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O que me importa

Quando comecei a escrever estas crónicas pensei que iniciava uma viagem para longe do meu pequeno mundo. Pensei que se tratava, sobretudo, de apontar as antenas do interior para o exterior. Pensei que o meu trabalho consistiria, antes de mais, em reflectir continua-mente sobre a realidade — e transformar em palavras claras o fluxo, tantas vezes nebuloso, desse pensamento. Descobri que aquilo a que chamamos pensamento é uma amálgama de nervos e iluminações, de mágoas empoeiradas, memórias perdidas entre uma infância e outra, apontamentos de vidas e obras que guardámos para estudar mais tarde. O ritmo semanal das crónicas faz sobressair estas obses-sões inconscientes, embora eu só o tenha descoberto ao revisitar os textos no seu conjunto, para escolher 110 deles para este livro.

Ao fim de uns anos, as crónicas ganham a cor sépia e reveladora dos diários, mostram muito mais do que uma perspectiva individual acerca do mundo: são um estendal de sonhos e inquietações, pra-zeres, ódios e amores de estimação. Temas como o aborto, a discri-minação, os abusos sobre crianças, a violência sobre as mulheres, a educação e a justiça atravessam os meus dias com uma constância recorrente. Porquê? Porque me parecem ser estas as pedras de toque da política actual. Ainda acredito que o mundo pode melhorar à vista desarmada durante o breve espaço da minha vida; se não acre-

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ditasse, não teria a perseverança de escrever todas as semanas, este-ja onde e como estiver, feliz ou infeliz, varrida pela febre ou numa ebulição de festa. Dentro de todo o cronista há um optimista furioso — a própria zanga serve de testemunha a esse contrato de encanta-mento com o mundo.

Tento contagiar o entusiasmo que me vão causando certos filmes, livros, músicas, exposições, peças de teatro — ou, pelo menos, que as pessoas adiram à ideia da cultura como elemento amplificador da vida. Tento, através desta modalidade de escrita descendente do imprevisível deus Cronos — o deus do Tempo —, pensar livremen-te sobre os sinais da minha época, o que muda, o que se repete, o que resiste. Procuro fazê-lo com a maior transparência, embora sem perder a noção de que toda a transparência é ilusória, e toda a li-berdade intelectual uma fatia fina, imperfeita, muitas vezes cozida com os ingredientes trocados, do complexo bolo do sentido. Edu-ardo Prado Coelho costuma dizer que a primeira qualidade de um cronista é a persistência — como valoroso campeão da crónica diá-ria desde há muitos anos, está particularmente bem colocado para o afirmar. Creio porém que há um pré-requisito anterior a esse; talvez não seja exactamente uma qualidade, mas é essencial: aquilo a que, em português corrente, se sintetiza nas quatro letrinhas da palavra lata. Se quiserem chamem-lhe arrojo, gosto pelo risco, inconsciência ou ousadia. Por mim, para ser sincera, tenho dificuldade em defini--lo através dessas palavras de boas famílias; um cronista é, antes de mais, alguém que tem a lata — coisa visceral, barulhenta, infantil, brincalhona — de se atirar para os braços do seu próprio tempo e exibir o seu encontro erótico com ele. Romance às vezes feliz, às ve-zes malfadado, em certos momentos atinge uma imprevista sintonia entre alma e pele. Oxalá possa algum leitor caridoso encontrar aqui o rastilho de lume de algum desses momentos.

Diários mais ou menos codificados, estas crónicas têm sido tam-bém o meu caderno de viagens. Com o Brasil, como penso que se nota bem, desenvolvi um autêntico caso extraconjugal; encontro nele o avesso sensual e o complemento indirecto do meu Portugal.

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Em Nova Iorque encontro a franca ventania da amizade e da rein-venção, física e metafisicamente. Espanha espevita-me como um ir-mão belicoso e fidelíssimo. Viajo para encontrar pessoas, são sempre elas o que procuro, por baixo das pedras e por dentro das telas, nas fachadas dos edifícios e no cheiro inconfundível de cada cidade.

Há séculos que nos animamos com a velha cantiga sobre o poder transformador da palavra; confesso que, até começar a escrever es-tas crónicas, essa música, com mais ou menos jazz ou swing, não me animava. Sei que há livros que nos viram do avesso, alterando-nos o curso da existência e a temperatura do sangue. Os livros de que ao longo destas crónicas fui falando — repetidamente, em alguns casos — tiveram esse efeito sobre mim. Para além dos livros que tenho es-crito, evidentemente; mas, enquanto apenas escrevia romances, não me apercebia da extensão e profundidade da ligação entre todas as coisas. Devo à crónica a consciência que hoje tenho da capacidade de mobilização efectiva da palavra. O escritor e cronista brasileiro Walter Galvani tem uma excelentíssima oficina de crónica que in-titulou O Voo da Gaivota, a partir desta sua definição, de um rigor fotográfico: «Ofício de cronista é como voo de gaivota, rente às on-das, até o ponto e a hora de fisgar o peixe. E então vem o difícil: voar mais e mais, sem deixá-lo cair».

A condenação de uma mulher a oito anos e meio de prisão por prática de aborto ilegal levou-me a escrever uma crónica onde su-geria que alguém lançasse um abaixo-assinado em prol da sua li-bertação. Na semana seguinte, recebi dezenas de cartas e e-mails de pessoas que pretendiam subscrever esse abaixo-assinado inexistente. De modo que, com a ajuda de amigos entendidos em leis — o que se faz na vida sem a ajuda dos amigos? —, acabei por redigir um pe-dido de indulto, ao qual o presidente Jorge Sampaio se manifestou sensível. Assim, a palavra partilhada e multiplicada em milhares de vozes teve força para corrigir — ainda que tardiamente, após quatro anos de cativeiro efectivo, dois deles em prisão preventiva — uma situação de manifesta injustiça. Na selecção que constitui este livro, incluí, sob pena de redundância, todas as crónicas relativas a este

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caso, o chamado caso da parteira da Maia, porque me deu a medi-da da crónica como exercício de intervenção social, como forma de poder cívico. A palavra «poder» tem má fama em Portugal; o nojo que afectamos pelo poder é a mais daninha das ervas plantadas por Salazar no forro da nossa alma (um forro que o mesmo Salazar nos talhou em chita). A falta de movimentos cívicos e de voluntariado social é uma consequência directa da desistência interior a que nos leva a diabolização do poder. Disso tenho procurado falar ao longo destas crónicas. Disso e do pessimismo atávico que usamos como gargantilha de ouro velho, sinal de distinção que evita a dificuldade das distinções e trabalhos da vida verdadeira.

Devo a estas crónicas o encontro de novos amigos — a história mais bonita foi a de Domitília dos Santos, figura sobre a qual escrevi depois de a descobrir através de uma sábia entrevista de Adelino Gomes na revista Pública. Essa crónica levou a que nos encontrás-semos, e Domitília é hoje mais uma luz do meu mundo. O exercício da crónica alertou-me de uma forma muito concreta para a arqui-tectura proliferante da informação e para o seu corpo mutante de coreografias do caos. Os textos sussurram entre si como pessoas frá-geis, provisórias, às vezes terríveis na teimosa inconsciência da sua força e precaridade sobre o mundo. Devo também a estas crónicas o aprofundamento da relação com amigos antigos, que fazem o fa-vor de me servir de permanentes grilos falantes. Agradeço pois o precioso e contínuo apoio de Helena Matos, Jorge Colombo, Lídia Jorge, Maria Lúcia Lepecki, Paulo Nogueira e Rui Zink. Para além de Fernando Pinto do Amaral e Ricardo Pedrosa, muito cá de casa mas, para minha felicidade, sempre críticos. Se estas crónicas não são melhores, a culpa não é deles — mas é deles a virtude de não serem muito piores.

Desde que comecei a publicar estes textos, também os inimigos se tornaram mais evidentes, o que, sem ironia, lhes agradeço; os inimi-gos são interlocutores fundamentais da nossa aprendizagem. Des-confio muito daqueles que não os têm. Agradeço também aos leito-res pelas muitas cartas e emails em que, com fúria ou com carinho,

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me foram manifestando a sua atenção. Uma crónica sem leitores é menos do que uma página em branco — e a brancura muda da página é, apesar da ilusão oferecida pelo rumorejar dos écrans dos computadores, o grande pavor de quem escreve.

Mas o agradecimento principal vai para o jornal Expresso, e muito em particular para o seu director, José António Saraiva, ao qual este livro integralmente se deve, porque partiu dele o convite e a aposta nestas crónicas. Oito anos depois de ter saído da redacção do Ex-presso, onde pude crescer e aprender, escrevendo, com uma liberdade inestimável, sobre uma vasta amplitude de temas, voltei a encontrar neste jornal de referência a minha janela sobre o mundo e, acima de tudo, a minha casa — o eterno home para onde apontam os dedos tortos, perdidos, acesos dos ET quotidianos que somos todos nós.

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2005 Inês Pedrosa

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A primeira vez

Quem não nasceu ontem e lê o nome desta crónica recorda-se tal-vez duma revista maneirinha, de páginas sépia, cujo logotipo sur-gia suavemente num canto da capa sob um alfinete em trompe l’oeil. Faz bem em recordar-se, porque o nome é uma homenagem a essa revista onde publiquei o meu primeiro texto. E pago, o que é mais do que um pormenor. A Crónica Feminina era uma revista semanal, interclassista e muito popular, que ia no número 980 nesse ardente 4 de Setembro de 1975 em que o meu pobre texto lá apareceu, para minha total surpresa. Com 13 anos de idade, todos sonhamos com a glória, nos intervalos dos devaneios sobre mortes trágicas que arra-sariam de culpa os pais inflexíveis e os amores cruéis. E às vezes, nes-ses intervalos galvanizantes, até encontramos força para trabalhar em prol do futuro radioso. Lembro-me, por exemplo, de me sentar na esplanada do Parque Infantil de Monsanto, com a minha maior amiga, prescindindo da alegria dos baloiços para inventar umas his-tórias de fazer chorar carrascos, que enviávamos para a Crónica na esperança de ganhar o chorudo prémio (mil escudos) do concurso «A minha vida dava um filme».

Mas o que acabei por ganhar, sem sequer ter concorrido, foi o prémio da página ao lado: quinhentos escudos para a melhor carta de amor. Com uma carta que escrevera para a minha mãe. A carta era, escusado será dizer, tão kitsch, que, mesmo desconhecendo esta

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palavra, nunca me ocorreria mandá-la para sítio nenhum. Mas uma mãe é, por definição, imune ao kitsch filial. Aconteceu que uma pri-ma devota dessa Crónica que a minha própria mãe me proibia, por lhe parecer leitura de pouco alimento, enviou a carta para o con-curso. E foi assim que comprei os meus primeiros jeans de marca. «Cartas de Amor, Quem As Não Tem — Ganhou Inês, de Algés, Com Uma Carta A Sua Mãe».

Aquilo do «Inês, de Algés» é que não me soou lá muito bem. Al-gés era um tecido acolhedor de retrosarias, cafés e drogarias, o ver-melho dos calhambeques dos bombeiros voluntários animado pelo som da banda, aos fins de semana. Era o cheiro austero das farmá-cias e os ciclos de Woody Allen no Stadium, o cinema chunga do Sport Algés e Dafundo. Era um pouco de tudo, uma aprendizagem da melancolia das coisas pequenas — como a Crónica Feminina, que moldou sucessivas gerações de mulheres comuns, oferecendo-lhes uma nesga de sonho e uma ginástica intensiva de boas maneiras e resignação. Talvez preferisse que, em vez de Algés, o nome viesse com apelido, para que o meu ingrato cavaleiro reavaliasse a donzela que desdenhava. Ou, pelo menos, com a idade — quantas raparigas de 13 anos teriam direito a publicar fora das páginas infantis da Cró-nica? Meditando mais um bocadinho, concluí que era melhor assim. Pelo menos, nenhuma mente maldosa se atreveria a sugerir que fora a minha mãe a autora da prosa. Quanto ao belo indiferente, já lhe enviara meia dúzia de cartas de maior esforço literário, incluindo poemas com e sem rima — e nada. Só apreciava música (ia ser maes-tro) e desenho geométrico (às vezes também ia ser arquitecto). Não foi nenhuma destas duas coisas, e também não ia mesmo ser meu, mas, pelo menos, gabou-me os jeans novos, dançou comigo na festa em que os estreei, e acabou por se tornar de facto o meu primeiro namorado.

Guardei o recibo dos quinhentos escudos, mas perdi essa Crónica que encheu de luz os meus pardos 13 anos. Voltei a encontrá-la há três anos, quando revolvia as gavetas da casa deserta da minha avó, em Tomar, uma casa que parecia feita do ouro dos risos, do brilho

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das bolas de Natal e do lume da lareira, e que agora é um lugar vazio com gavetas empenadas cheias de fotografias do tempo em que to-dos estavam vivos (ela, o meu avô, o meu pai) e pareciam felizes. E a voz valente da minha avó ecoou nos tectos esfarrapados, com o travo irónico que tinha em vida: «Olha lá, tu não sabes que és tomarense? Que digas que és de Coimbra, só porque lá foste nascer, ainda passa. Mas que agora sejas de Algés, isso já me parece mais preocupante. Ainda se Algés fosse como na minha juventude... Faziam-se bailes, no Verão, em Algés. Mas já há muito ano que não».

Folheei a revista, recordando os meus bailes de Algés e a zanga da minha mãe quando me apanhava a Crónica (ou pior) debaixo do colchão, por causa das fotonovelas. A fotonovela desta Crónica em particular era nada mais nada menos do que a Madame Bovary, com uma Ema de bandós e olhos em alvo a cogitar, através das bolinhas: «Sim! A vida tornar-se-á intolerável se não o voltar a ver. É preci-so encontrar um pretexto para me deslocar a Rouen regularmente». Para além da fotonovela, a Crónica apresentava um manancial de informação variada, desde «A Baixa Antes do Terramoto» aos no-vos «Direitos da Mulher» e entrevistas, com destaque para «Celeste Silva — de empregada doméstica a actriz». Todo um programa de conquistas no «feminino», seja lá isso o que for. Eu também não sei muito bem o que será, mas sinto que é qualquer coisa que hoje surge a cores e em papel de lustro. E que, 27 anos depois, continua, como Ema Bovary, à espera de uma outra vida, oculta no coração dos pretextos.

5.1.2002

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Da beleza e da consolação

O ano que acaba de morrer não nos deixou propriamente um rasto de beleza, nem um sabor de consolação. Foi o ano em que percebe-mos que essa simples ideia (mãe de toda a ética) de que o ser humano é um fim em si mesmo, ainda não se globalizou. Pelo que qualquer um de nós pode ser assassinado, a qualquer hora, globalmente, em qualquer lugar do mundo. E foi um ano em que a morte atacou de-masiadas pessoas perto de mim. Amigos de juventude, ainda cheios de projectos, e, o que é talvez mais doloroso ainda (se é que a dor absoluta admite graus) filhos de amigos. Que digo àquele amigo cuja filha morreu, neste tão escuro Setembro de 2001, dois dias depois de completar dezassete anos? Que consolação lhe posso oferecer face a esse definitivo caixão branco, diante do qual brilhavam as dezassete rosas — frescas, lancinantemente vermelhas, insuportavelmente be-las — que ele oferecera à filha, no dia do seu aniversário?

No desconsolo infinito das lágrimas do meu amigo, um homem que é o esboço original do riso e do afecto, encontro a prova derra-deira de que beleza e consolação formam uma única matéria incan-descente, essa matéria humana, visceral, iluminada e concreta a que chamamos amor. Só o silêncio uivante dos inconsoláveis consola, enchendo o mundo da voz apaziguada dos mortos muito amados. Que diremos, face a tão desmesurado amor? Que responder à mu-

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lher de um outro amigo morto, nesse instante em que ela lhe acaricia o belo rosto frio e sussurra: «Porque é que a morte não bate à porta e pergunta: “quem posso levar?” Porque eu, por exemplo, tinha-lhe pedido que me levasse a mim, em vez dele». Agente responde: «cora-gem», «força», «conta comigo para tudo o que precisares» e outras frases sem importância nenhuma, porque eles, os que entregaram à eternidade dos seus mortos a beleza e a consolação da vida, já não ouvem essas nossas pobres palavras. Palavras medidas, sensatas, do deve-e-haver da vidinha em que nos aninhamos: «afinal, ainda tens outra filha». E o meu amigo sorri, o seu sorriso sem princípio nem fim desta vez numa estranha versão resumida de ironia. Sabe que a lógica do pneu sobresselente acalma os que se julgam ainda comple-tamente vivos. E sabe, acima de tudo, que cada filha é única. Sabe-o mais do que todos os homens que conheço, porque não conheço ou-tro que, como ele, tenha herdado a tempo inteiro as duas filhas dos dois divórcios. Alimentou-as e amou-as e serviu-as sem descanso, telefonava-lhes a cada intervalo das reuniões, esticava e encolhia os horários da vida real para nunca lhes faltar — como se convencio-nou ser próprio das mães.

Um dos mais arreigados mitos do eterno feminino é esse de que a beleza e a consolação seriam atributos das mulheres. Na luminosa definição de Eduardo Lourenço, o mito é «vida que não passa na vida que passa» . Assim, pior ou melhor, às mulheres continua con-fiada a orquestração dos grandes silêncios da vida — talvez por isso os grandes compositores sejam quase todos homens. O masculino continua a ser teórica e praticamente inconsolável. Educado para a acção, arredado desde a mais tenra infância da lentidão da mágoa, do calor sujo, doloroso, dos afectos. Às mulheres, desde há umas décadas, nas sociedades ocidentais, abriram-se-lhes as comportas da acção, mas permitiu-se-lhes — ou exigiu-se-lhes, o que, com maior ou menor canseira, vem dar ao mesmo — que continuassem a pro-videnciar a beleza e a consolação do mundo. Mas há homens, como este meu amigo, capazes de reivindicar este privilégio, e de provar que nenhuma lei genética obriga o masculino a cingir-se ao lado

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infantil, ritual, repetitivo e brutal da vida.Penso nisto — e disto faço carta de propósitos para 2oo2 — por

ter revisto na SIC, às três e tal da madrugada, uma série holandesa sublime, precisamente intitulada Da Beleza e da Consolação. Não tenho dúvidas de que o programa terá um efeito terapêutico ime-diato sobre potenciais suicidas, e sempre defendi o direito à insónia como técnica de superação dos limites solares da vida, mas gostaria de poder partilhar este prazer com a grande maioria da população que se levanta de manhã cedo para enfrentar o mundo. Até porque suspeito que é essa imensa maioria a mais necessitada da reflexão do sonho. O ponto de partida desta série desenha-se com a simpli-cidade portátil de um lápis: trata-se de perguntar a alguém o que re-presenta para ele (ou ela) a beleza e a consolação. Então, filmam-se essas imagens de beleza e/ou consolação (porque há, por exemplo, aqueles para quem a beleza é inconsolável pela sua própria efemeri-dade, e aqueles que se consolam através do sentimento da brevidade do belo). A conversa entre o entrevistador (Wim Kayzer, tão acuti-lante quanto invisível) e o entrevistado (cientista, filósofo, soprano, pintor, escritor — sempre uma pessoa contaminada pela obsessão da descoberta) corre sobre uma montagem delicada dessas imagens e do rosto mutante da pessoa que, falando, se expõe. Porque a in-dagação sobre a luz intermitente das aparências conduz-nos a essa zona de sombras e sangue a que chamamos alma. E desse projector íntimo — longe, muito longe da pompa arquitectónica dos Deuses e Demónios em que nos escudamos para não viver a vida — solta-se o filme deslumbrante da alegria. A alegria microscópica de descobrir uma partícula inédita do universo ou, apenas, o movimento da luz nas lágrimas

12.1.2002

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