O que é um imigrante? - Fundação Pró-Memória de ... · nos esquecemos que um imigrante também...

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1. O que é um imigrante? egundo o dicionário Aurélio, o verbo imigrar é transitivo circunstancial e significa “entrar (num país estranho) para nele viver”. Imigrar, portanto, significa deixar seu país e passar a viver em outro. Normalmente – e quase automaticamente – pensamos que o substantivo imigração está relacionado aos indivíduos que possuíam algum problema em sua terra natal e por isso a abandonaram, e nos esquecemos que um imigrante também é aquela pessoa que foi estudar no exterior, por exemplo, e acabou optando por permanecer lá por uma série de fatores. Por que ao pensarmos em imigração automaticamente pensamos nos problemas que as pessoas enfrentaram que os obrigaram a partir? Acredito que é porque para nós, uma pessoa tem que ter motivos muito fortes para abandonar suas raízes e se aventurar em novas terras. Se a situação do imigrante hoje já é complicada (especialmente no que concerne à situação vivenciada pelos imigrantes atualmente na Europa e nos Estados Unidos), as coisas eram ainda mais difíceis no século XIX, período em que a imigração alemã para o Brasil, no caso, foi iniciada incentivada primeiramente pelo nosso governo imperial. Abdelmaiek Sayad 1 , embora se desdobre sobre a questão do imigrante na França atualmente, toca em pontos que, acredito, podem ser refletidos em relação aos imigrantes que vieram para o Brasil a partir do século XIX: a condição de exceção, isto é, de que a função deste trabalhador é exercer seu trabalho sem que experimente respaldo jurídico que o proteja ou mesmo que os reconheça. No caso dos imigrantes alemães luteranos, pelo menos nas décadas iniciais da imigração, a união matrimonial sequer era reconhecida pela lei, pois vivíamos sob o sistema de padroado, no qual a pia batismal e o altar da igreja católica cumpriam a função de cartório gerando, com isso, a condição de concubinato entre os casais abençoados no Brasil por um pastor luterano ou que não se converteram ao catolicismo 2 . Dessa forma, percebemos que inicialmente o imigrante é um “corpo estranho” no país receptor e que sua assimilação bem como sua inclusão como parte da sociedade civil brasileira leva muito tempo e é resultado de um longo processo. 2. Imigração e suas causas lguns países vivenciaram elementos expulsores específicos que contribuíram para a vinda dos imigrantes para o Brasil. No caso da Itália, por exemplo, o processo de Unificação Italiana (1870) acabou gerando um número grande de miseráveis 3 e de médios e pequenos agricultores que perderam suas posses durante a organização do novo Estado italiano. De maneira geral, os elementos expulsores são relacionados a guerras, posições políticas conflitantes, problemas religiosos e, principalmente, fome. No caso específico da imigração alemã, a falta de terras 4 e 1 SAYAD, Abdelmaiek. A Imigração ou os Paradoxos da Alteridade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998, p. 45-72. Nesse texto Sayad discute a “utilidade” do imigrante para a sociedade receptora e o momento em que ele deixa de representar a mão-de-obra desejada para se tornar um problema aos olhos da nação receptora. 2 A Constituição de 1824 em seu artigo 5 afirmava: “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.” http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao24.htm (acessado em 10/09/2010). 3 O processo de unificação italiana acarretou a perda, por parte da Igreja Católica, dos Estados Pontifícios. Com isso, as ordens religiosas assistencialistas perderam seus recursos e diminuíram drasticamente a capacidade de auxiliar a população carente italiana que viu na imigração para a América a chance de um futuro melhor. 4 Segundo o testemunho de um descendente de imigrantes alemães em Montenegro (RS), a extensão de terras à qual sua família tinha direito por meio de herança na Alemanha correspondia a uma faixa de 1 metro de largura por 1 quilômetro de S A

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1. O que é um imigrante?

egundo o dicionário Aurélio, o verbo imigrar é transitivo circunstancial e significa “entrar (num país estranho) para nele viver”. Imigrar, portanto, significa deixar seu país e passar a viver em outro. Normalmente – e quase automaticamente – pensamos que o substantivo imigração está

relacionado aos indivíduos que possuíam algum problema em sua terra natal e por isso a abandonaram, e nos esquecemos que um imigrante também é aquela pessoa que foi estudar no exterior, por exemplo, e acabou optando por permanecer lá por uma série de fatores.

Por que ao pensarmos em imigração automaticamente pensamos nos problemas que as pessoas enfrentaram que os obrigaram a partir? Acredito que é porque para nós, uma pessoa tem que ter motivos muito fortes para abandonar suas raízes e se aventurar em novas terras. Se a situação do imigrante hoje já é complicada (especialmente no que concerne à situação vivenciada pelos imigrantes atualmente na Europa e nos Estados Unidos), as coisas eram ainda mais difíceis no século XIX, período em que a imigração alemã para o Brasil, no caso, foi iniciada incentivada primeiramente pelo nosso governo imperial.

Abdelmaiek Sayad1, embora se desdobre sobre a questão do imigrante na França atualmente, toca em pontos que, acredito, podem ser refletidos em relação aos imigrantes que vieram para o Brasil a partir do século XIX: a condição de exceção, isto é, de que a função deste trabalhador é exercer seu trabalho sem que experimente respaldo jurídico que o proteja ou mesmo que os reconheça. No caso dos imigrantes alemães luteranos, pelo menos nas décadas iniciais da imigração, a união matrimonial sequer era reconhecida pela lei, pois vivíamos sob o sistema de padroado, no qual a pia batismal e o altar da igreja católica cumpriam a função de cartório gerando, com isso, a condição de concubinato entre os casais abençoados no Brasil por um pastor luterano ou que não se converteram ao catolicismo2.

Dessa forma, percebemos que inicialmente o imigrante é um “corpo estranho” no país receptor e que sua assimilação bem como sua inclusão como parte da sociedade civil brasileira leva muito tempo e é resultado de um longo processo.

2. Imigração e suas causas

lguns países vivenciaram elementos expulsores específicos que contribuíram para a vinda dos imigrantes para o Brasil. No caso da Itália, por exemplo, o processo de Unificação Italiana (1870) acabou gerando um número grande de miseráveis3 e de médios e pequenos agricultores que

perderam suas posses durante a organização do novo Estado italiano.

De maneira geral, os elementos expulsores são relacionados a guerras, posições políticas conflitantes, problemas religiosos e, principalmente, fome. No caso específico da imigração alemã, a falta de terras4 e

1 SAYAD, Abdelmaiek. A Imigração ou os Paradoxos da Alteridade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998, p. 45-72. Nesse texto Sayad discute a “utilidade” do imigrante para a sociedade receptora e o momento em que ele deixa de representar a mão-de-obra desejada para se tornar um problema aos olhos da nação receptora. 2 A Constituição de 1824 em seu artigo 5 afirmava: “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.” http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao24.htm (acessado em 10/09/2010). 3 O processo de unificação italiana acarretou a perda, por parte da Igreja Católica, dos Estados Pontifícios. Com isso, as ordens religiosas assistencialistas perderam seus recursos e diminuíram drasticamente a capacidade de auxiliar a população carente italiana que viu na imigração para a América a chance de um futuro melhor. 4 Segundo o testemunho de um descendente de imigrantes alemães em Montenegro (RS), a extensão de terras à qual sua família tinha direito por meio de herança na Alemanha correspondia a uma faixa de 1 metro de largura por 1 quilômetro de

S

A

invernos rigorosos sucessivos associados ao desgaste natural da terra, resultado do cultivo contínuo, foi um fator marcante para gerar na maior parte dos imigrantes o desejo – e quase necessidade - de tentar a sorte no Brasil. Podemos ainda citar o crescimento demográfico experimentado pela Europa (e Ásia) num processo denominado “transição demográfica”, resultante do aumento drástico da taxa de crescimento e que não foi acompanhado pelo sistema produtivo.5

O quadro abaixo apresenta um breve levantamento sobre a saída de imigrantes dos portos alemães de Hamburgo e Bremen e de seus destinos:

EMIGRAÇÃO ALEMÃ TRANSATLÂNTICA CONFORME O PAÍS DE DESTINO, NO PERÍODO DE 1847 A 1914, VIA HAMBURGO E BREMEN

ANOS Total de

Imigrantes Para os EUA Para o Canadá Para o Brasil

Para a Argentina

Para a Austrália

1847-1850 145.300 129.400 89,1% 09.600 6,6% 01.100 0,8% - - 4.800 3,3% 1851-1855 403.100 322.400 80,0% 16.400 4,1% 08.100 2,0% - - 11.700 2,9%

1856-1860 268.500 227.300 84,7% 10.200 3,8% 09.900 3,7% -- -- 7.000 2,6% 1861-1865 249.400 208.400 83,6% 10.800 4,3% 03.900 1,6% - - 7.000 2,9% 1866-1870 530.200 474.200 89,4% 14.800 2,8% 09.600 1,8% - - 2.200 0,4%

1871-1875 394.700 365.100 92,5% 00.900 0,2% 11.600 2,9% 0.700 0,2% 5.200 1,3% 1876-1880 228.100 195.300 85,6% 00.400 0,2% 09.300 4,1% 0.800 0,4% 4.700 2,1% 1881-1885 857.300 797.000 93,0% 02.700 0,3% 07.900 0,9% 3.000 0,3% 5.400 0,6%

1886-1890 485.200 440.100 90,7% 01.200 0,2% 10.900 2,2% 5.300 1,1% 2.500 0,5% 1891-1895 402.600 371.500 92,3% 11.300 2,8% 08.400 2,1% 3.600 0,9% 1.500 0,4% 1896-1900 127.200 107.400 84,4% 01.700 1,3% 04.000 3,1% 2.800 2,2% 1.000 0,8%

1901-1905 146.600 134.900 92,0% 01.200 0,8% 02.600 1,8% 1.800 1,2% 0.800 0,5% 1906-1910 133.100 120.300 90,4% 02.000 1,5% 01.400 1,1% 2.800 2,1% 0.700 0,5%

1911-1914 078.800 061.300 77,8% 03.300 4,2% 00.800 1,0% 3.600 4,6% 1.200 1,5%

FONTE: http://www.tonijochem.com.br/movimento_imigratorio.htm

Embora uma parte considerável da imigração alemã tenha sido composta por camponeses, é possível encontrar nas listas de chegada ao Brasil a presença de artesãos. A vinda deles também pode ser relacionada ao processo de avanço da Revolução Industrial, que gerou uma competição desigual para o trabalho artesanal e culminou no fechamento de muitas oficinas. Muitos artesãos preferiram tentar a sorte na América ao invés de se inserirem nesse novo modelo de produção. Embora tenham tentado manter-se à margem do trabalho nas fábricas, podemos notar no caso da cidade de Campinas, por exemplo, a importante presença de imigrantes alemães na fundação e desenvolvimento da indústria campineira e também no comércio.

Segundo Karastojanov (1999:195),

“Havia em Campinas, no final do século XIX, pequenas manufaturas e fabriquetas artesanais, como é o caso da Fundição Brasileira, estabelecida por um artesão berlinense de nome Luiz Faber. Tendo permanecido algum tempo na Corte, Faber foi para a Fazenda Ibicaba, do senador Vergueiro”.

Dessa forma, embora costumemos relacionar a contribuição dos imigrantes alemães quase exclusivamente nas atividades agrícolas não podemos deixar de notar que deixaram uma participação

extensão: 1 km² de terra é insuficiente para a produção de alimentos para suprir a necessidade da família e, ainda, produzir excedente para ser comercializado. 5 ELIAS, Rodrigo. “Braços para fazer um país”. Artigo publicado na Revista Nossa História. Ano 2 / nº 24, outubro de 2005, p. 14-18. Nesse mesmo artigo Elias cita como exemplo o caso de Portugal, que de uma taxa de 0,16% de crescimento ao ano em 1820 passou para 1% em 1890.

fundamental no desenvolvimento da indústria brasileira e conseguimos reconhecer, ainda hoje, os sobrenomes desses imigrantes, como as famílias Odebrecht, Hering, Gerdau, por exemplo.

2.2. A Alemanha no século XIX

Antes de falarmos em imigração “alemã” para o Brasil é muito importante que entendamos o que era a Alemanha no século XIX. Na verdade, o estado nacional alemão só surgiu ao final do século XIX (1871), portanto quando os imigrantes que fundaram o bairro de Friburgo, em Campinas, imigraram, a Alemanha como um país unificado ainda não existia e era formada por um conjunto de reinos e principados. Embora a moeda em circulação fosse a mesma e houvesse uma língua comum – o hochdeutsch – não havia uma unidade política e as regiões ainda utilizavam os seus dialetos que, dependendo da área, eram extremamente diferentes uns dos outros. Portanto, o termo “alemão” era dado genericamente pelas

autoridades brasileiras para os imigrantes de fala germânica (ou que eles achavam que fossem de fala germânica...) o que ocasionou o registro de imigrantes belgas, holandeses, dinamarqueses sob o título “alemão”.

As colônias alemãs fundadas por iniciativa imperial - e mesmo as colônias particulares, como foi o caso de Blumenau (SC) – reuniam imigrantes oriundos de regiões diferentes da Alemanha. Apenas para exemplificar a questão da diferença regional entre os imigrantes alemães, há registros de conflitos e até mesmo da proibição de casamentos entre imigrantes de regiões distintas da Alemanha – houve casos de famílias que resistiram à união de namorados de

diferentes regiões. Guardadas as devidas proporções, acredito ser possível afirmar que a construção

da identidade de “alemães” entre os imigrantes e seus descendentes deu-se muito mais no Brasil do que na terra de origem, e o próprio olhar do brasileiro, sem distinguir as diferenças regionais e chamando a todos indistintamente de “alemães”, contribuiu para construção dessa identidade grupal.

Já as colônias (ou comunidades) formadas por imigrantes que passaram inicialmente pelos cafezais paulistas sob o sistema de parceria eram constituídas por famílias que tinham a religião em comum ou que eram oriundos da mesma região da Alemanha ou da Suíça. Nesse caso, as questões religiosas – católicos e protestantes – contribuíram para aglutinar as pessoas nas suas comunidades. É o caso dos suíços de Helvetia (católicos) e dos alemães de Friburgo (luteranos).

Confederação Alemã (1815-1866) FONTE: http://www.uni-regensburg.de/Fakultaeten/phil_Fak_III/Geschichte/s2001vsmm6.html (acessado em 13/09/2010)

2.3. Interesses do Brasil em incentivar a imigração europeia

A imigração alemã para o Brasil tem como data-marco o dia 25 de julho de 1824, quando a primeira leva de imigrantes alemães chega à Fazenda do Linho Cânhamo, dando origem à colônia imperial de São Leopoldo (RS). No entanto, antes desta data o país já havia tentado incentivar a imigração. Em novembro de 1808, por exemplo, D. João VI, já instalado no Rio de Janeiro, publica um decreto autorizando a posse de terras no Brasil por estrangeiros; em 1818, alemães são instalados na Bahia, nas localidades de Ilheus (colônia de Frankental) e de Itabuna (colônia Leopoldina) e foram responsáveis pela plantação sistemática de cacau. No ano de 1819 suíços de fala francesa são instalados em Nova Friburgo (RJ), que receberá um reforço de imigrantes de fala alemã em maio de 18246.

Mas por que o incentivo à imigração europeia para o Brasil? Por que trazer inicialmente alemães? Talvez as raízes germânicas de D. Leopoldina de Habsburgo, esposa de D. Pedro I, respondam pela predileção de imigrantes germânicos. Além disso, D. Leopoldina era muito próxima de seu ajudante de ordens, Jorge Antônio von Schaefer, que foi o responsável pela primeira corrente de imigração alemã para o Brasil e que recrutou imigrantes em Hamburgo. Inicialmente, os imigrantes são trazidos para resolver as seguintes questões:

a) Geopolíticas: a formação de colônias imperiais em áreas que corriam o risco de serem perdidas (especialmente no sul) ao mesmo tempo em que a produção agrícola dos imigrantes poderia suprir as necessidades das tropas brasileiras, por isso algumas dessas colônias foram fundadas em áreas relativamente próximas de assentamentos militares.

b) Mercadológicas: o Brasil experimentara uma longa tradição de monocultura exportadora, mas não vivenciara a produção agrícola voltada para o mercado local – as pequenas propriedades de então produziam quase que exclusivamente para a subsistência.

c) Estratégicas: além de ocupar os chamados “vazios demográficos”, formados por terras devolutas que eram ocupadas anteriormente pelos índios, as colônias foram colocadas nas proximidades das áreas dos destacamentos militares (atualmente, essa área é cortada pela BR 116).

d) Militares: a independência do Brasil trouxe a necessidade de criação de um novo exército brasileiro. Em função das Guerras Napoleônicas, a formação e o incremento de exércitos não era visto com bom olhos, por isso, embora a leva inicial de imigrantes instalada em Nova Friburgo contivesse soldados, estes foram registrados inicialmente como “colonos”.7

No entanto, há outro motivo pela escolha do imigrante europeu em detrimento de se buscar imigrantes orientais, africanos livres ou mesmo de se inserir nesse sistema de colonização os negros alforriados: o governo da época preocupava-se com a questão do branqueamento da população brasileira. Na visão dos políticos da época, somente os imigrantes europeus – portanto brancos – teriam condições de desenvolver o nosso país e torná-lo uma nação civilizada e moderna. Para se ter uma ideia, a imigração japonesa só teve início no Brasil em 1908, com a chegada no porto de Santos (SP) do navio Kasato Maru, porém não sem evitar críticas de alguns setores políticos da sociedade brasileira.

Segundo Schwarcz (2004:47)

“O discurso racial surgia (no XIX), dessa maneira, como variante do debate sobre a cidadania, já que no interior desses novos modelos discorria-se mais sobre as determinações do grupo biológico do que sobre o arbítrio do indivíduo entendido como ‘um resultado, uma reificação dos atributos específicos da sua raça’.”

6 A cidade de Nova Friburgo recebeu as primeiras levas alemãs em 1824 porque a estrutura de São Leopoldo não estava completamente pronta para recebê-los. Em função disso, os moradores de Nova Friburgo reivindicam a data de 3 de maio de 1824 como a data oficial da imigração alemã para o país, ao invés do dia 25 de julho. 7 Juntamente com os soldados vieram para o Brasil cerca de 50% dos moradores do vilarejo de Bierbach / Kirn, localidade que pertence hoje ao estado da Renânia-Palatino mas que à época da imigração pertencia a Hessen.

Pensando-se na questão da recente independência do Brasil e na preocupação no perfil a ser dado ao jovem país é possível entender a preocupação das elites políticas brasileiras, freqüentadoras de escolas européias, com a escolha do “espécime ideal” para a construção de um novo e grande país.

3. Diferentes formas de colonização

instalação de imigrantes alemães no Brasil experimentou formas diferentes durante o processo. Inicialmente, os colonos foram instalados em colônias imperiais, depois em colônias provinciais e particulares. Além disso, em São Paulo, houve a introdução de imigrantes na lavoura cafeeira sob a forma

do “sistema de parceria” e por iniciativa dos fazendeiros paulistas que não tinham qualquer interesse no desenvolvimento de uma política imperial de imigração com vistas à formação de pequenas propriedades.

3.1. Colônias Imperiais

Conforme já citado, a primeira colônia imperial oficial é a de São Leopoldo, que inicialmente recebeu alemães de maioria luterana. Os imigrantes que chegaram às primeiras colônias imperiais receberam por parte do governo

brasileiro a posse de uma área de terra de 75 ha (cerca de 750.000 m²). As terras partilhadas para os imigrantes eram as chamadas “terras devolutas” que pertenciam ao Estado brasileiro e que, embora gozassem da imagem de “não pertencerem a ninguém”, eram anteriormente posse dos índios8.

A distribuição destes lotes de terra nessas metragens tinha objetivos muito específicos: a formação da pequena propriedade cuja finalidade, aos olhos do governo, era a produção para o mercado interno, a criação de setores médios entre a população brasileira e a ocupação de vazios demográficos.

No entanto, a distribuição de terras pelo governo imperial não foi bem vista pelos deputados e senadores brasileiros – representantes dos latifundiários – que no ano de 1830 retiraram os recursos destinados pelo Império para o desenvolvimento do projeto de colonização. Quatro anos depois, em 1834, é criado um Ato Adicional, transferindo para as províncias o direito de promoverem a imigração. Desta forma, todas as colônias criadas no Rio Grande do Sul a partir de 1846 são de iniciativa provincial ou particular.

Na medida em que o tempo passa e o fluxo imigratório continua a ocorrer, uma série de mudanças em relação ao tamanho e posse de terras acontece. Primeiro, a área inicial das terras que era de 75 ha. é diminuída no ano de 1850 para 25 ha. O aumento do fluxo de imigrantes em 1850 trouxe a necessidades de se regulamentar a questão das terras, que foi resolvida com a criação, no mesmo ano, da Lei de Terras que proibia o acesso às terras devolutas de outra forma que não a compra – ou seja, o projeto do governo de doação de terras para imigrantes não poderia ocorrer da mesma forma como ocorria inicialmente. Assim sendo, esta foi a chance de desenvolvimento das colônias particulares.

3.2. Particulares

As colônias alemãs particulares, em grande medida, foram resultado da ação de sociedades colonizadores (excetuando-se o projeto do Dr. Hermann Blumenau, que acabou formando a cidade catarinense de Blumenau). O interesse dos agenciadores desse tipo de colonização era o de lucrar com a venda de lotes de terra em longo prazo, bem como com os empréstimos feitos pelos imigrantes tanto para pagarem suas passagens de navio para o Brasil quanto para poderem se instalar no lote de terra e começarem a produzir.

4. O Sistema de Parceria

8 A literatura acerca da imigração para o sul do Brasil trata muito pouco da relação entre os alemães / italianos e os índios, chamados pejorativamente de “bugres”. No entanto, sabe-se que em algumas localidades o encontro imigrante-indígena não foi dos mais pacíficos e culminou em baixas de ambos os lados, vencendo, por fim, o europeu.

A

sistema de parceria foi a forma como os cafeicultores paulistas deram início à introdução de mão-de-obra imigrante nos cafezais em substituição progressiva da mão-de-obra escrava. Esse sistema foi concebido pelo Senador Nicolau de Campos Vergueiro e introduzido, inicialmente, na Fazenda Ibicaba, de sua

propriedade, e era baseado no seguinte sistema: os imigrantes alemães eram contratados na Alemanha e tinham suas despesas de passagem, instalação e manutenção até a primeira colheita assumidas, sob a forma de empréstimo, pelos fazendeiros. Cada família instalada na fazenda recebia a tarefa de plantar em uma área de terra e dividir com o fazendeiro os lucros da colheita; dessa mesma colheita e de seus lucros gerados para os imigrantes eram descontadas as despesas de viagem, instalação e compras nos armazéns da propriedade.

Num primeiro momento, o sistema de parceria aparentava ser vantajoso tanto para os imigrantes quanto para os fazendeiros. Porém, os trabalhadores eram obrigados a vender sua produção para o armazém da fazenda – que pagava o que o comerciante considerava justo... – e a comprar seus mantimentos e ferramentas no mesmo local – novamente, pagando o que o dono considerava justo... - , de forma que muitos imigrantes acabaram muito endividados e levaram vários anos até encerrarem suas dívidas e amealharem capital para comprar sua própria propriedade de terra. A forma como muitos imigrantes foram tratados nas fazendas (algumas vezes recebendo até castigos físicos) culminou, em 1859, na assinatura do Edito de Heydt pelo governo prussiano, que proibia a imigração de cidadãos da Prússia para o Brasil e ameaçava de prisão qualquer agenciador brasileiro que fosse encontrado neste território agenciando trabalhadores para as fazendas de café. Inclusive, neste período, um agenciador da cidade de Campinas, que trabalhava num escritório do Vergueiro em Hamburgo, foi preso porque estava descumprindo a determinação prussiana. A reação dos alemães às condições de trabalho vivenciadas pelos seus conterrâneos foi resultado da publicação, em 1858, do relato do imigrante Thomas Davatz (o livro se chama Memórias de um Colono no Brasil) sobre uma revolta de colonos alemães na Fazenda Ibicaba, de propriedade de Vergueiro, no ano de 1856.

5. Friburgo

egundo a tradição, registrada pelo Sr. Walter Krähenbühl, descendente dos imigrantes que fundaram a comunidade de Friburgo, os imigrantes chegaram ao Brasil a partir do ano de 1851, oriundos das regiões da Renânia-Palatinado, Mecklemburgo, Schleswig-Holstein mas também do cantão suíço de Berna. A partir das

consultas feitas no Livro nº 1 da Caza Vergueiro9, foram localizados os nomes de pelo menos cinco famílias da

comunidade de Friburgo que fizeram parte da primeira leva de imigrantes trazidos para trabalharem como parceiros na fazenda do Senador Nicolau de Campos Vergueiro.

Ainda segundo registros publicados no boletim da Comunidade Evangélica de Campinas em agosto de 1935, a maior parte dos imigrantes que compuseram a comunidade de Friburgo – cerca de 112 pessoas – teria vindo em 1856 no navio “Johann Elizabeth” já contratados sob o sistema de parceria para trabalharem na Fazenda Sete Quedas, em Campinas. O documento afirma ainda que esses imigrantes teriam levado de dez a vinte anos para pagarem suas dívidas de viagem e poderem amealhar o suficiente para comprarem suas próprias terras.

Segundo Krähenbühl (1992), a primeira família chegou à região de Friburgo em 1860, e era do imigrante Friederich Thamerus que depois de trabalhar como colono na Fazenda Ibicaba e também na Fazenda Sete Quedas

“(...) deixou sua família na fazenda e partiu sozinho rumo ao desconhecido (...) munido apenas de foice e facão, caminhando por alguns caminhos existentes na época, na maior parte abrindo picadas nas densas matas da região, caminhando sempre na direção oeste, orientando-se pelo sol, cerca de trinta quilômetros, onde finalmente descobriu uma extensa área de terras muito férteis, medindo no mínimo 800 alqueires de 24.200 metros quadrados, pouco acidentada, cortada por vários riachos, que certamente seria o local ideal, que iria com certeza satisfazer

9 No ano de 1994 estava em curso no Centro de Memória da Unicamp o projeto de pesquisa intitulado “Vida Familiar de Diferentes Grupos Étnicos em São Paulo: Educação, Lazer e Consumo Cultural em Cidades em Rápida Transformação (1890-1950), em parceria como o Centro de Estudos Rurais e Urbanos (CERU) da USP e dirigida pela Profa. Dra. Olga Rodrigues de Moraes von Simson. Nessa ocasião, em função do desenvolvimento da pesquisa, tivemos condição de consultar o Livro Nº 1 da Fazenda Ibicaba.

O

S

todas as necessidades para garantir um bom futuro e servir de nova pátria para as famílias imigrantes. (...) Naquela área encontrada Thamerus construiu sua casinha com madeira do próprio local, depois trouxe para lá também sua família e fez daquela sua descoberta seu novo Heimat

10”.

É interessante notar nos textos de Krähenbühl o teor “romanesco” da descrição da chegada e enfrentamento das primeiras famílias imigrantes de Friburgo. É muito comum reconhecermos nos textos que tratam da história da formação das comunidades alemãs – e escritos por membros da própria comunidade – o teor de “epopeia" que as narrativas algumas vezes assumiram.

Alguns anos após a fixação de Thamerus na localidade que originaria Friburgo foi a vez dos irmãos Samuel e Nikolaus Krähenbühl, suíços do Cantão de Berna, comprarem terras na mesma localidade. A partir de 1870, começaram a se fixar na região as famílias – que eram em sua maioria de Schleswig-Holstein – Steffen, Jührs, Quitzau, Klemendt, Wulf e Armbrust, totalizando 34 famílias.

A experiência adquirida durante o trabalho nos cafezais paulistas foi suficiente para que os imigrantes se familiarizassem tanto com as técnicas quanto com as culturais que eram possíveis de serem cultivadas. Dessa forma, diferentemente do que aconteceu com as colônias alemãs do sul do país, que produziam para o mercado interno, os friburguenses deram início à plantação de café, que à época era o nosso principal produto de exportação, e de produtos para a subsistência cujos excedentes eram transportados em lombo de mulas para serem comercializados de porta em porta na cidade de Campinas. O transporte era feito por estradas bastante ruins e os agricultores precisavam partir de Friburgo por volta das duas horas da madrugada para chegarem a Campinas logo no início da manhã. O comércio da produção do café trouxe à comunidade um crescimento financeiro que se refletiu na construção de novas e confortáveis casas e, mais tarde, na aquisição de automóveis.

Até o final da década de 1920 a comunidade viveu um tempo de relativa abundância, no entanto uma série de fatores colaborou para a reversão da situação. A crise de 1929, que atingiu diretamente a venda do café brasileiro, acelerou a necessidade da comunidade procurar “novas paragens”, pois não só a terra estava cansada como a ocorrência de geadas e de secas contribuíram para a diminuição da capacidade produtiva dos sítios. Além disso, as famílias imigrantes cresceram de forma vegetativa e com isso os descendentes das famílias – que tinham em média doze filhos – não tinham mais terras aos arredores para se fixarem (a partilha das propriedades na comunidade de Friburgo tornava-as pequenas demais para que pudessem produzir o suficiente para a subsistência e também para o comércio). Desta forma, a alternativa encontrada para os filhos dos imigrantes que ainda tinham algum recurso após a crise de 1929 foi a compra de terras fora de Friburgo, mas em áreas relativamente próximas, como a cidade de Monte Mor. Para aqueles que não dispunham de recursos restou a alternativa de buscar trabalho na cidade.

5.1. Deutsche Schule zu Friedburg – A Escola Alemã de

Friburgo

De maneira geral, foi comum às comunidades alemãs formadas no Brasil a preocupação com a instrução de seus filhos. Após vencerem as primeiras dificuldades de instalação e sobrevivência e conseguirem atingir uma certa estabilidade, os imigrantes fundaram escolas comunitárias, muitas delas atendidas, inicialmente, por um membro da própria comunidade. Não foi diferente com o caso de Friburgo.

No final do século XIX Campinas já contava com a existência de uma escola alemã. Apesar do sucesso financeiro que a comunidade friburguense já estava vivendo os custos para manter um filho vivendo na cidade de Campinas era bastante oneroso. Em carta enviada à família, Nikolau Krähenbühl assinalou a sua preocupação com a formação educacional da nova geração que crescia no Brasil e das dificuldades em matriculá-los na escola alemã campineira

10 A tradução literal da palavra Heimat é pátria, no entanto os alemães têm duas palavras com sentidos diferentes para a nossa tradução de pátria. Enquanto o termo Vaterland indica o território nacional onde o indivíduo nasceu, a palavra Heimat designa pátria com um sentido emocional. Isso significa que não importa onde o alemão e seu descendente estejam, eles sempre poderão construir seu Heimat, sua pátria emocional, a partir da manutenção da língua alemã e das tradições em sua casa. Portanto, aos olhos dos imigrantes e seus descendentes, eles se sentiam cidadãos brasileiros – por terem nascido no Brasil e contribuírem para o desenvolvimento do país -, mas se sentiam ao mesmo tempo alemães, pois se sentiam ligados ao povo alemão por causa da manutenção da língua e dos costumes.

– segundo ele, as mensalidades não eram exorbitantes, mas os custos de se manter o filho vivendo na cidade eram altos demais. Em razão disso, em assembleia realizada em 1878 a comunidade de Friburgo resolveu arrecadar dinheiro e construir sua própria escola, que deveria contar, se possível, com o trabalho de um professor alemão. No ano seguinte, em 1879, a escola foi inaugurada.

Nos documentos que regiam o funcionamento inicial da escola estava bastante claro que se tratava de uma escola teuto-brasileira, e que além das disciplinas relativas ao currículo brasileiro os alunos teriam, também, disciplinas como língua e gramática alemãs, geografia e história da Alemanha.

A comunidade alemã de Friburgo tinha consciência de que encontrariam dificuldades para contratar e manter um professor alemão na comunidade. Apesar da possibilidade de o professor receber moradia e terra boa para plantar, o salário não era dos mais atraentes e inicialmente a possibilidade de pagamento não ultrapassava a soma de 250$000 reis. Apesar dessa oferta, a escola experimentou a troca constante de professores. Por conta disso, Nicolau Krähenbühl atuou como professor na escola comunitária por cerca de 10 anos, tendo sido responsável pela educação básica de várias crianças nascidas no Brasil , inclusive de seus filhos.

O governo paulista deu início a partir da década de 1920 a uma série de mudanças que afetaram diretamente as escolas comunitárias em São Paulo. De acordo com a legislação, só poderiam atuas nas escolas – mesmo as escolas

alemãs – os professores que fossem brasileiros natos. Aparentemente, esta decisão traria um problema muito sério a ser resolvido, a ponto de colocar em risco a própria sobrevivência da escola. No entanto, o professor Ricardo Gübel – brasileiro nato e, ao mesmo tempo, dominando os quesitos do currículo alemão – deu início ao exercício do magistério em Friburgo. O professor Gübel foi figura marcante na vida cultural da comunidade, tendo sido um defensor da manutenção da língua alemã entre as gerações já nascidas no Brasil e lamentando o fato de que algumas famílias já preferiam utilizar a língua portuguesa em suas casas e na educação de seus filhos, conforme registrou num artigo sobre Friburgo publicado no periódico alemão Der Volksdeutsche (“O Povo Alemão”), em 1937. No texto, Gübel faz uma descrição da comunidade e da prosperidade que os imigrantes experimentaram, destacando a manutenção do Deutschtum

11, mas destacando o abandono, por algumas famílias, o abandono da língua alemã.

Durante o governo varguista ocorreu um forte processo de nacionalização conduzido pelo Estado brasileiro. Assim, as instituições fundadas por estrangeiras foram obrigadas a se nacionalizarem, adotando nomes em português e redigindo suas atas no mesmo idioma. Podemos citar dois

exemplos ocorridos na cidade de Campinas: o Clube Concórdia, que originalmente chamava-se Eintracht, e o Colégio Rio Branco, que chamou-se Deutsche Schule e Neue Deutsche Schule.

11 O termo Deutschtum é de difícil tradução. Embora os dicionários apontem os termos nacionalidade alemã e germanidade como seus sinônimos, ainda assim não conseguem dar conta da totalidade de seu sentido. Podemos dizer que o que mais se aproximaria do sentido originário seria “índole alemã” ou, talvez, “espírito alemão”. Estes termos estariam profundamente relacionados com a questão da essência do indivíduo, que manteria o espírito e os valores alemães vivos. Para isso, a manutenção da língua é um ponto crucial, pois é através dela que as tradições, as histórias, as receitas, as memórias são transmitidas e preservadas. Segundo Gertz (1987:93) “outro termo usado era Deutschtumspflege, que resumidamente significa: empenho pela conservação da pureza étnica (evitando casamentos interétnicos), pela língua, pelos costumes e tradições alemãs”.

Professor Ricardo GübeL. Imagem cedida pela Sra. Marlene Gübel

Alunos da Escola Alemã de Friburgo. Imagem cedida pela Sra. Marlene Gübel

O início da II Guerra Mundial e a formalização da posição do Brasil contra os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) só veio a acentuar a nacionalização, já que as pessoas que fossem surpreendidas conversando em língua estrangeira – especialmente uma dos três países do Eixo – eram hostilizadas e passíveis de prisão. Os casos de prisão de teuto-brasileiras foram mais recorrentes nos estados do sul do Brasil, mas não quer dizer que os friburguenses, mesmo distantes da cidade de Campinas e com acessos e estradas precárias, não fossem controlados. Conversas com idosos da comunidade revelaram que as pessoas de mais idade da comunidade naquela época, que não dominavam completamente a língua portuguesa, deixaram de ir à cidade porque temiam serem presos. Meu avô (nascido no Brasil, falante de alemão e de português), por exemplo, contava-nos a história de que para ir a Monte Mor ou Cosmópolis precisava obter do delegado de polícia um salvo conduto para autorizar o trânsito entre essas comunidades.

Embora aos olhos das cidades vizinhas Friburgo pudesse ser considerada “isolada” em função das vias de acesso ruins, isso não significa que a comunidade estivesse escondida aos olhos da Alemanha. Até hoje a sacristia da igreja luterana da comunidade guarda uma carta enviada aos friburguenses por Paul von Hindenburg presidente da Alemanha entre 1925 e 1934, durante a República de Weimar. Nesta carta Hindenburg parabenizava a comunidade pela manutenção da cultura e da língua alemã – portanto, do Deutschtum - em terras localizadas tão longe da mãe-pátria Alemanha. Além disso, o prédio da escola foi o local que recebeu a escritora, poetisa e conferencista alemã Maria Kahle, que antes da II Guerra Mundial visitou as colônias alemãs no Brasil representando o VDA (Verein für das Deutschtum im Ausland), instituição responsável pela manutenção do Deutschtum no exterior – Kahle era a ainda a responsável por fazer propaganda do regime nacional-socialista e da recuperação financeira que realizava na Alemanha. Em obra publicada no ano de 1937, em capítulo sobre o estado de São Paulo, Kahle relatou sua visita a Friburgo e descreveu a comunidade, apresentando desde o sucesso financeiro obtido pelo cultivo de batata (que substituiu o café após a crise de 1929) até as características físicas das crianças, que se assemelhariam aos alemães do norte da Alemanha, de onde os imigrantes partiram.

O processo de nacionalização naturalmente atingiu a educação comunitária de Friburgo. Progressivamente, o alemão – que já havia sido proibido durante a II Guerra Mundial – é abandonado na escola, e a geração de friburguenses que nasce a partir da década de 1940, com algumas exceções, já cresce dominando apenas um idioma: a língua portuguesa.

5.2. Cemitério de Friburgo

A construção de um cemitério para atender a comunidade imigrante foi resultado de grande perseverança da comunidade. Nos primeiros anos da formação da comunidade, os mortos precisavam ser enterrados na cidade de

Campinas. Atualmente, viajando pelo asfalto e de carro, a distância não nos parece muito grande. No entanto, àquela época, os friburguenses precisavam cumprir a distância até o cemitério (cerca de 30 km.) a pé, carregando o defunto para enterrá-lo em campo santo. Seguiam através de picadas, revezando-se sempre em grupos de quatro pessoas, e levavam cerca de cinco horas de viagem caminhando. Para cumprir essa jornada e enterrar o membro da comunidade, caminhavam em grupo de cerca de 20 pessoas.

A decisão pela construção do cemitério foi tomada em assembleia da Sociedade Escolar, realizada em 26 de setembro de 1881. A luta pela autorização de sua construção levou quatro anos, pois dependia da aprovação da câmara de vereadores. Isso não quer dizer que durante este tempo a comunidade permaneceu de braços cruzados, esperando o consentimento da câmara campineira. Para conseguirem a aprovação contaram com o trabalho árduo do advogado campineiro Dr. Quirino, com a realização de abaixo-assinados no interior da própria comunidade e, também, nas comunidades vizinhas e apelaram ao governador de São Paulo. A luta incansável das lideranças comunitárias resultou na vitória e

Imagem do cemitério de Friburgo. FONTE: http://www.campinas.sp.gov.br/governo/cultura/patrimonio/bens-estudo/processo_005_08.php (acessado em 06/10/2010)

na conquista do direito de terem seu próprio cemitério. Porém, a vitória legal pela construção do cemitério – cujos custos foram totalmente assumidos pelos moradores de Friburgo – abriu a porta para outra espera: desta vez, a comunidade precisou esperar pela benção do Vigário para que o cemitério pudesse receber os membros da comunidade que viessem a falecer. Devemos lembrar que ainda vivíamos sob o governo imperial e que ainda vigoravam restrições à prática religiosa dos imigrantes luteranos, por isso foi necessária a ação novamente do advogado Dr. Quirino e o envio de um requerimento ao bispo assinado exclusivamente pelos moradores católicos das redondezas. Assim, após a espera de sete meses o cemitério foi finalmente abençoado.

Ao entrarmos no cemitério da comunidade podemos perceber a existência de uma organização espacial bastante distinta: ao lado direito encontramos os túmulos das famílias luteranas, e ao lado esquerdo encontramos os túmulos de famílias católicas12. Outro elemento que se destaca são as inscrições em alemão nos túmulos, que passaram a serem feitas em português a partir da campanha de nacionalização e especialmente após a II Guerra Mundial.

O cemitério está preservando, continua sendo utilizado pelos descendentes das famílias friburguenses e é cuidado por uma associação responsável pelo levantamento de fundos, zeladoria e aprimoramentos, como a construção de uma pequena capela, por exemplo. Infelizmente, nos últimos anos, o cemitério de Friburgo tem sido alvo de ataques de vândalos que roubam ornamentos dos túmulos ou os profanam em busca de objetos de valor.

5.3. A Igreja

Dentre as construções que atenderam a colônia alemã de Friburgo, a Igreja foi a última a ser edificada. A Sociedade Escolar do Bairro Friburgo, em reunião realizada em 3 de julho de 1932, doou uma parte de sua área para a construção do templo.

Embora várias décadas tenham se passado desde a chegada de Thamerus à região e a construção do templo, a vida religiosa sempre foi mantida viva nas casas dos imigrantes e na vida comunitária. O salão de aulas da escola, que durante a semana abrigava as crianças, era utilizado para a realização de cultos e das festividades da igreja, como o culto de Ação de Graças pela Colheita (realizado até hoje e comemorado com um almoço na sede da Sociedade Escolar) e as celebrações de Natal. Nesta época a comunidade era atendida por pastores luteranos de Campinas ou de Rio Claro, que vinham esporadicamente para Friburgo por causa das dificuldades de locomoção daquela época, quando as distâncias eram percorridas por eles em lombo de cavalo.

A construção da igreja da comunidade contou com o apoio financeiro da Comunidade Evangélica de São Paulo e também de comunidades de outros estados. Na página 3 do informativo Der

Wanderer13, foi publicado um texto do professor Keller, que havia atuado na escola de Friburgo, no qual ele

convida as comunidades evangélicas a colaborarem financeiramente para a construção do templo:

“Já há alguns anos sente-se que essas diversas utilizações do prédio da escola não estão muito apropriadas e as almas mais sérias esforçam-se, com direito, para que as pregações, batizados, comunhões e outros atos sagrados sejam realizados em uma construção mais apropriada e digna. Por muito tempo faltaram os meios para realizar esses planos, mas certamente chegou a

12 Encontramos, por exemplo, o jazigo que contém a seguinte inscrição “Restos mortais do Acidente da Aerolineas Argentinas”, que ocorreu com um voo que decolou do Aeroporto de Viracopos e logo em seguida caiu nas terras de Friburgo em novembro de 1961. 13 Apud von Simson (1994, p. 28)

Interior da Igreja Luterana de Friburgo. Imagem cedida por Eliana Belo

maturidade a louvável ideia. Onde existe vontade, existe ali também um caminho. Propõem-se, por uma quantia mínima de 16 contos, a construir uma modesta igreja. A relativamente pequena colônia de Friedburg já reuniu a metade dessa quantia e ela pede aos amigos da cidade e do campo para ajudá-la na coleta da quantia restante.”

Com a inauguração do templo as atividades comunitárias de caráter religioso deixaram de ser realizadas no prédio escolar. Embora a igreja congregasse a comunidade em torno das atividades religiosas, ela também era responsável pelo intercâmbio das famílias com outras comunidades. A realização de retiros, jogos regionais e retiros religiosos – além de viagens – possibilitou a aproximação dos friburguenses com outros descendentes de imigrantes que faziam parte de outras comunidades evangélicas, como Pires de Limeira, Rio Claro, Cosmópolis, Campinas e Monte Mor. Ainda hoje a igreja serve como referência e ponto de encontro dos descendentes de alemães que já não moram no bairro. Duas vezes por mês são realizados cultos, no qual a comunidade pode se reunir e se rever e, assim como acontecia desde os primeiros tempos, o prédio antigo da escola abriga as festas da comunidade luterana de Friburgo.

6. Friburgo hoje

crescimento da comunidade acarretou a impossibilidade de se adquirir terras no bairro para os descendentes mais jovens, que compraram seus sítios em áreas vizinhas – como Monte Mor – ou acabaram migrando para as cidades em busca de emprego. Após a crise de 1929, mesmo com a

implantação de outros cultivos como batatas, os friburguenses não conseguiram atingir a mesma abundância que fora outrora propiciada pelo cultivo do café, situação que ficou ainda mais difícil quando as terras começaram a dar sinais de exaustão e a não produzir tudo o que se esperava. O trabalho árduo no campo não estava trazendo nada mais do que o desgaste dos agricultores. Com isso, progressivamente a comunidade começou a migrar para a cidade, movimento que se intensificou a partir da década de 1970, permanecendo nos sítios originais apenas os membros mais idosos da comunidade. Os sítios que antes pertenciam aos imigrantes foram sendo progressivamente vendidos a pessoas da cidade – especialmente paulistanos – em busca de um lugar tranquilo para passarem os finais

de semana.

Embora a comunidade tenha migrado para a cidade, o prédio da escola e a igreja permaneceram até hoje como centros aglutinadores dos teuto-brasileiros friburguenses. Nos finais de semana, os jovens e seus pais deslocam-se de Campinas e Indaiatuba para Friburgo, com a finalidade de se encontrarem no culto ou para atividades recreativas. Apesar de serem centros aglutinadores, a geração nascida a partir de 1940 começou a se preocupar em oferecer aos jovens algum tipo de atividade que os trouxessem para a comunidade e os fizessem se

interessarem por todo o patrimônio. Primeiramente, pensaram na construção de uma

piscina que pudesse ser utilizada pelos associados da Sociedade Escolar do Bairro Friburgo e seus filhos, porém consideraram que não seria uma atividade de fato atrativa, construtiva e que chamasse os jovens para o interesse pela sua comunidade de origem. A segunda alternativa encontrada (e posta em prática) foi a fundação de um grupo de danças folclóricas alemãs na comunidade, por isso em maio de 1993 o Tanzgruppe Friedburg foi fundado e escolheu para si e confeccionou um traje folclórico originário de Probstei, no estado alemão de Schleswig-Holstein – área de origem de muitas famílias que formaram Friburgo – e datado de meados do século XIX, quando se deu a imigração para o Brasil.

O

Tanzgruppe Friedburg (1995) - Imagem cedida por Evelise Amgarten Quitzau

O grupo formado em 1993 continua atuante a e agrega hoje não apenas descendentes dos imigrantes mas também pessoas que se interessam pela dança folclórica. Através da participação em cursos promovidos pela Associação Cultural Gramado, em Gramado / RS, o grupo tem adquirido repertório de danças e conhecimento para fundamentar suas atividades, além de construir uma rede de contatos com outros grupos de danças folclóricas alemãs de fora de São Paulo, especialmente no sul do Brasil.

Atualmente, a comunidade de Friburgo passa por um momento de angústia e incerteza. Embora o patrimônio formado pelos prédios da escola e da igreja comunitárias tenha sido tombado pelo patrimônio histórico de Campinas (Resolução nº 98 de 31/05/10 da Secretaria de Cultura – Patrimônio Histórico e Cultural), a ampliação do aeroporto de Viracopos tem assombrado a comunidade com a possibilidade de desapropriação da área que se estende do aeroporto, inclui o cemitério (que não foi tombado pelo patrimônio histórico) e chega praticamente às portas da escola e da igreja.

Tanzgruppe Friedburg (2008) - Imagem cedida por Carlos Guilherme Nilson

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