O que Nietzsche tem a nos dizer

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COLUNA Marcio Tavares D’amaralO COLUNISTA ESCREVE AOS SÁBADOS 04/07/2015 6:00 O que Nietzsche tem a nos dizer O tempo não tem começo nem fim, é eterno e infinito, e portanto tudo já aconteceu e acontecerá de novo Nietzsche foi um filósofo que pensou e escreveu coisas extraordinárias, muito duras. Fugia dos contatos, arrastava atrás de si um enorme baú com seus livros, roupas, pouca coisa mais. E procurava o ar frio, bom para a saúde frágil. Punha sua mesa de frente para o sol e saía, andarilho. Na

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O que Nietzsche tem a nos dizer

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  • COLUNA

    Marcio Tavares DamaralO COLUNISTA ESCREVE AOS SBADOS

    04/07/2015 6:00

    O que Nietzsche tem a nos dizer O tempo no tem comeo nem fim, eterno e infinito, e portanto tudo j aconteceu e acontecer de novo

    Nietzsche foi um filsofo que pensou e escreveu coisas

    extraordinrias, muito duras. Fugia dos contatos, arrastava

    atrs de si um enorme ba com seus livros, roupas, pouca

    coisa mais. E procurava o ar frio, bom para a sade frgil.

    Punha sua mesa de frente para o sol e saa, andarilho. Na

  • volta anotava impresses e ideias, quando ficava satisfeito

    as organizava em aforismos, pequenos captulos, poemas, e

    tinha um livro. Publicava-os e ningum os lia, nem

    comentava. Sentiam medo do solitrio violento.

    Um dia, caminhando nas montanhas da Sua, teve o que

    chamou sua ideia mais pesada: o tempo no tem comeo

    nem fim, eterno e infinito, e portanto tudo j aconteceu e

    acontecer de novo. Na mesma ordem. Igual. Chamou a essa

    ideia o Eterno Retorno do Mesmo. No escreveu o livro do

    Eterno Retorno. Deixou duas ou trs pistas. At hoje

    especulamos sobre elas. Com sofrimento. pesado demais

    aceitar que o futuro o mesmo que o passado. Eternamente

    igual.

    Nietzsche naturalmente via outra coisa na sua ideia. Tinha

    escapado da maldio, que a filosofia foi adquirindo ao

    longo dos sculos, de fazer sistemas cheios de rigor lgico,

    mas longe da vida. Como Scrates, que odiava do fundo das

    entranhas, sabia que a filosofia deve servir vida ou ficar

    quieta e no atrapalhar a potncia de viver. Pensava que os

    valores, criados por Scrates, do bom, do belo, do justo e do

    verdadeiro foram uma conspirao da filosofia, da moral e

    da religio para julgarem e condenarem a vida, sua fora

    afirmadora e livre. No seu sculo XIX essa fora teria

    chegado ao mximo da sua humilhao. Ao fundo do poo:

    o ltimo homem, o homem que deseja morrer, a vontade de

    nada, o nada de vontade, assim o chamou. Desespero e

    desesperana.

    Mas no dia do passeio na montanha teve essa ideia: no

    fundo do poo no se encontra a morte; se no possvel

    cair mais, essa a hora de saltar para o recomeo. Tudo de

    novo. Com o que a vida teve de bom e o que sofreu de mau.

  • Pois a vida verdadeira est alm da oposio entre bem e

    mal. maior do que isso. pura afirmao da sua prpria

    fora.

    No livro Aurora ele nos deixou uma pista sobre o Eterno

    Retorno. Se um demnio por que no o da meia-noite,

    quando um dia termina e outro comea no mesmo

    fulgurante instante, e no h, ainda, ontem nem amanh

    se introduzisse no seu sonho e perguntasse: Voc quer

    tudo de novo, e na mesma ordem? ele responderia:

    Sim! E desse modo desejaria todo o passado. Pois fcil,

    pensou ento, desejar o futuro; querer de volta tudo o que

    foi, sem julgamentos nem selees, amar a vida alm de

    bem e mal. dizer um Sim! soberano vida. Deixar de ser

    demasiado humano, como o camelo que carrega nas

    corcovas todos os pesos da submisso. Ir para o deserto,

    como o leo, urrar pela liberdade. E depois tornar-se a

    criana, que est na pura inocncia do tempo. Sem medo.

    Assim ele pensou, e havia nesse pensar a esperana da vida

    forte de uma Humanidade transfigurada pela paixo

    dionisaca, pela desmesura e pelo excesso, que ele opunha

    fora apolnea, toda feita de contenes e limites, mestra dos

    julgamentos. Dionsio era o deus grego da ebriedade. Apolo

    era o da luz. O Sol, que faz luz e sombra, pe uns na

    claridade, outros, empurra para as trevas. Nietzsche era

    dionisaco. Pensava a vida como um transbordamento de

    fora e criao. E queria proteg-la das condenaes

    apolneas, cheias de desdenhosa superioridade. Sua ideia,

    to pesada e difcil, do Eterno Retorno era para isso que

    servia: ensinar aos homens a esperana. Os homens tinham

    medo. Evitavam ouvi-lo.

    Um dia, em Turim, viu um cavalo ser violentamente

    espancado. Identificou naquele corpo poderoso e belo,

  • assim supliciado, a prpria fora da vida humilhada at a

    baba e o sangue. Agarrou-se ao animal, defendeu-o e perdeu

    os sentidos. E a razo. Nunca a recuperou. Ensombreceu

    numa loucura mansa. Viveu quase 10 anos assim. E foi

    quando seus livros comearam a ser lidos. Ficou famoso.

    No soube disso. Nem era a fama que lhe importava. Era a

    fora da vida. Ele fora derrubado pelo chicote do torturador

    da vida, mas no renunciara sua defesa. A loucura, como,

    tanto tempo antes, a morte para Scrates, era um preo

    justo para no abrir mo do mais valioso.

    Hoje, por aqui, parece que vemos um sol se pr e

    lamentamos a escurido. Porque a Histria acabou, dizem,

    e no h mais futuro e sonho. Enganam-se. Amanh haver

    sol, e os tenebrosos se espantaro. O tempo dos sonhos

    voltar. Nietzsche pode ter pensado coisas estranhas, mas

    nessa teve razo: o tempo no acaba para aqueles que amam

    a vida acima de ponderaes e convenincias. E esto

    dispostos a alucinar, encher-se de luz por ela.

    Esse pode ser hoje um bom nome para a esperana. Que

    retorna sempre. Mais forte ainda quando o mundo

    escureceu.