessário uma mudança fundamental na natureza do homem, tal
como anuncia a palavra de Javé “Dar -vos-ei um novo coração e colocarei dentro de vós um novo espírito;removerei o coração de pedra de vossa carne, e dar-vos-ei um coração de carne; e colocarei meu espírito
dentro de vós, e farei com que sigais meus estatutos e tenhais cuidado em observar minhas ordens” ( 36, 26
s.)
O messias dotado de poderes extraordinários governará e ele será um rei justo, ensinado por Deus.
Sua missão será realizar a justiça.
Nenhuma crença na imortalidade da alma: A justiça divina a ser realizada era tanto entre os
homens como entre as suas almas imateriais e imortais após a morte. Isto também era contraditório com a
tradição judaica que não acreditava em uma alma vivendo sem um corpo.
Para os antigos judeus não havia o culto aos mortos, acreditava-se que eles ficavam em um lugar
chamado Xeol, que era dominado pela escuridão e pó e lá não trabalhavam apenas dormiam. Assim
sendo, a jurisdição de Javé não se estendia a este lugar, ficando limitada ao mundo superior. Até mesmo
porque não foi Ele quem criou o Xeol, os mortos não têm nenhuma ligação com Javé.
A crença na ressurreição dos mortos: Apesar de no Xeol não haver que se falar em qualquer ideia
de justiça, havia uma crença na justiça de Deus a ser realizada após a morte que se baseava não na
imortalidade da alma, mas na ressurreição do corpo.
A ressurreição era a recompensa dos justos, enquanto os injustos eram punidos não se reerguendo
dos mortos, permanecendo no Xeol. Posteriormente eles passaram a acreditar que para serem julgados no
juízo final, todos os mortos deviam erguer-se do Xeol e ir para o lugar onde seria conduzido o julgamento.
O juízo final: Entre os profetas e salmistas havia a convicção de que o Reino de Deus estava próximo
e que ele seria originado por um grande julgamento, universal, alcançando individualmente todos os vivos e
os mortos ressuscitados do povo judeu e de todas as nações. Tratava-se de um julgamento com nítidas
características judiciais.
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Todos seriam julgados de acordo com os seus feitos em vida, já que todos os pecados haviam sido
registrados em livros celestiais.
Como resultado do julgamento, os justos serão abençoados com a vida eterna e feliz no paraíso e
os injustos serão condenados à dor eterna no Hades. Havia duas versões sobre quem seria o responsável por
julgar, uma dizia que seria o próprio Javé, outra que seria o Messias.
A SEPARAÇÃO DA CRENÇA ESCATOLÓGICA E DA IDEIA MESSIÂNICA
Originalmente, a crença na ressurreição e no reino messiânico, inaugurados pelo juízo final, coincide
com a crença escatológica como crença em um mundo futuro. Mas posteriormente surgiram duas ideias
que levaram à separação uma da outra.
O instinto da justiça retributiva estabelecia que logo após a morte seria conferida a recompensa aos
justos e o castigo aos injustos. Para instrumentalizar esta vontade, havia duas teorias. De acordo com a
primeira, o Xeol era dividido em compartimentos, um de tormentos e outro de felicidade. Já na segunda
versão, os justos iriam imediatamente para o céu. A retribuição imediata após a morte podia ter caráter provisório, enquanto existisse a crença no juízo
final e na ressurreição. Todavia, tornou-se crescente a ideia do reino de Deus como o reino messiânico que
não mais foi concebido como uma etapa final, mas sim como limitado no tempo. A ressurreição e o juízo
final deixaram de ser o marco inicial deste reino para ser o seu ponto final.
A IDEIA QUE JESUS TEM DO REINO DE DEUS
Não há como separar na pregação de Jesus a esfera messiânica e a escatológica, o mundo futuro
de justiça coincide com o reino messiânico. O messias proferia avaliações pessimistas do mundo em que
vivia e afirmava que diante de tamanhas injustiças, seria necessário uma inversão completa das relações
sociais existentes para se alcançar o reino de Deus.
O princípio da inversão: Para exemplificar este princípio pode-se utilizar a famosa passagem em que
Jesus diz : “muitos que hoje são os primeiros serão os últimos então, e os últimos serão os primeiros”.
Este princípio está em total desconformidade com a justiça do amor, pois é uma aplicação do
princípio da retribuição. Ora, ele aduz nada mais de que os felizes não merecem esta felicidade porque são
injustos e serão punidos tornando-se infelizes, e os que são infelizes não merecem sua infelicidade e,
portanto, serão recompensados com a felicidade no reino de Deus.
A ideia de retribuição no ensinamento de Jesus.: Os evangelhos atribuem a Jesus alguns feitos e
ditos que não estão inteiramente em conformidade com o seu mandamento de não resistir ao mal e amar
o inimigo tal como em Mateus 16,2 “ O filho do homem [...] pagará a todos pelo que fez.”
Mesmo quando prega a nova justiça do amor, Jesus não consegue se emancipar totalmente da
velha justiça da retribuição. Isto fica bastante evidente quando diz “deveis sempre tratar os outros como
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gostaríeis que eles vos tratassem” (Mateus 7,12), o que é uma afirmação bastante parecida com a
pregação do princípio da retribuição do rabino Hillel: “O que é odioso para ti não inflige aos outros”.
O ensinamento de Jesus sobre o juízo final: Jesus pregava como o dia do grande castigo cruel o dia
do juízo final, do grande julgamento que poria fim à era injusta e seria o início da era justa.
Segundo Lucas 3,16; “Só vos batizo em água, mas alguém está vindo que é mais forte que eu, cujassandálias não sou digno de desatar. Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo. Ele tem o forcado na mãos
para limpar a eira e guardar seu trigo no celeiro, mas ele queimará o joio com fogo inextinguível.”
“O reino de Deus está no meio de vós” : Por meio de suas palavras, infere-se que Jesus acreditava
que o Reino de Deus já havia chegado, o que é conseqüência inevitável da crença de que ele é o Messias
cuja missão é estabelecer o reino de justiça nesta terra.
O reino de Deus como realização da justiça na terra: O reino de Deus tal como concebido na
tradição judaica era terreno, algo físico e não meramente espiritual. Fala-se em comer e beber no reino de Deus. Há de ressaltar-se que Jesus afirma que não haverá
casamento e, consequentemente, relações sexuais, no reino de deus apesar da doutrina tradicional
garantir que tanto o solo quando as mulheres seriam muito férteis no novo reino de justiça.
A eliminação das relações sexuais no reino de deus advém da tendência para a sua
espiritualização, que cresceu após a morte de Jesus, sob a influência de necessidades políticas e da
especulação filosófica.
A própria morte de Jesus confirma a sua crença de que o reino de Deus era terreno pois ao ser
questionado por Pilatos respondeu que era o Messias e o rei de Israel, motivo pelo qual foi condenado.
A famosa frase de Jesus “meu reino não é deste mundo” refere-se apenas ao fato de que se origina
no céu e será estabelecido na terra por intervenção direta e miraculosa de Deus.
Outra comprovação de que o reino de deus não era apenas meramente espiritual está na crença
na ressurreição e no juízo final, que inicia este reino e é um julgamento tanto de vivos quanto de mortos.
A justiça do juízo final: a retribuição. Jesus anuncia o juízo final como os “dias de vingança”, logo a
justiça a ser realizada nele nada mais é do que a retribuição.
Em diversas passagens bíblicas fica demonstrado que o juiz do juízo final é o Messias, Jesus, e que ele
próprio acreditava nisto. Mais uma vez fica nítido o antagonismo entre Jesus como o pregador da justiça do
amor e ao mesmo tempo, juiz impiedoso do juízo final. Tentou-se solucionar este impasse ao longo dos
tempo diferenciando o que seriam ditos autênticos e não- autênticos de Jesus com base em uma análise
histórico-crítica das fontes. Assim alguns trechos de Mateus em que ele aponta Jesus como juiz foram
atribuídos á sua própria autoria, e não ao Nazareno.
O ENSINAMENTO DE JESUS COMPARADO COM O ENSINAMENTO DE PAULO
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A rejeição de Paulo da lei judaica: Há uma diferença entre o ensinamento de Jesus e o de Paulo
que se revela no tocante à ideia de justiça e sua relação com o direito positivo.
Inicialmente, Jesus tentou manter a aparência de que não era contrário à lei judaica, já Paulo
afirmou abertamente que “Agora a Lei não se aplica a nós” (Romanos 7,6).
Entretanto, a “Lei” contra a qual Paulo insurge-se eram apenas as disposições rituais do código
judaico. Ele reconhecia e confirmava as principais instituições jurídicas do Direito Positivo de seu tempo talcomo a família fundamentada no casamento, a propriedade baseada no trabalho e o governo firmemente
estabelecido no Estado.
O ensinamento de Paulo quanto ao casamento e á propriedade. Paulo também acreditava no
celibato, mas como viviam em tempos de muitas imoralidades, aceitava o casamento como um mal
menor, a fim de que cada homem tivesse uma mulher e cada mulher um marido. A relação entre pais e
filhos deveria ser pautada na obediência dos últimos.
Já quanto ao trabalho, houve um receio após a morte de Jesus de que os cristãos passassem a
encará-lo como algo supérfluo já que o Reino de Deus estava próximo e não seria necessário o trabalho,pois Deus atenderia a todas as necessidades dos homens.
Paulo passou então a exaltar o trabalho, que cada um adquirisse sua sobrevivência por suas
próprias mãos, ele mesmo não abandonou o seu ofício quando passou a se dedicar à pregação.
Jesus orientou a seus discípulos a não andarem com dinheiro, Paulo, contrariamente, organizava
coleta de dinheiro para os primeiros cristão de Jerusalém. Jesus doutrinou que um rico não poderia entrar no
reino dos céus, já Paulo, “suavizou” dizendo que bastaria que esses ricos realizassem boas obras para
garantir o seu lugar no reino da justiça.
O ensinamento de Paulo sobre a autoridade estabelecida. Jesus não reconhecia nenhuma
autoridade terrena nem pregou pelo pagamento de impostos, mas Paulo, afirmava expressamente que
deveriam ser pagos os impostos aos homens autorizados a recebê-los e que todas as autoridades deviam
ser respeitadas, pois foram estabelecidas por Deus. Para Paulo, as autoridades do império romano eram
agentes de deus enquanto para Jesus elas eram o reino de Santanás.
Conclui-se que Paulo ao reconhecer o direito positivo romano e suas autoridades cria uma
verdadeira justificação para o princípio da retribuição como uma manifestação da vontade de Deus.
A IDEIA MÍSTICA DE JUSTIÇA DE PAULO
A interpretação de Paulo da justiça do amor. Depois de ter insistido na obediência incondicional à
lei do Estado e de, assim, ter reconhecido a retribuição como o princípio da justiça, Paulo passa a pregar o
amor ao próximo.
A partir de então, coloca-se a questão se esse amor é compatível com a Lei baseada no princípio
da retribuição, se é o amor que Jesus pregou em oposição à lei de talião. Neste momento, Paulo passa a
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defender a nova ideia de justiça de Jesus, o amor de deus, e a distinguir a justiça baseada na lei da justiça
baseada na fé.
Paulo passa a professar o mandamento de Jesus “não pagueis o mal com o mal”, “não te vingues”,
mas acrescenta, “deixa espaço para a ira de Deus, pois a Escritura diz, ‘a vingança pertence a mim, eu me
vingarei, diz o Senhor” (Romanos 12,17 ss.).
Assim, sendo as autoridades instituídas por Deus, é a vontade de Deus que os malfeitores sejampunidos por estas autoridades.
A espiritualização do Reino de Deus no ensinamento de Paulo. Como Paulo se considerava um
cidadão romano e reconhecia as suas autoridades, ele não podia defender o Reino de Deus como algo
terreno, por isso ele tratou de torná-lo em uma ideologia puramente religiosa e apolítica. O Reino de Deus
passa a ser algo para um mundo transcendental e a sua espiritualização é a principal contribuição de Paulo
para a crença cristã.
Outro ponto importante da contribuição de Paulo foi o da ressurreição dos mortos, trabalhando a
ideia de que da mesma forma que há um corpo físico há um espiritual e é este que ressuscita. Assim, adestruição da morte significa a imortalidade da alma.
Justiça:o segredo da fé. A crença na imortalidade da alma – e isso quer dizer em uma justiça a ser
realizada em um outro mundo, um mundo transcendental – tem um caráter conservador. Ela alimenta o
homem, que sofre a injustiça neste mundo, com a esperança de que os que lhe infligem o mal serão
punidos após a morte. Portanto, não é necessário fazer nada neste mundo.
A tentativa de Paulo de espiritualizar o Reino de Deus visa evitar embates políticos com o governo
romano, mas deriva também da forte inclinação que ele tinha para o irracionalismo e o misticismo.
Ele era plenamente consciente da incompatibilidade entre o princípio da retribuição aplicado na
época e a justiça do amor de Jesus, porém afastava esta última do plano real, localizando-a no espiritual.
Não seria por meio da sabedoria humana que se equalizaria este impasse, mas por meio da sabedoria da
fé.
A sabedoria de Deus – o que implica sua justiça – é um mistério da fé, nada mais além da fé,
permite-nos apreender essa justiça. Vezes e vezes Paulo enfatiza que “a maneira da justiça de Deus é
revelada pela fé e para a fé” (Romanos 1,17;3,2). Para a compreensão humana, a justiça do amor
permanece um segredo.
Por fim, a conclusão dos ensinamentos de Paulo (que são a base da teologia cristã da justiça) é que
existe uma justiça humana, relativa, que é idêntica ao Direito positivo, e uma justiça absoluta, divina, que é
o segredo da fé. Portanto, não existe nesta teologia nenhuma resposta à questão do que é justiça , uma
questão da razão humana que se refere a um ideal que não é necessariamente idêntico a todo o Direito
positivo e que pode ser realizado neste mundo.
CAPÍTULO 03: A JUSTIÇA PLATÔNICA
Platão possui uma visão filosófica dualista radical. Platão enxerga dois mundos: um transcendente, sem
espaço nem tempo, isto é, o mundo das idéias (mundo real, ser verdadeiro) e outro da semelhança ilusória,
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isto é, o mundo sensorial (mundo do não-ser, ser aparente, percepção sensória dessa aparência de ser). A
concepção ética desse dualismo platônico apresenta a oposição entre o bem e o mal. Trata-se de uma
oposição de valores, entre o mundo superior e o mundo inferior.
A ética (dever-ser transcendental) deve prevalecer sobre a ciência natural ( ser empírico).
Somente através da idéia moral é possível buscar o bem absoluto (objetivo de toda filosofia platônica). O
conhecimento do bem (mundo das idéias), contudo, é inseparável do conhecimento do mal (mundo
sensorial).
Na ética, essa oposição entre o bem e o mal é absoluta. Já nas ciências naturais tal oposição é relativizada,
reconhecendo-se o mal como ser, como realidade. Na concepção platônica original de estrutura do
mundo, encontra-se claramente presente uma inclinação para tornar absoluto esse dualismo fundamental
entre bem e mal. Isso é expressão de um dualismo extremamente pessimista encontrado em Platão, pois ele
nega a possibilidade da ciência empírica e proclama como único objeto da cognição verdadeira o que se
encontra além da experiência, no mundo das ideias (Mito da caverna).
No entanto, há indícios na doutrina platônica de uma tendência para tornar relativo esses opostos (bem e
mal). Nessa relativização, o dualismo platônico assume um viés otimista, enxergando a natureza e o mundo
sensorial como algo que é e não que deve ser (a natureza deixa de ser considerada meramente a partir de
um ponto de vista ético).
Platão era, por temperamento, mais um político do que um teórico. Em seus escritos fica claro que Platão
tinha uma paixão política e um desejo pelo domínio do Estado. Para Platão, a tarefa dos filósofos deve ser
governar. Logo após sua primeira viagem à Sicília, Platão fundou a Academia Platônica, cuja forte função
política era a preparação para a vocação de estadista. A Academia se tornou um centro de educação de
políticos conservadores. A educação era a compensação para a política e a escola a virtual célula do
Estado ideal. A obra da Academia voltava-se mais para uma especulação ética e mística do que para a
ciência exata. Essa postura de Platão significa o abandono completo do racionalismo socrático. Platão
recorre mais e mais a mitos quando deseja explicar o que considera essencial. Platão não se volta ao
pensamento científico e busca se desvencilhar de sua obra. É a postura de um político. Kelsen então
conclui: “Devemos então admitir que não há em nenhuma parte uma teoria platônica específica, isto é,
nenhuma doutrina que esteja inseparavelmente ligada ao nome de Platão, pelo menos nenhuma de que
tenhamos conhecimento. É como Platão desejava”.
A forma escolhida por Platão para se expressar, os diálogos, diz muito sobre o filósofo, pois as falas estão na
boca de seus personagens (entre eles Sócrates e o Estranho Ateniense). Assim ele consegue não se
identificar com nenhuma das teorias defendidas no diálogo, exatamente o que ele queria. Além disso, a
forma do diálogo representa bem sua natureza dividida. Assim, ele podia manifestar as duas visões de seu
conflito interior, dando voz ao adversário que carregava no próprio peito, afastando a forma de um
monólogo como num tratado científico, no qual apenas uma opinião aparece.
Para Platão o conhecimento científico não é um fim em si, e sim um meio para que o homem possa agir
acertadamente. O único conhecimento real é o do bem, da divindade. A ciência moderna, como para
Kelsen deve ser, é um fim em si mesmo, deve ser independente da política ou da religião, deve ser
desenvolvido por si só. Para Platão, o pensamento científico deveria existir para servir à política, à
educação, etc. Diz Kelsen, no entanto, que conhecer o mundo é diferente de querer educá-lo ou dominá-
lo, ou seja, de determiná-lo de acordo com a vontade. Quando o conhecimento científico serve à política,
ele se torna uma ideologia de poder (verdade platônica), abandonando o ideal de verdade objetiva.
A República (divisão tripartite do organismo social como constituição do verdadeiro Estado): Platão
defende a existência de um Estado ideal, que coincide com a Justiça. Esse Estado pode determinar a
opinião de seus cidadãos utilizando-se da maneira que julgar mais adequada, inclusive valendo-se de
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mentiras como um meio para o melhor governo, pois a vontade deve prevalecer sobre o conhecimento; a
Justiça deve prevalecer sobre a verdade. Para tal intento, Platão defende a ideia de que “os fins justificam
os meios”. Platão sustenta que não somente as atividades do homem, mas também seus pensamentos e
crenças estejam a serviço e sob o comando do Estado. Verdadeiro é aquilo que é útil ao Estado, mesmo
que não corresponda a uma verdade científica.
No diálogo Górgias, Platão diz que Justiça é retribuição pelo mal e a recompensa pelo bem no outro
mundo, após a morte (crença na existência da alma, que é o que sofrerá essa retribuição no outro mundo).Justiça fórmula da retribuição (crítica de Kelsen: o conceito de retribuição é vazio); - o que é o bem para
os bons e o que é o mal?).
O Estado, como aparelho coercitivo da retribuição, é o instrumento da Justiça (do bem, portanto) nesse
mundo. Platão, no entanto, não responde à questão sobre a natureza do bem em si (apenas eleva o objeto
da discussão a um grau de divindade). O filósofo que governa o Estado ideal conhece o bem (talvez seja o
único), e os outros devem apenas adorar e obedecer.
O bem absoluto somente pode ser objeto de uma experiência religiosa. Assim, não pode ser apreendido
pelos sentidos e sim através de um conhecimento interior, por isso não pode ser explicado através da
expressão verbal. Assim, o segredo da Justiça não pode ser revelado, trata-se de um mistério divino. Nesse
ponto, Platão se aproxima de uma misticismo genuíno, ou seja, do conhecimento do bem absoluto parasalvar a si próprio. Se afasta desse misticismo, no entanto, já que toda essa busca existe visando a um fim
social, a um fim político. Platão diz que somente o filósofo governante é capaz de conhecer o bem divino e
é exatamente por isso que esse homem deve ser o governante. Os outros homens, os governados, não
podem ´participar do governo porque não foram contemplados com a graça de conhecer o bem. Assim,
deve fielmente confiar e obedecer ao governante. Assim, o governante salva a si e aos governados, que
encontram a salvação através da submissão completa à autoridade do governante.
CAPÍTULO 04: A DOUTRINA DA JUSTIÇA EM ARISTÓTELES
Aristóteles desenvolve sua filosofia sobre uma base inteiramente racionalista e também fortementeinfluenciada pela moral.
Ocupa-se do conhecimento da realidade, do conhecimento da natureza, do ser (ontologia): “as coisas que
são mais cognoscíveis são os princípios e as causas iniciais, pois é por meio destes e a partir destes que
outras coisas vêm a ser conhecidas”.
A formulação da filosofia moral de Aristóteles é encontrada no capítulo Ética a Nicômaco e inicia com a
seguinte afirmação: “o bem é aquilo a que todas as coisas visam”. Entender o que é esse bem supremo é o
objeto de sua Metafísica (que tem como objetivo, em última análise do conceito de Deus, que é ao mesmo
tempo a primeira causa e o último fim, isto é, o bem absoluto).
Aristóteles faz um paralelo entre o bem e a felicidade: sua ética define o bem como ”o fim último”, “algo
pelo qual tudo o mais é feito”, ele deve ser a felicidade, pois “a felicidade, acima de tudo, parece serabsolutamente última neste sentido, já que sempre a escolhemos por si mesma e nunca como um meio
para outra coisa”. O resultado dessa investigação é que a felicidade é identificada como a virtude . Assim,
se o homem conduz sua conduta de acordo com as normas morais, isto significa ser virtuoso e obterá a
desejada felicidade. A felicidade é, então, uma recompensa pela virtude, ou como consequência dela (e
não idêntica a ela). Esse é o ensinamento dessa filosofia moral.
Assim, o bem, o valor moral, é humanizado, é apresentado como a virtude do homem. A Ética de Aristóteles
almeja um sistema de virtudes humanas, entre as quais a justiça é a “principal das virtudes”, a “virtude
perfeita”. Mas afinal, o que são as virtudes morais, o bem? Aristóteles responde com sua famosa Doutrina do
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Meio, segundo a qual a virtude é um estado médio entre dois extremos , que são vícios, um o do excesso, o
outro o da deficiência (o moralista descobre o bem descobrindo o ponto médio entre dois vícios).
Crítica de Kelsen à Doutrina do Meio de Aristóteles (fórmula da Mesótes): quantificar o valor moral,
esquematizando-o como “muito”, “médio” ou “pouco”, como num método matemático-geométrico é uma
falácia. A afirmação de que uma conduta humana definida é boa ou má, certa ou errada, justa ou injusta,
virtuosa ou viciosa, pressupõe a assunção de que algo deve ser feito. A afirmação de que algo deve ser ou
deve ser feito é uma norma. Na realidade, ou a conduta humana está em conformidade com uma normapressuposta como válida, ou não está em conformidade com uma norma pressuposta como válida. O que
é certo ou errado é a conduta na sua relação com a norma moral, e essa relação não é suscetível de
graus.
Kelsen, no entanto, “salva” a fórmula da mesótes de Aristóteles afirmando ser possível aplica-la na hipótese
de haver duas normas regulamentando a conduta humana. Assim, somente um dos vícios (extremos)
violaria realmente àquela norma. O outro vício violaria uma segunda norma. Exemplifica com a virtude da
coragem, caminho do meio, cujos extremos são a temeridade e a covardia). Explica Kelsen que ser
covarde viola a norma que determina a coragem, porém ser temerário (excesso de coragem) não viola a
norma que determina a coragem e sim a norma que determina a prudência (cada vício viola, portanto,
normas diferentes). Assim, para Kelsen a conduta virtuosa é aquela que obedece ambas as normas. Noentanto, assume o autor que a doutrina da mesótes não explica como isso seria possível.
Kelsen ainda aponta outra crítica na doutrina de Aristóteles (crítica percebida pelo próprio Aristóteles): o
ponto do meio (virtude), como a medida exata entre dois pontos extremos (vícios), não pode ser definida
da mesma forma que duas extremidades de uma linha cortada num ponto eqüidistante dela (“meio” em
sentido objetivo – mesmo e único para todos). Às vezes, a virtude seja mais pendente para um dos extremos
(“meio” em sentido subjetivo), não podendo ser algo tão determinado quanto o meio ponto de uma linha.
Segundo as próprias palavras de Aristóteles: “Está claro então que é a disposição média em cada divisão
da conduta que deve ser louvada, mas que se deve pender às vezes para o lado do excesso e às vezes
para o lado da deficiência, já que esta é a maneira mais fácil de atingir o meio e o curso correto”. A virtude,
assim, não é o meio, mas sim o curso correto (“sabedoria prática”, que corresponde à ordem moralaristotélica).
Conclusão: a virtude é a disposição dos homens que está em conformidade com a ordem moral. A virtude
é a observância do meio relativo a nós ( e não à coisa objetiva).
Aristóteles não prova que os dois extremos, ou seja, os males ou vícios, existem. Ele os pressupõe como
evidentes. Assim, sabendo-se o que é o mau, eu sei o que é o bem (a doutrina da mesótes determina de
modo peremptório o valor moral, porém não resolve o problema que ela mesma cria: o que é mal/vício e o
que é o bem/virtude?). Quem explicitará tais elementos é a moralidade positiva e o Direito positivo – ordem
social estabelecida. Assim, Aristóteles justifica essa ordem social estabelecida, o que, para Kelsen, é a
verdadeira função da fórmula da mesótes.
Conceitos de Justiça para Aristóteles:
1. Legitimidade: conformidade com o direito positivo (que corresponde à felicidade de todos ou de apenas
uma classe dominante); Justiça no sentido geral (virtude perfeita ou principal das virtudes).
2. Igualdade: justiça particular. Dois sentidos:
2.1. Justiça Distributiva: “é exercida na distribuição da honra, da riqueza e dos outros bens divisíveis da
comunidade que podem ser distribuídos entre os seus membros em quotas iguais ou desiguais pelo
legislador”. Igualdade proporcional, que leva em consideração as diferenças entre as pessoas e que
depende do Direito Positivo. Fórmula: “a cada um o seu”, “a cada um o que lhe é devido” (e quem vai
determinar o que é devido a cada um é o Direito Positivo, legitimado pela Justiça Distributiva. Kelsen define
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essas fórmulas nas quais se funda a doutrina da Justiça de Aristóteles como uma tautologia vazia pela
possibilidade ilimitada de usar essa fórmula para absolutamente qualquer propósito, afinal, devo dar a cada
um o que lhe é devido, mas exatamente o que é devido a cada um?).
2.2. Justiça Corretiva: “é aquela que fornece um princípio corretivo nas transações privadas, voluntárias
(direito civil) ou involuntárias (direito penal)”. È aquela exercida pelo juiz ao solucionar disputas e infligir
punições aos delinqüentes. O juiz restaura a igualdade ferida nessas relações entre particulares (ex.: prestar
um serviço e não receber a retribuição; ferir uma pessoa com uma faca). Média aritmética entre o maior eo menor, que devem ser igualados, já que iguais jamais serão. O próprio Direito, por sua natureza coercitiva,
já prevê o princípio retributivo, prescrevendo sanções ao diversos ilícitos. Origem: instinto primitivo de
vingança do homem. A objeção de Aristóteles à regra “igual ou igual” como princípio de Justiça é que a
relação mérito-recompensa, crime-punição, não é a igualdade, mas sim a proporcionalidade. Pessoas que
estão na mesma situação devem receber o mesmo direito (filosofia moral), mas quem vai dizer quem são as
pessoas na mesma situação e qual direito deve receber é o Direito Positivo.
Justiça na fórmula da mesótes: “A conduta justa é o meio entre cometer e sofre a injustiça, pois o primeiro é
ter muito e o segundo é ter pouco”. Justiça é a igualdade perante o Direito (aplicação, portanto, da norma.
Nesse sentido igualdade = legitimidade). O conceito de Justiça na filosofia moral de Aristóteles, como em
qualquer filosofia racional, é a aplicação das normas gerais a todos os casos particulares que incidiremnaquela hipótese normativa. Isso porque o conceito de Justiça produzido por uma filosofia moral
racionalista não tem conteúdo definido., não é capaz de determinar o conteúdo de uma norma justa.
Assim, podemos diferenciar esse conceito de Justiça (obediência ao Direito positivo, ao sistema normativo
logicamente satisfatório), do que é moralmente satisfatório, já que um sistema de regras gerais pode ser
totalmente injusta no sentido original do ideal.
Capítulo 05 - O que é Justiça - Hans Kelsen - A doutrina do Direito natural perante o tribunal da ciência
I
A doutrina do direito natural procura responder à questão quanto a o que é certo e errado nas relaçõesmútuas entre os homens. Para tanto, fundamenta-se na suposição de que é possível fazer uma distinçãoentre a conduta humana "natural" e a "antinatural", contrária à natureza.
Essa suposição implica que é possível deduzir a partir da natureza do homem, da sociedade, e das coisas,certas regras absolutamente adequadas à conduta humana. “A natureza é concebida como um legislador,o supremo legislador".
Essa visão pressupõe que os fenômenos naturais são dirigidos para um fim ou moldados para um propósito,
determinados por causas finais. Trata-se de uma visão teleológica, e, como tal, não difere da ideia de que anatureza é provida de vontade e inteligência.
Em etapas iniciais da civilização manifestava-se no animismo (crença de que as coisas - animais, plantas,são animadas por espíritos e reagem ao homem como seres pessoais).
"Se a doutrina do Direito natural for coerente, deve assumir um caráter religioso. Ela pode deduzir danatureza regras justas de conduta humana apenas porque e na medida em que a natureza é concebidacomo uma revelação da vontade de Deus". (...) “Na verdade, não há nenhuma doutrina do Direito naturalcom certa importância que não tem um caráter mais ou menos religioso”.
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A primeira objeção do ponto de vista da ciência é que essa doutrina oblitera a diferença que existe entreas leis científicas da natureza, de um lado, e as regras por meio das quais a ética e a jurisprudênciadescreve seus objetos, que são a moralidade e o Direito, de outro. A lei científica da natureza é a regra pormeio da qual os fenômenos são relacionados pelo princípio da causalidade. Já a moralidade e o Direitoreferem-se a normas que prescrevem a conduta humana, normas que são o significado específico de atosde seres humanos.
"Uma lei da natureza é um enunciado no sentido de que se A existe, B existe, ao passo que umaregra de moralidade, ou uma regra de Direito, é um enunciado no sentido de que se A existe, B deve existir .Trata-se da diferença entre o "ser" e o "dever ser", a diferença entre causalidade e normatividade (ouimputação)".
Se pressupusermos uma regra geral que prescreve certo tipo de conduta humana, podemos caracterizar aconduta concreta que está em conformidade com ela como boa, certa, e a que não está emconformidade como errada, má, incorreta.
Esses enunciados são chamados de juízos de valor, o termo sendo usado em um sentido objetivo. Sem apressuposição de uma norma geral prescrevendo (ou proibindo) algo, não podemos fazer um juízo de valorno sentido objetivo desse termo.
"O valor não é inerente ao objeto julgado como valioso, é a relação desse objeto com uma normapressuposta. Não podemos encontrar o valor de uma coisa real ou de uma conduta efetiva analisandoesses objetos. O valor não é algo imanente à realidade natural. Portanto, o valor não pode ser deduzido darealidade".
As normas a que se referem a moralidade e o Direito são o significado de uma autoridade moral ou jurídica.Na medida em que essa autoridade é um ser humano, essas normas são subjetivas em caráter, isto é,expressam a intenção do seu autor.
Aquilo que alguém visa como um fim também é chamado de valor, mas em um sentido subjetivo dessetermo. Se é um fim último, é chamado valor supremo. Frequentemente um valor supremo está em conflito
com outro, como a liberdade pessoal com a segurança social, o bem estar do indivíduo isolado ou danação inteira. Surge a questão de qual o valor seria superior.
Essa questão, contudo, não pode ser respondida da mesma maneira que se o ferro é mais pesado que aágua, ou seja, de um modo experimental, científico. Só podem ser decididas emocionalmente, pelossentimentos ou desejos do sujeito que decide.
"Um sujeito pode ser levado por suas emoções a preferir a liberdade pessoal; outro, a segurançasocial (...). Não se pode provar por meio de nenhuma consideração racional que um está certo e o outroerrado. Consequentemente, existem, a bem dizer, sistemas muito diferentes de moralidade e sistemas muitodiferentes de Direito, ao passo que existe apenas um sistema natural"
O que é bom segundo um sistema de moralidade pode ser mau em outro. Isto significa que os valores daconformidade com uma ordem moral ou jurídica são valores relativos.
"A doutrina do Direito natural pressupõe que o valor é imanente à realidade e que esse valor é
absoluto, ou, o que dá no mesmo, que há uma vontade divina inerente à natureza (...) fundamenta-se nafalácia lógica de uma inferência a partir do 'é' para o 'dever ser'.”
Assim, conclui Kelsen, as normas alegadamente deduzidas da natureza são – na verdade – tacitamentepressupostas, e fundamentam-se em valores subjetivos, que são apresentados como intenções da naturezacomo legisladora. “Perante o tribunal da ciência, a doutrina do Direito natural não tem nenhuma chance.Mas pode negar a competência desse tribunal recorrendo ao seu caráter religioso”.
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II
A doutrina do Direito natural é caracterizada por um dualismo entre Direito positivo e Direito natural. Acimado positivo, imperfeito, criado pelo homem, está o natural, perfeito (porque absolutamente justo). O Direitopositivo é justificado e válido apenas na medida em que corresponda ao Direito natural.
Disso decorre que o Direito positivo é inteiramente supérfluo, observa Kelsen.
Ocorre que "nenhum dos seguidores dessa doutrina teve a coragem de ser coerente (...). Pelo contrário.Todos eles insistem na necessidade do Direito Positivo”.
"Na verdade, uma das funções mais essenciais de todas as doutrinas do Direito natural é justificar oestabelecimento do Direito positivo ou a existência do Estado competente para estabelecer odireito positivo".
“Ao executar essa função, a maior parte das doutrinas enreda-se em uma contradição muitocaracterística. Por um lado, sustentam que a natureza humana é a fonte do Direito natural, o queimplica que a natureza humana deve ser fundamentalmente boa. Por outro lado, eles podem
justificar a necessidade do Direito positivo com seu mecanismo coercitivo apenas pela maldade dohomem”.
O único filósofo que evita essa contradição é Hobbes, pois parte da pressuposição de que o homem é maupela sua própria natureza. O Direito natural que se extrai dessa natureza, porém, é o princípio segundo oqual é necessário um Estado dotado de poder ilimitado para estabelecer o Direito positivo, que os homenssão obrigados a obedecer de forma irrestrita. Ocorre que essa argumentação equivale à negação doDireito natural pelo próprio Direito natural.
“Se, porém, o Direito natural for considerado um sistema de regras substantivas (ao invés de umamera autorização formalista para algum Direito positivo) então a contradição entre uma natureza humanado qual é deduzido o Direito natural e uma natureza humana que torna necessário o Direito positivo éinevitável”.
Embora sem uma avaliação tão pessimista, outros autores, como Pufendorf, admitem a 'maldade docaráter', 'propensão para causar dano' e 'estupidez' do homem tal que é necessário o estabelecimento doEstado para contê-lo. Mas, se a maioria dos homens é estúpida e má, como pode o Direito natural,absolutamente justo, ser deduzido a partir de sua natureza?
Pois, arremata Kelsen: "não é a partir da natureza do homem como ele realmente é que Pufendorf -e todos os outros autores - deduz o que considera ser o Direito natural. É a partir da natureza dohomem tal como ele deveria ser, e como seria se correspondesse ao Direito natural". "Não é o Direitoda natureza que é deduzido da natureza, da natureza real do homem, é a natureza do homem,uma natureza ideal do homem, que é deduzida de um Direito natural pressuposto de um modo oude outro".
III
Se o Direito positivo é válido apenas na medida em que corresponda ao Direito natural, normas criadas pelocostume ou estipuladas pelo legislador humano que sejam contrárias à natureza devem ser consideradasnulas. O grau em que cada autor se submete a essa consequência é prova de sua sinceridade.
Alguns filósofos evitam essa prova demonstrando que é impossível um conflito entre o Direito positivo e oDireito natural (Hobbes).
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Outros ("maioria avassaladora dos outros autores") tentam provar que tal conflito só pode existirexcepcionalmente, e, se ocorrer, a validade do Direito positivo quase nunca pode ser posta em dúvida.Nesse sentido Pufendorf.
Concordam Hobbes e Pufendorf, porém, que a opinião sobre o que deva ser considerado Direito natural sedeve ao Estado ou à opinião da autoridade competente.
Pufendorf expressa: 'a presunção de justiça coloca-se sempre ao lado do príncipe', “o que significaque há sempre uma presunção de que o Direito positivo é o Direito natural".
Outra maneira de alcançar a identificação do Direito positivo e o Direito natural parte da definição de justiça aceita pela maioria dos seguidores do Direito natural: a cada um o seu.
Percebe Hobbes que uma ordem jurídica será necessária para determinar o que é de cada um : "onde nãohá comunidade, nada é injusto". Embora criticando Hobbes, a doutrina de Pufendorf persegue o mesmocaminho: a justificação do Direito positivo pelo Direito natural.
Contudo, há um princípio advogado por todos os principais representantes da teoria no caso de conflito,caso se admita como possível, entre o Direito natural e o positivo: não há um direito (ou há um direito
restrito) deresistência.
Nesse sentido Hobbes, Pufendorf e Grotius: um tratamento injusto inflingido por um soberano deve ser antessuportado do que resistido pela força.
Locke avança nessa questão, ressaltando como justificável a resistência tão somente se o uso de força pelogoverno mostrar-se não apenas injusto, mas também ilegítimo, isto é, contrário ao Direito natural e tambémao Direito positivo. A quem caberia dizer se houve uso ilegítimo da força, contudo, Locke parece atribuir àspróprias autoridades estabelecidas pelo Direito positivo. Em outra passagem, porém, advoga: 'quem julgaráse o príncipe ou o legislativo agem contrariamente ao seu encargo? (...) “A isso respondo: o povo julgará”.Poucos foram tão longe quanto Locke.
"Kant, cuja filosofia do Direito é uma aplicação típica da doutrina do Direito natural, enfatiza que 'aresistência da parte do povo ao poder legislativo supremo do Estado não é legítima em nenhum caso".
Diante desta constatação, arremata Kelsen: O parecer de que a interpretação do Direito natural éprerrogativa das autoridades estabelecidas, e de que não há nenhum direito - ou apenas um direito restrito,praticamente ineficaz - de resistência a essa autoridades, equivale a uma completa desnaturação dadoutrina do Direito natural.
"Uma análise crítica das obras clássicas demonstra que sua função não era - como deixa implícita a ideiade um Direito natural superior ao Direito positivo - enfraquecer, mas fortalecer a autoridade do Direitopositivo". “A doutrina do Direito natural tem, como um todo, caráter estritamente conservador”.
Exemplo final é de Benedito Winkler, famoso representante do Direito natural protestante à época, que, emsua obra Principiorum Juris Libri Quinque (1615) ataca os novatores, ou seja, os que introduzem inovações nocampo do direito. O Direito positivo, jubet bona, provê o bem.
IV
O julgamento de que certa conduta ou instituição social seja "natural" significa, na verdade, apenas queesta conduta ou instituição está em conformidade com uma norma pressuposta, fundamentada em um
juízo de valor subjetivo de quem apresenta a doutrina de Direito natural. Ocorre que não existe apenasuma, mas várias doutrinas, que advogam princípios bastante contraditórios.
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Hobbes defenderá que o poder do governo estabelecido em conformidade com o Direito natural éabsoluto, ilimitado.
Locke, porém, deduz a partir da natureza que "o poder supremo não pode ser absolutamente arbitrário (...)pois, sendo apenas o poder reunido de todos os membros cedido à pessoa ou assembleia (...) ninguémpode transferir a outro mais poder do que tem em si, e ninguém tem um poder arbitrário absoluto, sobre si
ou sobre qualquer outro, de destruir sua própria vida ou tomar a vida ou a propriedade de outrem".
Rousseau, seguindo Locke, ressalta que "renunciar à liberdade é renunciar a ser homem (...) remover toda aliberdade de sua vontade é remover toda a moralidade de seus atos", "é uma convenção vazia econtraditória a que estabelece, por um lado, a autoridade absoluta, e, por outro, obediência ilimitada", poisnão se pode estar sob nenhuma obrigação para com uma pessoa da qual temos o direito de exigir tudo.
O poder do Estado é necessariamente limitado segundo esta versão de Direito natural, de modo que amonarquia absoluta é contrária à natureza. Assim, a forma de governo em conformidade com a lei danatureza seria a democracia, governo cujo poder seja derivado do povo.
Contudo, exatamente pelo mesmo método, Filmer prova que a democracia é contrária à lei da natureza.
Sua tese é a de que é antinatural que o povo governe ou escolha governantes. Critica o princípio da
maioria e argumenta que "Deus sempre governou o povo apenas pela monarquia".
Kelsen lembra que o problema crucial de seu tempo é o princípio da propriedade privada e a justiça dosistema jurídico e econômico fundamentado nesse princípio.
"O fato de na jurisprudência e na teoria política recentes ser observável um renascimento notável dadoutrina do Direito natural pode, em grande medida, ser explicado pela ideia, largamente difundida entre
advogados e políticos, de que o sistema capitalista, na sua luta contra o comunismo, só pode ser defendidoeficazmente por essa doutrina. De fato, os mais destacados defensores do Direito natural, de Grotius a Kant,fizeram o melhor que puderam para provar que a propriedade privada é um direito sagrado conferido pelanatureza divina ao homem".
Grotius tenta explicar que Deus originalmente estabeleceu uma comunidade da propriedade, mas esteestado de coisas correspondia "à simplicidade dos primeiros homens". Os homens "degeneraram na astúcia"e a propriedade comum foi abandonada.
Uma das "tentativas mais originais de deduzir o direito da propriedade privada a partir da natureza" é a feitapor Richard Cumberland, bispo de Peterborough. Argumenta que a necessidade de promover o bempúblico as coisas devem ser concedidas a homens particulares para capacitá-los a promover esse bem, edeles não pode ser retirado enquanto essa necessidade continuar. Assim, necessário à felicidade daspessoas "que o uso das coisas deva ser limitado, pelo menos por algum tempo, a pessoas particulares com
exclusão das outras".
Assim, a distribuição de bens em conformidade com o Direito natural pela lei positiva da propriedade é tida
como justa; ela assegura a maior felicidade possível. Consequentemente, qualquer tentativa de mudá-la esubstituí-la por outro sistema econômico será injusta.
Seguidores do Direito natural argumentam que um dos propósitos essenciais do Estado, isto é, do Direitopositivo, é proteger o direito de propriedade estabelecido pelo Direito natural .
Nesse sentido, a tese de Locke de que o poder do Estado é limitado pelo Direito natural refere-se emprimeiro lugar à propriedade: “O poder supr emo não pode tirar de nenhum homem parte de suapropriedade sem o seu consentimento”. Nem o sargento, que pode ordenar a um soldado que marche até
a boca de um canhão, pode ordenar que lhe dê parte do seu dinheiro.
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Assim, não há direito absoluto à vida, mas há um direito absoluto à propriedade . Em vista de tais afirmações,anota Kelsen: "compreensível que a doutrina do Direito natural seja considerada um sólido bastião nadefesa contra o comunismo".
Contudo, “não podemos nos valer dele”, pois, com base na mesma doutrina do Direito natural, e com seusmétodos específicos, provou-se o contrário: que a propriedade privada é contrária à natureza e fonte de
todos os males sociais.
Essa foi a tese adotada na obra Código da Natureza (Paris, 1755), atribuída a Morelly. Tornou-se “o grandelivro do socialismo do século XVIII”, e partia da pressuposição de que a natureza é fundamentalmente boa.Proclama como primeira lei da natureza a “ lei da sociabilidade”, assentando-se na ideia de que a naturezadistribuiu as faculdades humanas entre os indivíduos em proporções diferentes, mas deixou a propriedadedos meios de produção indivisível para todos, a todos o uso de sua liberdade. Assume caráter inteiramente
religioso.
V
A razão pela qual o Direito natural tem grande influência no pensamento social é que satisfaz uma
necessidade profundamente arraigada na mente humana: a necessidade de justificação. Para justificar os
juízos de valor subjetivos que emergem do elemento emocional, o homem tenta apresentá-los comoprincípios objetivos, tornando-os proposições da mesma ordem que os enunciados sobre a realidade.
“A realidade, porém, pode ser concebida não apenas como natureza, mas também comosociedade ou história, determinada por leis análogas às leis da natureza. (...) Embora essas duas disciplinasse oponham diretamente à filosofia do Direito natural, aplicam o mesmo método, e, portanto, incorrem namesma falácia: a inferência do ‘é’ para o ‘deve ser’”.
Os representantes mais destacados da Sociologia no século XIX são Auguste Comte e Herbert Spencer. Soba influência de Lamarck e Darwin, chegaram à hipótese de uma lei social da evolução. Essa lei indica umprogresso da humanidade, de um estádio inferior para um estádio superior, e, finalmente, para um maiselevado. Este último coincide com o ideal político de cada um deles.
A suposição de que a evolução social é progressiva implica que um valor social é imanente à realidadesocial - pressuposto característico da doutrina do Direito natural. Porém, como o valor não é imanente àrealidade, não podendo ser averiguado objetivamente, a lei fundamental de Comte conduz a umresultado totalmente diferente da de Spencer.
Segundo Comte, a humanidade passa por três estádios sucessivos: teológico, metafísico e positivo. Kelsendescreve unicamente o estádio positivo, aquele que seria o Estado ideal da sociedade, que lembra emmuitos aspectos a República de Platão:
- Como Platão, Comte parte do dualismo vida especulativa / vida prática (a primeira se manifestanas atividades filosóficas ou científicas, a segunda na atividade industrial). Supõe a prioridade do
geral e simples sobre o especial e complexo. Consequentemente, haverá preponderância da vidaespeculativa sobre a vida ativa. - Também como no Estado ideal de Platão, os filósofos governam a classe trabalhadora. O futuro
poder espiritual “residirá em uma classe inteiramente nova, sem nenhuma analogia com qualqueruma que hoje exista”, com membros provindos de todas as ordens.
- A tarefa do poder espiritual será a de governar as opiniões e a moral, dirigir a educação, emeramente consultiva no que se relacione à ação, ao passo que a função do poder temporal seráa de governar as ações, a vida ativa, em conformidade com as ideias gerais elaboradas pelaautoridade espiritual.
- A sociedade futura não se fundamentará na ideia de direitos, mas no princípio do dever.
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- Não haverá nenhuma distinção entre função privada e pública, cada membro da sociedade serácomo um funcionário do Estado, o que equivale a uma socialização completa da vida humana.
- O sistema econômico pode ser caracterizado como espécie de socialismo moderado. Apropriedade privada existirá, embora seja antes um dever do que um direito.
- A autoridade especulativa, em virtude de seu valor superior e da imparcialidade de seu caráter,tornar-se-á naturalmente o árbitro principal dos conflitos práticos. Paz mundial e o estabelecimentode uma república europeia ou ocidental devem ser esperados.
Herbert Spencer também tem como instrumento principal uma lei de evolução progressiva. Na suaclassificação as sociedades podem ser simples, compostas, duplamente compostas e triplamentecompostas.
- As sociedades podem ser agrupadas em militantes e industriais. As militantes, na sua formadesenvolvida, são organizadas sobre o princípio da cooperação compulsória, ao passo que asindustriais são organizadas sobre o princípio da cooperação voluntária.
- Uma é representada por um poder despótico central, com poder político ilimitado, a outra umpoder central democrático e limitação do controle político sobre a conduta pessoal.
- A transição da primeira para a segunda é a transição da escravidão para a liberdade, daautocracia para a democracia, do estatismo para o liberalismo político. Essa transição é ao mesmotempo também a evolução para um estádio superior de moralidade.
- Supõe a vida humana como fim último, e, como tal, um valor supremo.
Spencer sustenta que “A evolução, sempre tendendo à autopreservação, chega ao seu limite quando avida individual é maior, tanto em extensão quanto em ampl itude”. Essa evolução ocorre em três etapas:autopreservação, preservação da prole e preservação dos semelhantes.
À questão se a evolução foi um erro, Spencer responde que não. A natureza está sempre certa. Há outrovalor, contudo, que reivindica a categoria de bem último na filosofia moral de Spencer: a liberdadeindividual. Não é a vida como tal, mas “a vida correta” que merece ser preservada.
Existem “leis da vida”, e uma delas é a “ lei da liberdade igual” que Spencer apresenta na sua fórmula de justiça: “Todo homem é livre para fazer o que quiser, desde que não infrinja a liberdade de algum outrohomem”. Reconhece esta lei como “a suprema lei moral”.
Desta lei da liberdade igual Spencer deduz direitos concretos como à integridade física, livre movimento e,principalmente, propriedade individual, que, como expressamente declara, implica que o comunismo éuma violação da justiça.
“o caráter de Direito natural desse tipo de sociologia é evidente. A lei da natureza é ou implica umanorma social. Essa sociologia permite a Comte justificar um programa altamente coletivista, e aSpencer, um programa político radicalmente individualista”.
VI
Por sua vez, os dois representantes mais notáveis da filosofia da história tal como desenvolvida no século IXI,são G.W.F. Hegel e Karl Marx.
A ideia básica da filosofia de Hegel é que a “Razão” governa o mundo, e, consequentemente, a história domundo, que é “o curso necessário racional do Espírito do Mundo”. As ações que compõem a história sãoapenas instrumentos do “Espírito do Mundo” para alcançar seu objeto.
Ocorre que não é possível distinguir “a vontade do Espírito do Mundo” da vontade de Deus. Para Hegel, aideia de que a Razão dirige o mundo é uma aplicação da ‘verdade religiosa’ de que o mundo não estáabandonado ao acaso, mas é controlado pela ‘Divina Providência’.
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“A chamada filosofia da história de Hegel é o mito do Espírito do Mundo; não é uma filosofia, masuma teologia da história”.
Hegel finaliza sua obra afirmando como resultado que o que aconteceu na história é essencialmente obrade Deus. “Essa é apenas outra, e mais sincera, formulação de sua tese mais citada: O Real é o Racional e oRacional é o Real”.
Contudo, argumenta Kelsen, se Deus é imanente ao mundo, o valor absoluto é imanente à realidade, nãohá como julgar um evento concreto ou uma fase da história como melhor ou pior do que outra. Se tudo énecessariamente bom, os juízos de valor perdem o significado.
“A teologia satisfaz sua necessidade de distinguir o bem e o mal introduzindo – à custa da coerência – o diabo como um contra-deus na interpretação ética do mundo. A filosofia de Hegel consegue omesmo resultado por meio da suposição de que a realidade, tal como manifestada na história domundo, não é perfeita, mas está a caminho da perfeição. A história do mundo é a realizaçãoprogressiva da razão”.
Hegel depara-se com a contradição lógica que é a essência do problema da teodicéia: a vontade
absolutamente boa de um Deus onipotente, diante da existência de mal no mundo. Para reconciliar sua
metafísica religiosa com a ciência racionalista, tem de inventar uma nova lógica.
Trata-se da lógica da dialética, que elimina a lei da contradição, argumentando que não apenas acontradição não é um defeito do pensamento, como este “detém a Contradição e na própriaContradição”.
Ao interpretar a relação de duas forças que operam em direções opostas como “contradição”, Hegelprojeta no ser a contradição do pensar. Tese e antítese não se excluem, mas produzem a síntese, a unidadeem que a contradição é resolvida, superada e preservada. É a contradição que move as coisas. “Omovimento é a Contradição existente em si mesma”. A contradição é o princípio do automovimento. É umalei do pensamento e, ao mesmo tempo, uma lei dos fatos.
“Esta visão – o valor é imanente à realidade – que na doutrina do Direito natural leva à falsaconclusão do “dever ser” a partir do “ser”, encontra-se também na base da falácia fundamental dadialética de Hegel: a identificação da relação de forças opostas na realidade externa com arelação de proposições contraditórias no pensamento”.
Com a ajuda de sua lógica dialética, porém, Hegel obtém os resultados mais importantes de sua filosofia dahistória: a deificação do Estado e do império mundial alemão . Sustenta que tudo que existe é racional, maso Estado é “absolutamente racional”.
A natureza é manifestação de Deus, mas inconsciente, e, portanto, incompleta. Já o Estado é manifestaçãoconsciente de Deus, o poder absoluto sobre a terra.
Na filosofia de Hegel, a história do mundo, como revelação da autoconsciência do Espírito do Mundo, exibe
quatro estádios sucessivos. Em cada estádio ou época uma nação é dominante; ela tem o direito absolutode governar o mundo. São representadas por quatro impérios mundiais: o primeiro foi o Oriental, o segundoo Grego, o terceiro o Romano e o quarto será o império mundial Germânico, que trará a unidade do divinoe do humano através do “princípio nórdico”.
Já o materialismo histórico de Karl Marx é fruto inequívoco da filosofia da história de Hegel, pois seuinstrumento decisivo é a lógica dialética de Hegel.
Marx declara, porém: “Meu método dialético não é apenas diferente do hegeliano, mas é o seu oposto”.Para Hegel (...) “o mundo real é apenas a forma externa, fenomênica da Ideia. Para mim, pelo contr ário, aideia nada mais é que o mundo material refletido pela mente humana e traduzido em formas de
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pensamento. [...] Com ele [Hegel] ela [a dialética] está de ponta-cabeça”. Deve ser endireitada caso sequeira descobrir o miolo racional dentro da casca mística.
Hegel é um idealista, Marx é um materialista. Mas Marx, assim como Hegel, compreende como a dialética aevolução por meio da contradição – uma contradição que Marx, assim como Hegel, sustenta ser inerente àrealidade social. Diferentemente de Hegel, porém menos coerente que ele, não identifica pensar e ser.
“Mas, ao rejeitar a identificação hegeliana de pensar e ser, Marx priva -se da única possibilidade de justificar – tanto quanto isso é possível – sua identificação falaciosa da relação de forças opostas nanatureza e na sociedade com a contradição lógica”.
“Nada pode demonstrar com mais clareza a futilidade do método dialético que o fato de este terpossibilitado a Hegel louvar o Estado como um deus e a Marx amaldiçoá-lo como um demônio”.
Segundo a doutrina de Marx e Friedrich Engels, o Estado é uma organização coercitiva com o propósito demanter a repressão de uma classe sobre outra. A sociedade comunista do futuro será uma sociedade semEstado, cuja ordem será mantida sem o emprego de força.
“As explicações precedentes demonstram que a doutrina do Direito natural (...) opera com um
método logicamente errado, por meio do qual os juízos de valor mais contraditórios podem ser, eefetivamente foram, justificados. Do ponto de vista da ciência, isto é, do ponto de vista de umabusca pela verdade, tal método é inteiramente destituído de valor. Mas, do ponto de vista dapolítica, como um instrumento intelectual na luta pela realização de interesses, a doutrina do Direitonatural pode ser considerada útil”. “Que a doutrina do Direito natural, como pretende, seja capaz
de determinar de modo objetivo o que é justo, é uma mentira; mas quem a considera útil pode usá-la como uma mentira útil”.
Capítulo 06 - Uma teoria “dinâmica” do Direito natural
A doutrina do Direito natural renasceu como “teoria dinâmica do Direito natural” após as crises vividas pelo
positivismo relativista durante as guerras mundiais. A principal característica do Direito natural está na visãomonista entre a realidade e o valor (ser e dever ser) e os juízos de valor são objetivamente verificáveisatravés da experiência, da mesma forma que são os juízos sobre a realidade. Enquanto que para opositivismo, os juízos de valor são subjetivos.
O positivismo relativista e dualista não afirma que não existam valores, ou que não exista uma ordem moral,mas apenas que os valores em que os homens realmente crêem não são valores absolutos, mas relativos, eque não existe uma, mas que existem muitas ordens morais diferentes. Portanto, as diversas ordens morais sópodem ser consideradas relativas. Se uma norma existe, isso não significa que ela decorre de um fato, masapenas que é válida e foi realizada por um ato de vontade humana.
A teoria dinâmica do Direito natural pressupõe que existe uma tendência para que o homem alcance aplenitude. As tendências podem ser classificadas em essenciais (naturais) ou acidentais. As tendênciasessenciais se conformam à natureza do homem e são comumente designadas como lei moral. Tambémdevem ser observadas por todos os indivíduos e realizadas até certo grau, para que haja um equilíbrio navida em sociedade. O padrão de ação universalmente exigido para o viver da vida humana é essencial(padrão do Direito natural). No entanto, se as normas de Direito natural tem de ser fundamentadas emdesejos naturais, isto é, desejos compartilhados por todos os seres humanos, não é possível estabelecer umsistema de normas naturais regulamentando a vida social dos homens.
A “obrigação” é um conceito fundamental de qualquer teoria jurídica ou moral. Que um indivíduo estejasob a obrigação ou que seja obrigado a conduzir-se de certa maneira significa que uma norma prescreveque ele deve conduzir-se dessa maneira. A obrigação é a norma em sua relação com o indivíduo cujaconduta é prescrita. A distinção entre obrigação no sentido normativo e o fato de que um indivíduo tem aideia de uma obrigação é frequentemente confundida por uma terminologia equivocada. É comum que secaracterize o caráter compulsório de uma obrigação, assim como o efeito motivador que a ideia de norma
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tem na mente de um indivíduo, como uma “necessidade”. A afirmação de que uma norma ou obrigação“necessita” de que o indivíduo conduza-se de certa maneira pode significar que, se um indivíduo está sobuma obrigação, ele deve conduzir-se em conformidade com essa obrigação. Pode, contudo, significartambém que a ideia da norma como motivo ou causa na mente do indivíduo tem, como efeito, umaconduta em conformidade com a obrigação. O primeiro significado do termo “necessidade” expressa umarelação normativa, enquanto o segundo expressa uma relação causal.
A norma fundamental do Direito natural dispõe que os homens devem conduzir-se de certa maneira se
sentirem uma necessidade urgente que sabem ser compartilhada por todos os homens e que sua satisfaçãoé necessária para a preservação e a promoção da vida humana, e, se sabem, além disso, que essaconduta constitui a satisfação dessa necessidade. O fato de que um homem, por causa de sua ignorância,não sabe ou não se importa se a necessidade que sente é compartilhada por todos os homens, ou o fatode que ele está errado quanto ao valor que satisfará adequadamente a essa necessidade, não podemlivrá-lo da obrigação moral em questão.
Existe uma diferença primordial entre Direito e obrigação que uma teoria jurídica ou moral não podeignorar, embora exista uma relação essencial entre os dois institutos. O Direito de um indivíduo de conduzir-se de certa maneira é condicionado pela obrigação de outro ou de todos de não impedir o primeiro ou decapacitá-lo a exercer seu Direito. Uma teoria moral pode afirmar a obrigação de não privar um homem domeio de satisfazer suas necessidades.
Se uma doutrina de Direito natural afirma que preservar ou promover a própria vida à custa da preservaçãoe da promoção da vida de outros seres humanos é contra a natureza do homem, ele não se refere ànatureza humana tal como ela realmente é, mas à natureza humana tal como deveria ser emconformidade com uma norma pressuposta. Ela não infere uma norma a partir da natureza real, mas infereuma natureza ideal a partir de uma norma pressuposta. Essa tendência de preservação e promoção daprópria vida é a expressão do egoísmo do homem, ao passo que todas as ordens morais, isto é, sociais,especialmente uma ordem moral que afirma ser lei natural e, portanto, válida sempre e em toda parte,estão voltadas contra o egoísmo do homem, sua tendência para satisfazer aos próprios interesses à custados interesses dos outros.
A norma fundamental pressuposta pela teoria dinâmica do Direito natural é a de que a vida humana deveser vivida, ou, o que dá no mesmo, a vida de todo ser humano deve ser preservada e promovida, noentanto, nunca foi reconhecida por nenhum sistema moral ou jurídico positivo, porque os sistemas morais ou
jurídicos efetivamente estabelecidos entre vários povos não consideram e não consideraram a vida detodos os seres humanos como igualmente valiosa.
Uma filosofia “realista” e “empírica”, como a teoria dinâmica do Direito natural afirma ser, certamente nãoestá em condições de negar que a realidade social é uma manifestação da natureza humana, e arealidade social é o Direito positivo, não um Direito natural imaginário.
Capítulo 07 - Juízos de valor na ciência do Direito
Na teoria do Direito existem dois tipos de juízo de valor. O primeiro refere-se à conduta dos sujeitos de direito
e qualifica essa conduta como lícita ou ilícita (valores de Direito ou juízo jurídico de valor). O segundo refere-se ao próprio Direito ou à atividade das pessoas que criam o Direito, podendo ser justo ou injusto (valores de justiça).
O juízo jurídico de valor sempre é verdadeiro ou falso quando analisado diante da ordem jurídica positiva(norma). Denominamos “norma” uma regra que determina ou proíbe certa conduta. O sign ificadoespecífico de uma norma é expresso pelo conceito de “dever ser”. Uma norma implica que um indivíduodeve conduzir-se de certa maneira, que um indivíduo deve fazer ou abster-se de fazer algo. Dessa forma, aconduta será considerada lícita se corresponder a uma norma jurídica e será considerada ilícita secontradizer essa mesma norma.
A norma e o ato que cria a norma são duas entidades distintas e que devem ser mantidas nitidamenteseparadas, porque não fazer essa distinção torna impossível obter uma descrição satisfatória do fenômeno
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do Direito. Como a norma jurídica passa a existir depois de completado o processo legislativo, sua"existência” não pode consistir na vontade dos indivíduos pertencentes ao corpo legislativo. Um jurista quequeira estabelecer a “existência” de uma norma jurídica não tenta, de nenhuma maneira, provar aexistência de um fenômeno psicológico, porque a “existência” de uma norma jurídica não é um fenômenopsicológico. Um jurista considera que a norma é “existente” mesmo quando os indivíduos que a criaram nãomais querem o conteúdo da lei, na verdade, até mesmo quando absolutamente ninguém mais quer seuconteúdo.
Como a lei começa a “existir” depois que o processo legislativo foi completado, ela deve ser algo distintodesse processo. A terminologia jurídica, portanto, designa a “existência” de normas legais por meio de umtermo que é inaplicável à existência do ato criador de norma. O jurista expressa o fato de que uma norma“existe” dizendo que ela é “válida”. A existência de uma norma é a sua validade. É a essa validade que serefere o conceito de “dever ser”. Que uma norma possui validade significa que o indivíduo deve conduzir -secomo estipula a norma. Não se pode dizer que um ato criador de norma, que é um ato da vontade, é“válido”, porque a sua existência é o seu “ser”.
A existência de uma norma jurídica pode ser afirmada apenas se ocorreu um ato cujo significado é umanorma jurídica. Nisto consiste a “positividade” do Direito. A expressão “Direito positivo” significa que o Direitoé um complexo de normas criadas por certos atos. Por meio de sua positividade, o “Direito positivo” diferedo chamado “Direito natural”. Não se presume que as normas do Direito natural foram deliberadamentecriadas por alguém, como as normas do Direito positivo. Supõe-se que elas existam na natureza
independentemente dos desejos e vontades do homem e que podem ser descobertas por meio de umexame da natureza. O chamado Direito natural é uma das formas em que surge a ideia de justiça.
O motivo para a validade de uma norma é sempre outra norma, nunca um fato. Os fatos que condicionama existência de uma norma jurídica – a presença do fato criador de norma e a ausência do fato anuladorde norma – não são, portanto, o fundamento para a existência da norma. Eles são uma conditio sine quanon, mas não uma conditio per quam. Um fato acarreta a existência de certa norma jurídica apenas seexistir uma norma superior que torne a existência da norma dependente desse fato. A norma jurídica inferiorpossui validade porque foi criada em conformidade com as cláusulas da norma superior. Certa regra
jurídica é válida porque existe outra norma (superior) que regulamenta a criação dessa norma (inferior), istoé, que determina os fatos que condicionam a existência da norma inferior.
Se for continuada a busca de motivos pelos quais são válidas as normas jurídicas, chega-se a uma última
norma, cuja criação não foi determinada por nenhuma norma superior. A série de motivos para a validadede uma norma não é infinita como a série de causas de um efeito. Deve existir uma razão final, uma normafundamental, que é a fonte da validade de todas as normas que pertencem a certa ordem jurídica.Embora a existência de toda norma seja condicionada por certo fato, não é um fato, mas uma norma, omotivo pelo qual todas as normas do sistema existem (são válidas). Isso demonstra claramente que umanorma não é idêntica a seu fato condicionador.
A norma que confere validade a uma constituição pode ser uma constituição prévia, em conformidadecom cujas cláusulas a nova constituição foi estabelecida. Em tal série de constituições uma deve serhistoricamente a primeira. E a norma que dá aos “pais” dessa primeira constituição sua autoridade, isto é,uma norma segundo a qual uma pessoa deve conduzir-se em conformidade com suas decisões, não podeser ela própria uma norma legal positiva criada por algum ato legislativo. É uma norma pressupostos pelosque consideram o estabelecimento da primeira constituição e os atos executados em conformidade com
ela como atos criadores de Direito. A ciência do Direito revela essa pressuposição por meio de uma análisedo pensamento jurídico. O resultado dessa análise é o enunciado: se a primeira constituição histórica e asnormas emitidas sobre esse fundamento forem consideradas como normas juridicamente obrigatórias,então deverá ser pressuposta uma norma determinando que uma pessoa deve conduzir-se emconformidade com a primeira constituição histórica. Essa norma é a norma fundamental de uma ordem
jurídica nacional. Como podemos falar de uma ordem juridicamente obrigatória apenas se pressupusermosessa norma (que não é uma norma do Direito positivo), ela pode ser chamada de norma hipotética. Essanorma fundamental é a base de todos os juízos jurídicos de valor possíveis na estrutura da ordem jurídica deum Estado dado.
A ordem jurídica de um Estado é um sistema hierárquico de normas legais. As normas que pertencem a umnível inferior derivam sua validade das normas que pertencem ao nível superior seguinte. Se nãoconsideramos o Direito internacional como ordem jurídica superior ao Direito nacional, a constituição de um
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Estado representa o nível mais elevado de uma ordem jurídica nacional. Então, as normas da constituiçãonão recebem sua validade de alguma norma jurídica positiva, mas de uma norma pressuposta pelopensamento jurídico, a norma fundamental hipotética.
Uma análise do pensamento jurídico demonstra que os juristas consideram válida uma constituição apenasquando a ordem jurídica nela fundamentada é eficaz, ou seja, se os órgãos e sujeitos dessa ordem, de ummodo geral, conduzem-se de acordo com as normas da ordem. O princípio da eficácia é a normafundamental geral que o pensamento jurídico pressupõe sempre que reconhece um conjunto de normas
como a constituição válida de um Estado particular. Essa norma pode ser formulada da seguinte maneira:os homens devem conduzir-se em conformidade com uma ordem jurídica apenas se essa ordem jurídica foreficaz como um todo. Na sua aplicação a uma ordem jurídica concreta, o Direito nacional de um Estadodefinido é a norma fundamental desse sistema normativo. O juízo de valor de que uma dada constituição éválida, de que a criação constituição é um ato legal, significa que ela se conforma a essa normafundamental geral. O princípio da eficácia refere-se essencialmente à ordem jurídica como um todo, não ànorma jurídica isolada. A eficácia da norma jurídica isolada não pode ser uma condição para a suavalidade porque, do contrário, juízos jurídicos de valor – juízos no sentido de que uma conduta é ilícita – nunca seria possíveis. Por outro lado, a norma jurídica isolada só pode ser válida se a constituição for válida,porque é sobre a constituição que se fundamenta a validade de todas as normas jurídicas. E a constituiçãoé válida apenas se a ordem jurídica total, de acordo com sua norma fundamental geral, for eficaz. Aeficácia da ordem jurídica como um todo é, assim, uma condição para a validade de cada normaindividual pertencente à ordem.
Assim, a existência de uma norma jurídica positiva pressupõe: 1) a eficácia da ordem jurídica total à qualpertence a norma; 2) a presença de um fato que cria a norma; 3) a ausência de alguma norma que aanule.
No que diz respeito ao juízo de valor que afirma a legalidade ou, o que é a mesma coisa, a validade daprimeira constituição histórica afirmando sua conformidade à norma fundamental pressuposta, isto é, oprincípio da eficácia, esse juízo não pode ser verificado pela demonstração da presença de um atocriando essa norma; mas pode ser verificado pela demonstração da eficácia da norma jurídica,estabelecida em conformidade com a constituição. Pois essa eficácia é um fato objetivamente verificável.Na medida em que tal verificação dos juízos jurídicos de valor é possível, o valor de Direito é um valorobjetivo.
O conteúdo do Direito positivo pode ser averiguado sem ambiguidade por um método objetivo, porque aexistência dos valores de Direito é condicionada por fatos verificáveis objetivamente. Às normas do Direitopositivo corresponde certa realidade social, mas não às normas de justiça. Nesse sentido, o valor de Direito éobjetivo, ao passo que o valor de justiça é subjetivo. E isso se aplica mesmo que às vezes um grande númerode pessoas tenha o mesmo ideal de justiça. Os juízos jurídicos de valor são juízos que podem ser postos àprova objetivamente por fatos. Portanto, são admissíveis em uma ciência do Direito, enquanto os juízos de
justiça não podem ser postos à prova objetivamente, logo, não tem espaço na ciência do Direito.
A partir dessa análise, surgem as seguintes conclusões acerca dos juízos de valor na ciência do Direito: 1) ovalor pode ter relação com um interesse ou com uma norma; 2) um valor é subjetivo se o seu objeto évalorável apenas para os interessados ou é objetivo se o objeto for valorável para todos (que é o caso danorma jurídica).
CAPÍTULO 08 - O DIREITO COMO TÉCNICA SOCIAL ESPECÍFICA
A ESSÊNCIA DA TÉCNICA JURÍDICA A técnica social da motivação direta e indireta
A convivência de seres humanos e caracterizada pelo fato de que sua conduta recíproca éregulamentada. A convivência de indivíduos em si um fenômeno biológico, torna-se um fenômeno social
pelo próprio fato de ser regulamentada. A sociedade é a convivência ordenada ou, mais exatamente, asociedade é o ordenamento da convivência de indivíduos.
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A função de toda ordem social é ocasionar certa conduta recíproca dos indivíduos, surgindocomo um complexo de regras que determinam como o indivíduo deve conduzir-se em relação a outrosindivíduos. Tais regras são chamadas normas.
Podem-se distinguir vários tipos de ordens que são caracterizados pela motivação específicaa que recorre a ordem para induzir os indivíduos a conduzirem-se como desejado. A motivação pode serdireta ou indireta. A ordem pode vincular certas vantagens a sua observância e certas desvantagens à suanão observância.
O princípio de recompensa e punição – o princípio da retribuição – consiste em associar aconduta em conformidade com a ordem e a contrária à ordem como a promessa de vantagem ou com aameaça de uma desvantagem, respectivamente, na condição de sanções.
A ordem pode, contudo, sem decretar sanções, exigir a conduta que atrai diretamente osindivíduos com vantajosa. Na realidade social, dificilmente esse tipo de motivação é encontrado na formapura, na medida em que, não há nenhuma norma cujo teor atraia diretamente os indivíduos cuja condutaregulamenta, de tal modo que a mera ideia dela seja suficiente como motivação. A conduta social dosindivíduos é sempre acompanhada por um juízo de valor. Portanto, a obediência à ordem geralmente estáligada à aprovação dos semelhantes, a desobediência, à sua reprovação.
A partir de um ponto de vista realista, a diferença decisiva não é entre as ordens sociais cujaeficácia repousa nas sanções e aquelas cuja eficácia não repousa em sanções. Toda ordem social é, de
certo modo, “sancionada” pela reação específica da comunidade á conduta de seus membros. Issotambém se aplica a sistemas morais altamente desenvolvidos, que mais se aproximam do tipo demotivação direta por meio de normas sem sanção.
As sanções providas pela ordem social podem ter um caráter transcendental, isto é, religioso,ou social-imanente.
No primeiro caso, as sanções providas pela ordem consistem em vantagens e desvantagensque devem ser aplicadas aos indivíduos por uma autoridade sobre-humana.
A retribuição realmente emana da divindade, mas é realizada no Aqui, pois a natureza éexplicada pelo homem primitivo segundo o princípio da retribuição. Podemos conjeturar que a ordem socialmais primitiva tem um caráter religioso. Apenas posteriormente surgem, pelo menos dentro do grupo mais
restrito, lado a lado com as sanções transcendentais sanções que são socialmente organizadas, que devemser cumpridas pelos indivíduos segundo os dispositivos da ordem social. A vingança de sangue surge bem
cedo como uma reação contra um prejuízo considerado injustificado e causado por um membro de umgrupo estranho.
Tal reação é induzida pelo temor da alma da pessoa assassinada, competindo a seusparentes, levar a cabo a vingança.
A vingança de sangue é a mais primitiva sanção socialmente organizada. No curso posterior do desenvolvimento religioso, a divindade é concebida como
pertencente a um domínio muito diferente do Aqui e muito afastado dele, e a realização da retribuiçãodivina é adiada para o Além, divido, por sua vez em céu e inferno. Nesse estádio, a ordem social perde seucaráter de puramente religioso, funcionando a ordem religiosa apenas como suplemento de apoio à ordemsocial que, por sua vez, prevê sanções que são exclusivamente os atos de indivíduos humanosregulamentados pela própria ordem social.
Das duas sanções aqui apresentadas como típicas ( a punição e a recompensa), a primeiradesempenha uma papel muito mais importante. A conduta de povos primitivos em conformidade com aordem social é determinada principalmente pelo medo que domina a vida de tais povos. Se as violaçõesdas normas sociais muito menos frequentes nas sociedades primitivas do que nas civilizadas éprincipalmente esse temor pela vingança dos espíritos que é responsável por esse efeito de preservação daordem social.
Isso pode ser atribuível ao fato de que a ideologia religiosa espelha, com mais ou menosexatidão, a realidade social. E nesta, na medida em que diz respeito à organização do grupo,essencialmente apenas como um método de ocasionar a conduta socialmente desejada é levado emconta: a ameaça e a aplicação de um mal pela conduta contrária – a técnica da punição. A técnica darecompensa desempenha um papel significativo apenas nas relações privadas dos indivíduos.
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O mal aplicado ao violador da ordem, quando a sanção é socialmente organizada, consisteem um privação de posses – vida, saúde, liberdade ou propriedade. Como as posses são-lhe tiradas contrasua vontade, essa sanção tem o caráter de uma medida de coerção. Isso não significa que , ao levar acabo a sanção, a força física deve ser aplicada, o que é necessário apenas se houver resistência. Mas aresistência é rara quando a autoridade que aplica a sanção possui poder adequado, uma ordem socialque busca ocasionar a conduta desejada dos indivíduos pela execução de tais medidas de coerção échamada ordem coercitiva.
Em contraste com as ordens que executam medidas coercitivas como sanções, a eficáciadas outras não repousa na coerção, mas na obediência voluntária.
A recompensa como técnica de motivação indireta, tem seu lugar entre a motivaçãoindireta por meio da punição – como técnica de coerção – e a motivação direta – a técnica daobediência voluntária.
A eficácia de toda ordem social repousa na coerção psíquica porque se baseia namotivação. O DIREITO COMO ORDEM COERCITIVA QUE MONOPOLIZA O USO DA FORÇA
Se as ordens sociais forem chamadas “ordens jurídicas” pode-se achar que este termos équase destituído de significado. Ainda assim, há um elemento comum que justifica essa terminologia, quepermite à palavra “Direito” surgir como expressão de um conceito com um significado social muito
importante, pois a palavra refere-se à técnica social específica de uma ordem coercitiva, que, apesar dasenormes diferenças entre o Direito da antiga Babilônia e o dos EUA de hoje é essencialmente a mesma paratodos esses povos que diferem tão amplamente em tempo, lugar e cultura – a técnica social que consisteem ocasionar a conduta social desejada dos homes por meio da ameaça de coerção no caso de condutacontrária.
O Direito é um meio social específico, não um fim. O Direito, a moralidade e a religião – todos os três proíbem o assassinato. Mas o Direito faz isso provendo que: se um homem comente assassinato,outro homem, designado pela ordem jurídica, aplicará contra o assassino certa medida de coerçãoprescrita pela ordem jurídica.
Nesse aspecto as normas religiosas estão mais próximas das normas jurídicas que as normas
morais e são provavelmente mais eficazes que as sanções jurídicas. Sua eficácia, porém, pressupõe acrença na existência e no poder de uma autoridade sobre-humana. Não é a eficácia das sanções que está
em questão aqui, porém, mas apenas se e como elas são providas pela ordem social. A sanção jurídica é, assim, interpretada como um ato da comunidade jurídica; a sanção
transcendental – a doença ou a morte do pecador – é um ato da autoridade sobre-humana dos ancestraismortos, de Deus.
Entre os paradoxos da técnica social aqui caracterizada como ordem coercitiva está o fatode que seu instrumento específico, o ato coercitivo é exatamente do mesmo tipo que o ato que buscaimpedir; de que a sanção contra a conduta socialmente prejudicial é, ela própria, tal conduta. A força éempregada para impedir o uso da força.
Essa contradição, porém, é apenas aparente. O Direito e a força não devem sercompreendidos como absolutamente em desacordo entre si. O Direito é uma organização da força, poisvincula certas condições ao seu uso em relações entre os homens, autorizando o emprego da força apenas
por certos indivíduos e apenas sob certas circunstâncias. O indivíduo que, autorizado pela ordem jurídica, aplica a medida coercitiva, atua como um
órgão dessa ordem ou da comunidade por ela constituída. Portanto, pode-se dizer que o Direito faz do usoda força um monopólio da comunidade, pacificando-a.
A paz do Direito não é uma condição de ausência absoluta de força, um estado deanarquia; é uma condição de um monopólio de força da comunidade.
A técnica social que chamamos “Direito”, consiste em induzir o individuo, por um meioespecífico, a se abster de intervenção à força nas esferas de interesses alheios; no caso de tal intervenção,a própria comunidade jurídica reage com uma intervenção similar nas esferas de interesse do indivíduo,responsável pela intervenção anterior. O Direito é uma ordem segundo a qual o uso da força é proibidoapenas como delito, isto é, como condição, mas é permitido como sanção, isto é, como consequência.
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A IDEIA DE UMA COMUNIDADE SEM FORÇA
Surge agora a questão quanto a ser essa técnica social, o Direito, inevitável ou não. Aquestão da necessidade do Direito é idêntica à questão da necessidade do Estado. Pois o Estado é umaordem coercitiva, uma ordem jurídica, relativamente centralizada, relativamente soberana – umacomunidade constituída por tal ordem jurídica. Se o Estado for definido como uma organização política, issosignificará uma ordem coercitiva. O elemento especificamente “político” consiste em nada mais que oelemento de coerção.
A história não apresenta nenhuma condição social em que grandes comunidades fossemconstituídas de outra forma que por ordens coercitivas. Elas são comunidades legais. O único motivo peloqual nãos denominamos Estados é porque o grau necessário de centralização ainda não está presente.
Sempre houve otimistas que acreditaram em um desenvolvimento conduzindo a umasociedade livre, isto é, uma sociedade livre de toda coerção, na qual não mais haverá nenhuma lei,nenhum Estado.
Essa é a doutrina do anarquismo teórico. Ela pressupõe uma ordem social imanente ànatureza, uma espécie de Direito Natural, que difere do Direito Positivo pelo fato de não exigir sançõessocialmente organizadas e, portanto, nenhum Direito, no sentido em que chamamos “Direito” as ordenscoercitivas encontradas na realidade histórica.
A ordem natural é justa, isto é, faz todos os homens felizes. Não há necessidade de compelir
as pessoas à sua própria felicidade. Portanto não há necessidade de Estado ou, o que dá no mesmo, deDireito Positivo. A eficácia da ordem natural apoia-se na obediência voluntária. Se fosse possível à mente humana estabelece o conteúdo de uma ordem social que
pudesse contar com a obediência voluntária de todos os sujeitos, então seria difícil compreender porque talordem ainda não foi realizada. Contudo, essa questão está tão longe de ser respondida hoje como sempreesteve. Não se pode dizer que alguma das várias tentativas de resolver o problema da técnica social sejatão satisfatória quanto a solução de qualquer um dos inúmeros problemas da técnica da ciência natural.
Contar com uma natureza humana diferente da que conhecemos é utopia. Isso não querdizer que a natureza humana seja imutável, mas apenas que não podemos prever como mudará sobcircunstâncias mutáveis.
O caráter utópico da ideia de uma condição social não regulamentada por alguma ordemcoercitiva surge claramente na doutrina que, até agora, representou essa idéia politicamente com mais
sucesso – a doutrina do socialismo marxista. Segundo ela, a única função do aparelho coercitivorepresentado pelo Estado e pelo seu Direito é manter a condição de exploração da classe com possessobre a sem posses.
Tao logo o conflito de classes acabar, por meio da abolição da propriedade privada e dasocialização dos meios de produção, o aparelho de coerção tornar-se-á supérfluo.
Quem pensa que tal sociedade sem Estado é possível, está fechando os olhos para o fatode que uma organização econômica tal como a almejada pelo socialismo, deve necessariamente ter umcaráter autoritário. Uma economia planejada de alcance tão imenso, só pode ser gerida por umgigantesco corpo administrativo hierarquicamente organizado.
Tal ordem social, mais do que qualquer outra, tem uma tendência para tornar-se totalitária emais do que qualquer outra, necessitará de justificação ideológica e, portanto, não deixará intocadas as
esferas metafísico-religiosas. Ela deve necessariamente limitar a liberdade do indivíduo muito maisseveramente do que o fez qualquer outro Estado.
Apenas uma visão que identifica sociedade com economia pode deixar de perceber osgrandes perigos que ameaçam dessa direção uma ordem social.
Em uma comunidade socialista, as medidas para prevenir crimes podem ser usadas com umalcance maior do que é possível na comunidade jurídica do Estado capitalista.
Destarte, mesmo o socialismo não pode seguir adiante sem a técnica social chamada“Direito”. Mesmo em uma sociedade socialista é verdade que ubi societas, ibi jus.
A EVOLUÇÃO DA TÉCNICA JURÍDICA
Diferenciação da relação dinâmica entre a criação e a aplicação do Direito
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Se a coerção é um elemento essencial do Direito, então toda ordem jurídica, entendida doponto de vista técnico, deve ser considerada como um complexo de normas em que medidas coercitivassão decretadas como sanções.
A técnica específica do Direito – a técnica da motivação indireta – consiste no próprio fatode que ela aplica certas medidas coercitivas como consequências de certas condições.
A relação estabelecida pela norma jurídica entre delito e sanção é a relação fundamentaldo Direito, considerado em estado de repouso. É a relação fundamental da estática do Direito.
Se examinarmos o Direito em seu movimento específico e considerarmos o processo dacriação do Direito, observaremos um fator especialmente siginificativo para a técnica do Direito: eleregulamente a sua própria criação. Essa é a essência do Direito Positivo.
Há dois métodos de criar Direito: o costume e a legislação. O Direito positivo não tem apenas de ser criado mas aplicado. Há três etapas no processo jurídico dinâmico: a criação de uma norma geral, a criação de
uma norma individual decretando a sanção e a execução da norma individual. O processo de criação danorma geral pode, porém, ser dividido em várias etapas. Toda ordem jurídica forma uma hierarquia denormas gerais e individuais, cujo grau mais baixo é a execução de uma medida concreta.
Os graus dessa dinâmica jurídica tendem a elevar-se. O Direito primitivo é caracterizado pelatécnica da iniciativa individual, segundo a qual a norma geral é aplicada diretamente ao caso concreto
sem nenhuma norma individual. Apenas depois que se desenvolvem os Tribunais é que uma normaindividual se insere entra a norma geral e sua aplicação a um caso concreto, a execução da sanção. Essanorma individual é o decreto da sanção pela decisão do Tribunal.
DIFERENCIAÇÃO DA RELAÇÃO ESTÁTICA ENTRE DELITO E SANÇÃO
Diferenciação da sanção: Direito criminal e Direito civil. Também a relação estática entredelito e sanção é sujeita a uma modificação típica.
O Direito mais antigo era o Direito Penal apenas. Posteriormente ocorreu uma diferenciaçãona sanção. Além da punição surgiu uma execução civil, a privação coercitiva de propriedade paracompensar o dano ilegalmente causado.
O Direito Penal é distinguível do Civil principalmente pelo fato de que sua sanção temcaráter diferente. A diferença encontra-se não tanto na circunstância externa da sanção. A sanção em
ambos os casos é uma medida coercitiva pela qual um indivíduo é privado de posses. A diferença seencontra no propósito, na medida em que a sanção civil é a reparação do dano causado e a penal aretribuição ou prevenção. Mas essa diferença é apenas relativa, pois não se pode negar que a sanção civiltenha uma função preventiva, ainda que apenas secundariamente.
A diferença relativa é expressa no conteúdo da ordem jurídica. No caso da sanção civil essapropriedade deve ser devolvida ao sujeito ilegalmente prejudicado; no caso de uma sanção criminal, elacabe à comunidade jurídica.
Outra diferença reside no fato de que o processo judicial voltado à execução civil é iniciadoapenas por exigência de um sujeito específico interessado na execução; o processo judicial voltado para aaplicação da punição é iniciado ex officio, por exigência de um órgão da comunidade. Aquele que,movendo uma ação, pode iniciar o processo que leva à sanção civil é o sujeito de um Direito.
A concessão de tais direitos ao sujeito e a possibilidade de persegui-los em um processocontencioso caracterizam a técnica de uma ordem jurídica que regulamenta a vida econômica segundo oprincípio da propriedade privada.
Apenas por imitação do processo civil é que o processo penal ainda tem o caráter externode uma disputa, embora nesse caso geralmente não mais existam direitos subjetivos. Quando em vez dosujeito cujos interesses foram prejudicados pelo delito criminal, um órgão da comunidade surge como
queixoso, pode-se falar apenas em sentido figurado de um “direito” da comunidade à cessação do delito.A técnica social em ambos os casos, é essencialmente a mesma: reação contra o delito na forma de umato de coerção como sanção.
Diferenciação da sanção: responsabilidade coletiva e responsabilidade individual
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A exigência da técnica jurídica mais refinada é a seguinte: apenas aquele que comete odelito, apenas o delinquente, deve ser responsável pelo delito. Este é o princípio da responsabilidadeindividual.
As ordens jurídicas primitivas, porém, não vão ao encontro dessa exigência, na medida emque dirigiam a sanção não apenas contra o delinquente, mas contra seus parentes. O círculo dosresponsáveis é definido pelo fato de pertencerem a uma grupo social definido, à mesma comunidade
jurídica. Este é o princípio da responsabilidade coletiva.
O desenvolvimento técnico do Direito é caracterizado pelo progresso da responsabilidadecoletiva no sentido da responsabilidade individual.
Diferenciação do delito: responsabilidade absoluta e culpabilidade.
Para ser responsável por um resultado socialmente prejudicial ou socialmente útil não ésuficiente, segundo visões éticas, modernas, que o resultado tenha sido ocasionado pela própria conduta.O resultado deve ter sido ocasionado de uma maneira definida.
Deve existir entre a conduta e o resultado uma ligação mental específica chamadaintenção ou negligência, devem estar presentes certos elementos mentais chamados culpa.
O princípio da culpabilidade é desconhecido nas ordens jurídicas primitivas, prevalecendo
nelas o princípio da responsabilidade absoluta. Onde existe o princípio da responsabilidade coletiva, aresponsabilidade absoluta é quase inevitável. Se o princípio da responsabilidade coletiva é suplantado pela responsabilidade individual, o
caminho também está livre para a substituição do princípio da responsabilidade absoluta pelo princípio daculpabilidade.
Mas deve-se notar que esta é apenas a formulação de uma regra geral que possuiimportantes exceções. Mesmo nas ordens jurídicas modernas não se renunciou, absolutamente, ao princípioda responsabilidade coletiva e ao da culpabilidade absoluta. Assim, o primeiro princípio é exibido no Direitodas chamadas pessoas jurídicas; o segundo em muitas esferas do Direito Civil. A forma de culpabilidadechamada negligência não está muito distante da responsabilidade absoluta. Especialmente no Direito
Internacional, ambos os princípios ainda devem ser considerados dominantes.
A CENTRALIZAÇÃO
P ara o desenvolvimento técnico do Direito, o processo de centralização é importante. ODireito primitivo é descentralizado. Órgãos especiais para diferentes funções desenvolvem-se apenasgradualmente.
No campo do Direito, esse processo é caracterizado pelo fato de que a centralização dafunção aplicadora do Direito precede a centralização da função criadora de Direito. Muito antes daexistência de órgãos legislativos especiais, os tribunais foram estabelecidos para aplicar o Direito a casosconcretos.
Durante milhares de anos a técnica utilizada para criar o Direito foi a do Direitoconsuetudinário. A aplicação do Direito, porém, há muito se tornou função exclusiva de órgãos especiais:
ela foi centralizada. As normas gerais em conformidade com as quais os juízes decidem os conflitos, porém, não
são sempre criadas por um órgão central: elas ainda têm o caráter de Direito Consuetudinário. Se a ordem jurídica não estabelece órgãos especiais para determinar os fatos
condicionantes, especialmente o delito, as próprias partes interessadas são invocadas pela ordem jurídicapara estabelecer existência desses fatos no caso concreto. Tal é a condição de uma ordem jurídica
primitiva e descentralizada. Portanto, para o desenvolvimento técnico do Direito, nenhum outro passo foitão importante quanto o estabelecimento dos tribunais. Apenas pela centralização dessa fase deaplicação do Direito é que a aplicação do Direito em todos os casos tornou-se possível.
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A centralização das duas outras fases da aplicação do Direito (a decretação e a execuçãoda sanção) é de menor importância. Com ela a condição jurídica da iniciativa individual é suplantada. Emseu lugar surge a execução da sanção por um órgão especial da comunidade.
A execução da sanção por um órgão central da comunidade jurídica, autorizado a punir oindivíduo culpado, pressupõe uma concentração dos meios de poder e a existência de um órgão centralcom todos esses meios de poder à sua disposição. Para centralizar a execução das sanções providas pelaordem jurídica, a comunidade jurídica necessita não apenas de tribunais, mas também de uma
administração poderosa. Uma comunidade jurídica que possui uma administração e tribunais é um Estado, que é uma
ordem jurídica centralizada. Do ponto de vista técnico é característico que um órgão legislativo não sejarequisito essencial de um Estado. É a centralização da função judicial e administrativa que transforma umacomunidade primitiva em um Estado.
CAPÍTULO 09 - POR QUE A LEI DEVE SER OBEDECIDA?
Qual é o motivo para a validade do Direito? Para avaliar as diversas respostas a essapergunta, certos termos devem ser esclarecidos. Por “Direito”, entenda -se Direito positivo – nacional ouinternacional. Por “Validade” entenda-se a força obrigatória da lei – a ideia de que ela deve ser obedecidapelas pessoas cuja conduta regulamenta. A questão é por que essas pessoas devem obedecer a lei.
Não perguntamos se o direito positivo é válido. O significado subjetivo dos atos pelos quaissão criadas as normas ( isto é, prescrições, comando) do direito positivo é, necessariamente, que essasprescrições devem ser obedecidas. Mas, novamente, por que seu significado subjetivo é consideradotambém com seu significado objetivo?
Nem todo ato cujo significado subjetivo é uma norma é também subjetivamente uma. Por que interpretamos os atos pelos quais é criado o Direito positivo como tendo não apenas
o significado subjetivo, mas também o significado objetivo de normas obrigatórias?
Uma reposta frequentemente aceita é que os homens devem obedecer ao direito positivo
porque e na medida em que ele se conforma com os princípios da moral. Segundo esse ponto de vista, o motivo para a validade do Direito é a sua justiça. Constituem
a doutrina do direito natural, que concebe a natureza como uma autoridade legisladora. Mesmo se aceitoque as normas que regulamentam a conduta humana podem ser deduzidas da natureza, surge a questãode por que os homens devem obedecer a essas normas. Para esta questão adicional, a doutrina do direitonatural não tem nenhuma resposta. Contudo, essa hipótese fundamental não pode ser aceita por umateoria do direito positivo porque impossível deduzir a partir da natureza normas que regulamentem aconduta humana. As normas são a expressão de uma vontade, e a natureza não tem nenhuma vontade.
Há outro motivo: se todo o direito positivo for considerado válido, todo o direito positivo-segundo a doutrina do direito natural – deve ser considerado justo, em conformidade com o direito natural.Se, porém, todo o direito for justo, então direito e justiça são idênticos; equivale a dizer: o motivo para a
validade da lei é a lei; a lei deve ser obedecida porque a lei deve ser obedecida. Se o direito é identificado com o a justiça e o direito positivo com o direito natural os
conceitos de justiça ou de direito natural tornam-se sem sentido. Eles têm sentido apenas se existir umantagonismo possível entre justiça ou o direito natural, de um lado, e o direito positivo de outro.
Dizer, portanto, que o direito positivo é válido porque é justo não é uma resposta para nossapergunta.
A outra doutrina – a teologia cristã – que oferece uma resposta para nossa questão. Oshomens devem obedecer a qualquer direito positivo porque sua obediência é ordenada por Deus; cujosrepresentantes são as autridades legisladoras. Elas são autorizadas por Deus a produzir direito e,consequentemente, esse direito deve ser considerado não meramente como um direito feito por homens,mas como um direito que tem origem na vontade de Deus.
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Contudo não é uma resposta final à questão de que o direito positivo é válido, pois, mesmose for dito como certo, o fato de que Deus emite esse mandamento, surge a questão de por que os homensdevem obedecer aos mandamentos de Deus.
Tal hipótese meta-física é aceitável apenas do ponto de vista de uma religião e o fato deque Deus ordenou aos homens que obedecem ao direito positivo só pode ser considerado como certo doponto de vista da religião cristão, tal como estabelecida por São Paulo; e, mesmo desse ponto de vista écontestável porque não é compatível com o ensinamento original de Cristo.
A ciência não opera e não pode operar com base em pressuposições meta-físicas – aresposta que a teologia cristã dá a nossa questão assim como a reposta a doutrina do direito natural,encontra o motivo para a validade do direito em uma ordem superior, coloca acima do direito positivo – em uma ordem divida ou natural.
Segundo ambas as doutrinas, o direito positivo em si não tem nenhuma validade. Esta análise das duas doutrinas demonstra, primeiro, que suas hipóteses não são aceitáveis
por uma ciência do direito positivo. Segundo, se a validade desse direito, sua validade imanente, esta emquestão o motivo para ela não deve ser procurado em outra ordem, uma ordem superior; deve-se suporque o direito positivo é uma ordem suprema, soberana.
Essa ordem é caracterizada por uma estrutura hierárquica. Seu fundamento é a constituiçãoescrita ou não escrita, sobre a qual repousam os estatutos decretados pelos legisladores ao criarem normas
individuais, os tribunais e os órgãos administrativos aplicam, então, os estatutos.
A questão de por que obedecer as suas cláusulas, uma ciência do direito só poderesponder: a norma de que devemos obedecer as estipulações da primeira constituição histórica, só deveser pressuposta como hipótese de a ordem coercitiva estabelecida com fundamento nela e efetivamenteobedecida e aplicada por aqueles cuja conduta regulamenta, for considerada uma ordem válida,obrigatória para esses indivíduas, se as relações entre esses indivíduos forem interpretadas como deveres,direitos e responsabilidades legais, não como meras relações e poder; e se for possível distinguir o que élegalmente certo e legalmente errado, em especial o uso legítimo e ilegítimo da força. Essa é uma normafundamental de uma ordem jurídica positiva, a razão final para sua validade, vista do prisma de umaciência do direito positivo. É a razão conclusiva para a validade do direito positivo porque, a partir desse
prisma é impossível supor que a natureza ou Deus ordenem a obediência à primeira constituição histórica,que os pais da constituição foram autorizados a estabelece-la pela natureza ou por Deus.
Assim, o positivismo jurídico responde a questão por que o direito é válido, reportando-se auma hipótese que pode ou não ser aceita – em outras palavras, justificando a obediência à lei apenascondicionalmente. Por conseguinte, declarou-se muitas vezes que essa resposta não é uma soluçãosatisfatória para o problema e que é preferível, portanto, a solução da doutrina do direito natural ou dateologia. Contudo neste aspecto, não há nenhuma diferença entre o positivismo jurídico, por um lado, e adoutrina do direito natural ou da teologia, por outro.
O motivo para a validade do direito, segundo todos os três, é uma norma fundamentalhipotética. Assim como a norma fundamental do positivismo jurídico não é emitida pela autoridade jurídica,mas pressuposta no pensamento jurídico, as normas fundamentais da doutrina do direito natural e dateologia cristã não são emitidas pela natureza ou por Deus, mas pressupostos como hipóteses para essasdoutrinas.
Consequentemente, essas doutrinas também podem justificar a obediências às leis, apenascondicionalmente. A única diferença é que a validade para a qual a norma fundamental do positivismo
jurídico fornece o motivo é a validade imanente do direito positivo, ao passo que a validade para a qual anorma fundamental da doutrina do direito natural fornece o motivo é validade de uma ordem natural oudivina.
A questão quanto ao motivo da validade do direito foi restringida nas considerações
anteriores ao direito nacional. Agora, se considerarmos, o direito internacional válido apenas sereconhecido com base na constituição da autoridade jurídica do direito nacional, ou, expresso naterminologia usual, se reconhecido pelo Governo de um Estado soberano, nossa resposta, tal comoaplicada ao direito internacional é a mesma: uma norma fundamental pressuposta, pois, então, o motivopara a validade do direito nacional, implica o motivo para a validade do direito internacional, que é
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apenas parte do direito nacional. Contudo, se considerarmos o direito internacional como uma ordem jurídica superior às ordens jurídicas nacionais, a situação muda.
O positivismo jurídico ensina que todo o governo estabelecido é instituído pelo direitointernacional. Segundo o princípio da eficácia, uma norma do direito internacional, a constituição de umEstado é válida se a ordem coercitiva dela derivada é, de modo, geral, eficaz. Essa norma positiva dodireito internacional, concebida como superior ao direito nacional tem a mesma função que a normafundamental hipotética, isto é, pressuposta de uma ordem jurídica nacional, concebida como uma ordem
soberana, ou - como geralmente formulado – como o direito de um Estado soberano. É o motivo para avalidade do direito nacional, mas essa norma do direito internacional não é o motivo decisivo da validadedo direito nacional. Pois agora surge a questão: por que essa norma do direito internacional é válida? E,finalmente: por que o direito internacional como um todo é válido?
Podemos encontrar a resposta para a última questão da mesma maneira que a resposta àquestão sobre o direito nacional, porque o direito internacional e não o direito nacional, é agora concebidocomo uma ordem soberana. Se o direito nacional (“ o Estado”) ainda é caracterizado como soberano, essa“soberania” só pode significar que o Estado ou, o que dá no mesmo, a ordem jurídica nacional que constituio Estado é subordinada não a outra ordem jurídica nacional, mas apenas à ordem jurídica internacional – ou seja, que o Estado é “independente”.
A norma do direito internacional que representa o motivo para a validade do direito
nacional é, da mesma forma, uma norma do direito consuetudinário; e o direito internacional é compostode norma do direito consuetudinário e do direito convencional – sendo portanto, o motivo para validade dodireito internacional, a sua norma fundamental é uma norma que institui o costume como fato criador dedireito – a norma de que os Estados devem conduzir-se como os Estados costumeiramente se conduzem nassuas relações mútuas.
Essas normas, porém, não podem ser criadas pelo costume. A norma que autoriza o costume do Estado a criar direito obrigatório para os Estados só
pode ser uma norma pressuposta pelos que interpretam as relações mútuas dos Estados, não como merasrelações de poder, mas como relações jurídicas, nas condições de obrigações, direitos e responsabilidades;por aqueles novamente, que consideram os atos dos Estados com legais ou ilegais, isto é, como relações
regulamentadas por uma ordem jurídica válida.
É uma hipótese – a condição – sob a qual tal interpretação é possível. Essa hipótese, a
norma fundamental do direito internacional, é, em última análise, também o motivo da validade das ordens jurídicas nacionais.
CAPÍTULO 10: A TEORIA PURA DO DIREITO E A JURISPRUDÊNCIA ANALÍTICA1
A TEORIA DO DIREITO E A FILOSOFIA DA JUSTIÇA
- o autor aponta que a Teoria Pura do Direito surgiu para o estudo científico do direito positivo, semos influxos das questões sociológicas ou filosóficas. Assim, ela procura deduzir “os princípios fundamentaispor meio dos quais qualquer ordem jurídica pode ser compreendida”. Tal teoria responde à questão do queé o direito, não o que deve ser.
1Resumo feito por Angelo com base no livro KELSEN, Hans. O que é justiça? A Justiça, o Direito e a
Pólítica no espelho da Ciência ; Tradução de Luís Carlos Borges. – 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes,
2001. p. 261-283. Para qualquer dúvida, estou disponível no e-mail: [email protected]. Bons estudos!
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- assim, a Teoria Pura do Direito tem como objeto de cognição o direito positivo (o que o autordenomina de jurisprudência), distinguindo-se da filosofia da justiça, por um lado, e da sociologia (cogniçãoda realidade), por outro.
- obs.: muitos criticam Kelsen por não ter demonstrado preocupação com a questão da Justiça emsua Teoria Pura. Ao contrário, se bem observarmos sua obra, perceberemos que ele apenas tentou separar
em compartimentos estanques as questões sociológicas e filosóficas, pois elas não podem fazer parte da
Ciência do Direito.
JURISPRUDÊNCIA NORMATIVA E SOCIOLÓGICA
- afirma que o direito positivo é uma ordem por meio da qual a conduta humana é regulamentadade uma maneira específica. As estipulações dispõem como os homens devem conduzir-se. Embora taisestipulações sejam criadas a partir da conduta dos indivíduos, o que é objeto do direito positivo(jurisprudência) é apenas a norma e não a conduta propriamente dita.
- e essa norma necessita ser válida e eficaz, para que possa existir. Dizer que uma norma seja válidaé afirmar que traz uma proposição de como o indivíduo deva conduzir-se (dever ser) e não comoefetivamente se conduz (ser). Esta última é a questão da eficácia.
- se uma ordem jurídica perde a eficácia, então a jurisprudência (direito positivo) considera suasnormas inválidas. No entanto, se apenas uma norma é desobedecida isso não significa invalidade da normaou de todo direito positivo.
- a jurisprudência apenas apresenta as normas válidas e não possui função de criar essas normas,pois isso é função da autoridade criadora do direito. O jurista apresenta essas normas em enunciadosdescritivos, que apresentam o “dever ser”.
- mas é preciso distinguir as normas jurídicas enquanto objeto da jurisprudência e os enunciados da jurisprudência, que descrevem esse objeto (podem ser chamados de regras de Direito). As regras de direito
usam proposições descritivas, assim como a ciência da natureza. No entanto, a última ocorre emproposições de “ser” [quando uma ocorrência se mostra (causa), outra tem lugar (efeito)], ao passo que aregra do direito em proposições de “dever ser” (se um indivíduo conduzir-se de certa maneira, então o outrodeve conduzir-se).
- essa jurisprudência normativa deve ser distinguida da jurisprudência sociológica. Esta última nãotrabalha com proposições de “dever ser”, mas com proposições de “ser”. Tem por objeto a observação dosacontecimentos sociais efetivos para, a partir daí, prever os acontecimentos futuros, que serãocaracterizados como lei.
- o autor afirma que a jurisprudência normativa e sociológica não podem ser confundidas. Aprimeira cuida da validade do Direito, ao passo que a segunda cuida de sua eficácia. Ambas têm objetos
diversos, mas são interdependentes. Interdependentes porque: a jurisprudência sociológica, ao observar o“ser”, tem seu campo de trabalho limitado pelas regras de Direito existentes (jurisprudência normativa); a
jurisprudência normativa, ao trabalhar com uma ordem jurídica válida, só pode considerar válidas asnormas eficazes, e eficácia é objeto da sociologia (jurisprudência sociológica).
O CONCEITO DE NORMA
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- a Teoria Pura do Direito, por excluir do campo de análise a filosofia e a sociologia, em muito se
assemelha à Teoria conhecida como jurisprudência analítica2, que teve sua apresentação anglo-
americana clássica na obra de John Austin.
- nesse ponto o autor passa a demonstrar em que sua teoria se diferencia da de Austin e em quepontos se apresentou mais adequada.
- para o conceito de norma, o autor apresenta a distinção entre “ser” e “dever ser”, ao passo queAustin define toda lei ou regra como um comando (que possui dois elementos: desejo dirigido à conduta deoutra pessoa e sua expressão de uma ou outra maneira).
- o autor tece críticas ao conceito de comando formulado por Austin. Afirma que sua estruturação
teórica importaria em afirmar que as normas jurídicas seriam fruto de um desejo do legislador de que osindivíduos se comportassem de dada maneira. Portanto, o comando ficaria ligado ao elemento psicológicodo legislador. A Teoria Pura é melhor na medida em que introdu z o conceito de “dever ser” e retira oelemento psicológico da norma existente. Assim, a norma é uma proposição de como o homem deveconduzir-se e não como uma proposição fruto do desejo do legislador.
O ELEMENTO DA COERÇÃO
- assim como a jurisprudência analítica, a Teoria Pura do Direito considera o elemento coerção umacaracterística essencial do Direito. Austin caracteriza a lei como “forçosamente aplicável” por uma
autoridade dada. Com isso quer significar que a ordem jurídica comanda os indivíduos a agir de dadamaneira. E isso é obtido com a coerção, que se consubstancia em sanção, que nada mais é do que apromessa de infligir um mal (coerção psíquica).
- críticas feitas pelo autor: (i) o indivíduo pode comportar-se espontaneamente e não apenas pormedo da sanção; (ii) a coerção psíquica não é elemento específico do Direito, a exemplo das normas damoral.
- a Teoria Pura resolve a questão no sentido de que a ordem jurídica não comanda os indivíduos aagir de especificado modo, mas, por meio de juízos hipotéticos descreve condutas (“dever ser”) eprescreve sanções para o descumprimento. Ex.: se alguém rouba, deve ser punido.
O DEVER JURÍDICO
- se um indivíduo tem o dever de observar certa norma jurídica, então a conduta contrária, punidacom a sanção, pode ser chamada de delito.
- normalmente a sanção é dirigida contra o indivíduo, mas há casos em que é dirigida contraoutrem que não o delinquente propriamente dito. E nesse ponto mora a diferença entre dever eresponsabilidade.
- para a Teoria Pura, a responsabilidade recai sobre o indivíduo contra o qual a sanção é dirigida,ao passo que o dever recai sobre o delinquente potencial do delito.
- a teoria de Austin não consegue explicar casos em que terceiro é responsável pelo dever deoutrem, pois para ele só há dever quando houver comando, que é um desejo a que outrem se comporte
2Durante todo o capítulo o autor – ou o tradutor, e isso já não posso precisar – coloca o termo
“jurisprudência analítica” com letras minúsculas, ao passo que “teoria pura do direito” é expresso comas iniciais em caixa alta.
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de dado modo. A Teoria Pura, por sua vez, ao introduzir a distinção entre responsabilidade e dever,consegue dar uma resposta mais apropriada ao tema.
O DIREITO JURÍDICO
- posso analisar o direito como expressão de liberdade, pois ter o direito a agir de dado modo
significa que não tenho o dever de conduzir-me de outra maneira.
- mas também posso analisar o direito em relação ao dever. Ter direito a algo corresponde a quealguém deverá respeitar tal direito. Todo direito corresponde a um dever, e com isso concordam o autor eAustin.
- Kelsen critica Austin por não ter visualizado uma hipótese de direito nato, sem devercorrespondente. É o caso em que o indivíduo tem o direito à ação judicial, em busca de que o Judiciárioaplique uma sanção ao autor de um ato ilícito.
A TEORIA ESTÁTICA E A TEORIA DINÂMICA DO DIREITO: A HIERARQUIA DAS NORMAS.
- a jurisprudência analítica de Austin considera “o Direito um sistema de regras completo e prontopara aplicação, sem considerar o processo de sua criação. É uma teoria estática do Direito”.
- o autor, a seu turno, prefere uma análise dinâmica do Direito, isto é, a análise da norma emcomparação com o fundamento que lhe deu validade.
- diz que as normas são criadas a partir de outras normas que dizem sobre o processo de criação,normas estas que se encontram na constituição. Tais normas organizadoras seriam o Direito adjetivo, aopasso que as demais o Direito substantivo.
- o fundamento de validade da constituição é a norma fundamental. E qual o fundamento devalidade dessa norma fundamental? Sobre isso, é necessário analisar a relação entre Direito e Estado.
O DIREITO E O ESTADO
- uma característica da doutrina de Austin é a ausência de um conceito jurídico de Estado. Austin raramente se refere ao termo Estado, embora utilize a expressão “sociedade política independente”.
- Austin ensina que o Direito deve ser compreendido apenas como um comando do soberano e, porprovir dele, tem-se que o soberano seja insuscetível de limitação legal.
- a Teoria pura, ao contrário de Austin, preocupa-se com o problema de Estado. Esta não nega queo Estado seja uma sociedade política, mas pressupõe que toda sociedade seja fundada numa ordem – aordem jurídica. E toda ordem reguladora busca atingir seu fim por meio da coerção, que só pode seraplicada pelo Estado. Portanto, a ordem jurídica é o próprio Estado.
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- assim, segundo Kelsen, não há dualismo entre Estado e Direito. O conceito de Estado deve serdespido de seu caráter político para ser caracterizado unicamente por ser um grupo de pessoas ligado emtorno de uma ordem. Eis o conceito jurídico de Estado.
- com isso, o conceito de soberania não pode ser ligado ao “soberano” ou ao “Estado” enquantoconceito político, mas está relacionado à ordem jurídica nacional, no sentido de que nenhuma outra possa
ser superior a ela.
DIREITO INTERNACIONAL E DIREITO NACIONAL
- Austin admite a validade do Direito internacional apenas como “moralidade internacionalpositiva”. Não reconhece, portanto, força coercitiva ao Direito internacional.
- já a Teoria Pura considera perfeitamente possível considerar o Direito externo com um direito real.Trata-se de uma ordem estabelecida e que se funda na coerção, por meio das sanções “guerra” e“retaliação”. Todavia, essas sanções não ficam nas mãos de um único órgão central, mas estão dispersasnas mãos de vários Estados, que juntos formam a comunidade internacional.
- sobre a relação entre Direito nacional e internacional, há duas visões: dualismo e monismo.
- a visão dualista afirma a existência de duas ordens distintas, simultaneamente válidas sob o mesmoponto de vista. E aqui residem as críticas, pois essa simultaneidade pode levar a contradições insolúveis.
- já a monista prega por uma única ordem, formada pela nacional e a internacional. Dentro damonista temos uma corrente no sentido da primazia do Direito nacional, evidentemente decorrente daideia de Estado soberano. Por outro lado, temos a outra corrente da primazia do Direito internacional.
- é justamente essa última que, segundo o autor, teve sua base teórica revelada pela Teoria Pura. Sobre a primazia do Direito internacional afirma Kelsen que tais normas podem ser colocadas acima dasnormas nacionais, desde que se renuncie ao conceito de soberania como tradicionalmente o conhecemos.
- afirma que soberania é um juízo de valor e, como tal, decorreu da filosofia individualista dosséculos XVIII e XIX, na ideia de que o indivíduo humano é soberano. Mas isto é uma suposição que hoje ésuperada pela tendência a uma filosofia de valores universalista, segundo a qual a comunidade é superiorao indivíduo.
- assim, o Direito internacional pressupõe a validade simultânea das ordens jurídicas nacionais em umúnico e mesmo sistema de normas jurídicas, que compreende também o Direito internacional. Forma-se umsistema jurídico universal e uniforme.
- eis a principal crítica a Austin: não enxergou o Direito nacional dentro um sistema amplo ecomplexo, proveniente da relação entre as diversas ordens jurídicas nacionais, que têm por fundamento a
ordem internacional.
- obs.: verificar que os dois últimos tópicos foram escritos pelo autor a fim de tentar responder àpergunta sobre o fundamento da norma jurídica fundamental, como elaborado no final do tópico A TEORIAESTÁTICA E A TEORIA DINÂMICA DO DIREITO: A HIERARQUIA DAS NORMAS. O autor não deixa explícito, masquer-me parecer que o fundamento da norma hipotética fundamental, em que se baseia a Constituiçãode um Estado, seja a própria ordem jurídica internacional, enquanto sistema jurídico universal e uniforme.
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Capítulo 11 – DIREITO, ESTADO E JUSTIÇA NA TEORIA PURA DO DIREITO
I
Não se pode negar que o Direito é uma ordem social, isto é, uma ordem que regulamenta a condutarecíproca de seres humanos. Uma ordem é um conjunto de regras que prescreve certa conduta humana,
isto é, um sistema de normas. Dizer que o propósito do Direito é estabelecer a ordem cria a ilusão de queexistem duas coisas, o Direito, por um lado e o Estado, por outro. Mas o Direito é a própria ordem que têmem mente os que falam em “Direito e ordem”.
A Teoria Pura do Direito define o conceito de Direito como ordem coercitiva, isto é, como uma ordem queprescreve atos coercitivos como sanções. No entanto, não significa que a ideia que os homens têm doDireito exerça coerção psíquica sobre eles, que os coaja a conformar sua conduta com o Direito. Aconduta humana em conformidade com a ordem confere validade à ordem jurídica e está no plao naeficácia, então a eficácia é uma condição de validade do Direito. Mas não se trata de um elemento
específico do conceito de Direito.
A eficácia como condição de validade do Direito não deve ser confundida com a coerção comoelemento essencial do conceito de Direito.
II
Quanto à relaçao entre Direito e estado, é usual dizer que o Estado é uma comunidade política que cria ouexecuta a ordem social chamada “Direito”. Esta afirmação pressupõe que o Estado e o Direito são duascoisas diferentes: um, uma comunidade; o outro, uma ordem, um sistema de normas.
Às vezes supõe-se que uma comunidade é uma comunidade de interesses, isto é, que indíviduos que têminteresse comum formam uma comunidade. Essa definição ignora o fato de que as pessoas de um Estado,no que diz respeito aos interesses reais dos indivíduos, não são necessariamente um corpo homôgeneo, queas pessoas estão divididas em grupos de interesses antagônicos, que não existe, e nunca exisitiu, um Estadoem que não há indivíduos cujos interesses estão em oposição direta.
Para Kelsen as relações interindividuais que chamamos Estado são relações jurídicas, e o caráter jurídico é
manifesto quando o Estado é considerado nas relações que geralmente se supõe existirem entre essacomunidade, na condição de corpo político, e o Direito. O Estado cria ou aplica o Direito, sendoapresentado como uma pessoa atuante. Mas o Estado pode atuar apenas por intermédio de sereshumanos. Assim, o problema do Estado e essencialmente o problema da imputação. Mas para Kelsen um
ato executado por um ser humano pode ser imputado ao Estado se esse ato for determinado pela ordem jurídica de um maneira específica.
Que o Estado cria o Direito significa que seres humanos, na sua qualidade de órgãos do Estado, criam oDireito, e isso significa que criam o Direito em conformidade com normas jurídicas que regulamentam acriação do Direito. Que o Estado aplica a lei significa que um ser humano que atua como órgão do Estadoexecuta uma sanção estipulada pelo Direito. Seres humanos que executam atos de Estado estão atuandocomo órgãos do Estado.
O Estado é uma comunidade jurídica, mas nem toda ordem jurídica é um Estado. Apenas uma ordem jurídica relativamente centralizada é denominada Estado.
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III
A Teoria Pura do Direito trata o Direito como um sistema de normas válidas criadas por atos de sereshumanos. É uma abordagem jurídica do problema do Direito. A sociologia e a história do Direito tentamdescrever e explicar o fato de que os homens têm uma ideia diferente do Direito em diferentes épocas elugares e o fato de que os homens conformam ou não conformam sua conduta a essas ideias. É evidenteque o pensamento jurídico difere do pensamento sociológico e histórico.
A sociologia do Direito e a história também são ciências. Elas, juntamente com a análise estritural do Direito,são necessárias para uma compreensão completa do fenômeno complexo do Direito. Dizer que não podeexisitir uma teoria pura do Direito, porque uma análise estrutural do Direito restrita ao seu problemaespecífico não é suficiente para uma compreensão completa do Direito equivale a dizer que uma ciênciada lógica não pode exisitir, porque uma compreensão completa do fenômeno psíquico do pensamentonão é possível sem a psicologia.
Assim como a questão da origem do Direito, a questão de se determinda ordem jurídica é justa ou injusta
não pode ser respondida no âmbito e pelos métodos específicos de um ciência voltada para uma análise
estrutural do Direito positivo. Isso não implica necessariamente que a questão de o que é justiça não podeser respondida de maneira cintífica, isto é objetiva. Deve-se a justiça e o Direito ser considerados doisconceitos diferentes. Se a ideia de justiça tem alguma função, é a de ser um modelo para a feitura de bomDireito e um critério para distinguir bom e mau Direito.
Existe, porém, na jurisprudência tradicional, uma tendência terminologica de identifica Direito e justiça, de
usar o termo Direito no sentido de Direito justo e de declarar que uma ordem coercitiva globalmente eficaze, portanto um Dir eito positivo válido, ou uma norma individual de tal ordem social, não são Direito “real”ou“verdadeiro”se não forem justos.
Não existe e não pode existir, um critério objetivo de justiça porque a afirmaçao de que algo é justo ouinjusto é um juízo de valor que se refere a um fim absoluto, e esses juízos de valor são, pela sua própria
natureza, de caráter subjetivo porque baseados em elementos emocionais de nossa mente, em nossossentimentos e desejos.
A identificação terminológica de Direito e justiça é um dos elementos caracteríticos da doutrina do Direitonatural, que apresenta a justiça sob o nome de lei “natural”. O Direito positivo também é ‘lei’, e enquantonão se provar que está em desacordo com a lei natural, deve ser considerado lei verdadeira.
No entanto, a Teoria Pura do Direito insiste em uma separação clara entre o conceito de Direito e oconceito de justiça, seja o chamado Direito natural, verdadeiro ou objetivo, e por que a Teoria Pura doDireito renuncia a qualquer justificação do Direito positivo por uma espécie de supra-Direito, deixando essatarefa problemática à religião ou à metafísica social.
Capítulo 12. Causalidade e retribuição
KELSEN, Hans. O que é justiça: A Justiça, o Direito e a Política no espelho da ciência. Trad. Luís Carlos Borges.
Martins Fontes: São Paulo. 2001. pp. 301-321.
O pensamento causal é fruto do desenvolvimento da racionalidade da civilização, pois os povosprimitivos não tinha a noção de que os fatos ocorriam a partir de uma causalidade determinada por leisnaturais. Para o homem primitivo, a ordem social e a ordem natural se confundiam; e havia apenas umaforte ideia de retribuição, segundo a qual o bem é retribuído com o bem e o mal e retribuído com o mal, deacordo com os valores históricos, costumeiros e religiosos daquele contexto.
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I - Os gregos foram os primeiros tentar compreender cientificamente a realidade. Deste modo, opensamento causal surgiu na filosofia grega, a partir da compreensão de que determinadas causasgeravam certos efeitos. A teoria causal grega foi fortemente influenciada pela ideia retribucionista primitiva:o mal gera uma punição e o bem gera uma recompensa (causa precedente e efeito consequente).Quanto maior o mal, maior a punição. Nesta ideia estaria contida a noção de igualdade e de equilíbrio (apunição deve ser igual ao mal gerado). Essa retribuição equilibrada geraria a justiça (o equilíbrio é justo; e odesequilíbrio, injusto). A justiça retribucionista, portanto, foi a primeira formulação da lei da causalidade.
Para Heráclito, a causalidade é uma lei universal que atribui um “quinhão merecido” dado pelo
mérito ou pela falta, sendo a ordem jurídica indubitavelmente retribucionista. Afirma que Dike (Justiça) é a“Deusa da Retribuição (ou Deusa da Vingança ou Deusa da Verdade)”, que com certeza pune quemdesrespeita as “leis divinas universais”, as quais traduzem a vontade divina, de observância obrigatória.Parmênides, apesar de antagonista de Heráclito, também desenvolveu a causalidade retribucionista nosmesmos termos. Empédocles afirma que a natureza retribui com uma punição quem faz o mal: a proibição
de matar (pessoas e animais) é uma norma fundamental que garante a todos o mesmo direito de viver,sendo uma lei natural que, se violada, gera “punições inexplicáveis”, sendo também igualmenteretribucionista.
Após, os atomistas Leucipo e Demócrito eliminaram os elementos teológicos do princípio da
retribuição: as regras de Direito garantem o estado normal das coisas por meio de sanções, por umanecessidade objetiva impessoal, deixando a retribuição de ser uma vontade divida. Par Demócrito acausalidade funcionaria como um esquema de ação e reação, assim como a interação dos átomos, emque os átomos homogêneos se atraem (o imã atrai o ferro), o mal atrairia a punição e o bem atrai arecompensa.
Nessa mesma época, os sofistas, como Protágoras, rechaçaram a teoria da retribuição. Para os
sofistas o ato coercitivo estatal não deve servir de retribuição, pois o Estado não deve se vingar como umanimal de quem faz o mal, pois aquele mal passado não seria desfeito com a retribuição. Para ele, apunição é uma forma de PREVENÇÃO, que visa impedir que a pessoa punida e outros que veem a puniçãode fazer o mal novamente. Ou seja, a punição visa a prevenção para o futuro e não a retribuição dopassado.
II – A causalidade destituída de elementos teológicos desenvolvida a partir dos atomistas correu orisco de perder-se novamente na Idade Médica, na qual havia forte influência cristã. Bacon, Galileu eKepler novamente reviveram a ciência destituída de influência teológica.
Entretanto, recentemente, ocorreu uma crise na causalidade, pois esferas da física moderna aquestiona ou a nega. O primeiro a questionar severamente a causalidade foi Hume. Para este autor, não há
uma relação objetiva de causa e efeito, mas o que há é uma sucessão regular de eventos que nãoguardam necessariamente relação entre si. A ideia de que causas similares produzem efeitos similares é um“mero hábito do pensamento”: temos o costume de pensar que certo fenômeno é sempre acompanhad opelo mesmo efeito que o acompanhou no passado. A causalidade como relação de causa e efeito édecorrência do pensamento de que há uma “autoridade transcendental que governa a sociedadehumana” ligada a ideia de retribuição (se retribui o mal com o mal porque é essa a vontade da autoridadetranscendental). Isso deve ser superado.
Físicos como Mach e Philipp Frank, demonstram que na física, uma causa nem sempre gerará efeitosiguais, ou sequer proporcionais. Ainda, não é possível dizer que uma causa gera apenas um efeito; e que oum efeito é gerado sempre pela mesma causa.
Ademais, determinada causa gera um efeito, e este efeito é causa para outro efeito, e assimsucessivamente, de modo a gerar uma cadeia interminável de eventos, havendo várias cadeias paralelas,que se interagem e se influenciam aleatoriamente. Em suma, cada efeito tem infinitas causas e cada causagera infinitos efeitos. Se apartarmos apenas o evento considerado maléfico e atribuirmos a ele uma causa
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única, com a consequente punição, estaremos interpretando a natureza segundo o princípio daretribuição, fundado em uma vontade, seja divina ou humana. O princípio da retribuição seria a expressãoda teoria da causalidade bipartite, como se cada efeito fosse gerado por uma única causa e cada causagerasse apenas um efeito, passível de retribuição pela punição.
Partindo desta constatação, os filósofos abandonaram esta ideia de causalismo e passaram a
adotar o “condicionalismo”, que nada mais é do que um causalismo modificado e restringido. De acor do
com esta teoria, a partir de certas “condições”, gera-se uma “resultante”, mas apenas seria uma condição juridicamente relevante aquela imediata e decisiva para gerar a resultante. Admite haver várias causaspara um evento, mas atribui importância apenas para a causa (“condição”) decisiva do evento(“resultante”), separando-se, assim, da teoria da causalidade bipartite e do princípio da retribuição. Há umaimportância prática inegável nesta teoria: haveria apenas uma punição para cada infração, pois apenasuma causa seria relevante para o evento maléfico, sendo isso expresso no postulado ne bis in idem.
A teoria da causalidade se sustenta na analise cronológica de que primeiro vem a causa e depois aconsequência, com uma “dependência funcional”. Nunca ocorre o contrário, tampouco seriamsimultâneos. Essa ideia de causalidade era considerada a “forma fundamental da lei da natureza”, masdeixou de ser plausível com a constatação da moderna ciência natural que há inúmeras interdependênciasfuncionais entre elementos que são simultâneos, não havendo, portanto, relação de causalidade entre eles.
Ex.: Pressão e volume na Lei de Boyle são simultâneos e dependentes e, portanto, não causais. A questãoque se coloca é se devemos abandonar a teoria da causalidade ou adotarmos uma teoria da causalidademodificada, admitindo a iteração de elementos simultâneos. Ambas as opções nos fazem abandonar oprincípio da retribuição.
Ainda, a mecânica quântica e a mecânica das partículas subatômicas foram áreas da ciênciafísica que se desenvolveram de modo a sepultar definitivamente a lei da causalidade bipartite, pois nessasáreas a verificação das causas se revela inútil a definição certa dos efeitos, havendo apenas um juízo deprobabilidade estatística. Reichenbach e Laplace, nesse sentido, defendem a modificação da causalidadepassando de um juízo de certeza (causa e consequência), para um juízo de probabilidade estatística(“princípio da incerteza”): é possível prever o futuro baseado em um juízo de probabilidade, assim como épossível analisar o passado com probabilidade, já que conhecemos o passado apenas imperfeitamente.
Kelsen termina o capítulo afirmando que “Apenas Deus pode prever o futuro com absoluta certeza”.“O futuro pode ser conhecido a partir do presente apenas da suposição de que o passado, por meio doqual o presente é explicado, repete-se no futuro”. Até Hume, a causalidade era uma norma da naturezaeminentemente ligada às leis divinas, sendo que a sua conquista foi afirmar que não há uma causalidadenecessária. Entretanto, ainda hoje há espaço para a teoria da causalidade como norma científica, aindaque desprovida de uma explicação da transcendência metafísica. A causalidade considerada comonorma pode adquirir a condição de inviolabilidade, embora nem sempre esta norma seja obedecida naprática, pois nem sempre que uma norma é violada, esta deixa de ser válida. Isso significa que as leisnaturais podem apresentar exceções, sendo consequentemente, meras leis “estatísticas de probabilidade”,o que a afastaria definitivamente do princípio da retribuição.
Capítulo 13 – “Causalidade e Imputação”
No capítulo 13, Kelsen desdobra a relação existente entre causalidade e imputação, fazendo referênciasaos conceitos já utilizados no capítulo 12, em que aborda o tema da correlação entre causalidade eretribuição.
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O Princípio da Causalidade deve ser associado às ciências naturais, às causas e efeitos, à ideia deregularidade, no sentido de que toda causa provoca necessariamente o efeito respectivo . A ideia deinevitabilidade norteia a causalidade das ciências naturais, que tem a seguinte fórmula: “Se existe A, B existe (ou existirá)”. A relação entre causa e consequência, nas leis da natureza, é independente de um ato humano, ou sobre-humano, uma vez que o homem não pode controlar os fenômenos da natureza, cujos efeitos sãodecorrência lógica e necessária de suas causas. Como exemplo, o autor descreve o efeito do calor sobreos corpos metálicos – se um corpo metálico é aquecido, ele se expande (ou irá se expandir). Nesse caso do
aquecimento do metal, se sabemos a regra que norteia os fenômenos naturais, sabemos de imediato osefeitos que serão provocados, não necessitando de maiores esforços interpretativos. Essa é a lógicaexpressada pelo termo “ser” (pois o efeito decorre de uma causa) e não do “dever ser”, relacionado com oPrincípio da Imputação, quando a uma condição deve ser imputada uma consequência, mas que nãopodemos afirmar com certeza que essa ocorrerá, pois dominável pelo homem.
Já o Princípio da Imputação se refere às ciências sociais que estudam os comportamentos humanos, asações humanas que dão origem às consequências; as ciências que se ocupam da conduta humana nãocomo ela ocorre de fato, como causa e efeito, mas como deve ocorrer, como “deve ser”, levan do-se emconsideração as normas existentes. As ciências sociais normativas não estão preocupadas com o nexo causal entre causa e efeito, mas sim,com o nexo imputativo entre as condições e as consequências. Portanto, neste modelo, não analisamos causa e efeito, mas sim, condição e consequência, no sentido de
que a partir de uma condição, não decorre necessariamente uma consequência, pois esta pode sercontrolada pelo homem. A proposição lógica de tal princípio é: “Se existe A, B deve existir”. As ciências sociais podem se referir a leis morais, leis religiosas, leis jurídicas. No que tange às últimas, temos oexemplo do homem que rouba. Segundo o Princípio da Imputação, não podemos afirmar que ele serápreso, lógica e necessariamente, mas que ele deve ser preso. A relação entre condição e consequência(que se relacionam com a causa e efeito das ciências naturais) depende de um ato humano. O homemque roubou pode ser preso, mas pode também não o ser. Na esfera do Direito, temos a condição como o comportamento humano e a consequência, como asanção, que pode ou não ser aplicada.
A imputação, como relação entre a condição e a consequência, quando trazida para o campo das leis jurídicas, significa impor uma sanção, uma pena a um delito cometido pelo homem. A diferença entre
causalidade e imputação está no fato da consciência humana para a relação entre a condição econsequência, uma vez que na causalidade temos a causa e o efeito sem a interferência humana. “(...) aligação entre um delito e uma sanção jurídica é estabelecida por um ato, ou atos, de seres humanos, porum ato criador de Direito, isto é, um ato cujo significado é uma norma”.
A relação entre o delito e a sanção é estabelecida por meio da norma jurídica - uma prescrição a queKelsen denominou de imputação. Ou seja, a um comportamento contrário aos previstos nas normas
jurídicas, é imputada uma sanção, uma pena. Mas devemos nos atentar para o fato de que a sanção sóserá imputada à conduta do indivíduo responsável por ela (o que hoje chamamos de ser “imputável” parao Direito Penal). É preciso fazer um juízo jurídico acerca da responsabilidade do indivíduo para saber se asanção será ou não ligada à conduta. Diz-se que a sanção deve ser imputada ao delito, e não, causadapor ele.
As sociedades primitivas e a imputação Kelsen afirma que, ao contrário do que é comum imaginar, nas sociedades primitivas, era utilizado oprincípio da imputação em vez do princípio da causalidade, fazendo, neste ponto, referência ao capítulo12 do livro, que trata de causalidade e retribuição. Defende que os homens primitivos não pensavamcausalmente, mas interpretavam a natureza por categorias sociais. O homem primitivo pensava a naturezacomo parte integrante de sua sociedade como ordem normativa, cujos elementos estão interligados peloPrincípio da Imputação. Explicando: a regra principal da comunidade primitiva era a da retribuição, quando o homem retribui obem com o bem e o mal com o mal. A vingança, a primeira sanção socialmente organizada, trazia em si anorma da retribuição, que previa a punição (quando o homem fazia o mal) e a retribuição (quando ohomem fazia o bem). Desta proposição pode ser inferido o Princípio da Imputação de tal forma: “eventosprejudiciais são imputados à conduta errada; eventos vantajosos, à conduta certa”. (p. 327).
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Não se tratava de perguntar qual é a causa de uma atitude, de um evento que tenha ocorrido, mas simquais seriam os responsáveis por ele – isso é uma interpretação normativa da natureza, e não causal. O homem primitivo não podia imaginar a divisão entre os fatos naturais e os fatos do homem, tudo para eleestava na mesma órbita da sociedade, conectado a ela.
As outras diferenças entre a causalidade e a imputação - Outra diferença descrita por Kelsen entre imputação e causalidade diz respeito à quantidade de vínculos
entre a causa e o efeito, a condição e a consequência. Segundo o autor, a cadeia da causalidade (causas e efeitos) é infinita , ou seja, cada causa realizada éefeito de outra causa, bem como cada efeito concreto é causa de outro efeito, formando-se uma cadeiailimitada de fatos. Assim, cada evento que ocorre é a “ intersecção de um número infinito de linhas decausalidade” (p. 331). Já os vínculos existentes entre condição e consequência (imputabilidade) são finitos. A cada condição éimputada uma determinada consequência; para o delito X, há a sanção Y, e não uma infinidade depunições, a recompensa X é vinculada ao mérito Y. Temos na imputação um limite, um “ ponto final”, o quenão existe na causalidade.
- Há outra observação feita pelo autor ao final do capítulo, que diz respeito à contraposição dacausalidade com o princípio da imputação. Na relação estabelecida pelo Princípio da Imputação, temosregras que preveem consequências a determinadas condições. Tais regras, como já vimos, são definidoras
de proposições do “dever ser” e não do “ser”. Desta forma, mesmo as regras que parecem ser absolutas (como não matar, não roubar, não tomar a propriedade alheia sem seu consentimento...) comportamexceções, condições definidas que legitimam a violação de tais normas. As obrigações não sãocategóricas, incondicionais, pois “em uma sociedade empírica não há proibições sem exceções” (p. 348). Vemos que nestes casos excepcionais, não há espaço para a causalidade, uma vez que ela (causalidade)determina um comportamento do “ser”, prevendo um efeito para uma causa.
Liberdade e imputação Costuma-se pensar que o homem é livre na medida em que há a isenção do princípio da causalidade, umavez que aquele que tem vontade livre não se sujeita às leis causais que determinam sua conduta. Destaforma, ele seria capaz de imputação moral, religiosa ou jurídica, sendo possível ser responsabilizado por seusatos. Todavia, segundo Kelsen, esta não é a melhor interpretação.
- A questão deve ser encarada no sentido oposto, ou seja, o homem é livre porque a ele são imputadasrecompensas, punições, sanções decorrentes de suas atitudes humanas e tais imputações não sãodeterminadas em virtude da falta de nexo de causalidade, de relação de causalidade norteando suascondutas, mas a despeito disso, de a relação de causalidade também fazer parte da conduta humana. Para que haja o livre arbítrio não é preciso assumir que causalidade e vontade humana são noçõesdiametralmente opostas. A lei universal da causalidade pode sim ser harmonizada com a liberdade dearbítrio do ser humano. Caso a conduta humana seja interpretada segundo as leis da natureza, ou seja,como parte da natureza, tal conduta deve ser entendida como um efeito determinado por causasprecedentes. Um modo mais simples de entender a não indissociabilidade entre imputação (livre arbítrio) e causalidade éanalisar a imputação como um princípio diferente da causalidade, mas análogo a ela, um realizando nasciências sociais o que o outro consegue nas ciências naturais” (p. 345).
QUESTÃO: Defensoria Pública/SP – 2010 – FCC
- “Esse princípio tem, nas regras de Direito, uma função análoga a que tem o princípio da causalidade nasleis naturais por meio das quais a ciência natural descreve a natureza. Uma regra de direito, por exemplo, éa afirmação de que, se um homem cometeu um crime, uma punição deve ser infligida a ele, ou aafirmação de que, se um homem não paga uma dívida contraída por ele, uma execução civil deve serdirigida contra sua propriedade. Formulando de um modo mais geral, se um delito for cometido, umasanção deve ser aplicada. No trecho reproduzido acima, em sua obra “O que é Justiça?”, Hans Kelsenrefere-se ao princípio: a) do monismo metodológico b) da imperatividade do direito c) da validade
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d) da eficácia e) da imputação
(gabarito abaixo)
(gabarito: letra E)
Capítulo 14 - Ciência e Política - Leone
1. Realidade e Valor
A busca da verdade, que é a função essencial da ciência, não deve ser influenciada por
interesses políticos, que são os interesses envolvidos no estabelecimento e na manutenção de uma
ordem social definida ou de uma instituição social particular. Isso implica em que os enunciados pelos
quais um cientista descobre e explica o objeto de sua investigação não devem ser influenciados porvalores em que ele próprio acredita. Enunciados científicos são juízos sobre a realidade e, por definição,
objetivos e independentes de desejos e temores do sujeito que julga.
Um fim como meio para outro fim deve ser distinto de um fim último (valor constituído por uma
norma fundamental). O enunciado de que algo é um fim é um juízo de valor no sentido específico do
termo apenas quando se refere a um fim último (como juízo sobre um valor supremo) não a um fim
como meio para um outro fim. Esse confuso enunciado traduz-se na concepção de que enunciados
científicos podem ser formulados apenas como proposições condicionais: se for pressuposta como
válida uma norma fundamental que constitui um fim último, então algo é um meio adequado.
Juízos sobre fins últimos ou supremos são, apesar de sua pretensão a uma validade objetiva,
altamente subjetivos. Assim, eles diferem de juízos sobre a realidade que – sendo verificáveis pela
experiência e completamente independentes da personalidade do sujeito que julga – são pela sua
própria natureza objetivos. Essa objetividade é característica essencial da ciência, sendo exatamente o
traço distintivo entre ciência e política – esta é uma atividade baseada, em última análise, em juízos de
valor subjetivos.
2. A Ciência da Política e a Ciência Política.
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O cientista político deve se balizar, em sua análise, pelo tratado no tópico anterior. Em outros
termos, ele não deve aprovar nem desaprovar o objeto de sua análise, para que seu trabalho não se torne,
em vez de uma ciência da política, uma ciência “política”, no sentido de um instrumento da política.
3. Ciências Normativas
O postulado da separação entre ciência e política pressupõe que o objeto da ciência é a
realidade, que os enunciados científicos são enunciados sobre a realidade, em oposição aos juízos de valor
no sentido específico do termo. Existem, porém, disciplinas geralmente consideradas ciências, como a ética
e a jurisprudência, cujo objeto parece não ser a realidade, mas valores. São, portanto, ciências
“normativas”.
A norma em que a validade de um Direito positivo se fundamenta é, na verdade, uma norma não-
positiva, e o princípio do positivismo jurídico pode ser sustentado apenas se restringido por esse fato. Essa
restrição, porém, não abole a oposição entre o positivismo jurídico e a doutrina do Direito Natural. A normafundamental de uma ordem jurídica positiva tem caráter meramente formal, servindo como fundamento
para qualquer ordem jurídica positiva, independentemente de sua conformidade ou não-conformidade
com o Direito natural.
A diferença entre a realidade natural e a realidade jurídica é que esta consiste em fatos que têm
um significado específico de normas positivas. As regras do direito não são uma aplicação do princípio da
causalidade: não têm o significado de leis da natureza. São proposições que ligam uma condição à sua
consequência, mas essa ligação tem outro significado: não é o de que, em certa condição, determinada
consequência ocorre efetivamente, mas sim o de que sob a condição de certa conduta humana, outra
conduta humana deve ocorrer como consequência.
4. A Ciência do Direito e a Política
O juízo de que algo é legal ou ilegal deve ser distinguido do juízo de que algo é justo ou injusto. A
única norma não-positiva que a ciência do Direito pode levar em consideração – não como seu objeto,
mas como uma condição dos enunciados que descrevem seu objeto – é a norma fundamental da ordem
jurídica que é seu objeto. A positividade do direito consiste no fato de que sua validade não depende de
sua conformidade com a justiça, mas no fato de que é criada de uma maneira definida, determinada pela
norma fundamental e que é, de modo geral, eficaz. Um Direito positivo pode ser justo ou injusto; a
possibilidade de ser justo ou injusto é uma consequência essencial do fato de ser positivo.
A ideia de justiça, em seu sentido específico, designa um valor absoluto, constituído por uma norma
não-positiva, que se afirma válida em todas as partes e em todos os tempos, uma norma substantiva com
conteúdo imutável.
Embora a ciência do Direito possa e deva ser separada da política, isto é, embora o cientista jurídico
deva abster-se de juízos de valor políticos, o processo legislativo, que é a função da autoridade jurídica, não
pode ser separado da política. Ao criar uma norma, a autoridade jurídica aplica uma norma superior que
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determina a criação e o conteúdo da norma inferior. Mas, como a norma pode determinar a criação e o
conteúdo de outra norma apenas até certo ponto, existe aí uma discricionariedade, conferindo caráter
político ao processo legislativo.
O cientista jurídico não tem a escolha de aceitar ou rejeitar o Direito, tal como estabelecido pelo
legislador, com base no seu juízo sobre o que é justo e injusto. Ele tem que descrever a decisão do legislador
como Direito existente, considerando-o em conformidade ou não com o que considera justiça. Oenunciado do cientista jurídico de que um estatuto é ou não constitucional não tem nenhuma importância
jurídica, pois a questão de se o estatuto é ou não constitucional não pode ser decidida pela ciência do
Direito, mas pela autoridade jurídica a quem o Direito confere esse poder.
5. O Jurídico e o Político
A distinção entre jurídico e político é útil e necessária, mas deve ser usada com muita atenção.
Nesse tópico, o autor faz uma grande digressão acerca de doutrina – provavelmente em voga na Europa
na época dos escritos – que pregava uma superioridade do direito privado em relação ao direito público,tendo em vista o caráter “político” deste. Contudo, no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo, tal
teoria mostra-se infundada e superada, principalmente levando em conta a importância cada vez maior
que se confere ao direito público. O autor perpassa, ainda, a teoria de que a Constituição é apenas um
instrumento político – também já superada, principalmente em virtude do pós-positivismo constitucional, que
se coaduna, em linhas gerais, com a atuação da Defensoria Pública.
O uso equivocado da distinção entre jurídico e político é um dos meios mais eficazes, embora não o
único, empregados para confundir a ciência do Direito com a política. Evitar a fusão dessas duas esferas
heterogêneas é tão essencial para a preservação do caráter científico da jurisprudência quanto é vital a
separação de ciência e política para a existência de toda e qualquer ciência independente.
CAPÍTULO 14 – CIÊNCIA E POLÍTICA (pág. 349 a 374) - Priscila
I.
Realidade e valor
É comum afirmar que a ciência deve ser independente da política. Com isto, quer-se dizer que a
busca da verdade, função essencial da ciência, não deve ser influenciada por interesses políticos, que são
os interesses envolvidos no estabelecimento e na manutenção de uma ordem social definida ou de uma
instituição particular. A política como arte de governar, como prática de regulamentar a conduta social dos
homens é uma atividade que necessariamente pressupõe a assunção consciente ou inconsciente de
valores.
A independência da ciência diante da política significa, em última análise, que o cientista não deve
pressupor nenhum valor. Enunciados científicos são juízos sobre a realidade; por definição, são objetivos e
independentes de desejos e temores de sujeito que julga porque são verificáveis por meio da experiência.
São verdadeiros ou falsos. Juízos de valor, porém, têm caráter subjetivo porque são baseados, na
personalidade do sujeito que julga, em geral, e no elemento emocional de sua consciência, em particular.
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O princípio de excluir juízos de valor do campo da ciência parece ter uma exceção. Existe um valor
que a ciência deve pressupor - a verdade - há um juízo de valor que um cientista pode pronunciar
legitimamente: o juízo de que algo é verdadeiro ou falso. Contudo, a verdade não é um valor do mesmo
sentido que os valores na base da atividade política como, por exemplo, a liberdade individual ou a
segurança econômica. Verdade significa conformidade com a realidade, não conformidade com um valor
pressuposto. O juízo de algo ser verdadeiro ou falso é a verificação da existência ou não-existência de umfato, e tal juízo tem um caráter objetivo na medida em que é independente do desejo ou do temor do
sujeito que julga e, verificável, pela experiência dos sentidos, controlados pela razão. Pode-se demonstrar
pela experiência que o enunciado “O ferro é mais pesado que a água” é verdadeiro e que o enunciado “A
água é mais pesada que o ferro” é falso; e um deles é verdadeiro e outro falso mesmo se o sujeito que julga,
por um motivo ou outro deseja o contrário. Por outro lado, o enunciado de que certa organização, que
garante a liberdade individual, mas não segurança econômica, é boa não é enunciado sobre um fato, não
deve ser verificado por experimento e não é verdadeiro nem falso.
Juízos sobre valores não contradizem juízos sobre a realidade, na verdade, apenas se seu significado
é tal que não podem contradizer ou afirmar juízos sobre a realidade é que são juízos no sentido específicodo termo. Nesse sentido, a realidade e valor são sempre duas esferas diferentes.
Os termos ‘valor’ e ‘juízo de valor’ são frequentemente usados em outro sentido. Tal é o caso
quando e enunciado de que algo é meio adequado para certo fim é considerado juízo de valor. O
enunciado refere-se à relação entre causa e efeito e, é justamente essa relação entre fatos que constitui
uma realidade específica, a realidade da natureza. A ciência natural descreve seu objeto como real
aplicando o princípio da causalidade - isto é, por meio de enunciados de que em dada condição, uma
consequencia específica certamente, ou provavelmente ocorrerá. Esses enunciados são chamados de leis
da natureza. O enunciado de que algo é um meio adequado para um fim é verdadeiro ou falso; para ser
verdadeiro, deve ser verificável pela experiência. O enunciado de que uma organização comunista é boa
significa que é meio adequado de ocasionar segurança econômica para todos, e o enunciado de que
uma organização comunista é má significa apenas que ela não tem este resultado. Ambos são juízos sobre
a realidade, e, se são classificados como juízos de valor, tais juízos de valor não são diferentes de juízos sobre
a realidade, mas apenas um tipo especial de tais juízos, e, portanto, não devem ser excluídos da esfera da
ciência. A ciência pode determinar os meios, mas não pode determinar os fins.
O enunciado de que algo é um fim, não é idêntico ao enunciado de que um indivíduo,
especialmente o sujeito que julga, ou vários indivíduos o desejam. O segundo é um enunciado sobre um
fato sobre o estado de espírito efetivo dos seres humanos. Se por ‘fim’ designa-se aquilo que um indivíduo
efetivamente deseja, esse termo significa a intenção do indivíduo, o propósito a que ele está efetivamente
visando. Mas, no sentido específico, o enunciado de que algo é um fim, por exemplo, o enunciado de que
a segurança econômica para todos é o fim da vida social, expressa a ideia de que algo deve ser buscado
como um fim, mesmo que não seja efetivamente buscado. Nesse sentido, o conceito de ‘fim’ é idêntico ao
de ‘fim correto’. Portanto este enunciado (fim correto) equivale à afirmação de que esse algo é pr escrito
por uma norma. Nesse sentido, ‘fim’ significa ‘valor’ e, nesse sentido, uma norma constitui valor. Em outras
palavras, apenas como enunciado sobre o que deve ser feito, em conformidade com uma norma
pressuposta como válida, é que o enunciado de que algo é um fim é um juízo de valor no sentido específico
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do termo, em contraposição a um juízo sobre a realidade, na condição de enunciado sobre o que é
efetivamente feito ou provavelmente será feito.
Devemos distinguir um fim, que pode ser considerado um meio para outro fim, de um fim último, ou,
o que dá no mesmo, um valor constituído por uma norma fundamental, isto é um valor supremo.
Obedecer aos mandamentos de Deus é um fim último - um valor supremo - o conteúdo de uma
norma fundamental. O enunciado de que a ciência pode determinar o meio, mas não o fim último,equivale ao enunciado de que a ciência não deve pressupor a validade uma norma fundamental.
Enunciados científicos sobre os meios adequados podem ser formulados apenas como proposições
condicionais: se for pressuposta como válida a norma fundamental que constitui um fim último, então é
meio adequado.
Juízos sobre fins últimos ou supremos são, apesar de sua pretensão a uma validade objetiva,
altamente subjetivos. Assim, eles diferem de juízos sobre a realidade, que - sendo verificáveis pela
experiência e completamente independentes da personalidade do sujeito que julga, particularmente de
seus desejos e temores - são, pela própria natureza objetivos. Essa objetividade é uma característica
essencial da ciência, e, por causa de sua objetividade, a ciência opõe-se à política e deve ser separadadela, porque a política é uma atividade baseada, em última análise, em juízos de valor subjetivos.
A ciência da política e a ciência ‘política’
O princípio da objetividade aplica-se à ciência social, assim como à ciência natural e, em particular,
à chamada ciência política. O objeto da ciência política é a política - a atividade dirigida para o
estabelecimento e a manutenção de uma ordem social, especialmente o Estado. Ao descrever os
fenômenos que estuda, o cientista político deve levar em consideração os valores que os homens
pressupõem em suas atividades políticas. Mas ao fazê-lo não deve considerar a norma que constitui o valor
como válida, ele não deve aprovar nem desaprovar o objeto de sua análise, para que seu trabalho não se
torne, em vez de uma ciência da política, uma ciência política, no sentido de um instrumento da política. Se
isso acontece, ela não é uma ciência, mas uma ideologia política.
A separação de ciência e política, que significa abstenção de juízos de valor em uma ciência cujo
objeto, por assim dizer, está impregnado de juízos de valor, não é tão paradoxal como parece; é necessário
admitir apenas que verificar o fato de que os homens são, consciente ou inconscientemente, determinados
em suas atividades políticas por juízos definidos é bem diferente de apoiar esses juízos de valor. Não há
motivos para diferenciar ciências naturais e sociais no que diz respeito ao postulado de separar ciência e
política.
Os que negam a legitimidade desse postulado no que diz respeito à ciência política aceitam - pelos
menos em parte - um dos princípios mais característicos da filosofia marxista; o dogma de que a ciência não
pode ser separada da política porque é apenas parte da ‘superestrutura’ de uma realidade econômica (o
que significa, segundo essa filosofia, uma realidade política) e, consequentemente, nunca é realmente mais
do que um instrumento político. Esse dogma nega a possibilidade de uma ciência independente.
Embora a ciência deva ser separada da política, a política não necessita ser separada da ciência.
A ciência em geral e a ciência política em particular podem fornecer os meios adequados, mas, como foi
assinalado, ela não pode determinar os fins últimos da política. Contudo, admitir que esses fins, baseiam-se
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em juízos de valor subjetivos parece muito difícil para aqueles que - por motivos políticos - procuram uma
justificação absoluta do sistema político que tentam estabelecer ou sustentar. Se não estão dispostos a
encontrar tal justificação na religião, tentam obtê-la na ciência. Também essa tendência é característica
da filosofia marxista, que afirma estabelecer um socialismo científico. A verdadeira ciência, é claro, recusa-
se a ser substituto da religião e não pode senão destruir a ilusão de que juízos de valor podem ser derivados
da cognição de realidade, de que os valores são imanentes à realidade, que é o objeto do estudocientífico. A visão de que valor é imanente, à realidade, se sustentada por uma teoria da sociedade anti-
religiosa, antimetafísica, (como, por exemplo, pela filosofia de Comte ou pela interpretação econômica da
história de Marx), não tem nenhum fundamento.
Ciências normativas
O postulado da separação entre ciência e política pressupõe que o objeto da ciência é a
realidade. Existem, porém, ciências, ou disciplinas geralmente consideradas ciências, como a ética e a
jurisprudência, cujo objeto parece não ser a realidade, mas valores. Elas descrevem normas que constituem
valores, e, nesse sentido, podem ser chamas de ciências ‘normativas’. Para considerá-los ciências, devemoslevar em consideração o fato de que existem dois tipos de normas, assim, existem dois tipos diferentes de
juízos de valor: existem normas positivas, criadas por atos de indivíduos e normas que não são criadas nessa
maneira, mas são apenas pressupostas na mente dos indivíduos que atuam e julgam. As normas do Direito
positivo podem ser estabelecidas pelo costume, por atos legislativos, jurisprudenciais, atos administrativos ou
transações jurídicas. Os atos pelos quais são criadas as normas de um sistema normativo positivo são sempre
fatos manifestados no mundo exterior, perceptíveis aos sentidos.
Dizer que uma norma é criada por um fato é uma figura de linguagem. A norma é o significado
específico do fato, e esse significado, imperceptível aos nossos sentidos, é resultado de uma interpretação.
Interpretar o significado de um fato como norma é possível apenas sob condição de pressupormos outra
norma que confira a esse fato a qualidade de um fato criador de norma; mas essa outra norma, uma última
análise, não pode ser uma norma positiva.
A diferença entre uma norma positiva e norma não positiva é particularmente claro no campo do
Direito. A primeira constituição histórica só tem caráter de norma obrigatória se pressupomos uma norma
segundo a qual devemos conduzir-nos tal como os que estabeleceram a constituição ordenaram que nos
conduzíssemos. Se não supomos que os pais da constituição receberam sua autoridade de Deus, essa
norma é uma norma fundamental. Não foi estabelecida, como foi a própria constituição pelos atos de seres
humanos; ela é apenas pressuposta pelos que querem interpretar certas relações humanas como relações
jurídicas ou como relações determinadas por normas jurídicas. Esse pressuposto, porém não é arbitrário. Na
verdade, pressupomos que devemos conduzir-nos como os que estabeleceram a constituição ordenaram
que nos conduzíssemos, se a ordem jurídica estabelecida com base nessa constituição, for de modo geral,
eficaz. É princípio da eficácia implícito na norma fundamental.
A jurisprudência como ciência do Direito tem normas positivas por objeto. Apenas o Direito positivo
pode ser objeto de uma ciência do Direito. É o princípio do positivismo jurídico, em oposição à doutrina do
Direito natural, que pretende apresentar normas jurídicas não criadas por atos de seres humanos, mas
deduzidas a partir da natureza. Deduzir normas a partir da natureza, isto é, considerar a natureza como
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legisladora, pressupõe a ideia de que a natureza é criada por Deus e, assim, é a manifestação de vontade,
que é absolutamente boa. Portanto, a doutrina do Direito natural não é uma ciência, mas uma metafísica
do Direito. O Direito positivo pode ser Direito nacional (Direito de um Estado, baseado na constituição) ou
Direito internacional (criado pelos costumes). Mas a norma em que a validade de um Direito positivo se
fundamenta é, na verdade, uma norma não-positiva, e o princípio do positivismo jurídico pode ser
sustentado apenas se restringido por esse fato. Essa restrição, porém, não abole a oposição entre positivismo jurídico e a doutrina do Direito natural. A norma fundamental de uma ordem jurídica positiva - em
contraposição às normas substantivas do Direito natural que prescrevem uma conduta humana definida
como em conformidade com a natureza (e isso significa justa) e proíbem uma conduta humana definida
com contrária à natureza (e isso significa injusta) - tem caráter meramente formal. Serve como fundamento
para qualquer ordem jurídica positiva, independentemente de sua conformidade ou não-conformidade
com o Direito natural e, tem na ciência do Direito, um caráter meramente hipotético.
Normas jurídicas positivas podem ser objeto de uma ciência jurídica, porque a existência - e isso
significa a validade - de uma norma positiva é condicionada pela existência de fatos. Esses fatos são os atos
pelos quais a norma jurídica é criada, como um costume, um ato legislativo, judicial ou administrativo, umatransação legal, juntamente com a eficácia da ordem jurídica total à qual pertence a norma. A afirmação
de que certa conduta humana (ou certo ato do Estado) é legal ou ilegal pode ser verdadeira ou falsa,
sendo verificável pela experiência.
Tal norma existe apenas se for criada em conformidade com a constituição que está na base
daquele Direito e, essa constituição é válida apenas se a ordem jurídica sobre ela estabelecida for, de
modo geral, eficaz. São fatos que podem ser verificados pela ciência da natureza. Portanto, a afirmação
de que normas são o objeto da ciência do Direito não significa que o objeto dessa ciência não seja a
realidade. Significa apenas que esse objeto não é uma realidade natural tal como descrita pela ciência
natural. Mas o objeto da ciência jurídica pode ser caracterizado como realidade jurídica, tal como descrita
pela ciência jurídica, consistem em fatos que têm - contanto que seja pressuposta a validade da norma
fundamental não-positiva - um significado específico: o significado de normas positivas.
A ciência natural descreve seu objeto como real enunciando que em certas condições (causas),
ocorrem, necessária ou provavelmente certas consequências (seus efeitos). Essas proposições, como foi
assinalado, são as chamadas leis da natureza, que são leis da causalidade. Os enunciados pelos quais a
ciência do Direito descreve seu objeto não são uma aplicação do princípio da causalidade; eles não têm
significado das leis da natureza, embora tenham a mesma forma gramatical. Seu significado não é o de
que, em certa condição, determinada consequência ocorre efetivamente, isto é, necessária ou
provavelmente, mas que, sob condição de certa conduta humana, outra conduta humana deve ocorrer
como consequência. Esses enunciados são regras de Direito. Na regra de Direito de que ‘se um homem
comete roubo, outro homem deve punir o ladrão’ a punição não é descrita como efeito nem o roubo
como a causa. O termo ‘dever’ expressa o significado específico da ligação entre condição e
consequência, estabelecida por uma norma jurídica (uma prescrição ou permissão), como diferente da
ligação entre causa e efeito. Pode ser designada como ‘imputação’. É necessário lembrar, é claro que,
quando o princípio da imputação é aplicado, e quando se afirma que, sob a condição de certa conduta,
outra conduta deve ocorrer, o termo ‘deve’ não tem seu significado moral costumeiro, mas significado
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puramente lógico. Designa, como a causalidade, uma categoria no sentido da lógica transcendental de
Kant.
A ciência do direito e a política
Se as proposições por meio das quais a ciência do Direito descreve seu objeto forem chamadas
‘regras de Direito’, devem ser distinguidas das normas jurídicas descritas por essa ciência. As primeiras sãoinstrumentos da ciência jurídica, as segundas são funções da autoridade jurídica. Ao descrever o Direito por
meio de regras de Direito, a ciência do Direito não exerce a função de autoridade social, que é uma
função da vontade, mas função da cognição. Embora se possa considerar que as normas jurídicas emitidas
pela autoridade jurídica constituem valor específico, a saber, o valor jurídico, as regras de Direito não são
juízos de valor em nenhum sentido possível do termo, assim como as leis da natureza por meio das quais a
ciência natural descreve seu objeto não são juízos de valor.
A única norma não-positiva que a ciência do Direito pode levar em consideração - não como seu
objeto - é norma fundamental da ordem jurídica que é seu objeto. A função específica da norma
fundamental de uma ordem jurídica positiva, que constitui valor jurídico, é servir como fonte última doDireito, isto é, como razão da validade da constituição de uma ordem jurídica; e a constituição é aquela
norma jurídica positiva (ou conjunto de normas) que regulamenta a criação de outras normas da ordem
jurídica. Portanto, a norma fundamental de uma ordem jurídica positiva, como foi assinalado, tem um
caráter meramente formal; ela não constitui um valor substantivo como, por exemplo, a norma não-positiva
de que os homens devem ser livres, ou de que os homens devem viver em segurança - que constituem o
valor chamado ‘justiça’.
Um Direito positivo pode ser justo ou injusto; a possibilidade de ser justo ou injusto é uma
conseqüência essencial do fato de ser positivo. O juízo de que algo é legal ou ilegal, como foi assinalado,
refere-se necessariamente a uma ordem jurídica definida, válida para certo espaço e em certo tempo. O
que é legal segundo uma ordem jurídica pode ser ilegal segundo outra. Nesse sentido, o valor constituído
por normas jurídicas positivas é sempre um valor relativo. Mas a ideia de justiça, em seu sentido especifico,
designa um valor absoluto, constituído por uma norma não-positiva que se afirma válida em todas as partes
em todos os tempos, uma norma substantiva como um conteúdo imutável. Mesmo se o enunciado de que
alguma coisa é justa ou injusta significar que ela está ou não em conformidade com uma norma de uma
ordem moral positiva, estabelecida pelo costume ou pelos comandos de um fundador religioso, ele estará
excluído do campo da ciência do Direito. Pois a validade de tal norma positiva depende de uma norma
fundamental do Direito positivo, que é a única condição sob a qual a ciência do Direito pode descrever seu
objeto como um conjunto de normas válidas que constituem o valor jurídico específico.
Outros valores, especialmente o valor da justiça, que é valor específico segundo o qual o Direito
positivo chama ‘valores políticos’, para serem distinguidos do valor jurídico.
Mas, embora a ciência do Direito possa e deva ser separada da política, isto é, embora o cientista
jurídico deva abster-se de juízos de valor político, o processo legislativo, que é função da autoridade
jurídica, não pode ser separado da política. Pois essa função é determinada não apenas pelas normas
jurídicas, mas também por normas de outro sistema normativo que, para distingui-las do Direito, são
chamadas, como foi assinalado de ‘políticas’. É uma peculiaridade do Direito de reger sua própria criação.
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Assim como a constituição rege a criação dos estatutos ou institui o costume como fato criador do Direito,
estatutos e regras de Direito consuetudinário regem a criação de normas específicas pelos tribunais nas
jurisprudências. Ao criar uma norma, a autoridade jurídica aplica uma norma superior que determina a
criação e o conteúdo da norma inferior. Na medida em que sua função criadora de normas é deixada ao
seu arbítrio, a autoridade jurídica pode ser, e efetivamente é, determinada por outras normas que não as
normas jurídicas - e nessa medida sua função tem um caráter político, ao passo que é uma função jurídicana medida em que é determinada por normas jurídicas. Normalmente o órgão legislativo é juridicamente
obrigado pela constituição. É esse caso quando a constituição proíbe ou prescreve certo conteúdo para
essas normas, por exemplo, quando a constituição proíbe certo conteúdo a restrição da liberdade religiosa.
Na medida, em que a função legislativa é, determinada pela constituição, o legislador pode ser, e
efetivamente é, determinado por princípios políticos, especialmente pela sua ideia de justiça. Ele pode
preferir um conceito a outro no mesmo campo, porque considera um justo e o outro injusto.
O cientista jurídico não tem escolha de aceitar ou rejeitar o Direito, tal como estabelecido pelo
legislador, com base no seu juízo sobre o que é justo ou injusto. Ele pode apenas examinar se as normas
criadas pelo órgão legislativo estão ou não em conformidade com as normas positivas da constituição, e oresultado desse exame é, em ultima análise, a verificação objetiva de um fato, não um juízo subjetivo de
valor. Mas, mesmo o enunciado do cientista jurídico, de que um estatuto é ou não constitucional, não tem
nenhuma importância jurídica, pois a questão de se o estatuto é ou não constitucional não pode ser
decidida pela ciência do Direito, mas pela autoridade jurídica a quem o Direito confere esse poder.
A aplicação do Direito por uma autoridade jurídica, assim como a descrição do Direito pelo cientista
político, implica uma interpretação do Direito. Interpretar uma norma jurídica é encontrar seu significado. É
uma exigência da técnica jurídica que a norma jurídica seja formulada tão claramente quanto possível,
para que seu significado seja inquestionável. Por vezes, mais de um significado pode ser encontrado em
uma norma jurídica.
Existem diferentes métodos de interpretação: segundo a intenção do legislador, interpretação
histórica ou lógica e a interpretação restritiva ou extensiva. Mesmo que um método de interpretação seja
obrigatório, ele pode fornecer significados diferentes e contraditórios. Ao aplicar uma norma, a autoridade
jurídica escolhe em desses significados e, assim, atribui força de Direito. Isso pode ser chamado uma
interpretação autêntica, embora na linguagem tradicional esse termo seja usado apenas para designar
uma norma jurídica cujo propósito expresso é interpretar uma norma anterior, não a interpretação implícita
na aplicação da norma. A escolha de um dos vários significados de uma norma jurídica por uma
autoridade jurídica em sua função aplicadora do Direito é um ato criador do Direito. Na medida em que
essa escolha não é determinada por uma norma superior, é uma função política. Portanto, a interpretação
automática do Direito por uma autoridade jurídica pode ser caracterizada como interpretação política. Por
outro lado, a tarefa de um cientista jurídico que interpreta um instrumento jurídico é demonstrar seus
possíveis significados e deixar à autoridade jurídica competente a escolha, segundo princípios políticos, do
que esta autoridade julga mais adequado. Ao mostrar as possibilidades que a lei a ser aplicada abre à
autoridade jurídica, o cientista jurídico serve cientificamente à função aplicadora de direito; ao revelar a
ambiguidade e assim, a necessidade de melhorar a redação, serve à função criadora de Direito de
maneira científica.
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Se o cientista jurídico recomenda à autoridade jurídica um dos diferentes significados de uma norma
jurídica, ele tenta influenciar um processo criador de Direito e exerce uma função política e não cientifica;
se ele apresenta essa interpretação como a única correta, esta atuando como um político disfarçada de
cientista. Portanto a interpretação cientifica do Direito, que é a interpretação do Direto por um cientista
jurídico pode ser caracterizada como uma interpretação jurídica – em contraposição à interpretação
aplicada a uma autoridade jurídica. Ao preferir uma das diversas interpretações possíveis, à exclusão deoutras, a segunda pode ser caracterizada como uma interpretação política.
O “jurídico” e o “político”
A distinção entre uma função jurídica e uma função política como distinção como uma função
determinada por normas jurídicas e uma função determinada não por normas jurídicas, mas por normas
políticas, é de muitas vezes de considerável importância. Um exemplo típico é o reconhecimento de uma
comunidade ou de um Estado, ou de um corpo de indivíduos como governo de um Estado. Segundo alguns
autores o reconhecimento tem apenas caráter declaratório, não tem conseqüências jurídicas. Portanto,
uma comunidade é um Estado se cada um cumprir as exigências do Direito internacional,independentemente de ser ou não comunidade reconhecida pelos outros Estados. Segundo outros autores,
o reconhecimento tem um caráter constitutivo, o que significa que tem conseqüências jurídicas essenciais.
Assim, uma comunidade é um Estado apenas quando reconhecida pelos outros Estados. Mas, na verdade,
o reconhecimento é um ato constitutivo e declaratório, o ato chamado reconhecimento compreende duas
funções: uma função jurídica, que é constitutiva, e uma função política, que é declaratória.
É frequente a afirmação de que a constituição de um Estado, ou a constituição de uma
comunidade internacional, não é um instrumento jurídico mas um instrumento político, que,
conseqüentemente deve ser interpretado não juridicamente, mas politicamente. Não pode haver a menor
dúvida que a constituição de um Estado ou tratado constituinte de uma comunidade internacional são
instrumentos jurídicos. A única questão é se são, ao mesmo tempo instrumentos políticos. Se a resposta é
afirmativa certamente não se fundamenta no conteúdo dos instrumentos, que, por sua própria natureza, é
Direito e nada mais que Direito. O instrumento em questão pode ser chamado político apenas no que diz
respeito ao propósito do Direito que contém. O propósito político não priva, em absoluto, o instrumento em
caráter jurídico. Não existe nenhum instrumento jurídico que não tenha um propósito extrajurídico, porque o
Direito, visto a partir de um ponto de vista teleológico, é sempre um meio e não um fim. Portanto, o
propósito político ou econômico de uma norma jurídica não pode excluir uma interpretação jurídica, isto é,
legal, sobretudo porque uma interpretação jurídica inclui – como foi assinalado – todas as interpretações
possíveis de uma norma jurídica.
A doutrina de que existem disputas jurídicas, ou política, não passíveis de decisão judicial em virtude
de inaplicabilidade do Direito internacional existente interpreta erroneamente aquilo que é uma
inadequação do ponto de vista não- jurídico, classificando-o como impossibilidade jurídica. Seu propósito
não é interpretar o Direito de maneira objetiva, mas justificar a tentativa de excluir a aplicação do Direito
existente, em contradição com seu significado cientificamente verificável. Assim, essa doutrina não é uma
teoria cientifica, mas um instrumento de política.
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O uso equivocado da distinção jurídico e político é um dos meios mais eficazes, embora não único,
empregados para confundir a ciência do Direito com a política. Evitar a fusão destas duas esferas
heterogêneas é tão essencial para preservação do caráter científico da jurisprudência quanto é vital a
separação de ciência e política para a existência de toda e qualquer ciência independente.