O que o câncer não destrói

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Livro-reportagem resultado de Trabalho de Conclusão de Curso em Jornalismo

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O que o câncer não destróiRELATOS DE LUTA E CORAGEM

Fernanda BertonhaJaderson de Almeida PolicanteMarcio Luis Galan JuniorMônica dos Santos SeolimThamiris Thibes Mottin

1ª EDIÇÃO

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Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) produzido em Maio de 2016.

O que o câncer não destrói: relatos de luta e coragem

Autores: Fernanda Bertonha, Jaderson de Almeida Policante, Marcio Luis Galan Junior, Mônica dos Santos Seolim e Thamiris Thibes Mottin

Professora Orientadora: Ms. Criselli Montipó

Coordenador: Ms. Julius Nunes

Decana da Escola de Comunicação e Artes: Dra. Eliane C. Francisco Maffezzolli

Pró-Reitor Acadêmico: Dr. Vidal Martins

Reitor: Dr. Waldemiro Gremski

Copyright 2016

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À memória de Dona Ana,Nossa primeira e grande inspiração

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Sumário8 Apresentação 10 Uma jornada refletida no espelho

25 O garoto que não gosta de sorvete

40 A vitalidade dos laços

52 Até você dizer adeus

68 A história que deveria ser contada

86 O segredo é paciência

103 A alegria chegou

121 Uma passagem só de vinda

136 No controle

148 Quando a vida assume a direção

164 Posfácio

167 Glossário

171 Sobre os autores

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Apresentação

Dez personagens, dez histórias diferentes com um aspecto em comum: uma das doenças mais impactantes que existem sen-do encarada com coragem e determinação. Dez pessoas que nos mostram, cada uma à sua maneira, que a luta contra o câncer sempre tem algo a ensinar, independente de como termine.

O objetivo desse livro, desde o início, foi abordar o câncer sob uma perspectiva jornalisticamente diferente: ao invés de explorar as estatísticas, tratamentos, pesquisas na área e outros aspectos mais técnicos, resolvemos ouvir quem passa ou já passou por essa experiência. Foi partindo dessa ideia que encontramos dez pes-soas, entre elas, algumas que trataram um câncer no passado, que estão em tratamento atualmente ou que perderam algum ente querido em consequência da doença.

Ana de Fatima dos Santos Seolim enfrentou o câncer de mama e tem sua história contada pela filha, que é uma das autoras do livro. Ana Paula da Cruz dos Santos está em tratamento atual-mente, contra um câncer no intestino. Angelita Tasse nos contou a experiência de perder o filho Andrew, na época aos 11 anos de idade, acometido por um linfoma de não-hodgkin.

João Antônio hoje tem 18 anos, mas com apenas seis meses, a família descobriu que ele era portador de leucemia e não mediu

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esforços para curá-lo. Marcos Tokarski é conhecido por seus títulos no rally, mas a grande aventura da sua vida foi lutar contra um linfoma de não-hodgkin e, anos depois, um tumor no cérebro, com 99% de chances de ser maligno.

Maria Helena Grebos superou um câncer de mama entre 2006 e 2007, hoje, ela incentiva as mulheres ao seu redor a realizarem os exames preventivos. Maria Bezagio descobriu que estava com câncer no miométrio, durante exames de rotina, então, deixou a pequena cidade de Juara (MT) para vir se tratar em Curitiba.

Maristela de Andrade Michel foi diagnosticada no final de 2014, também com câncer de mama e está em tratamento com medi- camentos. Vanusa Vicelli Ribeiro é jornalista e a pauta do momen-to é vencer o câncer de mama, diagnosticado recentemente. Jânio Dalla Costa descobriu um tumor cerebral e, a partir do diagnóstico, viveu três meses ao lado da esposa Janete intensamente.

Cada uma dessas histórias apresenta a luta contra o câncer de uma diferente maneira: ela pode estimular a coragem, unir a família, ensinar algo novo, incentivar outras pessoas a se preveni-rem e uma série de outras coisas que os personagens desse livro nos mostraram.

É possível abordar o câncer sob uma perspectiva que possi-bilite uma relação harmoniosa entre a dor e o afeto, o medo e a luta? É, sim! E para você ver que é verdade, queremos lhe convi-dar para virar a página e conhecer cada uma dessas dez pessoas que se tornaram tão especiais para nós.

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uma jornada refletida no

espelhoPor Mônica Seolim

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Do corredor da Escola Municipal Archelau de Almeida Torres, em Araucária, é possível ouvir a voz da diretora, Maria Helena Grebos. Falando alto e grave, ela conta para as professoras e cole-gas um ocorrido que fugiu do cotidiano. Enquanto escuto, observo nas paredes alguns desenhos feitos por alunos do primeiro ano, cheios de corações e declarações para a responsável pela escola. A frase que se repetia em todos era: “você é linda!”.

Assim se passam dez minutos, nos quais posso relembrar como é estar dentro de uma escola novamente. O cheiro de cera no assoalho e os gritos eufóricos de um ou outro aluno chegando atrasado me fizeram perceber que algumas coisas não mudaram muito nos últimos 16 anos.

Estou justamente fazendo essas reflexões quando Maria Hele-na sai da sala dos professores em minha direção. De salto alto, rou-pas combinando, cabelos loiros bem arrumados e rosto maquiado, já de longe me cumprimenta e chega até mim de braços abertos. Após uma recepção calorosa, sou convidada para entrar em sua sala e me sentar em uma das cadeiras que ficam em frente à sua mesa cheia de papéis e pastas, tudo muito bem organizado. Um raio de sol entra pela janela que fica ao fundo da sala, iluminando e aquecendo o ambiente delicadamente. Um bonito dia de outono.

Alguns minutos de conversa sobre temas variados, como o cotidiano de trabalho de uma diretora, a aproximação da come- moração do Dia das Mães e até sobre o clima servem para quebrar o gelo e criar uma esfera mais agradável para a abordagem de um assunto tão delicado que viria a seguir.

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- Maria Helena, eu sei que você lutou contra o câncer há alguns anos e hoje eu vim até aqui para saber da sua história – eu disse, após explicar como eu havia chegado até ela e todas as motivações que haveriam por trás dessa conversa.

Nesse instante, a mulher de 49 anos não aparentes se ajei-ta em sua cadeira e respira fundo antes de começar a contar o ocorrido. Ao observar essa reação, penso que o relato será difícil, mas no decorrer do diálogo, sou surpreendida pela naturalidade e objetividade com a qual ela trata do assunto.

Maria Helena começa tentando se lembrar exatamente da data em que tudo começou, mas não tem essa recordação tão precisa. Após hesitar um pouco, diz que foi em meados de 2006 que a sua vida mudou, a partir de uma consulta de rotina com o seu gineco- logista. Antes disso, faz questão de mencionar que cuidar da saúde sempre fez parte do seu cotidiano.

- Eu faço todos os exames preventivos, como mamografia e eco mamária desde pouco antes dos 40 anos, além da ressonância magnética que comecei a fazer depois de ter colocado próteses de silicone. Sempre fui muito disciplinada em relação a isso.

Araucária é uma cidade pequena, com pouco mais de 100 mil habitantes. Trabalhando com educação há mais de 30 anos e pertencente a uma família tradicional do município, Maria Hele-na tornou-se conhecida e uma das características que as pessoas mais associam a ela é a vaidade e o fato de não aparentar a idade que tem. Ela não tem problema nenhum com isso, pelo contrário,

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é algo que assume e considera como ponto de partida para o seu relato.

- Eu já contei essa história várias vezes e costumo começar fa-lando que eu sempre fui muito cuidadosa comigo. Sempre vaidosa com o corpo, pele, cabelo. Tanto que ano que vem eu completo 50 anos e continuo me cuidando muito! – ela diz sem nenhum receio de assumir a idade, na verdade, parece se mostrar orgulhosa de sua aparência independente da data de nascimento.

Diagnóstico

Ao fazer um exame de rotina em 2006 e levar o resultado para o médico, ele disse para Maria Helena que ela estava com uma íngua* em sua mama direita. Orientou para que ela tomasse um medicamento durante dez dias e retornasse ao consultório caso não desaparecesse. E foi justamente isso que aconteceu.

- Quando eu voltei, depois dos dez dias, o médico me disse que isso não era nada e que eu podia esquecer que estava ali. Mas naquela época fazia dois anos que eu tinha colocado próteses de silicone, então, resolvi marcar uma consulta com o médico que tinha me acompanhado na cirurgia, Eduardo.

Esse segundo médico também a tranquilizou, dizendo que aquela íngua realmente não parecia ser nada que fosse moti-vo para se preocupar. Mesmo assim, sugeriu que ela fizesse um procedimento para retirar pois, segundo ele, “isso não estava aí antes”. Prontamente ela atendeu à recomendação e tirou a íngua da mama alguns dias depois com um mastologista.

* As palavras marcadas com asterisco (*) podem ser consultadas no Glossário, ao final desta obra. 13

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- Após 19 dias que eu tinha tirado, a secretária do médico me ligou pedindo que eu fosse consultar, porque o exame não tinha dado bom.

A diretora levou a mãe, a irmã e uma amiga junto com ela no dia da consulta, já esperando que fosse precisar de apoio, pois podia receber uma notícia que não iria ser do seu agrado. Quando entraram no consultório, o médico começou a fazer rodeios ao in-vés de ir direto ao ponto e dizer qual havia sido o diagnóstico.

- Doutor, é câncer? – perguntou Maria Helena ao médico – nesse momento, a suspeita foi confirmada pelo profissional, que disse à paciente que a cirurgia seria o primeiro procedimento. Ela diz que, segundo o médico, o tumor era pequeno e estava no início do desenvolvimento. Sendo assim, seria possível operar sem precisar fazer qualquer outro procedimento antes disso.

Maria Helena conta que a sua reação imediata foi chorar, as-sim que recebeu essa notícia.

- Eu saí de dentro do consultório sem acreditar no que estava acontecendo. Eu só chorava e pensei direto no cabelo.

Logo em seguida começaram os exames e todo o protocolo pré-operatório. A cirurgia foi realizada um mês depois dessa notícia e na mesma noite, o médico foi visitar Maria Helena em seu quarto e encontrou uma paciente extremamente ansiosa para saber logo o que tinha ocorrido e, principalmente, o que ainda iria acontecer a partir daquele momento.

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- E então, doutor, como foi? O que tinha na minha mama? – em resposta a essa indagação, ela conta que o médico explicou que a doença estava mais avançada do que o previsto. No início, o profissional havia pensado que apenas a radioterapia* seria su-ficiente como tratamento, mas ao perceber que o tumor já estava atingindo a axila, ela também precisaria de quimioterapia*.

“Doença ruim”

Maria Helena entrou em um universo que ainda não conhecia quando foi diagnosticada com câncer de mama. Segundo ela, não sabia, de fato, o que era radioterapia* ou quimioterapia*, para quê exatamente serviam cada tratamento, como eles eram feitos e quais eram todos os seus efeitos colaterais. Apenas tinha ouvido falar e tinha ideias básicas, por exemplo, associava a quimiotera-pia à queda dos cabelos, por isso, desde o dia que recebeu a notí-cia do câncer, disse que não faria esse tratamento, pois aceitaria qualquer coisa, menos perder as madeixas.

- Eu faço cirurgia, vou enfrentar, mas quimioterapia eu não vou fazer – Maria Helena foi enfática ao dizer isso ao médico, ainda antes da operação. Nesse momento, não estava preocupada com os desconfortos que a quimioterapia poderia trazer, mas se recusava a perder os cabelos. Ela lembra que o médico foi enfático ao dizer que se precisasse ela faria, não poderia se recusar.

O câncer esteve sempre encoberto por uma espécie de som-bra na vida de Maria Helena, até ela ser obrigada a enfrentá-lo.

- Quando eu era criança, na casa dos meus pais e parentes,

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ninguém falava sobre o assunto. Eu tive uma tia que teve câncer de mama e ela chegava em casa de peruca. Mas a minha mãe nunca conversava com a gente sobre isso. Nós até achávamos graça da tia! Até hoje, a minha mãe, assim como as pessoas mais velhas da família, não fala a palavra câncer, fala “doença ruim”.

Saber que Maria Helena estava com a “doença ruim” pegou a família toda de surpresa, por causa do estigma que existe por trás disso.

- Até hoje, quando se fala em câncer, o que a gente pensa? Pensa na morte, que esse é o destino certo da pessoa diagnos-ticada. Isso vem de muitos anos atrás e mesmo com os avanços da medicina, com a possibilidade de diagnosticar e tratar precoce-mente, essa ideia ainda não mudou. E de repente, eu estava com esse estigma.

Início do tratamento

Logo após a operação, Maria Helena começou a quimioterapia. No total, foram oito sessões que eram realizadas a cada 21 dias em um centro de tratamento especializado em Curitiba, chamado Oncoville.

- As primeiras quatro aplicações eram de quimioterapia ver-melha, mais forte. No primeiro segundo em que o medicamento era colocado na minha veia, eu já sentia um gosto amargo terrível na minha boca. Eu chegava em casa doente depois de cada ses-são. Mas não doente porque estava com câncer, e sim por causa da reação que a quimioterapia me causava.

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Durante as sessões, ela ficava em uma sala com outros pa-cientes que também estavam fazendo quimioterapia. No princípio, conversava com eles, mas deixou esse hábito de lado para prote-ger a sua própria positividade.

- Quando começava a conversar, as pessoas me contavam que tinham começado com câncer de mama e, anos depois, tinha voltado e atingido outros órgãos. Isso não me fazia bem.

Maria Helena teve todas as reações mais comuns desse tipo de tratamento. Sentia enjoos, o corpo ficava quente como se es-tivesse com uma febre alta, sofria de mal-estar, fraqueza, perdia o apetite e a disposição. Não se reconhecia dessa maneira, porque sempre foi uma pessoa agitada, de falar alto e viver correndo de um compromisso para o outro.

- Quando as pessoas me visitavam na semana depois da qui-mioterapia, que eu tinha todas essas reações, o pensamento delas era “meu Deus, a Maria Helena está morrendo!”. Eu me lembro de ter recebido a visita de uma amiga, logo depois da minha primeira quimioterapia e ela estava fazendo o mesmo tratamento, só que já tinha perdido os cabelos. Naquele momento, eu de certa forma me senti incomodada em olhar para ela, porque pensava “eu não vou ficar assim”, justamente porque no fundo eu sabia que isso ia acontecer. E era algo que me fazia sofrer.

Queda dos cabelos

Maria Helena diz, sem demonstrar nenhuma dúvida, que os dois momentos mais difíceis de toda a sua luta contra o câncer

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foram o dia que ela recebeu a notícia e quando começou a perder os cabelos.

Exatamente no 14º dia depois de ter se submetido à primeira quimioterapia, durante o banho, Maria Helena percebeu que es-tava perdendo os cabelos. Quando terminou, sentou-se em sua cama sozinha e ao passar a mão nos fios, eles iam saindo, como se estivessem soltos no couro cabeludo.

- Uma semana antes disso, que já tinha ido ao cabeleireiro e pedido pra cortar o meu cabelo bem curtinho, depois, mandei fa- zer uma peruca com o comprimento que foi tirado. Muitas mu- lheres não querem raspar os cabelos, mas naquele momento em que os meus começaram a cair, eu percebi que é o melhor. Além de ser mais higiênico, é muito triste a gente ver os fios caindo dessa maneira.

E foi um momento marcante.

- Chorei, chorei, chorei, essa foi a minha reação quando vi meus cabelos caindo, aquele dia, sentada na cama. Chorei muito. Felizmente, eu tive um apoio muito importante do marido com que eu era casada até então. Na época, ele foi muito bom comigo, e até raspou os meus cabelos depois que começaram a cair.

Raspar a cabeça, embora tenha sido a melhor solução encon-trada, também deixou marcas. Ao relatar sobre esse dia específico, os olhos de Maria Helena ficam marejados, embora ela não perca a firmeza da voz em nenhum momento.

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- Eu tinha um espelho nos pés da minha cama. Quando meu marido raspou o meu cabelo, eu me olhei naquele espelho e grita-va de desespero. Eu olhava aquela imagem e me sentia um ex-traterrestre careca. Eu me vi feia. Mesmo assim, decidi que nunca tiraria aquele espelho do lugar e ele iria acompanhar cada etapa do tratamento. Quando acabasse a quimioterapia, eu ia ver meu cabelo começar a crescer de novo, do mesmo jeito que o vi cair.

Apesar do impacto inicial e do choque causado pela mudança drástica na aparência, Maria Helena garante que se acostumou a ficar careca, assim como é possível se acostumar com tudo nessa vida. E fez questão de não permitir que a sua vaidade, marca re- gistrada, fosse pelo ralo junto com os cabelos caídos e raspados.

- Eu não consegui usar a peruca, não me adaptei! Ao andar, me movimentar, abraçar as pessoas, eu tinha a sensação de que estava saindo do lugar, ia cair. Então, eu usava lenço. Tinha mais de 50 lenços em casa, um de cada cor, fazia amarrações diferentes e assim enfrentei aquele momento. Admito que mesmo assim não conseguia me ver bonita como antes. O meu câncer atingiu dire- tamente a minha vaidade, afinal, o cabelo é a moldura do rosto, as mamas são símbolo de feminilidade. Eu também perdi as unhas e todos os outros pelos do meu corpo, como cílios e sobrancelhas, a pele ressecou. Fiquei realmente debilitada.

Ao longo do processo, a percepção de Maria Helena natural-mente começou a mudar.

- Chega em um ponto, que passa. Você percebe que a vaidade

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não é a coisa mais importante. Até porque, a quimioterapia me fez engordar também, por causa do soro. Uma vez meu irmão me per-guntou se eu preferia ter essas mudanças na aparência, mas estar viva, ou continuar como antes, com os cabelos e a mesma forma física, mas sem ter tido a oportunidade de lutar e viver. É claro que com o passar do tempo, eu só pensava em me curar, mas no início, é inevitável se abalar por causa do cabelo, mesmo que digam que isso não é nada.

Fim do tratamento

Depois das oito quimioterapias, a diretora ainda não tinha ganhado alta, seu tratamento precisaria de mais uma etapa para ficar completo: 45 sessões de radioterapia, realizadas diariamente, de segunda à sexta.

- Foi outra novidade para mim! As pessoas não fazem ideia de como uma radioterapia é rápida, questão de um minuto, como se fosse tirar uma foto. Mas ela também tinha seus efeitos colaterais, como as queimaduras na pele, por exemplo. Além disso, eu fiquei com sequelas, depois de tanta radiação, a minha mama direita fi-cou diferente da esquerda, com um aspecto mais rígido.

A radioterapia terminou em abril de 2007 e Maria Helena ficou parcialmente livre do tratamento. Além do acompanhamento com o médico, que no primeiro ano foi trimestral e depois passou a ser uma vez a cada seis meses.

- Eu sempre digo na minha casa que eu tenho um prazo de validade de seis meses. Eu vou, faço os exames, o médico me diz

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que está tudo bem e renova o meu prazo por mais seis meses – brinca a diretora.

Outro susto

De 2007 a 2015, Maria Helena continuou fazendo suas con-sultas e exames de rotina. Mas, no final de 2015, ela levou outro susto.

- Apareceu um nódulo*, novamente na mama direita. Eu che-guei a fazer duas biópsias e ambas tiveram laudo inconclusivo. Então, o médico disse que precisaria operar para ver o que era.

Ela percebe que lidou com a situação de uma forma mais ma-dura do que antes, em 2006.

- Quando eu soube que precisaria fazer essa cirurgia, que eu tinha esse nódulo e podia ser uma reincidência do câncer, dessa vez, eu não pensei na quimioterapia e nem na queda do cabelo quando o médico me deu a notícia. A primeira coisa em que pen-sei, foi na minha vida. Acho que foi uma perspectiva mais madura sobre a situação.

No dia 1º de março de 2016, Maria Helena fez a cirurgia para que o médico pudesse ver com mais precisão qual era a natureza daquele pequeno nó que havia se formado em sua mama.

- Eu senti muito, muito medo. Mas já no momento da cirurgia o médico viu que não era nada de grave. Foi um grande alívio!

Fazendo uma reflexão sobre tudo isso, desde 2006 até agora,

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Maria Helena diz que o que deu forças a ela para lutar foi colocar Deus e a família acima de tudo.

- Quando você descobre o câncer, é como se você estivesse em uma avenida e se deparasse com uma bifurcação. Existem dois caminhos, com duas placas, uma delas aponta para o cemitério e a outra para a vida. Você tem que optar pela vida. Não adianta se entregar e ficar pensando coisas do tipo “Deus quis assim”, porque Deus não quis assim, é por isso que ele coloca os médicos e trata-mentos em nosso caminho.

O medo de morrer esteve presente tanto no diagnóstico, em 2006, quanto na possibilidade de estar novamente com câncer, em 2015.

- Eu tive medo de morrer em 2006 e, agora, tive de novo. Mesmo dez anos mais velha, com outros pensamentos. Antes, o meu medo era da morte em si, toda essa coisa do caixão, do ce-mitério. Agora, foi de perder tudo aquilo que eu ainda tenho para viver e fazer. Fora isso, eu tenho um marido e dois filhos que ainda não estão encaminhados, na minha opinião. Mesmo a Carol, com 26 anos e o Eduardo, com 16.

Maria Helena não se preocupou em entender porque ela foi diagnosticada com câncer, mas diz que talvez Deus mande esse tipo de situação para as pessoas certas. Afinal, hoje ela procura ao má- ximo incentivar sua filha, irmã, cunhadas e toda a comunidade a cuidar da saúde e fazer os exames preventivos.

- Aqui na escola mesmo a gente manda bilhete para as mães

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falando sobre a importância dos exames de rotina, em outubro, as professoras todas usam o laço rosa e eu também uso as minhas redes sociais para conscientizar as seguidoras. Não gosto de dizer que estou me promovendo por causa de uma doença, mas acre- dito que dentro do meu espaço eu tenho a obrigação de atuar, já que eu sei bem como é essa batalha.

Fazendo uma autoanálise, ela diz que não mudou por causa do câncer, continua sendo a mesma, mas talvez alguns valores de vida possam ser diferentes.

- Eu aprendi a me cuidar ainda mais, não dar valor para coi-sas tão pequenas e mesquinhas e, principalmente, amar mais, va-lorizar mais a vida e a família. Acho que a gente também melhora no sentido de pensar mais no outro, jamais desejar o mal para ninguém, querer sempre o bem, independente de quem seja.

Outra lição que o câncer trouxe, foi a união.

- O câncer une a família, disso eu não tenho a menor dúvida. As pessoas que nos amam, marido, filhos, pais, irmãos, veem a morte, a possibilidade de perder alguém que está com essa doença.

Maria Helena também mudou a sua forma de pensar sobre a piedade e a compaixão em relação aos pacientes em tratamento.

- No começo, quando eu saía de casa com lenço na cabeça e percebia que as pessoas me olhavam sentindo pena, ou até fala-vam que estavam com dó, eu não gostava. Por outro lado, hoje eu entendo perfeitamente que se sinta compaixão e piedade de quem

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está nessa situação, porque tratar um câncer é muito sofrido.

Dez anos se passaram e algumas sequelas permaneceram: a rigidez da mama direita, o formigamento frequente nos pés provo-cado pela quimioterapia, as lembranças da perda dos cabelos. Mas conversando com Maria Helena, fica claro que o sentimento de vitória, a valorização da vida e a união da família são muito mais fortes. Tanto que ela diz que se entregar jamais foi uma opção que lhe passou pela cabeça e quando se sentiu ameaçada pelo câncer pela segunda vez, apesar do medo, a postura foi clara.

- É óbvio que eu não queria que fosse, mas se fosse, eu ia tratar, ia lutar mais uma vez e com certeza daria tudo certo.

Preparando-me para sair da sala, reparei que há um espelho colocado na porta, exatamente de frente para Maria Helena. Ali, antes de se despedir de mim, ela se olhou e arrumou os cabelos loiros e compridos. Um dos maiores símbolos de que o câncer não foi capaz de destruir a sua vaidade.

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O GAROTO QUE NÃO GOSTA DE SORVETE

Por Jaderson Policante

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Meados de 2001.

Quando Elza Soares Kuibida recebeu a notícia de que final-mente havia aparecido uma medula* compatível para o seu filho João Antônio Soares Kuibida, então com cinco anos de idade, ela e seu esposo Wagner Kuibida precisavam tomar uma decisão. Vinda de um doador anônimo americano, a medula* não era 100% com-patível, mas seria extraída do cordão umbilical, o que diminuiria, e muito, as chances de uma possível rejeição. A médica responsável pelo caso à época pediu que Elza pensasse bem antes de tomar qualquer decisão.

Após quatro anos de tratamento e luta do João Antônio contra a leucemia*, e três recidivas – que é quando o reaparecimento de um sintoma ou doença após um período de cura mais ou menos longo – havia finalmente uma chance. A médica, então, alertou para os riscos do procedimento. Disse que, talvez, o menino não resistisse à cirurgia. Naquele momento, ela não aceitaria nenhuma resposta de Elza. A mãe reagiu.

- Doutora eu não preciso pensar. Porque Deus já programou isso aqui. E é com essa fé que eu tenho que meu filho vai sobre-viver.

Dentro de um dos quartos do hospital, Elza abriu a bíblia em busca de uma resposta, pedindo ajuda e aprovação divina para tal decisão. Foi quando ela leu os versículos do livro do Eclesiástico.

“O Altíssimo deu-lhes a ciência da medicina para ser honrado em suas maravilhas; e dela se serve para acalmar as dores e curá-

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las; o farmacêutico faz misturas agradáveis, compõe ungüentos úteis à saúde, e seu trabalho não terminará, até que a paz divina se estenda sobre a face da terra. Meu filho, se estiveres doente não te descuides de ti, mas ora ao Senhor, que te curará. Afas-ta-te do pecado, reergue as mãos e purifica teu coração de todo o pecado. Oferece um incenso suave e uma lembrança de flor de farinha; faze a oblação de uma vítima gorda. Em seguida dá lugar ao médico, pois ele foi criado por Deus; que ele não te deixe, pois sua arte te é necessária.” Eclesiástico, capítulo 38 versículo 6 – 14. Bíblia.

Março de 2016.

João Antônio é o segundo de Wagner e Elza. Foi ele quem nos recebeu quando cheguei a Guaratuba, cidade do litoral do Paraná onde a família Kuibida mora atualmente. O apartamento, de cinco peças e com caixas e alguns móveis fora de lugar, revelava que ali estava uma família que havia se mudado recentemente.

- Vim pra cá essa semana – foi o que ele me confessou.

Elza aparece, me cumprimenta, e completa que ela veio em definitivo de mudança naquela semana.

- Não dava para deixar o meu esposo sozinho a semana intei-ra aqui e vir pra cá só no sábado e domingo.

Dois dos outros três filhos do casal logo aparecem para ver quem tinha chegado. A Fernanda de 15 anos, e o caçula Davi, com quatro. João Antônio me mostra todo o apartamento, incluindo uma pequena sacada, onde ficamos conversando um pouco enquanto

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olhávamos o mar. Na avenida que acompanha a orla, à esquerda, vemos onde fica a farmácia em que seu pai trabalha. Do outro lado fica um dos famosos cartões postais da cidade, o morro do Cristo. João Antônio é um jovem de sorriso fácil, animado, e admirava a vista comigo enquanto contava sobre as vantagens de morar em uma cidade litorânea, calma, e sem o agito de uma capital como Curitiba. Elza é uma mulher de fala forte, mas não ríspida. Ela per-gunta se estamos com fome pois “o almoço vai demorar”.

Nos sentamos no sofá da sala, de cor clara, sem almofadas ou outros adornos, de tamanho suficiente para quatro ou cinco pessoas, enquanto conversamos sobre os mais variados assun-tos, desde o preço dos produtos no mercado até o futebol. João Antônio, concentrado com o que via na tevê, me faz uma pergunta sobre situação política do país. Depois da minha rápida resposta, ele argumenta com uma descrença e uma leve rebeldia típica de um jovem de dezoito anos. Pergunto do pai, Wagner, com quem eu inicialmente havia entrado em contato para a nossa conversa.

- Ele está na farmácia. Logo vem para o almoço – me responde Elza.

- Aliás, quando o Wagner me contou que você queria falar sobre o caso do João Antônio eu disse que não era com ele que você tinha que falar e sim comigo. Fui eu que sempre estive do lado dele em todos os momentos, eu que vivi muita coisa com esse menino. Ele é um guerreiro.

Passados alguns minutos chega o pai, Wagner, com algumas coisas para o almoço que já estava quase pronto. Olha para todos

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na sala. Acena e pergunta se podemos comer. Ele trazia em suas mãos duas garrafas de refrigerante e o peixe frito que acabara de comprar em um restaurante próximo. A iguaria faria parte do “menu” do almoço, que incluiu arroz branco e um assado. Tudo muito simples, mas igualmente muito gostoso. Almoçamos todos, e, a pedido de Elza, quem organiza e tira a louça da mesa é o próprio João Antônio e a irmã Fernanda. Davi, o filho mais novo, está entretido com um tablet e parece não se importar com a mo- vimentação.

Voltamos a conversar ainda sentados à mesa. Posiciono-me de frente para o casal que agora estão lado a lado. O bate-papo remonta à década de 1990, na cidade de Campo Grande, capital do estado do Mato Grosso do Sul, onde Wagner e Elza se co- nheceram, e onde o João Antônio nasceu no ano de 1997. Foi uma gravidez que, segundo o casal, foi planejada, curtida ao máximo, tranquila e em um momento de suas vidas que ambos classifica- ram como muito feliz. Enquanto eles relembram com carinho desse tempo passado, percebo em João Antônio um olhar de admiração para com seus pais. É sobre a vida dele que falamos, mas ele mes-mo pouco fala. Apenas sorri, e vez por outra afirma que se lembra de uma coisa ou outra.

- Ele nasceu gigante, ele nasceu bem! – diz a mãe.

- Tinha uma pele bonita, pele de pêssego, sério! – completa o pai.

- Ele era diferente!

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E João Antônio sorri outra vez agora meio sem jeito, talvez um pouco envergonhado.

Durante os primeiros seis meses de vida ele foi uma criança como todas as outras. Mas após esse período o menino começou a ficar irritadiço. Chorava muito e só se acalmava com o colo da mãe. Um dia, ele precisou ser deixado aos cuidados dos avós maternos para que Elza pudesse resolver alguns assuntos no centro da ci-dade. Quando retornou, a avó disse que o neto chorou o tempo todo. Nada o acalmava. O bebê só encontrou conforto mesmo per-to da mãe, ainda que continuasse chorando de tempo em tempo. Mais tarde, já em casa, os pais notaram que além da irritabilidade, o garoto apresentava algumas manchas vermelhas pelo corpo que parecia uma alergia.

- Liguei pro meu pai em Curitiba – conta Wagner desviando olhar como se quisesse buscar na memória mais algum detalhe dessa conversa.

- Aí ele me disse assim: “Bom, leve o menino no médico. Deve ser só uma alergia mesmo”.

O casal não tinha plano de saúde. João Antônio foi levado para um hospital próximo de onde eles moravam. Não era bem um hospital. Lembrava mais um posto de saúde ou uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Foram atendidos com rapidez.

Entraram em uma pequena sala e a médica que os atendeu precisou de poucos minutos para entender a gravidade do caso. Apesar de não revelar sua desconfiança, em nenhum momento,

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para os pais. Muniu-se de uma folha de papel e uma caneta. Voltou seu olhar para a família ali em sua frente e disse:

- O senhor tem carro pai?

- Não doutora.

- Quer que a ambulância leve?

- Não, eu pego um táxi doutora.

- Então o senhor vai para o (hospital) Pedrossian agora! – a médica fez questão de enfatizar a urgência do pedido.

Com um encaminhamento em mãos Wagner, Elza e o bebê João Antônio chegaram ao hospital indicado pela plantonista que fez o primeiro atendimento. Ao colher o material necessário para a realização de alguns exames, os responsáveis pela coleta informa- ram aos pais que os resultados sairiam em torno de quatro horas. Porém, a correria de enfermeiros e médicos chamou a atenção. Na metade do tempo previsto para o resultado, uma voz ecoou na sala de espera, chamando pelos acompanhantes do menino João Antônio.

Elza ficou com o filho enquanto Wagner entrou no consultório indicado. O médico leu todo o resultado dos exames em uma lin-guagem técnica, que mesmo Wagner sendo um profissional do ramo farmacêutico não conseguiu compreender rapidamente. Talvez a apreensão que ele passava no momento o impediu de entender qual era o verdadeiro significado daquilo que ele acabara de ouvir. Foi quando ele pediu que o médico “transformasse em

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português”, o que havia dito ao ver todos aqueles papéis.

- É um caso clássico de leucemia*.

Receber uma notícia como essa não é fácil. E outras infor-mações vinham em sequência, como o imediato internamento da criança e o início dos protocolos de atendimento. O pior para Wagner era ter que dar uma notícia tão difícil para sua esposa. Desolado, caminhava com dificuldade apoiando-se nas paredes do hospital. Começava ali, o enfrentamento da doença grave que ha- via acometido o seu filho de apenas seis meses.

Seis meses são, também, o período crucial quando se começa o tratamento contra a leucemia*. Nos primeiros 180 dias, a taxa de mortalidade desses pacientes é muito alta. Passado esse perí- odo, o paciente tem uma condição melhor de enfrentar o pesado tratamento. Quem detalhou todas essas informações para o casal foi o oncologista infantil Marcelo Souza, responsável por começar os procedimentos com o João Antônio, no dia seguinte ao interna-mento.

Começo a observar algumas fotos que estão espalhadas por sobre a mesa ao lado da bíblia, enquanto o casal relembra alguns fatos da época em que descobriram a doença. São apenas quatro fotografias. Todas elas tiradas no ambiente hospitalar. Pergunto sobre elas. Descubro que são poucas fotos pois não era vontade dos pais fotografar o filho naquele momento, principal-mente com aparência fragilizada por conta dos tratamentos como quimioterapias e radioterapias. O foco, segundo eles, era apenas na melhora dele.

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Em Campo Grande foram pouco mais de dois anos de trata-mento, com vários períodos de internações e altas, dias em que ele estava bem e outros nem tanto. Mas após o resultado de um exame que apontou o agravamento do problema, Marcelo decidiu que nada mais havia a ser feito.

- Eu vou mandar ele para casa, pois ele está sofrendo demais. Ele tem uma semana no máximo, não tem mais o que eu fazer. Tudo o que eu poderia fazer já foi feito, Elza.

Ela agradeceu, deu a mão ao médico, mas foi enfática em dizer que seu filho não iria partir. Aliás, enquanto essa conversa com ares de fatalismo acontecia, o menino João Antônio brincava alegremente do lado de fora do consultório. A mãe conseguia ou-vir o filho fazendo barulho, se comportando como qualquer outra criança na mesma idade que ele. Ela não conseguia acreditar que alguém que estava aparentemente bem disposto e sorridente – mesmo enfermo de uma grave patologia – estava com os seus dias contados.

- Tudo bem doutor. Mas meu filho não vai morrer. Eu vou para Curitiba.

- Elza, você pode ir até à China. Não há o que ser feito.

- Tá bom doutor. Mas primeiro eu vou para Curitiba.

Apesar de achar que o garoto não teria mais tempo de vida, a equipe médica em Campo Grande facilitou e organizou a trans-ferência do paciente para o Paraná. A decisão da família de vir de mudança à capital paranaense foi, primeiramente, pelo fato da

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cidade ser um polo de referência no tratamento de câncer. Além disso, boa parte da família paterna do João Antônio vivia na cidade há muitos anos, como o avô, os irmãos de seu pai e mais alguns tios.

Enquanto Elza e Wagner me contam sobre essa etapa da vida de toda a família e sobre a decisão de deixar a cidade de Campo Grande, João Antônio observa, sereno, tudo o que estamos conver-sando. Fala pouco e completa uma informação aqui e ali. Não que ele não goste ou não se sinta a vontade para tratar desse assunto. Ele também quer ouvir a própria história. Tem um olhar contem-plativo, de alguém que sente orgulho da fé e da força de vontade que seus pais demonstram ter. É algo bem explícito no discurso de ambos e acabo me dando conta de que é a mais pura verdade a primeira frase que eu ouvi do Wagner quando iniciamos o nosso contato. Ele me disse que (para se alcançar a cura) cinquenta por cento é fé. Os outros cinquenta é medicina. Coisas que estão pre-sentes, como uma força do destino, na vida da família. A fé que faz com que Elza busque repostas no livro sagrado. O cuidado com a saúde, presente na profissão exercida por Wagner.

- Quando você quer uma coisa na vida, você tem que deixar o seu coração puro. Porque a mágoa impede de você conseguir a graça – ensina Elza.

A mudança

A família Kuibida veio toda para Curitiba em fevereiro de 2001. A derradeira semana prevista pelo médico de Campo Grande pas-sou e depois dela vieram outros ciclos de sete dias, que viraram

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meses e que se transformariam em anos. Na capital do Paraná, João Antônio iniciou o tratamento do Hospital das Clínicas com a médica pediatra Carmem Bonfim. Ela assumiu o caso, iniciou outro protocolo e explicou as diferenças entre o tratamento realizado em Campo Grande e o que seria feito em Curitiba.

É bem distinto o tratamento que é realizado hoje com o que se fazia há quase vinte anos. Hoje se sabe que o quando uma cri-ança é diagnosticada com leucemia* na idade de um ou dois anos, o transplante de medula* é o mais indicado. João Antônio passou por processos de quimioterapia e radioterapia ao longo de cinco anos na sua primeira infância. Ele aprendeu a engatinhar, andar e falar nos corredores dos hospitais por onde passou. É um processo doloroso, sobretudo para uma criança. A decisão de deixar a vida estável em Campo Grande tinha um objetivo.

- O foco é no João Antônio. Tudo era para ele. O amor que a gente tinha era para ele. Para ele se sentir bem.

Percebo que são as pequenas coisas que fazem a diferença na nossa vida. Para quem nunca passou por um problema grave de saúde, fica difícil entender como alguém vive com certas privações que são corriqueiras no nosso cotidiano. A primeira vez que João Antônio experimentou um sorvete foi com seis anos de idade. De- vido a sua condição, seus pais tinham alguns cuidados com a saúde do garoto – que incluía até evitar o contato mais próximo com outras pessoas – uma vez que a quimioterapia, por exemplo, deixa o indivíduo com baixa imunidade. Ele pegou o sorvete, deu três lambidas e devolveu ao pai.

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- Não gostei! – e não quis experimentar nem mais um pouco.

A rotina já era a mesma há três anos. Primeiro em Campo Grande e depois em Curitiba. Internamentos, tratamentos, perí- odos de alta, dias em que ele estava ótimo, dias em que ele não ficava nada bem. Só havia um caminho a seguir. O transplante de medula* óssea. Qualquer pessoa entre 18 e 55 anos pode ser um doador desde que esteja com a saúde em dia. O procedimento para a retirada da medula* é relativamente simples. São realizadas punções* no interior dos ossos da bacia e geralmente em 15 dias o osso se recompõe. A maior dificuldade é encontrar um doador que seja compatível. Dentro da própria família, aproximadamente 60% dos pacientes não encontram um doador compatível. Fora dela, a chance disso acontecer é em média de uma em cem mil.

Os parentes com descendência direta – pais, irmãos e avôs – foram os primeiros que realizaram os testes. Nenhum deles foi compatível. Depois, os tios, primos, e outros familiares também foram considerados inconciliáveis pela equipe médica. Além dis-so, no caso específico do João Antônio, a preferência era de uma medula* que fosse extraída de um cordão umbilical, uma vez que a adaptação de células já adultas tende a ser um pouco mais difícil. Sem alternativas dentro da própria família, o jeito era esperar um doador compatível aparecer.

Um pedido para Nossa Senhora

Seiscentos quilômetros. Essa é a distância que separa Curitiba de Aparecida do Norte, no estado de São Paulo. A cidade é conhe-cida por atrair, todos os anos, milhares de romeiros que são devo-

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tos de Nossa Senhora de Aparecida, a padroeira do Brasil. Foi para a santa que Wagner fez uma promessa eterna. Se aparecesse uma medula compatível ele iria ao mesmo dia à basílica agradecer a graça. Se o transplante fosse bem sucedido a viagem se repetiria, ano após ano, até o fim de seus dias. Não só ele iria, assim como o João Antônio também.

Uma semana depois desse pedido o telefone tocou. Era a mé- dica, Carmem. Apareceram cinco possíveis doadores.

- A minha família tem um apego muito grande com Nossa Senhora. Eu ajoelhei e falei assim: Olha, no dia que aparecer um, eu vou lá no mesmo dia! Aí tem cinco! Cinco possíveis doadores! Meu Deus! Aí eu fui sozinho. Fui lá agradecer ela.

Dos cinco possíveis doadores, três eram adultos e dois eram de cordão umbilical. Desses cinco, eliminarem-se três. Dois adul-tos e um cordão umbilical. Decidiu-se pela escolha da medula do cordão, justamente para diminuir as chances de uma rejeição. Era preciso realizar os testes para assegurar que todo o processo ocor-resse em segurança pois em casos de transplante de medula óssea a rejeição, se caso houver, é na hora. Mas os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque, nos Estados Uni-dos foram um empecilho que angustiou ainda mais a espera da família. Como o doador era norte-americano, a medula teria que vir de avião para o Brasil. Porém, devido ao atentado, o presidente George W. Bush determinou o fechamento do espaço aéreo dos Estados Unidos. A medida presidencial fez que a medula chegasse com um mês de atraso em Curitiba.

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Dois minutos

Os testes foram feitos e a decisão foi tomada. Todo o proces-so foi um sucesso, desde a preparação do paciente, que ocorreu nas semanas anteriores, até o processo do transplante, ação essa que dura apenas dois minutos. Apenas a mãe acompanhou João Antônio. O pai ficou com os outros filhos, mas pediu à esposa que ligasse quando se iniciasse o procedimento.

- Na época celular não era coisa comum, quase ninguém tinha. Então a Elza desceu onze andares para sair do hospital, encontrar um telefone público e me ligar. Quando ela voltou, o transplante já tinha terminado.

O transplante ocorreu sem problemas. Logo que recebeu alta, o garoto começou a levar uma vida normal a de qualquer criança. Exames periódicos são feitos apenas para ratificar a cura e a sua boa saúde. Os dois minutos mais importantes de toda uma vida.

A decisão pelo transplante já havia sido tomada muito antes de o doador aparecer e de Carmem pedir a Elza que refletisse bem sobre a possível escolha pelo transplante. Desde o dia em que re-ceberam a notícia da doença que havia surgido em seu filho João Antônio, o casal Elza e Wagner uniu forças e ao lado dele venceu a árdua batalha contra a leucemia.

Hoje João Antônio é um jovem saudável, praticante de artes marciais, tranquilo, sereno e ciente de tudo o que ele passou. Têm suas queixas, visões de mundo, complexos e ideais como todo jovem de dezoito anos. Ele é uma ótima pessoa e que irá se tornar

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um grande homem. Ou melhor, ele já é um grande homem.

Durante toda nossa conversa, pude notar que ali havia um casal com muita fé em algo superior. Você pode chamar essa força de Deus, ou qualquer outro nome que você queira dar. Eu chamo isso de amor.

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a vitalidade dos laços

Por: Thamiris Mottin

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Marquei de encontrá-la em sua casa, numa terça-feira à tar-de. Fazia sol naquele dia e lembro que ventava muito. Tive que dirigir por algum tempo, e durante o trajeto, pude contemplar uma paisagem que nunca havia visto: a estrada era cercada com ár-vores grandes, carregadas de folhas muito verdes, em outros tre-chos havia plantações. Mesmo o caminho quase não tendo uma grande quantidade de tráfego e sendo envolto de muito verde, a casa estava localizada em um bairro turístico conhecido na cidade, muito agradável diga-se de passagem.

Quando estacionei o carro, logo em frente à sua casa, foi ela quem me veio receber. A casa era grande, com um jardim em frente. Me aproximei para cumprimentá-la.

Ela era uma mulher alta, de pele e olhos claros. Usava um macacão que dava a sensação de frescor e leveza, com alguns tons de verde e um turbante muito bem amarrado que combinava com a roupa e as joias que usava. Havia passado no rosto uma maquiagem leve, dando abertura para que seus olhos azuis se destacassem. Parecia alguém muito feliz principalmente devido ao seu largo sorriso no rosto. Seus olhos também sorriam o tempo todo junto com sua expressão serena. Vanusa Vicelli Ribeiro, tem 46 anos, é jornalista, mãe de dois meninos, esposa e não, eu ja-mais diria que ela está lutando contra o câncer de mama.

Ela me conduziu pela sala, onde as paredes foram pintadas com tons pastéis e havia ainda dois sofás confortáveis posiciona-dos próximos a uma lareira. Sobre os móveis da sala muitos eram os artefatos de decoração.

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Sentei-me no sofá e começamos a conversar, Vanusa contou em detalhes como foi quando tudo começou:

- Para mim foi muito diferente da maioria das outras pessoas que eu converso, que eu já li a respeito e tal. — disse ela — Nor-malmente as pessoas dizem assim “quando eu soube que estava com câncer, começou pelo estômago, ou algo assim”, comigo não, foi muito aos poucos e uma coisa meio que de intuição. Eu esta-va lendo no quarto, e eu senti uma queimação assim, na mama esquerda, e eu levei a mão, quando coloquei a mão eu senti o nódulo, e ai eu pensei, “bem eu, estou no período menstrual, vou esperar passar, porque eu já tive isso outras vezes” e era bem no período de outubro e eu pensei, “nossa faz tanto tempo que não faço meus exames que a minha médica pede” e então eu liguei para ela e nem marquei a consulta, pedi direto as guias de exa- mes, porque, sabe quando você parece que já sabe que está acontecendo alguma coisa? Foi assim comigo.

Passados alguns dias, Vanusa foi até o laboratório onde havia marcado a mamografia e a ecografia, quando esperava para fazer o segundo exame foi chamada novamente para repetir o primei-ro. Vanusa lembra que a auxiliar de enfermagem perguntou se o médico gostaria de ver o exame e ele perguntou se era mesmo necessário, e então ela respondeu apenas, grau cinco. Nesse mo-mento, ela já sabia que se tratava de um câncer.

A jornalista conta que assim que o exame terminou ela se lembra de ter brincado com o médico dizendo que esperava não vê-lo tão cedo ao se despedirem, porém, quando começara a se

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arrumar, foi chamada novamente para repetir a ecografia.

- Eu ri dizendo “ué Dr. falei que não queria vê-lo tão cedo” e aí ele já foi mais sério, explicou que era embaixo do braço e que havia achado o linfonodo *, e eu continuei brincando, porque não tinha muito o que fazer. Até a técnica em enfermagem que estava acompanhando disse “ainda bem que a Sra. é calma porque vem mulheres aqui que gritam, sai chorando” e eu falei para ela “olha, o que eu vou fazer agora? Não adianta eu fazer escândalo. Então, a partir daquele momento eu já sabia que era câncer.

Mais tarde, pesquisando sobre o que foi falado na consulta, ela entendeu que o grau cinco, falado pela auxiliar, tinha 90% de chance de ser câncer. Depois de conhecer um pouco mais sobre como seria o processo, começou a batalha de correr de exame em exame, até sair a biópsia, da mama e do linfonodo. Os dois resultaram em câncer. O linfonodo foi diagnosticado com células cancerígenas e o tumor* era maligno*.

Para compartilhar sua experiência desde o diagnóstico, Vanu-sa criou o blog Laços do Peito*, onde conta sua história e busca auxiliar outras pessoas na mesma situação. Em seguida, um tre-cho de sua página:

Consegui até antecipar a data da entrega do laudo por conta do “grau cinco”.

Avisei minha ginecologista, Crisitane Ampessam, que

43*Link para acesso ao blog: http://www.lacosdopeito.com/

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quis me ver na manhã seguinte. A primeira coisa que ela fez foi me mostrar o prontuário. Anos de pedidos de exames não realizados. O motivo? Não tenho a menor ideia.

Perguntou, “você sabe o que quer dizer grau cinco?”

Como já havia pesquisado respondi: “Sim, é câncer”!

– Trecho do depoimento de Vanusa no blog – 4 de dezembro 2015

- Para mim, esse começo, foi muito simples. Foi um processo, eu aceitei desde o início, teve um dia que eu fiquei triste, mas foi um momento, eu conversei com uma amiga, e falei “eu sei que vai ser duro o que eu vou passar, eu não tenho dúvida que isso será resolvido, mas eu sei que o processo é difícil”. – Essa foi a primeira vez que ela chorou.

Em determinado momento, eu disse que sabia que aquilo estava só começando. Ela logo respondeu que não importava o que acontecesse estaria ao meu lado.

Aí não deu pra segurar. As lágrimas começaram a rolar diante daquela demonstração de carinho. Carinho que, nos últimos dias, vinha sendo tão frequente!! Minha gi-neco, meus amigos mais próximos, meu marido.

Mas logo passou. Acho que não há espaço pra muito chororô. Isso não vai me ajudar. Acho sim que tenho

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de estar forte e chorar quando realmente for hora para chorar.

Trecho do depoimento da Vanusa no blog – 22 de dezembro de 2015.

E ela não estava errada, o processo é realmente difícil. Entre-tanto ela vem se cobrando um bom humor, para que não caia em depressão. Na realidade, a palavra não é cobrar, como ela mesmo explica. É mais um modo de ficar em alerta para que essas situ-ações não aconteçam. Vanusa acredita que a tristeza alimenta o câncer.

- Uma coisa que sempre acreditei, é que a mente domina o corpo, nossas emoções, nossas crenças são o que nos move, é como se as nossas emoções alimentassem o câncer de uma certa forma, quanto mais deprimente você se sente, mais forte ele fica, mais difícil é de vencê-lo. E quando você tem todo o apoio do mun-do, isso não é diferente, isto é, seria como alimentar nesse caso a sua fé e esperança. Os amigos e a família dão força para que você continue em frente, lutando mesmo que seja difícil e doloroso.

- Eu não acho que o câncer seja o veredito, o atestado de morte. Pelo contrário, eu acho que o câncer como outras doenças podem nos despertar pra vida. De repente você descobre e Opa! O negócio aqui é meio rápido, vamos passar a ver a vida de um ou-tro modo. Hoje eu vejo os problemas assim: o que tem chance de mudar merece o meu esforço. O que não vai mudar, é uma pena e eu lamento, mas eu não vou mais gastar energia naquilo, porque

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eu preciso de energia em outras coisas, na vida.

Um pouco antes de receber o diagnóstico, ela já havia deixa-do seu emprego fixo, e vinha atuando como jornalista freelancer. Ela trabalhou por quase dois anos diariamente em uma produtora e prestava serviço para essa empresa até junho do ano passado. Podemos dizer que tudo aconteceu quase que ao mesmo tem-po, porque Vanusa descobriu o câncer em outubro. O fato de ter parado de ir regularmente trabalhar deu uma vantagem, pois o tratamento não atrapalharia o seu trabalho, mas também visto por um outro lado, pode-se considerar como uma desvantagem, como explica Vanusa, levar a vida normalmente seria perfeito, mas claro, dentro das condições.

- Eu acho que o ideal seria ter a rotina mantida, não dá para parar tudo, aconteceu comigo que eu já havia parado, mas a minha rotina em casa é praticamente a mesma, levo as crianças na es-cola, vou buscá-los, levo almoçar, faço almoço, lavo roupa, cuido da casa, tudo igual. Estudo, leio. Antes de descobrir o câncer, eu já estava estudando sobre o espiritismo e já estava frequentando uma casa espírita, e acho que isso me ajudou muito. É muito im-portante a gente ter se resolvido, se sentir confortável com a tua vida espiritual, seja qual for a sua religião.

A família também vem aceitando com tranquilidade a si- tuação. Ela lembra que os filhos receberam a notícia muito bem e o marido também.

- Estão todos muito otimistas e confiantes.”

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As amigas e os amigos também são muito importantes nessa etapa. No dia da biópsia, Vanusa lembra de ter ido sozinha até a clínica, mas, chegando lá, uma de suas amigas já estava a espe- rando.

- Eu lembro que falei pro médico “Olha Dr. me desculpa mas não teve jeito, ela veio comigo, cheguei e ela já estava aí”. Então o médico olhou para mim e disse “É Vanusa isso é muito bom porque agora é a hora de você ser cuidada”. Pra mim aquilo acho que foi mais chocante do que a própria notícia do câncer, porque assim, eu não estou acostumada com isso, mas eu sei que em alguns mo-mentos você precisa de cuidados também.

Vanusa tem a companhia das amigas o tempo todo, ou, pelo menos, nos momentos um pouco mais delicados, como o dia que ela resolveu raspar os cabelos. Ela conta que na primeira quimioterapia conheceu a Susan, que lhe relatou que os cabelos estavam caindo e ela estava se desesperando, então Vanusa to-mou uma decisão, rasparia os cabelos com a intenção de encorajar a nova amiga. Ela estava na praia com as amigas e tinha marcado de dar adeus aos cabelos em Curitiba, até que uma das amigas disse que não havia necessidade dela se deslocar e que poderiam fazer isso ali mesmo.

Então a filha dessa amiga disse para ela se arrumar bem bo- nita que todas iriam naquele momento mesmo.

- Aí eu chorei – lembra Vanusa – veio um sentimento muito forte e eu chorei, mas aquele momento passou assim que lavei os

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cabelos e me despedi deles. (risos)

Chegaram no salão local, mesmo com o pesar nos olhos da cabeleireira, elas riram, conversaram e os cabelos foram sendo raspados.

- Acho que foi uma decisão muito boa, não sei como seria ver meus cabelos caindo, eu fiz a micropigmentação nas sobrancelhas, já comprei cílios postiços, mas deve ser triste ter essa experiência.

Hoje, quando acordei, pensei: estou mesmo careca! Le-vantei e vi no espelho uma mulher parecida comigo. Mas sem cabelos.

Demorei um pouco ali olhando pra mim, até me acostu-mar. De verdade, não acho que fiquei feia. Mas também não fiquei linda, como as pessoas estão dizendo. Sei que querem me animar. Eu agradeço a cada uma delas pelo carinho. Escrevo agora me sentindo forte. Gostan-do do meu novo visual que está combinado a grandes argolas e uma maquiagem bem leve.

- Trecho do depoimento escrito por Vanusa em seu blog –10 de janeiro de 2016

O tratamento de Vanusa deve durar seis meses com radiote- rapia. Ela também deverá passar por uma cirurgia na mama, mas não precisará retirá-la totalmente. Segundo os exames recentes,

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já foi possível notar que o tumor*, que se instalou na mama es-querda, não é mais perceptível clinicamente. E isso é uma ótima notícia, uma vez que a maneira rápida como o tumor diminuiu re-duz a possibilidade de metástase*.

Mesmo diante de notícias boas e a cobrança em se manter animada, é inevitável que um certo desânimo bata de vez em quan-do.

- Engraçado que nos momentos de desânimo e mau humor, eu mesma me cobrava uma atitude! Afinal, eu sei que esses senti-mentos não vão me ajudar em nada, né?

Quando Vanusa vê algumas pessoas que estão em um pro-cesso mais a frente do que o seu logo pensa “daqui a pouco sou eu”. Vanusa diz que não precisa se abandonar, principalmente as mulheres. Não precisa ficar se escondendo atrás de lenços como se fosse uma vergonha estar nessa situação. Ela conta que por di-versas vezes sai às ruas sem lenço, sem nada e que nota o quanto choca algumas pessoas, mas, mesmo assim, acredita que as pes-soas precisam se acostumar um pouquinho com isso.

- Há algumas vezes que essas pessoas nos olham e aquilo incomoda, principalmente por situações como essas, são cada vez mais comuns, as pessoas precisam se acostumar com isso.

Mesmo assim nada parece abalá-la.

- Eu me sinto muito privilegiada – disse ela – por poder fazer o tratamento, pelo plano em uma clínica e não em um hospital onde

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nós vemos muita gente morrer. Na clínica também vejo, pois a pa-cientes em todos os estágios, mas, mesmo assim, é um ambiente diferente.

Para contar sua experiência, Vanusa criou o Laços do Peito, blog que teve alguns de seus trechos destacados nesta história. Sua intenção é atingir o máximo de pessoas e que consiga de al-guma forma confortá-las.

- Comecei com o blog pois senti a necessidade de contar a minha história, tenho um retorno muito bom e acredito que de al-guma forma posso ajudar quem está em uma situação familiar.

No blog, Vanusa menciona a Quimioterapia do Amor, que nada mais é a família e amigos estarem sempre por perto, seja virtual ou pessoalmente.

- Sem contar as pessoas que estão se aproximando por con-ta do blog e me enviam mensagens muito animadoras. Tem sido muito especial!

De alguma forma o blog permite a ela criar laços às vezes com pessoas que nem a conhecem pessoalmente, mas que es-tão na mesma situação delicada. Ela encontrou forças contando a sua história e também ouvindo a história de outros. Com todo o retorno positivo que vem recebendo, ela também busca doações, como doações de lenços, aulas de Yoga grátis para pacientes do SUS e tenta articulá-las para que cheguem até os pacientes em condições menos favorecidas. Além disso tudo, recentemente Va-nusa também criou um grupo no Whatsapp, que todos os dias tem

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histórias novas.

- Não é fácil. Mas estou firme na paçoca! - risos

Vanusa sente que aos poucos vem retomado o controle de seu próprio corpo. Ainda há um caminho logo no tratamento, mas mesmo diante das dificuldades ela vem aprendendo com as lições que a vida está expondo. Por causa do tratamento, o cansaço e o desânimo às vezes tomam conta do corpo, mas mesmo assim não se deve entregar aos efeitos que algumas emoções provocam e por isso ela optou por manter o ânimo.

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ATÉ VOCÊ DIZER ADEUS

Por Marcio Galan Junior

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Atribuir um sentido à vida é uma tarefa que geralmente com-pete às religiões. Quando não se recorre a elas, aquele que não se contenta com respostas que considera simplistas demais para questões complexas da existência procura respostas na ciência. Às vezes, as respostas que a ciência encontrou até então também não convencem, e a solução é buscar um meio termo que se aproxime daquilo que se busca.

O médico veterinário Jânio Dalla Costa era uma das pessoas que misturava ciência e fé para atribuir sentido à sua vida terres-tre. Espírita por influência da família, Jânio sabia que a vida huma-na que ele tinha e a vida que os demais animais que ele estudava tinham, assim como a de todos os seres que tinham vida em seu planeta, unidades estruturais básicas, que são as células.

O curioso do caso das células é que elas possibilitam a vida de todos os seres, e só conseguem fazer isso por que elas têm vida também. As células, aliás, imitam a vida daqueles que elas possi-bilitam o viver. Ou talvez aqueles que têm vida em função delas é que imitam as suas vidas.

Assim como os seres vivos, as células nascem, crescem e até se reproduzem. E inevitavelmente morrem. Quando não morrem, ge- ralmente é porque estão doentes, e fazem doentes então aqueles que têm vida por meio delas.

Como as células provavelmente sejam pequenos exemplos do que é a vida daqueles que elas possibilitam o viver, é muito provável que as células possam amar, assim como fazem aqueles

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que vivem em decorrer delas.

Jânio amou uma mulher chamada Janete enquanto viveu. Na verdade, ele só pôde amar Janete durante menos de dez nos dos seus 62. Antes disso, ele provavelmente tinha amado sua primei-ra esposa, e com certeza amou seus três filhos, como amou seus irmãos e também seus pais. Arrisco-me a dizer que ele amou também a Medicina Veterinária, e os animais que pode tratar com os ensinamentos que tirou dela. Muitas outras coisas devem ter sido amadas por Jânio, mas eu que não pude conhecê-lo, me limi-to a falar do amor que ouvi que Jânio teve de acordo com o depo-imento de Janete.

Janete, que é natural de Florianópolis, conheceu o Jânio em 2005, quando veio a Curitiba assistir a uma palestra sobre edu-cação e por engano entrou em outra, sobre medicina veterinária, na qual Jânio era o palestrante. Ele tinha nascido em Concórdia, também no estado de Santa Catarina, mas passou a maior parte de sua vida em Apucarana, onde fez carreira como veterinário e assessor político. Quando conheceu Janete, tanto ele, quanto ela, já tinham três filhos. Ao todo eram seis, e todos eles estavam crescidos. O mais novo de todos era filho dela, o Lucas, que tinha na época 15 anos.

Eles se apaixonaram logo após aquele encontro. Era a época do Orkut e do MSN. Em pouco tempo, ela que teve antes um casa-mento de 20 anos, estava certa que a vida com Jânio seria mais colorida. Naquele início de namoro, Jânio fez Janete se sentir es-

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pecial e amplamente amada.

Ela não pensou duas vezes quando ele a convidou para morar junto com ela. Jânio a fazia rir e sorrir.

- Ele era muito divertido. Eu dizia a ele que eu nunca tinha rido tanto na minha vida como na época em que eu estive com ele -, ela lembra, também sorrindo.

O casal passou um ano em Apucarana, mas a cidade era pe-quena pra Janete, que vinha de uma cidade que era maior, e que tinha praia pra suportar o calor. Então eles vieram morar aonde tinham se conhecido. Jânio veio a Curitiba assessorar o então go- vernador Orlando Pessuti, que era seu amigo pessoal desde os tempos de faculdade.

Casados e em Curitiba, Jânio e Janete ficaram por seis anos. Ela me conta o quanto o marido era ativo, ágil, brincalhão e gentil. Eles nunca chegaram a discutir. Eles aprenderam a se amar depois do período que muita gente considera que a vida está feita e que não permite novas projeções. Na época, ela, com 36 anos, e ele, com 52, foram em busca da felicidade e se entregaram ao amor. Ela que sempre foi simpática ao espiritismo, mas que vinha de família católica, aderiu à religião do marido. O espiritismo a aju-dava a dar sentido a estes experimentos de contemplação da vida que Janete viveu com Jânio.

O amor faz com que a existência da vida somente por meio das células seja algo difícil de acreditar. Com o espiritismo, Janete

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acreditou que no lugar das células, a alma é que era a unidade es-trutural funcional básica da vida. Janete tinha entendido que não era possível entender a vida sem experimentar o amor, e as expli-cações biológicas para o amor de nada tinham a ver com o que ela sentia.

Em março de 2014, as células, aquelas que imitam a vida que por sua vez imita as células, começaram a adoecer no corpo de Jânio. Ao perceber os sintomas, Janete procurou Elisandro, médico psiquiatra e amigo da família. Jânio aceitou conversar com ele. No hospital, Jânio desabafou para o amigo. Disse que tinha medo de não poder estar mais presente nos próximos dias e que não queria que faltasse algo na vida de Janete. Elisandro entendeu que se tratava de um quadro de depressão e receitou um medicamento. Após três dias, Jânio piorou. Ele começou a ficar mais apático, mais desanimado.

Janete também acreditava que se tratava de uma fase ruim do marido e procurou elevar sua autoestima. Propôs uma viagem à Florianópolis. Jânio amava Florianópolis. Era a receita perfeita. Eles viajaram à capital catarinense procurando espairecer. Quando estavam no hotel, Jânio passou mal e caiu no banheiro. Preocu-pada, ela foi socorrer o amado e percebeu que o lado direito de seu rosto havia paralisado. Jânio disse que não era nada, mas ela percebia no seu comportamento que nem tudo estava normal.

Voltando a Curitiba, ela percebeu que Jânio estava ainda mais debilitado. Janete e Jânio subiram as escadas para o apartamen-to dos dois no Fazendinha. Ele abriu a porta e não reconheceu o

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apartamento:

- Amor, esta casa não é nossa!

Janete se assustou. Quase chorou, não sabia o que estava acontecendo com o marido, mas foi forte, e lhe disse:

- Não, amor. É a nossa casa sim. Olhe nossas fotos na parede, olhe as fotos das tuas netas, dos teus filhos, dos meus filhos.

Jânio recuou:

- Não, meu amor. A gente tem que ir ao nosso apartamento na Arthur Bernardes.

Janete se surpreendeu de novo. Jânio se referia ao primeiro apartamento do casal em Curitiba. Sua memória voltou ao início do casamento deles. Janete percebeu então que o problema de Jânio não se restringia a depressão. Ela ligou para a filha de Jâ-nio, Janaína, que morava em Apucarana. Como a família de Jânio estava toda em Apucarana, elas julgaram que seria melhor buscar ajuda médica por lá.

Chegando a lá, Gilberto - que também era médico neurologis-ta e conhecia Jânio há mais de 20 anos - conversou com o casal. Janete contou sobre o comportamento de Jânio enquanto o médi-co o observava. Jânio estava mais lento do que o normal. No meio da conversa, Jânio foi ao banheiro e Gilberto aproveitou a ocasião para dizer à Janete que, a julgar apenas pelo que viu, imaginava Jânio poderia ter um problema mais sério do que eles poderiam esperar. Falou com a autoridade de quem conhecia Jânio há mais

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de vinte anos e também de quem praticava a medicina há mais de quarenta. Sugeriu que fosse feita uma tomografia para identificar exatamente o que era.

Em Apucarana não havia um hospital com condições de re-alizar uma boa tomografia. O casal foi a Arapongas. Lá, em pou-cas horas, Jânio fez a o exame e já saiu com o resultado. Janete pegou o resultado das mãos de Jânio e foi pra casa. Leiga, ela poderia não entender a complexidade do resultado, mas leu a pa-lavra “maligno” e sabia que aquilo não era bom. Ela tentou retar-dar o momento em que Jânio fosse ver o resultado. Ela pretendia que viesse do médico a confirmação ou não de suas expectativas, mas ele exigiu o resultado em suas mãos assim que chegou em casa. Janete não conseguiu contê-lo. Quando abriu o envelope, ele levantou a cabeça, olhou para sua esposa e disse:

- Amor, eu tenho uma doença, e não é uma coisa boa.

- Não acho que seja grave -, respondeu Janete.

Com a autoridade de um veterinário, Jânio replicou:

- Mas isso é porque tu não estudaste os bichos. Se tivesses estudado, veria que nós e os bichos somos iguaizinhos.

A tomografia apontou um tumor maligno na região do cérebro. Este tipo de tumor age muito rápido. Jânio sabia disso e também sabia que com este diagnóstico, cada minuto era precioso, tanto para lutar contra a doença, quanto para aproveitar a vida.

Uma semana se passou e outro exame foi realizado, desta

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com outro neurologista, este de nome Humberto. Com os resulta-dos em mãos, Humberto disse que Jânio poderia operar para vi- ver mais, mas que morreria mesmo assim. Janete não gostou das palavras do médico. Jânio não se abalou ao ouvir aquilo. Ele tinha escolhido lutar e estava disposto a buscar a cirurgia de todo modo. Ele pediu à Janete para voltar para Curitiba. E eles voltaram no domingo.

De volta à capital, o casal foi em busca de um terceiro neu-rologista, desta vez para viabilizar uma cirurgia. O que atendeu a eles em Curitiba foi tão frio e direto quando era a cidade durante o final do outono. Disse que a cirurgia sairia por R$ 78 mil, e o casal não teria condições de arcar com aqueles custos.

Eles foram então a um hospital que é referência no Sul do país. Havia um neurologista bom por lá, como tinha recomendado o ex-governador Orlando Pessuti à Janete quando ela o procurou. Janete ouvia falar que “Curitiba era um ovo”, ela não acreditava. Curitiba maior que Florianópolis, e bem maior do que Apucarana, mas naquele dia ela descobriu que aquilo que diziam a ela era verdade, mas descobriu de uma maneira desagradável. O médico que atendia no hospital era o mesmo que os atendera dias antes em sua clínica particular. Quando viu Jânio de novo, o médico foi irônico e Janete não esperou sequer dez segundos para retirar o marido da frente do dele.

Mas pelo menos uma coisa Janete gostou deste médico incon-veniente. Na primeira consulta, ele recomendou um remédio que causava um efeito curioso nele, do qual Janete adorava. O medi-

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camento recuperava a lucidez de Jânio e mantinha este estado por cerca de três dias. Depois deste período, voltavam as debilitações, fraqueza e falta de memória. Era um ciclo que o fármaco permitia. Janete amava aquilo, porque durante os melhores dias, ela tinha a alegria e a energia de seu marido de volta.

Era maio e o neto de Janete iria nascer em Joinville. Seria seu primeiro neto, filho de Evandro. Entusiasmada com a chega-da de Felipe ao mundo, mas preocupada com o estado de Jânio, ela ligou para avisar Janaína e recebeu a notícia de que Juarez, o irmão mais novo de Jânio, viria de Francisco Beltrão para ajudar a cuidar de Jânio. Quando ele chegou, Janete tentou ensiná-lo a tirar e colocar Jânio da cadeira. As primeiras tentativas não tiveram sucesso. Ela com pouco mais de um metro e sessenta de altura conseguia levantar Jânio, que tinha mais de um e noventa - altura também de Juarez. Janete percebeu no sorriso leve de Jânio que seu marido estava aprontando uma pegadinha na família.

Juarez tentou mais uma vez e continuou sofrendo dificuldades. Janete então demonstrou mais uma vez e tudo deu certo. Juarez e Janete sabiam que com ela, Jânio tinha mais boa vontade. Mais do que isso, ela sabia que a birra de Jânio queria dizer uma coisa. Mesmo sendo um “gigante”, como define Janete, Jânio só confiava na delicadeza de sua pequena Janete para deixar seu corpo livre diante da gravidade. Jânio sabia que Janete não deixaria ele cair. Aos trancos e barrancos, Juarez conseguiu fazer Jânio sentar na cadeira.

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Quando Janete voltou de Joinville, encontrou Jânio revigora-do. Foi ele que a recebeu na porta e a surpreendeu:

- Olhe, amor, estou bem! Estou curado. Já posso até andar de skate.

Janete sabia que Jânio tinha tomado o remédio indicado pelo neurologista e que aqueles dias eram os dias do “ciclo bom”. Jânio não chegou a ler a bula, ele tinha tomado o remédio pela primeira vez, e acreditava estar curado. Três dias depois ele começou a de-lirar ocasionalmente de novo.

No dia 6 de junho, de volta a Apucarana, Jânio foi interna-do. Ele não faria quimioterapia, mas a cirurgia que removeria seu tumor exigia que ele raspasse a cabeça. Janete e outros ami-gos o acompanharam. No hospital, Jânio começava a apresentar dificuldades para se comunicar verbalmente. Nos primeiros dias de UTI, pediu apenas para que Janete não o deixasse sozinho nesse perí- odo.

Nos primeiros dias, ele ficava aflito e se frustrava quando pre-cisava se afastar de sua família. Depois, ele entendeu o funciona-mento da sua nova rotina. Todos os dias, das 11h às 17h, Jânio sa-bia que Janete, Janaína e Juarez viriam. O médico disse que nunca havia visto algo igual. Não havia relógio na UTI, mas nestes dias, minutos antes do horário da visita, Jânio ficava atento para escutar os passos daqueles que ele amava chegando. E ele aproveitava a tarde inteira para tocar a mão da mulher e da filha. O médico dizia que após a visita, o semblante de Jânio mudava. Jânio se prepa-

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rava para dormir sorrindo, porque a presença de sua família tinha tornado o dia mais feliz.

No dia 12 de junho Janete preparou um cartão e levou ao seu eterno namorado. Jânio estava em um dia incomunicável, mas percebendo o gesto de sua amada, gesticulou o suficiente para que todos pudessem entender que ele precisava retribuir. Enten- deram então que Jânio precisava de uma caneta e um papel. Com dificuldades, Jânio fez alguns rabiscos e entregou à sua esposa. O que havia no papel era ilegível, mas Janete juntou aquelas linhas desconexas com a mensagem que havia nos olhos de Jânio, e en-tendeu que ele lhe dissera um singelo “Eu te amo”. Janete guardou aquele cartão.

Sempre que Jânio apresentava uma melhora, pedia beijos à Janete. E Janete lhe enchia de beijos, na testa, na bochecha e nas mãos, assim como fazia Janaína. À Janete, Jânio gesticulava, pedindo beijos não só no rosto, mas também na boca. O médi-co se admirava com o que via. Percebendo que a mangueira que alimentava Jânio machucava a boca de seu amado, Janete levou uma pomada escondida dos médicos.

No dia seguinte, Jânio já estava melhor e conseguia se comu-nicar. Quando Janaína e Janete estavam na UTI, Jânio escutou a filha dizendo para Janete que ela poderia sair para fazer as unhas, e que lhe buscaria às três horas. Ao ouvir isso, Jânio interviu:

- Amor, às três horas, nós teremos um compromisso!

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Surpresa, Janete questionou seu amado:

- Sério, amor? Que compromisso?

- Nós vamos fazer um lanche!

- É mesmo?

Janete e Janaína acharam graça. A filha ainda perguntou se poderia ir junto. Jânio olhou com o canto dos olhos e respondeu.

- Claro, que não, né. Vai ser um compromisso romântico.

As duas não se continham. Sorrindo não só com a boca, mas também com os olhos, Janete me disse:

- Tá vendo, Junior, como sou chique? Dentro da UTI, o homem queria ter um jantar romântico comigo!

Eu retribuí o sorriso com os olhos, e naquela altura, eu, que não pude conhecer o seu Jânio, tinha entendido que a história dele, narrada a mim por Janete em ordem cronológica, estava no seu ponto mais crítico, e toda a tensão da doença se dispersava e se tornava figurante diante da beleza daquele momento.

No outro dia, Jânio já não conseguia abrir os olhos nova-mente. E de novo não podia se comunicar. Com o quadro estável, os médicos decidiram levá-lo para o quarto às 13h. Jânio estava consciente, mas não conseguia falar. Às 21h apareceram sangra-mentos na urina e nas fezes. Optaram por levá-lo novamente para à UTI.

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No dia 27 de junho, por volta das 15 horas, Janete pediu ao mé- dico que acompanhava o seu caso para que levasse Jânio de vol-ta à UTI, visto que na última vez que ele tinha sido internado ele melhorou. O médico disse a ela que gostaria de poder fazer isso, mas ali já não era mais uma questão ética, e sim moral. Janete não entendia o que o médico quis dizer naquele momento.

Jânio permaneceu no quarto, portanto. O médico deixou Janete acompanhá-lo no quarto. Estava só ela, que continuava observando Jânio e via sua dificuldade para respirar.

Por volta das 17 horas, ela escutou na sala ao lado um choro bem forte. Ela me relatou que nunca foi uma pessoa curiosa, mas que aquilo chamou sua atenção. Foi então à sala ao lado e observou as lágrimas de uma mulher que lamentava a morte do marido naquele exato momento.

- Daqui a pouco és tu – pensou sem querer, me contando, di-minuindo a velocidade das palavras.

Eu ouvia o relato de Janete e observava seus olhos. No início era eu que, com certa timidez, fugia dos olhares dela, mas agora era ela que não conseguia concentrar seu olhar em mim. Enquan-to relatava, ela olhava para um lado e para outro. Eu ouvi aten-tamente, olhando em seus olhos como nunca tinha antes olhado durante toda a entrevista. E ela disse nestas palavras:

- Depois daquilo eu corri em direção ao Jânio. Fiquei do lado dele. Fiquei segurando a mãozinha dele. E ele abriu os olhos e fi-cou olhando pra mim ...

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Ao terminar de dizer isso, ela fez uma pausa que durou exatos doze segundos. Virou o rosto e suspirou. E mudou a entonação de sua voz. E ali eu já tinha entendido tudo. Seus olhos ficaram úmidos e alguns segundos depois os meus também ficaram. Havia uma TV ligada no compartimento ao lado. Algumas pessoas con-versavam e só fui capaz de perceber isso decupando a gravação. Ela se emocionou discretamente e levou suas mãos ao rosto. E eu me envergonhei por me emocionar também. Eu nunca conheci Jânio. E eu não conhecia Janete antes do relato. Quando fui en-trevistá-la, eu já sabia do desfecho da história. E antes de tudo, por um momento, eu tinha me sentido um abutre por contar a história neste livro. Mas Janete jamais encarou a ideia desta forma. Janete sabia que me ajudaria com seu relato, e sabia que sua história era linda. E eu descobri aquilo no momento em que o seu silêncio prevaleceu durante aqueles doze segundos que narravam a parte mais bonita da história, que não poderia ser verbalizada.

Emocionada, ela voltou a falar e sua entonação de voz já era outra do que a dos segundos que antecederam. Ela lembrou que seu amado tinha um olhar de quem pedia socorro. Disse que, in-conscientemente, chegou perto de seu rosto e lhe disse:

- Meu amor, se tu tiver que seguir teu caminho, segue. Eu vou dar conta.

E naquele momento, Jânio respirou pela última vez.

O amor levou Jânio a resistir até que Janete autorizasse sua partida. Jânio não poderia ir sem ouvir aquilo de Janete. Jânio con-fiou em Janete desde o início do tratamento.

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A beleza daquele relato me fez pensar que naquele momento seu corpo de um metro e noventa e três de altura era uma grande embarcação dando adeus ao mundo material.

Todos os que embarcavam estavam ansiosos pela partida. As células tumorais no cérebro de Jânio já tinham recebido o recado, e sabiam que aquele era o momento. Elas diziam aos demais órgãos que o embarque estava atrasado. Os demais órgãos estavam se convencendo disso e davam tchau, lá do alto do navio, aos que fi-cavam em terra firme. O coração era o comandante e ele também pressionava o último marujo a se despedir logo de alguém que não embarcaria. Este marujo influente era alma de Jânio, que só se sentiu em paz para se despedir de Janete quando aquelas palavras permitiram a sua passagem. E Jânio seguiu seu caminho em paz, sabendo que sua amada também ficaria.

Janete continuou morando em Curitiba. Ela só tinha o marido na cidade, e a maior parte das pessoas próximas dela hoje vivem em outras cidades. Ela manteve o hábito de frequentar centros espíritas depois que Jânio partiu.

Jânio também está bem. E ela diz isso não só porque acredita que ele esteja bem, mas porque ele mesmo contou isso à ela. No centro espírita, em uma das sessões, Jânio pediu para que Janete ficasse em paz, porque ele também estava. Jânio contatou Janete por meio de um corpo feminino, mas a voz que lhe deu o recado era masculina.

Janete sabe que o amor justifica a vida que existe depois,

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porque ela foi mãe três vezes e avó uma vez. Ela foi capaz de amar seus filhos antes do nascimento deles, e sabe que eles vão amá-la depois de sua morte, assim como ela continua amando Jânio. O amor não cabe dentro da vida que existe por meio das células.

Se o amor prevalece por meio dos vivos por aqueles que ainda não tiveram vida e por aqueles que já a tiveram e agora já não tem mais, a história de Janete, sem exigir adesão, possibilita a reflexão de que, talvez o movimento contrário também aconteça.

Há quem não acredite, nem no antes, nem no depois, e nem no nada, mas até mesmo estes são capazes de amar.

Jânio se foi porque suas células adoeceram e causaram sua morte. As mesmas células que imitam a vida e que por ela são imitadas. Mas sua alma está mais saudável do que nunca.

As últimas palavras de Janete para Jânio não tinham efeito farmacêutico para fazer seu corpo descansar eternamente. Eram apenas palavras. Não eram venenosas, e também não tinham ne- nhuma propriedade química ou biológica. Eram apenas conjun-tos de letras que puderam ser compreendidas por ele quando fo-ram pronunciadas. Não foram elas que destruíram o organismo de Jânio. Isso as células tumorais já tinham se encarregado de fazer, e provavelmente já tinham completado o trabalho minutos antes.

O que as células tumorais não tinham conseguido destruir foi o amor de Jânio por Janete. Este se recusou a deixar Jânio se desligar daquele corpo por mera ação biológica. Naquele momen-to, só o amor dela era digno que permitir o seu último suspiro em

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A HISTÓRIA QUE DEVERIA SER CONTADA

Por Fernanda Bertonha

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Há quem diga que as redes sociais afastam as pessoas. De-pois da experiência que será contada a seguir, vejo que elas apro- ximam – e aproximam para o bem de indivíduos com propósitos em comum.

Publicamos no “grupo das Alices”, um grupo nas redes soci-ais composto só por mulheres, qual era o propósito do projeto. Logo chegamos a alguém que quisesse tanto quanto nós ter uma história compartilhada em um livro.

De um lado, um grupo de cinco estudantes de jornalismo à procura de histórias para a produção de um livro-reportagem. De outro, uma mulher em busca de alguém que pudesse contar a tra-jetória vivida por ela e seu filho de 11 anos.

Depois de pouco mais de duas horas de viagem, chegamos à Irati, cidade paranaense que abriga a história de Angelita e seu filho Andrey Lucas e também a maior imagem do mundo de Nossa Senhora das Graças.

Ao chegarmos já notamos o típico cenário de cidade do inte-rior: os portões abertos e uma mesa ao lado de fora, com a dis-posição de cinco cadeiras. Três para nós, uma para Angelita e outra para sua mãe. Aos fundos do quintal, um daqueles sofás antigos, estampado com flores e listras azuis e brancas, que nunca deixam de ser os mais confortáveis (principalmente para os animais de es-timação). No canto esquerdo do sofá, uma cartela de cigarro e um isqueiro amarelo.

Em nossa mesa, duas garrafas de água de plástico estampa-

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vam a logotipo “Milagre”. Talvez este um sinal de que a história que seria compartilhada era cheia de sagacidade. A aparência de Angelita nos trazia a sensação de leveza. Três brincos redondos alinhados em suas orelhas, mechas amareladas e sobrancelha fina. Ela usava uma bata bem fresquinha, ideal para abrigar a pequena Natália, que já crescia em sua barriga há sete meses. Usar roupas mais leves durante a gestação não era novidade: a alternativa já havia sido adotada quando quem ocupava a barriga era Andrey, seu irmão mais velho.

O leve coração de menino

- Em 2009, a gente ia com certa frequência na igreja. Andrey tinha uma bicicleta. Bem novinha a bicicleta dele. Nessa fase, apareceu um terreno novo para comprar e o barracão da igreja era alugado. Então o pastor lançou um desafio, pedindo para que cada um ajudasse com um tanto. Além disso, ele também es-tava aceitando sugestões de ideias para arrecadação do dinheiro necessário para a compra, como festas, por exemplo. Estava todo mundo quietinho na igreja e o Andrey levantou. Ele foi o primeiro a levantar a mão e eu como mãe já pensei: “vixi, lá vem bomba”. Ele olhou para mim com aquele rostinho e bom, eu não falei nada. Não sabia o que ele ia falar. Pensei: “ele vai dizer que vai dar al-guma coisa e no caso eu e o pai vamos nos responsabilizar. Tudo bem”. Aí ele levantou e o pastor chamou ele para ir lá na frente e perguntou:

- E aí Andrey, tem alguma ideia?

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- Não. Mas eu quero ajudar. Quero ajudar com 100 reais, respondeu ele.

O pastor logo disse:

- Olha só, que beleza, 100 reais. Pode ser, pai e mãe?

- Nós concordamos, aham. Pode né? – disse Angelita.

Foi então que Andrey pegou no microfone e disse:

- Não, mas eu não tenho dinheiro. Por isso eu quero já falar aqui, que eu tô colocando a minha bicicletinha à venda. Eu não tenho cem reais, mas eu tenho a minha bicicleta. Eu sei que ela vale mais, mas quero vender por R$100. Tem alguém aí que quer comprar? Nem entreguem o dinheiro para mim, deem direto para o pastor.

Nesta época, Andrey havia completado há pouco sua primeira década de vida.

Angelita prossegue:

- A igreja inteira ficou abismada com o gesto. Isso foi algo que não veio do nosso coração, partiu do dele. Obviamente nós ajuda-mos e não deixamos ele vender a bicicletinha. Mas não fez muita diferença.

Duas semanas depois o casal foi a um pesque-pague e levou a bicicletinha para ele brincar, já que lá era um local de bastante espaço. Ele ficou brincando até que veio um menininho:

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- Posso andar um pouco na sua bicicleta?

- Pode, disse ele.

- Aí o Andrey abandonou a bicicleta e daqui a pouco o menino veio devolver – disse Angelita.

- Toma sua bicicleta.

- Não, pode ficar.

- Eu como mãe não falei nada, mas fiquei pensando, como? Mas ele não demorou muito para se justificar:

- Ah mãe. Não era nem para estar comigo essa bicicleta. Você deu o dinheiro na igreja, mas era porque eu ia vender ela. E eu já sabia que essa bicicleta eu não ia ter mais.

Ele deu a bicicleta.

Alguns meses depois, em outubro, Angelita comprou uma bici-cleta nova para ele. Uma dessas grandes, com suspensão e tudo. Na época, estavam pavimentando as ruas e ele não pode usar.

- A bicicleta continua aqui e ele não teve oportunidade de usar. Mas não tem problema, ele nunca se apegou aos bens materiais.

Angelita conta que até os seis, sete anos da vida de Andrey, sempre trabalhou fora. Ele ficava em creche, na escolinha, e em outra época sua mãe cuidava dele. Dos sete anos para cá, ela e o esposo montaram uma empresa, o que tornou a agenda de Ange- lita mais flexível. Com mais tempo para ficar com ele, ela levava e

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buscava na escola, nas festinhas, e o programa preferido dos dois era ir à piscina.

- Às vezes ele dizia que não queria ir para a escola. Aí eu adiantava as minhas coisas, avisava o pai dele e a gente ia na piscina. Eu nem gostava de entrar na água, mas adorava ver ele brincando.

Havia uma moça que cuidava da lanchonete da piscina onde Angelita e Andrey costumavam passar o dia. Geralmente, eles be-biam água, refrigerante, faziam um lanche. Angelita às vezes até conseguia reunir as amigas para tomar uma cervejinha. Certa vez, na hora de acertar a conta ao final do dia, a moça disse:

- Olha, eu não queria te interromper. Mas tem nove coxinhas aqui na conta de vocês.

- Aí eu chamava o Andrey e ele vinha. “Filho, você comeu nove coxinhas”?

- Não mãe, eu comprei para os ‘piás’.

O reconhecimento do quadro

Angelita se recorda de uma história que exala uma das princi-pais qualidades do garoto: a preocupação com o próximo.

- “Certo dia cheguei na escola e ele estava só de meias. E meias imundas de sujeira, porque ele estava jogando futsal na quadra só com elas. Ele entrou no carro e eu logo perguntei”:

- Andrey, porque você tirou o sapato e tava jogando futebol

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de meia?

- Ah mãe. Eu dei meu tênis – respondeu o garoto, com total serenidade.

- Deu para quem?

- Ah, para o fulano lá.

- Por que, filho?

- Ah mãe, porque me deu uma dó. Às vezes tá o maior frio de manhã e ele chega de chinelo Havaianas. E eu sei que vou entrar aqui no carro e descer só na frente de casa. E bom, lá em casa eu sei que tenho outros sapatos, né?

Pouco depois do aniversário de 11 anos de Andrey, em 23 de janeiro de 2010, algumas coisas estavam para mudar: o que não incluía sua essência de justiça e bondade.

Nesta data, ele teve uma forte febre em meio ao verão. An-gelita o levou em um plantão, em um domingo à noite: essa foi a única vez em que foram ao hospital 24 horas da cidade. O primeiro diagnóstico foi de uma virose – mas os médicos disseram que não havia necessidade de preocupação.

Durante a semana, um exame de sangue foi realizado e seus resultados foram integralmente positivos. O médico examinou a garganta, ouvido e perguntou se ele tinha diarreia, na tentativa de diagnóstico de uma possível infecção. Não era nada. E assim se passou um mês e a ida a vários pediatras. O anti-inflamatório e an-

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titérmico aliviava a febre e o garoto melhorava. Mas era só finalizar o ciclo para que a febre – e as visitas ao médico – voltassem.

- Ele começou a tomar antibióticos. Tomava por 3 ou 4 dias e eu não via aquela melhora que você vê na criança ou até mesmo no adulto, que é quando a febre cessa e você já não sente mais a necessidade de tomar analgésicos. Eu não via isso nele, e então, levava em outro médico. Eu assumo que levei em alguns médi-cos bem ‘dinheiristas’. Eles internavam, mas não investigavam. Eu pedia tomografia, ressonância, e a resposta era: “ah, não vamos expô-lo à radiação sem necessidade”. Mas eu como mãe conhecia meu filho pelos olhos, né? A criança que gosta de comer alguma coisa e de repente não quer mais, você já fica meio assim. Ele gostava de jogar videogame, de brincar, esse tipo de coisa, e já não queria mais.

Nessa época, Andrey foi internado. Passou por avaliação de médico otorrinolaringologista e teve o diagnóstico de uma sinusite, posteriormente operada. Tais etapas foram necessárias, mas ainda não eram a justificativa do problema.

O corticoide* que ele tomou no pós-cirúrgico da sinusite aca-bou mascarando o diagnóstico que viria a seguir, e a impressão era de que ele finalmente estava bem. A sensação durou uma semana, até o fim do ciclo do medicamento. De sexta para sábado a me- dicação foi finalizada, e no mesmo dia, a febre voltou pior do que antes – junto com o aparecimento de ínguas na região do pescoço.

Angelita e a mãe foram para Curitiba e o primeiro pediatra a

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analisar Andrey foi o médico Pujol, o mesmo que a tratava quando ela era mais nova, ainda em Irati.

- Eu fui no desespero, em uma segunda-feira de manhãzinha, sem marcar consulta nem nada, dizia ela.

A partir das 8 horas da manhã, Angelita começou a ligar para o número pessoal do médico, na tentativa de um contato imediato. Felizmente, foi bem-sucedida: o pediatra os atenderia no mesmo dia, no final da tarde.

- Próximo das 17h30 o doutor nos atendeu. Ele examinou o Andrey e todos os exames que eu levei. Em seguida, pediu para que a avó saísse com o Andrey, com a desculpa de que o dia esta-va propício para tomar um sorvete.

O pediatra prosseguiu com as palavras que Angelita temia: “olha mãezinha”. Segundo ele, o pequeno havia sido diagnosticado com um tumor. Ou melhor, vários. Para confirmar ele socilitou um exame, já que os sintomas também poderiam indicar uma tuber-culose.

- Nesse momento, eu fiquei sem chão. O doutor achou que ele já estava com metástase*, ou seja, com o câncer espalhado em vários lugares, inclusive, no cérebro.

No mesmo dia, Angelita foi encaminhada para uma clínica, onde deveria fazer um exame de ressonância. O médico ligou para o local e marcou-o para a hora seguinte. Diante das surpresas, li-gou para o marido e contou o que havia acontecido:

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- Olha, estamos indo em uma clínica fazer exame porque o pediatra falou que ele está com um tumor espalhado pelo corpo. Mas ah, também pode ser uma tuberculose ...

Sem nem terminar de ouvir, ele desligou o telefone na cara de Angelita e dentro de duas horas estava em Curitiba. Foi só o tem-po de ir à clínica, fazer o exame e esperar um pouco para que se encontrassem. Durante a noite, a tentativa foi de fazer o Andrey comer. O casal também ligou para um flat já conhecido, onde pas-sariam a noite.

No caminho para o flat, o médico ligou e Angelita lem-bra-se com clareza de suas palavras: ele sempre a chamava de “mãezinha”. Neste momento, ele também a aconselhou a não ter nenhum tipo de restrição com o garoto. O que ele quisesse comer ou fazer, estava permitido.

Naquela noite ninguém dormiu. O sistema nervoso central do Andrey já estava alterado. Ele dormia e acordava do nada gritan-do, assustado, tendo delírios. Ele queria tomar banho e de repente já não era mais, ficava com calor, com frio ... ele não parava.

No dia seguinte, o casal e a avó seguiram com o garoto à clíni-ca. O médico afirmou que ele não estava com tuberculose, mas nem com o tumor por ele imaginado. Mesmo assim, o caso era grave e Andrey deveria ser internado o quanto antes. Ele logo li- gou para o diretor do Hospital Pequeno Príncipe (seu amigo), soli- citando o internamento imediato do garoto, que deveria fazer uma cirurgia de biópsia* para descobrir qual tipo de linfoma* portava.

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- Chegamos no hospital, o internamos e já marcamos a cirur-gia para o outro dia pela manhã.

No terceiro dia o resultado veio e o linfoma identificado foi o linfoma de não-hodking*, diagnosticado em homens e muito rara-mente em mulheres. Extremamente agressivo, ele cresce em uma velocidade muito maior do que a quimioterapia é capaz de com-batê-lo.

A continuidade do protocolo

Quando Andrey descobriu a doença que tinha, por uma amiga dos familiares, ele afirmou que não contaria à mãe ou a avó. Não diria a mãe pois ela é “muito estressada e surtaria”. Já para a avó, o motivo foi “ ela já é muito velhinha”. Ele lia na internet sobre a temática câncer e, uma vez, pesquisou a palavra “quimioterapia” no Google. Depois disso, ele dizia aos familiares que não havia porque se preocupar, afinal, hoje os índices de cura com o trata-mento já eram altíssimos.

No quarto dia, início de março, ele começou a quimioterapia no Pequeno Príncipe. A melhora foi instantânea: ele voltou a co- mer e estava cheio de energia.

- Esperança, esperança, né – repetia ela.

O protocolo do tratamento de Andrey saiu e ele precisaria fazer seis sessões de quimioterapia para combater o linfoma, sen-do de sete a dez dias cada uma delas. As sessões seriam tão agressivas que o próprio médico aconselhou o casal a ficar próxi-

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mo ao hospital, uma vez que, nos dias seguintes ao tratamento, os efeitos colaterais variavam entre febres à possibilidade de paradas cardíacas ou hemorragias internas.

Felizmente Angelita e seu marido tinham um padrão de vida alto, possível graças à empresa de fios que supriu o tratamento do garoto do início ao fim.

- Nós internamos o Andrey no particular. Tivemos muito medo de tentar o SUS. Não tínhamos plano de saúde, mas graças a Deus, tivemos condições para mantê-lo bem durante o tratamen-to. Ao total, gastamos mais de R$300 mil. Pagamos as sessões de quimioterapia, o sangue, exames, consultas, o quarto, tudo. Só não pagamos pela UTI, graças ao apoio da assistente social do hospital.

O período foi delicado e qualquer conforto a mais já era uma vitória para a família. O hospital era pago por semana: R$5, R$10, R$20 mil reais era a média gasta a cada sete dias, principalmente com as transfusões sanguíneas.

Em meio ao tratamento, por vezes era necessário fazer algu-mas compras pessoais. A avó se recorda de um episódio:

- A Angelita saiu, comprou um sapato e uma blusa para ela e um tênis para ele. Chegando no hospital e mostrando as coisas, o Andrey olhou e perguntou:

- Cadê o presente da vó?

A mãe respondeu:

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- Eu ia trazer um sapato para a vó. Mas a vó precisa escolher do jeito dela, então eu deixei para ela escolher.

- Mas quanto que é o sapato para a vó?

- R$49,90, filho.

- Eu tenho R$50 da minha mesada na minha carteira, vó. Vá e compra para você já que a mãe não comprou nada. Quando for me mostrar, coloque aquela calça nova e aquela blusa que eu gosto, daí desfile para eu ver.

Todo mês Andrey fazia os exames da medula* que felizmente, não foram afetadas pelo câncer. A doença estava sob controle e o organismo de Andrey finalmente livre. Porém, os efeitos colaterais da quimioterapia foram os responsáveis pela contínua agressão aos órgãos.

Assim, Andrey foi ficando cada vez mais fraco. Na última ses-são, os médicos estavam em dúvida entre aplicar a quimiotera-pia ou não. Mas, pelo linfoma ser extremamente agressivo, era necessário seguir o protocolo com cautela: ele poderia voltar a qualquer momento, já evoluído em uma metástase.

- Fomos tratando e seguindo o protocolo. Março, abril, maio, junho, julho. Em julho, fizemos a 5º sessão de quimioterapia, seguindo o protocolo normal. Aqui ele já não estava legal, bem mais fraco do que nas outras. Mais quieto, como se estivesse en-tregue. Os leucócitos* estavam no limite para realizar a quimiote- rapia, mas o risco era necessário. Para piorar, essa quimioterapia

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era a mais forte: a MTX, famosa ‘quimio vermelhinha’, como eles a chamavam. Fomos para casa, ele teve febre e voltamos para o hos-pital. Ele ficou internado durante duas semanas e foi só piorando. O rim e o fígado estavam intoxicados, a sola dos pés e palmas das mãos começaram a descolar, exatamente por conta da toxidade da morfina. A essas alturas, ele vivia totalmente dopado de morfina, o único medicamento que aliviava sua dor. Quando a doutora vinha para o quarto, ele pedia: ‘Doutora, eu quero o remedinho. É um sono tão gostoso’.

Durante a internação, houve uma preparação para que o garoto voltasse à UTI. Enquanto a mãe, o pai e a avó acompa- nhavam o enfermeiro chefe que lhe dava um banho, Andrey teve uma parada cardíaca. Foram 20 minutos para fazer ele voltar, que passaram como uma eternidade. Ele voltou em coma, quase que irreconhecível, direto para a UTI.

Neste meio termo, o Andrey estava com o rim bem compro-metido e precisaria se submeter a uma diálise. Antes do proce- dimento, a mãe precisou assinar um documento autorizando sua realização, uma vez que o garoto estava com o número de plaque-tas muito abaixo da média: de milhares que seria o normal, com apenas 80. O risco de uma hemorragia interna era extremamente alto.

- Fiquei lá com ele na UTI. Nessa época, fiquei três dias sem tomar banho, sem escovar os dentes. Ele não tinha reação nenhu-ma. Na última noite dele na UTI, a enfermeira me disse que eu de-veria entregá-lo. Que eu tinha que pensar nele, e não só em mim.

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Os médicos alertavam que as sequelas seriam sem dimensões: ele já não enxergaria, talvez não se movimentasse mais. Sempre cheio de energia, será que ele gostaria de viver assim? Foi assim que eu decidi que eu o entregaria.

- “Filho, a mãe deixa você ir”. Ah, ele era muito obediente. Bastava eu olhar para ele e ele já sabia o que deveria ser feito. “A mãe deixa você ir, a mãe vai ficar bem”. Depois disso, ele mexeu o dedinho da mão. Eu já não podia fazer carinho nele, pois a pele estava descolando. Foi assim que eu tive a confirmação de que ele não queria mais ficar aqui. O médico disse que seus batimen-tos cardíacos e oxigenação do sangue não estavam estáveis e me mandou para casa.

Angelita foi para casa e afirma ter chegado lá amortecida. Sentiu uma paz inexplicável. “Parece que eu estava dopada”. Ela já não bebia água do bebedouro e de lugar nenhum. Ela não permitia nem que seus familiares lhe abrissem garrafas de água de plásti-co. O medo de que alguém tentasse lhe dar remédios para dormir prevalecia.

- Era só eu e Deus. Eu era responsável por ele, e Deus por mim.

Neste dia, sua mãe lhe deu um banho. “Eu acho que fedia, não sei”. Mesmo com a tentativa da mãe, ela não queria colo-car o pijama, pois acreditava que a qualquer momento poderiam precisar dela no hospital. Se deitou com a roupa que estava e inexplicavelmente, acabou apagando. Perto das 3 horas da manhã

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o telefone do apartamento tocou. Era do hospital e a presença do pai, da mãe e da avó foram solicitadas. Os três tomaram um táxi e foram rumo ao hospital.

- Chegando lá, o médico me chamou na sala dele. Ele suava, estava com uma roupa azul, de UTI, inteira molhada de suor. Eu perguntei, o que aconteceu doutor? Como foi o procedimento?

- Mãezinha, nós fizemos o possível.

Logo em seguida, a mãe foi visitá-lo e notou o seu semblante. Ele estava sem esparadrapos, aparelhos, nada.

- Ele me passou muita paz nesse momento. Ele ainda estava quentinho. Eu não conseguia acreditar. Mas, na mesma hora, me vinha uma paz que hoje em dia eu sei que era de Deus. Eu não consigo lembrar o que eu pensava. Mas eu sentia uma paz enorme por ele. Eu sabia que minha dor começaria agora, mas a dor dele acabava ali – tanto a física como a emocional.

- A avó cuidou de tudo em relação ao velório. Eu não queria ter feito. Me lembro de uma vez que um conhecido faleceu em Irati e ele disse: “ah eu acho uma bobagem fazer velório. Ficar o dia todo olhando para o morto. O morto é só o corpo que está ali, não tem mais nada”. Ele pedia para ser cremado, mas não consegui-mos por conta da burocracia.

O destemor nos traços da escrita

Angelita começou a escrever sobre o filho. Ela queria contar algumas de suas histórias, principalmente para mostrar sua edu-

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cação e bondade. Mas, não foi muito bem-sucedida e os julgamen-tos fizeram com que ela abandonasse a ideia.

- Eu queria expor, mas poxa, eu nem sabia escrever direito. E nem sabia o material. Produziria o que? E para quem? Quem é o Andrey? Para mim ele é importante né, mas e para os outros? Mas quando a sugestão de contar a história dele em um livro veio, eu tirei a ideia da gaveta.

Para Angelita, ser a mãe do Andrey foi um presente.

- Deus me confiou cuidar dele por um tempo. Eu não vejo que ele teve só 11 anos, mas muito mais. Foi uma honra, um privilégio fazer tudo o que eu pude por ele.

E quando a questionamos sobre o maior e mais importante aprendizado desta história, Angelita não pensa duas vezes para responder:

- Ah, o amor né? O amor que eu sempre tive por ele e ele por mim. Foi isso que nós conseguimos dar para ele nos últimos meses, além de segurança, carinho. O Andrey era de muita fé. Eu nunca fui assim, eu aprendi com ele. Então, o aprendizado foi o amor. O amor de uma maneira geral: o amor pelos outros, o amor de ajudar o próximo e até o amor pelos bichinhos (animais de es-timação).

Talvez agora a simbologia das garrafas com a logotipo “Mila-gre” estivesse mais clara para mim. Andrey soube viver cada se-gundo do milagre que explica a vida de cada um. Ela pode durar

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oitenta ou cem anos. Pode ser composta por experiências de todos os tipos. Mas também pode durar onze, desde que com fartura de sabedoria. Esse foi o milagre de Andrey.

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o segredo é paciência

Por Mônica Seolim

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- De que cor está a minha língua?

- Bem vermelhinha!

- Ah que bom, do jeito que eu queria!

Esse diálogo aconteceu no quarto 307 do Hospital Erasto Gaertner, em Curitiba, no dia 4 de setembro de 2015, entre uma mãe, que queria saber como estava a sua boca após beber um refrigerante de framboesa, e seu filho, concentrado em aproveitar o tempo ao lado dela. Para saber como se chegou aqui, voltemos nove anos no tempo.

Junho de 2006, Curitiba, consultório do ginecologista Antônio Lopes Moutinho Neto. No espaço pequeno, com mobília antiga, a decoração é formada por livros enormes de medicina, a maioria deles escrita em inglês. O médico combinava com o ambiente: já de bastante idade, vestido de roupa social arrematada por um co-lete de lã. Isso sem contar com o sobretudo preto que ia até seus pés e o chapéu também preto, ambos pendurados em um suporte.

- É, dona Aninha, vamos ter que retirar a mama.

Dona Ana de Fatima, 44 anos, estava acompanhada pela filha caçula, Mônica, de onze anos, e uma sobrinha, Elaine, 23 anos. Tinha ido ao médico para saber o resultado de uma biópsia de um nódulo na mama direita, realizada cerca de 20 dias antes. Ana havia encontrado a saliência quando podava uma árvore no jar-dim de casa e um pedaço de madeira caiu dentro da sua blusa. Ao colocar a mão para tirar, ela sentiu algo que não estava ali antes. O

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diagnóstico certamente não foi o mais esperado, pois o nódulo na verdade era um tumor cancerígeno*, que precisaria ser extirpado.

Quando o médico disse isso, imediatamente tudo que se ouvia dentro do consultório eram os gritos da filha de Ana.

- Não, não, não pode ser. A minha não tem câncer.

- É melhor tirar a menina da sala – ordenou o médico à so-brinha de Ana, que levou a prima para o lado de fora e a deixou sendo consolada pelas outras pacientes que esperavam para ser atendidas. Duas delas já haviam enfrentado o câncer, e se encar-regaram de convencer a menina de que tudo ficaria bem.

Cerca de 20 minutos depois disso, Ana saiu de dentro do con-sultório com um largo sorriso no rosto. A primeira coisa que fez foi ir em direção à filha e acalmá-la:

- Vamos, filha! Não precisa chorar não, a mãe está bem, vai ser só uma cirurgia, mas isso não é nada!

Quando chegaram em casa, mãe e filha, depois daquela con-sulta que mudaria a vida de toda a família, a atitude de Mônica foi correr para o banheiro. Não porque precisava, mas porque não queria ver o pai, Deonisio Seolim, 49 anos, recebendo a notícia, ainda fragilizado por ter perdido a mãe cerca de um mês antes. Ao sair do banheiro, Mônica viu os pais chorando na cozinha e o pai não hesitou em pedir ajuda:

- Mônica, vai chamar a Maria para dar uma força aqui!

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Maria é uma personagem importante nessa história. Ela e Ana eram vizinhas e melhores amigas há mais de 20 anos. Maria per-deu o marido com um câncer no cérebro em 1999 e, desde então, criava sozinha os dois filhos. Ana sempre dizia que a família dela e a da Maria, na verdade, eram uma só, pois sempre estiveram uni-das nos bons e maus momentos.

Ao chegar na casa de Maria, Mônica, que era sua afilhada, disse chorando:

- Madrinha, a minha mãe está com câncer!

- Calma Mônica, isso não é nada, a sua mãe não vai morrer disso, não! – disse Maria, com toda a convicção, enquanto dava o abraço forte que confortou a afilhada.

Maria logo foi para a casa de Ana, assim como seus filhos e os filhos de Ana, Jakson, de 23 anos, e Josenilton, de 18, chegando de seus compromissos diários. Foi a primeira vez que todos viram Ana chorar.

Passado o choque inicial, Ana já estava sorrindo no dia seguin-te como de costume, corajosa e falando a todos que estava con-fiante. Ela gostava de dizer que nunca escondeu o câncer de nin-guém, porque a oração das pessoas certamente iria lhe ajudar a superar. Os dias seguintes foram de muitas consultas e exames, que antecederam a cirurgia de retirada da mama.

A filha caçula nunca mais demonstrou medo, depois do mo-mento em que recebeu a notícia. Ver a mãe tão confiante era o

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suficiente para ela acreditar que não perderia a pessoa que mais amava. Em plena infância, ela conservava o pensamento de que a mãe sempre estava certa e sabia de todas as coisas.

No mês de julho ela fez a cirurgia de remoção do seio. Foi uma operação de nove horas, para desespero do marido de Ana, sua mãe, Iracema, de 64 anos e uma das cunhadas, Salete, 53, que ficaram na sala de espera o tempo todo, ansiosos por alguma notícia. Tudo correu bem, ela permaneceu alguns dias internada e depois foi para casa.

Mônica aguardava ansiosamente o retorno da mãe, afinal, nunca haviam ficado quatro dias sem se ver! Ela recebeu alta em um sábado de manhã e chegou andando vagarosamente, mas con-versando muito e dando gargalhadas que ecoavam pela casa, com as quais todos estavam acostumados.

Nos dias seguintes, a mãe de Ana e as vizinhas, especialmente Maria, assumiram os cuidados de casa! Eram elas que ajudavam Ana a tomar banho, trocar seus curativos, limpar a casa e até a cozinhar. Dona Ana não era amada apenas pela família, pois todos os que a conheciam se importavam com ela e queriam fazer com que se recuperasse o mais rápido possível.

Depois de algumas semanas que a cirurgia havia sido feita, foi dia de voltar ao médico para saber quais seriam os próximos passos. Nesse dia, as três gerações foram para o consultório: Ana, sua mãe e Mônica. O médico explicou que o material retirado tinha sido submetido a uma análise que indicaria o tratamento. Ele já

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estava com o resultado dessa análise nas mãos e ao abri-la, ex-clamou com um sorriso:

- Nadinha de quimioterapia, minha filha!

- Graças a Deus! – exclamaram em coro Ana e sua mãe, am-bas mulheres com uma fé extrema.

Basicamente, isso significava que ela não precisaria fazer qui-mioterapia, mas a radioterapia seria necessária: 28 sessões. Além disso, Ana precisaria tomar um medicamento durante cinco anos, que é o período de maior risco de reincidência da doença. Só após esses cinco anos poderia se dizer que ela teria alta.

Com a coragem e o sorriso de sempre, ela enfrentou as 28 sessões de radioterapia e o único efeito colateral eram as queima-duras na pele, mas, segundo ela, era completamente suportável e estava tudo bem. Hoje, todos sabem que mesmo se não estivesse, a postura dela não seria outra. Ao término das sessões, ela conti- nuou tomando o tal medicamento e fazendo consultas e exames de rotina, sem jamais se descuidar.

O susto parecia ter passado e Ana havia saído ilesa. Aparen-temente, o câncer havia sido detectado em um estágio bem inicial e ela estava curada. A família toda não via a hora de que os cinco anos se passassem e o medicamento acabasse, para se sentir ver-dadeiramente livre daquela doença.

Generosidade

Ana deixava de fazer coisas de que gostava para visitar vizi-

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nhos que estavam doentes, amigas deprimidas, recolhia alimentos na vizinhança para doar aos que precisavam e seu bordão era: “é melhor ter condições de ajudar e fazer isso do que precisar ser ajudado”.

Quando Ana se casou e foi morar em Araucária, a duas quadras de sua casa havia um pequeno bar, onde seu marido gostava de ir depois do trabalho. Chamavam de “Boteco do ‘seu’ Antônio”, pois esse era o nome do senhor que cuidava do estabelecimento. Ele já era bastante de idade e vivia com sua esposa, dona Durvalina, também de idade, em uma casa que era anexa ao bar.

Em meados da virada do milênio, o bar começou a abrir com uma frequência cada vez menor, até que Ana e o marido desco-briram que o proprietário estava doente. Não demorou muito para saberem também que o casal de idosos vivia sozinho e a família não era presente. O que Ana fez? Praticamente assumiu os cui-dados: junto com sua amiga Maria, começou a acompanhar o sr. Antônio às consultas médicas, ir até sua casa para garantir que ele tomasse os remédios nas horas certas e, conforme a dona Durvali-na também foi ficando doente, ela limpava a casa, cozinhava e até ajudava os dois a tomarem banho.

Ana ia até a casa desse casal de idosos, muitas vezes já à noite e não pedia nada em troca. E ela só parou quando os dois faleceram, com uma diferença de dois anos.

Essa característica motivou uma das conversas entre Ana e a filha Mônica, quando esta já tinha 20 anos de idade. Estavam na

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cozinha certa noite, relembrando justamente a história do sr. Antô-nio e da dona Durvalina, quando a jovem disse:

- Sabe mãe, eu gostaria de ser mais igual a você!

- Como assim, minha filha? – ela perguntou achando graça no que acabara de ouvir.

- Eu me sinto uma pessoa egoísta, queria ter essa disposição que você tem de ajudar os outros sem esperar nada em troca, de fazer o bem! Já reparou que não existe ninguém que não goste de você?

- Ah, Mônica! Essas coisas é o tempo que ensina. Quando eu tinha a sua idade, também não era assim, mas conforme fui fican-do mais velha eu adquiri esse costume. Exemplo você tem!

E se tem algo que desde então Mônica confessa pensar todos os dias é exatamente isso: “sabe mãe, eu gostaria de ser mais igual a você!”.

Novamente?

Ana continuou fazendo um acompanhamento médico de roti-na, até que, em fevereiro de 2011, um dos exames acusava que algo estava errado. O CA-15* tem como valor de referência de 25 ou 35. Isso significa que quando o resultado mostra um número superior a esse, o câncer de mama está mais avançado, com maior carga tumoral, que pode se manifestar em outras partes do corpo. Foi o que aconteceu com Ana.

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Naquele momento, o resultado do CA 15 estava em 41,9 U/ml, enquanto a referência do laboratório indicava que o normal se-ria abaixo de 25 U/ml. Ela repetiu o exame em março e o resultado foi de 57,1 U/ml e, no mês seguinte, 65,9 U/ml. Nesse momento, o gineocologista a encaminhou para um oncologista, pois sabia que o câncer atacava novamente, faltava saber onde era.

Após alguns exames, descobriu-se que agora os ossos esta-vam sendo atingidos: uma pequena região da cabeça, costela e da bacia. Três pontos minúsculos e o único tratamento possível naquele momento seria a quimioterapia. Nessa época, Mônica es-tava no 3º ano do Ensino Médio e fazia cursinho pré-vestibular du-rante a noite. O irmão mais velho, Jakson, foi buscá-la, como era de costume, e dentro do carro ele disse:

- Mônica, o exame da mãe não deu bom. A doença voltou nos ossos e ela vai fazer quimioterapia.

Ao chegarem em casa, os irmãos encontraram a mãe e a avó rindo alto e conversando muito sobre as peripécias da família. An-tes de dormir, Ana foi conversar com Mônica e disse:

- Filha, a mãe não quer ver você preocupada, tá bom? Esse é um ano importante pra você, pode continuar se dedicando aos seus estudos que comigo está tudo bem. Eu vou fazer o tratamen-to e logo já estou pronta pra outra!

Era assim que ela falava sempre da sua condição de saúde:

- A minha doença é insistente, mas eu sou mais! Se Deus

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quiser que eu morra de câncer, eu vou morrer, mas ninguém vai poder dizer que eu não me cuidei, porque tudo que estiver ao meu alcance eu vou fazer.

Logo começaram as quimioterapias, que foram seis no total, realizadas a cada duas semanas. Depois da primeira sessão, os cabelos começaram a cair e ela raspou para não ter que ver fio por fio se desprender.

Uma tarde de sábado qualquer, Maria chegou até a casa de Ana com um lenço na cabeça. Ao tirá-lo, revelou a cabeça raspada e disse em um sorriso:

- Viu só, Ana? Eu raspei também pra você ver como fica bom!

Ana chorou nesse momento e correu para abraçar a amiga, dizendo:

- Ah, Maria! Não acredito que você fez isso!

Logo, a falta dos cabelos virou um costume e Ana saía de casa sem nada na cabeça e sem se importar com os olhares de piedade e compaixão que recebia.

Após cada sessão de quimioterapia, ela ficava alguns dias mais cansada e sem a disposição de sempre, mas costumava afirmar que não sentia os efeitos intensos que esperava.

O tratamento terminou no fim de 2011, mas precisou ser reto-mado um ano depois, porque o câncer acometia seus ossos mais uma vez. Foi tudo muito parecido com a experiência anterior: a

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mesma coragem, vontade de vencer e o mesmo bom humor de Ana ao falar sobre a situação.

- Vou começar de novo e vou vencer mais essa! Vaso ruim não quebra fácil, não!

Na clínica onde o tratamento era feito, Ana era considerada uma verdadeira amiga: levava cachecol que fazia de tricô para uma enfermeira, macarrão caseiro para outra, presentes para o bebê de uma terceira que estava grávida. Conversava muito com todas, fazendo com que a quimioterapia parecesse um passeio.

Em 2012, Ana concluiu mais uma série de quimioterapias, mas em 2013, precisou se submeter a elas novamente. Dessa vez, fo-ram detectadas linfonodomegalias* no pescoço.

Em dezembro de 2014, tudo ia bem, mas ao pegar resultados de exame de rotina, Ana percebeu que a batalha começaria pela quarta vez. Ao ir ao médico, sua suspeita se confirmou, além da reincidência das linfonodomegalias, estava com uma lesão no osso sacro*.

No mês de junho de 2015, fazendo novamente a quimiote- rapia, Ana começou a ter fortes dores de cabeça, cujo motivo não foi detectado no início por nenhum dos médicos procurados: clíni-co geral, oncologista, neurologista. As dores se intensificaram, começaram a ser acompanhadas por tonturas e desmaios.

Quem descobriu do que se tratava foi um oftalmologista, quando a família de Ana já não sabia a qual especialidade recor-

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rer. Durante o exame, o médico viu que uma estrutura do olho estava com problemas e pediu à Ana que procurasse novamente um neurologista para realizar um exame de punção lombar*.

No mesmo dia dessa consulta, 13 de agosto de 2015, Ana foi internada, fez o exame solicitado que levou dez dias para se ter o resultado. Antes do diagnóstico, sua médica oncologista esteve no quarto e disse que podia ser o câncer novamente, afetando o cérebro. Ao sair, Mônica foi atrás e interrogou a doutora.

- Doutora, quão grave é o que a minha mãe tem? – Mônica re-corda que a médica lhe disse que o quadro era muito grave e que assim que saísse o diagnóstico, ela faria radioterapia na cabeça e coluna, além de uma quimioterapia diferente, aplicada direta-mente na espinha. Mas nada disso poderia garantir a recuperação e a profissional deixou a jovem ciente de que sua mãe poderia vir a falecer. Dito isso, ela saiu, deixando Mônica chorando no corredor do hospital.

Cerca de dois minutos depois, Ana saiu do quarto e encontrou a filha aos prantos. Depois de lhe dar uma bronca por ter ido “in-comodar” a médica, Ana disse:

- Eu vou fazer o tratamento e não vou mais ter dor, Mônica. Você se acalme, porque eu não vou morrer não – e envolveu a filha em um abraço que pareceu sintonizar seus corações. Mônica ainda não sabia, mas aquele era o último abraço que uniria as duas.

Em todo esse tempo, ela não saiu do hospital e os sinais de que algo estava muito errado se agravaram: nos primeiros dias,

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ela andava pelo corredor, fazia amizade com outros pacientes e, brincando, comemorava a chegada das refeições no quarto. Em questão de uma semana, foi perdendo a força das pernas até não conseguir caminhar sozinha, teve uma paralisia facial do lado es-querdo do seu rosto e precisou ser submetida a doses de morfina* para controlar as dores de cabeça que sentia.

O resultado do exame comprovou as suspeitas: as células cancerígenas estavam espalhadas pelo líquido raquidiano*, que percorre o cérebro e a medula espinhal. Como não há formação de tumor e as células ficam em constante movimento, não há como fazer cirurgia e nem um tratamento suficientemente eficaz. Com o diagnóstico, Ana foi transferida para o Hospital Erasto Gaertner, referência no tratamento de câncer.

Com o passar dos dias, a visão ia ficando cada vez mais com-prometida, a audição do ouvido direito praticamente foi interrom- pida, assim como a deglutição*. Sem conseguir nem mesmo sus-tentar as costas ao se sentar, Ana ficava deitada, o banho era dado na cama, começou a usar fraldas e sonda para urinar e se alimen-tar. Falava cada vez menos e estava totalmente consciente.

Os familiares a viam de uma forma totalmente oposta ao que eram acostumados. Mesmo lutando contra o câncer há nove anos, era a primeira vez que Ana adoecia, ficava frágil e debilitada. Era a primeira vez que todos sentiam medo de perdê-la.

Um dos médicos da equipe, em dado momento, chamou os filhos de Ana e expôs a situação:

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- Infelizmente, o câncer está na coluna, nos pulmões e se fizermos exames de outras partes do corpo ele já pode ter se es-palhado. Esse é um estágio que não tem cura, então, o que nós vamos fazer é oferecer o máximo de qualidade de vida enquanto ela estiver entre nós.

- Mas doutor, quanto tempo? – alguém perguntou.

- Normalmente o paciente vive de 4 a 6 meses depois do diagnóstico, mas dependendo da progressão dos sintomas, pode ser menos. Se acontecesse um milagre e todas as células cancerí-genas desaparecessem, ela nunca mais recuperaria tudo o que já perdeu, como os movimentos. Temos que pensar no bem dela.

Ana chegou a fazer três sessões de radioterapia, mas o trata-mento foi suspenso porque apenas estava provocando mais sofri-mento. Mesmo assim, sempre que alguém chegava para visitar e perguntava como Ana estava, a resposta era a mesma:

- Eu estou bem, graças a Deus! E você?

No dia 1 de setembro de 2015, Ana perdeu completamente a visão. Na manhã seguinte, acordou pedindo para chamar seus familiares e amigos mais próximos para que pudesse se despedir. Mônica foi uma das primeiras a chegar e ao ouvir a mãe dizer que estava indo embora, segurou suas mãos e disse com firmeza:

- Mãe, se você quer ir e se Deus acha que chegou a sua hora, vai! Você é uma guerreira e já lutou tanto que merece descansar. Não se preocupe com nada, eu vou ficar bem. Tudo o que você

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me ensinou nesses 21 anos vão fazer de mim uma boa pessoa. Eu quero que você saiba que eu posso viver mil anos e conhecer milhões de pessoas, eu nunca vou amar alguém como eu te amo. Não importa quantas conquistas eu tenha na minha vida, nada vai me orgulhar mais do que ser sua filha.

Ana sorriu e se emocionou, fazendo um gesto afirmativo com a cabeça. Todo o dia seguiu assim, em meio a lágrimas, despedidas e sorrisos, pois Ana parecia estar serena e feliz pelo seu destino.

- Não sei porque Deus não me leva logo! Eu quero ir, já cumpri a minha missão aqui – ela disse em certo momento, impaciente, afinal, nunca foi do tipo que gostou de esperar.

Um amigo da família não quis se despedir, apenas perguntou qual era o segredo para ter uma vida como a dela. A resposta veio serena e simples:

- O segredo é paciência, ‘seu’ João. Tenha muita paciência sempre.

Durante todo o dia 3 de setembro, Ana dormiu. No dia 4, uma sexta-feira, acordou mais falante e animada, conversou o dia todo, rezou. Era a noite de Mônica posar no hospital.

À tarde, na companhia dos dois filhos, da mãe, da irmã, An-gela e de sua tia, Maria, Ana rezou a sua oração preferida, o Terço da Divina Misericórdia, que de acordo com a tradição católica, é baseado na aparição de Cristo à Santa Faustina Kowalska e tem como objetivo fazer com que a pessoa que o recita alcance a

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misericórdia de Jesus. Depois disso, Ana teve vontade de tomar Cini de framboesa, seu refrigerante favorito. Mesmo estando com sonda, os filhos atenderam ao pedido, seguido pelo diálogo que abriu essa história.

- De que cor está a minha língua?

- Bem vermelhinha!

- Ah que bom, do jeito que eu queria!

Dizendo isso, Ana pediu para que a cama fosse deitada, para ser abanada, virou a cabeça de lado e sua alma foi para o lugar que ela estivera tão ansiosa em conhecer. Seus últimos momentos foram de oração, conversa, risos e simplicidade, um resumo de seus 53 anos de vida.

Cerca de quatro meses depois do falecimento, eu estava arru-mando meu quarto e encontrei um bilhetinho em meio às minhas coisas escrito com a letra de Ana. Era a seguinte frase: “Liberta com a ternura do teu amor, porque aqui dentro há um coração feri-do”. Nunca o tinha visto e não sei desde quando estava lá. O que eu sei é que Ana continua sabendo das coisas e o que fazer sobre elas.

Aqui dentro realmente há um coração ferido, que só pode ser liberto pela ternura de um amor como de Ana, um amor de mãe. Eu sou a Mônica e esse é o relato da luta da minha mãe contra o câncer. Uma batalha marcada pela coragem e pelo riso. E uma luta que ela venceu. Afinal, por que pensar que viver fisicamente é

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uma obrigação e que esse é o único sinal de vitória? Ela mudou de plano quando quis que isso acontecesse, quando se sentiu prepa-rada e, mais do que isso, soube dar sentido para cada dia de sua existência. Essa foi, sim, uma vitória, porque não foi o fim, mas sim o início da vida espiritual em que ela sempre acreditou e a qual esperou pacientemente.

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A alegria chegouPor Marcio Galan Junior

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Esta é a história da Ana Paula. Ana Paula Pereira da Cruz para aqueles que optarem pela formalidade. Mas para todos aqueles que estiverem com o coração aberto para ler uma pequena parte de sua história, ela não vai se importar de ser chamada apenas de Ana.

Ana é baiana. Tem hoje trinta e nove anos. Nasceu em Salto da Divisa, em Minas Gerais, mas criada em Itamaraju, na Bahia. É filha de Adelson e Maria de Lourdes. Se casou com Roberto ain-da no Nordeste. Hoje, tem dois filhos e um neto. Aos dezoito, em 1994, foi mãe pela primeira vez, quando nasceu Priscila. Priscila hoje com vinte e um, foi mãe aos dezessete, em 2011, quan-do nasceu Pedro. Aos trinta e cinco, portanto, Ana foi avó. Antes disso, veio morar em Curitiba quando esperava por Gabriel, que nasceu em 1998. Hoje Gabriel está com dezessete anos. Antes da Priscila, do Gabriel e do Pedro, em 1981, ela ganhou uma irmã, a Poliana. A Poliana se casou com um homem cujo o nome eu acabei não perguntando, mas eu sei que o chamam de Elegante. Em uma rede social famosa, o Elegante atende por “Elegante Elegante”. Elegante e Poliana se casaram e da união deles nasceu Ana Luiza, que também pode ser chamada de Aninha. Estas pessoas são fun-damentais na história da Ana, assim como ela também é funda-mental na história de cada um deles.

Tão importante quanto a família para Ana, senão até mais, é uma força divina que ela e todas estas pessoas que citamos acima chamam de Deus. Deus, para quem não conhece, nas palavras dela, é “o Senhor de todas as coisas, Aquele que nos ama e que

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está sempre olhando por nós” e também “Aquele que tudo faz e tudo o que acontece é por ele”.

Estas são algumas das definições de Deus para Ana. Eu tomo o cuidado para definir Deus desta forma, não pela bíblia, nem pela teologia, mas sim por ela, porque esta é a história de alguém que ama a Deus e encontra nele o sentido das coisas. Portanto, eu gostaria de pedir ao leitor cristão que não abandone a leitura se por ventura acreditar que fui desrespeitoso quando defini Deus por suas palavras, e não pela bíblia. Peço desculpas também ao eventual leitor ateu, caso julgue o texto religioso demais. Nesta história, existem coisas que podem fazer todos entrarem em um acordo, inclusive eu, que talvez não sou exatamente um cristão, mas nem por isso sou um ateu.

Eu busco nos depoimentos de pessoas como Ana um pouco do sentido da vida. Eu vejo um mundo cheio de pessoas boas e de boas intenções. Vejo pessoas de todas as crenças, e por estar nesta fase de formação dos meus credos e opiniões, acredito que não encontrei ainda o sentido que busco na vida. Ana, no entan-to, afirma já ter encontrado. Com Deus no controle de todas as coisas, em maio de 2015, ela foi diagnosticada com um câncer neuroendócrino*.

O diagnóstico veio em um momento em que ela estava mais do que nunca envolvida com um projeto de evangelização voltado às crianças de sua comunidade. Ana lidera o Ministério de Evange-lização Infantil da Igreja do Evangelho Quadrangular do Rio Bonito 2, localizada no bairro Campo de Santana em Curitiba. As crianças

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do ministério a amam, assim como ela também ama as crianças e as ensina a amar a Deus, que no controle das coisas, permitiu que um tumor se desenvolvesse em seu corpo.

Esta poderia ser a interpretação de Ana, à grosso modo. Mas jamais foi. Sua fé não permite revolta. Ela tem a ciência de que o tu-mor maligno que se manifestou em seu corpo não é uma maldição. E não faria sentido se fosse.

Ela sabe que sua doença é grave. Quando iniciou o tratamento, encontrou pessoas que encaravam o câncer como uma sentença de morte. Mas ela não pensa assim, e prefere ver o câncer como um aprendizado. Ela recusa qualquer espécie de revolta porque não enxerga a doença deste jeito. Nela há a presença da convicção de que a vontade de Deus será feita, e que tudo vai dar certo. Dar certo pra Ana pode significar a cura, que era o que ela, sua família e o corpo de médicos que a acompanham desejam, mas também pode significar cumprir sua missão terrestre. Ela sabe que se a cura vir, será por Deus. Sabe que também, que se por ventura, algo não der certo, também será um plano de Deus. Agora, o tu-mor que se manifestou em seu corpo faz parte de sua história, e que independentemente do desfecho, sua missão será cumprida, porque é o que sua fé diz.

Ana é uma mulher que espalha alegria, distribui amor e es-banja fé. Com a doença surgindo no meio do seu caminho, ela en-tendeu aquilo como um sinal para reafirmar seu compromisso com Deus e com a vida. Mesmo com esta certeza, ela não julga aque-les que, assim como ela, enfrentam a doença e não conseguem

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enxergar a vida deste jeito. Ela não concorda, mas diz que entende quem se revolta. Além disso, para ela, o perdão é uma escolha, e as pessoas não são obrigadas a perdoar. Ela, por sua vez, não só perdoa como também enxerga um propósito na doença pra sua vida e pra sua família.

Num mundo em que tantas coisas injustas existem, acreditar em Deus é um voto de socorro. Há quem enxergue que a justiça divina condenará todas as injustiças e todos os injustos. Há quem acredite que não há sentido na vida senão pela existência de uma força controladora de todo o Universo. Certa vez, ouvi dizer que todas as civilizações do mundo foram formadas acreditando em alguma coisa maior. Talvez não seja possível que todos estejam certos, mas parece ser inimaginável também que todos estejam errados. O sentido que dá a razão da existência para Ana vem da Igreja do Evangelho Quadrangular, que prega que o reino de Deus existe por meio de Jesus Cristo, aquele que salva, batiza, cura e que voltará.

O tumor* de Ana começou a se manifestar no final de 2014, quando ela começou a sentir muitas dores no estômago. Ela foi ao pronto-socorro e voltou para casa com uma série de medicamen-tos. Os fármacos aliviavam, mas as dores persistiam. Em questão de alguns dias, precisou voltar ao hospital, desta vez para fazer alguns exames. Foi então que uma proctoscopia* constatou uma neoplasia* maligna. Quando virou o ano de 2015, ela passou mal e foi submetida a uma tomografia, que apontou que a infecção na verdade era um tumor. Em 19 de março de 2015, os exames não a

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pouparam. Era um câncer de intestino raro, que agia lentamente, mas que já tinha alcançado um estágio avançado no momento do diagnóstico.

Os sintomas dos primeiros enjoos já significavam que o cân- cer tinha se estabelecido. Mas os médicos não foram negligentes. As biópsias* não conseguiam detectar as células malignas. Ana sabia que havia um grau avançado e que a doença havia lhe dado uma rasteira. O médico disse na época que com este grau, ge- ralmente, após o diagnóstico, as pessoas não tinham muito tempo de vida. O câncer de intestino era um câncer lento que fez tudo mudar muito rápido para ela. Mas ela sabia que a palavra final viria de Deus.

- “Meu Deus!” -, lembrou suas palavras na época - O meu chão desabou. Eu queria chorar e não conseguia. Eu sabia que estava tratando uma doença, mas pensava que era uma doença simples.

Com a notícia, ela voltou ao carro e encontrou o marido Roberto. Ana estava ainda em estado de choque. Roberto pegou em sua mão e disse que aquela não era uma hora para se entregar. Era hora de lutar. Ana não hesitou e concordou com seu marido.

Roberto cumpre seu papel de suporte nesta batalha. Quando visitei sua casa, que Roberto construiu, ele trabalhava incansa- velmente em pleno sábado a noite. A residência que está ainda sendo reformada tem um extenso espaço interno. Não tanto pelo terreno, mas pelo espaço construído. O imóvel já chegou ao ter-ceiro andar.

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O tripléx de Ana fica no bairro que mais cresce em popu-lação em Curitiba, o Campo de Santana, que é praticamente uma extensão do Tatuquara. Os dois bairros estão no extremo sul da capital paranaense. Pela BR-116, é possível acessá-los assim que passa a última estação da Linha Verde Sul, depois do trilho que passa por cima da via, à direita. Somadas, as populações dos dois bairros que estão naquela região equivalem a população de Ita-maraju. Roberto, que também é baiano de Itamaraju, tem muita fé em Deus, trabalhou duro a vida inteira, assim como Ana. Ele só não tem o costume de falar tanto quanto a esposa. Mais reser-vado, ele costuma economizar nas palavras, mas nas poucas que ocasiões em que se pronuncia, diz que Deus está com eles e que tudo dará certo. Era possível escutá-lo trabalhando lá do último andar da casa enquanto eu entrevistava Ana.

Na hora do jantar, enquanto Roberto tentava enganar o frio com uma coberta, Ana ria à toa. Ela tinha motivos. Me ofereceu guaraná com laranja e antes disso eu jamais tinha tomado a bebi-da desta forma. Guaraná com laranja é realmente gostoso. Ela também tomou, mas até algumas semanas atrás ela voltava para casa e não podia comer ou beber nada, tamanha era a intensidade da quimioterapia.

E logo que o diagnóstico apareceu, aquele tratamento se mostrou o grande pesadelo na luta da Ana. No início, quando a on-cologista Claudia assumiu o caso, as notícias não eram animado-ras. O câncer teria se espalhado a alguns órgãos por meio da metástase*, O fígado, como de praxe, foi o primeiro órgão a ser

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infectado pelas células malignas.

Na época em que percebeu o quanto este tratamento lhe con-sumiria, Ana perguntou à médica por quanto tempo aquilo seria necessário. A doutora respondeu dizendo não saberia determinar. Disse apenas que a doença tinha avançado até o quarto grau, que era muito avançado, e que a quimioterapia era a única forma de tentar evitar o avanço do câncer para que as células não se espa- lhassem.

A quimioterapia poderia durar um mês, um ano, dois, três, cinco ou a vida inteira. E este era o que a preocupava. As sessões seriam feitas por três dias seguidos tendo intervalos de 15 dias. Ela sabia que a quimioterapia mataria não somente as células ma-lignas, mas também as saudáveis, e que isso faria com que sua imunidade abaixasse a um nível crítico.

Ana tinha cabelos longos, morenos e bonitos. O cabelo pre-cisou cair. Ela que esbanja alegria, mas que também tem sua vai-dade, me contou o quanto é difícil para uma mulher perder as ma-deixas. Cortar o cabelo seria uma dor, mas doía mais ainda quando ele caía naturalmente. E doía de verdade. Tudo doía afinal, durante o tratamento. O cabelo, as unhas, os pés. Ela cortou o cabelo bem curtinho. Fez chanel. Em questão de uma semana, a queda do cabelo se acentuou. Por onde Ana andava, o cabelo caía. A qui- mioterapia era a cruz que a Ana Paula Cruz precisou carregar.

Este tratamento lhe causava calafrios. Mas ela escolheu lutar e Deus estava com ela. Disse que ouviu de Deus que a palavra final viria dele. E aquilo confortou seu coração.

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Ela voltava da quimioterapia e precisava ficar semanas sem comer e sem beber água. Sua rotina se dividia entre fazer a qui- mioterapia, passar um tempo no hospital e voltar pra casa em dife- rentes estados – desde ficar em casa isolada, com muitos cuida-dos, até poder participar de cultos na igreja quando a imunidade não estava tão baixa. Mas quando isso acontecia, em casa ou na rua, Ana sempre precisava usar máscara.

Uma semana em casa, uma semana no hospital. Uma semana ruim, uma semana boa. Em outra semana, não sentia nada. Quan-do chegava no hospital, descobria que sua imunidade estava baixa e se indignava.

Ana não poderia receber visitas. Mas a baiana nunca foi de re- cusar convite de ninguém, e nunca foi boa para dizer não também. Recebia a todos como recebeu a mim. De coração aberto. E por não saber dizer não, quando foi diagnosticada, chegou a receber quase 40 visitantes. As visitas precisaram ser sessadas pela irmã, Poliana.

Nos piores dias, além de não poder receber ninguém, a fragili-dade de seu corpo tornava tudo mais difícil. Tudo era desgastante. Se subia a escada, ela se cansava. Se andava, ela se cansava. A mãe da Ana, quando soube do diagnóstico, deixou Porto Seguro na Bahia pra ajudar a cuidar dela.

Quando sua mãe chegou a Curitiba, era inverno. Ela veio cui-dar da filha de 39 anos, dos netos de 17 e 21 e do bisneto de 5. Assim como Ana, sua mãe gosta de falar, sobre tudo e com todos. O problema é que sua mãe foi descobrir em 2015 o que a filha

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descobrira em 1997 – o curitibano não gosta de conversar nos ônibus. Ainda assim, sempre que precisava pegar um ônibus para o centro da cidade, ela insistia em puxar papo com as pessoas do coletivo.

Mas em casa, quem não podia falar era Ana. Para sua mãe, ela não deveria falar, porque iria se cansar, e era preciso repor as energias. A mãe não a permitiu falar no telefone durante o tempo em que habitou sua casa. Agora que ela voltou para Porto Seguro, Ana aproveita para tirar o atraso. Fala à vontade na entrevista. Fala, ri e gargalha sempre que conta algo divertido.

Os filhos da Ana são o retrato de uma mãe que planta amor por onde passa. No início desse ano, ela os reuniu e disse que sua vida estava nas mãos de Deus e que estava pronta para acei-tar a decisão dele. Ela pediu para que eles ficassem em paz caso Deus escolhesse tirá-la deste plano. Gabriel e Priscila, que são visi- velmente apegados à mãe e aos valores da família, surpreende- ram-a com a maturidade de dois anciões.

No que se refere a Gabriel, a mãe achava que ele se fazia de forte na frente dela e suspeitava que ele chorasse no quarto es-condido. Ele parece ter puxado o pai na economia das palavras e demonstra uma postura que, de tão discreta, chama a atenção. Não pela falta de personalidade, mas sim pela generosidade de quem teve Ana como tutora da vida. Ele estuda e vai à igreja, e ajuda a mãe com as tarefas de casa. O rapaz tem o tipo boa pinta. Moreno, alto e educado, não consegui achar sequer um defeito no momento em que fiquei em sua presença. E sua mãe sabe disso

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melhor do que ninguém e se orgulha ao falar dele.

Com a Priscila não é diferente. Ela foi recentemente promo- vida na empresa em que trabalha e junto com o marido quer dar um futuro ainda melhor para o filho Pedro, que quando ouviu ela chegando na casa, respondeu de primeira a pergunta da avó:

- Quem chegou, Pedro?

- A mamãe! –, disse o garoto com uma entonação de euforia.

O Pedro, que tem só cinco aninhos, corre para lá e para cá pela casa e adora uma folia. Foi correndo dar um abraço na mãe dele que chegou exausta do trabalho, mas que não hesitou em fa- zer como Pedro e abraçar a mãe dela. Priscila participou da con-versa por alguns instantes, antes de descarregar as coisas do tra-balho. Ela ficou perto da mãe e se orgulhava de cada palavra dita durante a entrevista.

- É uma guerreira -, comentou consigo mesmo enquanto a mãe falava sobre a quimioterapia.

Ao contrário de Priscila, que estrela um porta-retrato da sala com a foto da sua formatura do ensino médio, Ana precisou largar os estudos quando engravidou. Ela trabalhava numa escola antes de se afastar em razão da doença, mas não como professora. Le-cionar para crianças, no entanto, sempre foi seu sonho. Ela lem-brou que antigamente as coisas eram diferentes, e celebra que os anos tenham feito com que algumas coisas mudassem.

- Antes a gente não tinha essa visão. A mulher tinha que casar

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e se dedicar a casa. Hoje a mulher casa, tem filho, e continua sua vida profissional – comentou.

Ana chegou a iniciar ao supletivo para terminar os estudos, mas precisou largar, tal como fez com o trabalho na escola e o tra-balho na igreja para dividir sua rotina entre o repouso em casa e o tratamento no hospital. A quimioterapia necessária que ajudava e desgastava era o pior momento dos ciclos de 15 dias que começa- ram a moldar sua agenda. Ainda assim, ela não encarava aquilo com mau-humor. Pelo contrário, a mulher que sempre sorriu para a vida, mesmo quando a vida aprontou com ela, fazia a alegria da equipe de enfermagem do Hospital Evangélico de Curitiba. Quando ela chegava, era celebrada por todas:

- A alegria chegou! – diziam as enfermeiras.

- A alegria? Quem, eu? – dizia ela, rindo.

Em setembro, Ana descobriu que havia uma medicação que contribuiria com seu tratamento, que traria qualidade de vida e ofereceria defesa ao seu organismo. Tratava-se de um medica-mento que auxilia no tratamento de secreções no estômago. Só havia um problema. A dose da medicação que deveria ser injetada uma vez por mês custava quase dez mil reais. E o SUS não cobria.

Foi a própria médica que informou que havia uma forma de conseguir a medicação, que era fundamental para a sobrevivência de Ana e a esperança dela para ter uma vida melhor e para con-seguir lutar contra esta doença que já não era mais tão silenciosa. Uma doença que gritava em seu corpo e que a fazia pedir socorro.

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O socorro do medicamento só poderia vir por meio de uma ação judicial.

Ana, que não queria desistir da vida e lutar, sabia que preci- saria lutar pelo seu medicamento.

Foi Poliana, sua irmã, quem correu atrás de toda a documen-tação para entrar com a ação na justiça. A Poliana é mais nova e mora embaixo de sua casa. Tanto quanto a mãe, a irmã foi seu braço direito nesta luta. Poliana tem pelo menos duas Anas em sua vida – a irmã e a filha, a Ana Luiza, que tem sete anos e nasceu com a síndrome de Cri Du Chat*, conhecida também como sín-drome do miado de gato, muito rara.

A Aninha é filha da Poliana e do Elegante, que é um rapaz animado e brincalhão. Ele anima os almoços e jantares da família com suas brincadeiras. Os dois vão à igreja frequentemente, onde a Aninha participa do ministério das crianças que é presidido pela Ana. A síndrome pode fazer com que a Aninha se limite a algumas coisas, mas não ao amor. A Aninha é uma menina muito carinhosa. Ela distribui beijinhos para quem quer que cruze o caminho dela. E ela corre para lá, corre para cá, é uma criança normal com uma dose dobrada de amor.

Nas duas visitas que fiz no período da noite, percebi que no sábado e no domingo, a população de seu bairro contraria o noticiário do meio-dia, que o aponta como perigoso e violento. Lá, depois que escurece, os telejornais dizem que é horário de bala perdida. Eu não presenciei violência. Na igreja da Ana, eu presen-ciei a fé de um senhorzinho que orava com todas as suas forças

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para Deus. Presenciei a Aninha correndo pelo corredor da igreja construída com madeira e mobiliada com bancos improvisados. Vi um povo receptivo que me recebeu como se eu fosse da casa.

Na ação que a Ana abriu contra o Estado, seria necessário um parecer da médica atestando a necessidade do medicamento. A situação era delicada para todos. A médica sabia que o medica-mento era necessário para o tratamento da Ana, mas depor contra o Estado que lhe empregava não poderia ser tão simples assim.

O Estado controla a medicação e seleciona os casos que estão mais aptos para justificar o “investimento”. A liberação depende de uma perícia cruel que calcula quais são as vidas que valem dez mil reais e quais não valem. Diante da fraqueza do ser humano pe-rante a doença, há a fraqueza dos menos capacitados de recursos diante do Estado.

A advogada de Ana conseguiu encaminhar o processo à Justiça com o respaldo dos exames. Ela sabia da debilitação de sua cli-ente, mas sabia também que a Justiça tinha um ritmo e a doença outra. Sua médica também tinha essa crença, e sabia o quanto a paciente estava eufórica, depositando suas esperanças naque-le medicamento. Acostumada a dar notícias piores, a oncologista a aconselhou a não contar muito com o medicamento.

O SUS cobria tratamento psicológico para a família. Os filhos não utilizaram. A melhor psicóloga eles tinham em casa. A mãe que passava pelo momento mais delicado de sua vida tinha a ca-pacidade de consolar qualquer um que a visitasse prestando-lhe solidariedade. Rindo, Priscila brinca com a situação:

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- Se ela fosse na psicóloga, seria ela que ajudaria a psicóloga!

E eu concordo com Priscila. A Ana compara sua batalha contra o câncer como uma corrida de um atleta em uma maratona. Há um objetivo. Nem todos poderão ser campeões, mas todos têm um objetivo e querem cruzar a linha de chegada para cumprir sua missão. Alguns não resistem e ficam no caminho. Ana escolheu cruzar a linha de chegada. Ana não sabe se será a grande vence-dora da corrida da própria vida, mas sabe que ao cruzar a linha, cumprirá sua missão. E para isso, ela vai tentar até o seu limite, ter a linha de chegada como referência, e não as pedras da qui- mioterapia que machucam seus pés descalços na pista do seu cor-po fraco. Ela não condena aqueles que não conseguem chegar, nem acredita que o fracasso vem por falta de fé. Mas sabe que in-dependente do que possa acontecer, ela não pode deixar de lutar. Não seria justo. Nem por ela, nem por sua família.

- Se por ventura chegar a minha hora, que seja uma boa história!

No dia 3 de março de 2016, a alegria chegou na vida da Ana pela primeira vez na história do tratamento. Uma decisão da juíza federal Soraia Tullio exigiu com que a União bancasse a medicação mensalmente para o seu tratamento. O despacho ordenava que o depósito fosse efetuado com urgência na conta do Hospital Evan-gélico e que assim deveria se suceder todos os meses até que não seja mais necessário.

Nesse meio tempo eu tinha acabado de conhecê-la. Ela teria uma quimioterapia ainda pela frente, mas mesmo assim aceitou

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contar sua história. Aceitou e ficou entusiasmada. Ela não tinha vencido nada. Tinha ao seu lado a fé e a alegria de viver que lhe eram natas, mas com tantos problemas para enfrentar, queria de-por do mesmo jeito e me receberia se a imunidade estivesse baixa. A intenção dela era contar sua história para outras pessoas e as graças que ela havia recebido de Deus pela liberação do medica-mento já era sua primeira vitória.

Na terça-feira, dia 4 de maio, veio a notícia que trouxe ainda mais paz para ela. A quimioterapia não seria mais necessária. É como se a doença tivesse paralisado. Ela sabe que a doença con-tinua lá. As células malignas e o tumor estão lá, mas que agora es-tão controlados. A alegria chegou pela segunda vez nesta batalha.

- Foi a melhor notícia da minha vida!

Nas palavras de Poliana: o diferencial foi primeiramente Deus amigos, família. Ela jamais esteve sozinha.

Eu a visitei justamente na semana em que estava fresca a notícia de que a quimioterapia não seria mais necessária. Era um sábado e a boa notícia tinha vindo numa quarta-feira. Sua alegria era evidente.

Combinei com ela de encontrá-la no sábado seguinte, quando ela retornaria às atividades na igreja e também no ministério in-fantil. As crianças do ministério enviaram dezenas de cartinhas es-critas à mão para ela, que guardou tudo num potinho. As cartinhas tinham corações, tentativas de desenhá-la e mensagens de “eu te amo”. Ela estava eufórica para encontrá-las e eu para ver ela en-

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contrando todos os seus pequenos. Infelizmente a imunidade de Ana abaixou e uma gripe fez com que ela ficasse em casa ainda nesta semana.

Agora é como se Ana lutasse contra o câncer em um octógono. Ana tenta nocauteá-lo e o câncer busca a vitória pela finalização, mas ela resiste. Deus, que é o juiz da luta, não interfere a favor do câncer enquanto vê sua persistência. No intervalo entre um round e outro, as outras doenças que podem vir com a imunidade baixa são as torcedoras do câncer e ficam pronunciando ofensas para desestabilizar Ana no round seguinte. A seu favor, Ana tem a tor-cida de seus familiares, de seus amigos, do povo da sua igreja e de todos aqueles que a amam. Estes são os que cantam mais alto no ginásio e motivam Ana a buscar o nocaute da doença por meio da medicina. Ela sabe que se não fugir da luta e que se resistir aos golpes do adversário câncer, o juiz Deus decidirá a luta ao seu favor. E assim Ana continuará lutando por quantos rounds forem necessários.

A gripe parece coisa pequena perto do que a Ana passou du-rante este último ano de batalha, mas ela aprendeu a não subesti-mar nenhuma reação negativa em seu corpo. Ela escolheu ficar em casa e sua fé permite que ela continue lutando por todos aqueles que ela ama.

Volto à minha condição de observador não tão cristão, mas nem por isso ateu. Imagino agora Deus arquitetando toda a história da Ana e penso que foi um roteiro bonito e bem escrito por ele. Posso ter minhas dúvidas, mas na história de Ana eu já não consigo co-

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gitar a possibilidade de que ele não possa existir. As batalhas que Ana tem vencido são detalhes secundários. O que justifica minha hipótese é o amor que Ana tem pela vida. O amor parece provar a existência de Deus.

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UMA PASSAGEM SÓ DE VINDA

Por Jaderson Policante

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- Eu vim pra cá por causa da minha vó. Ela veio se tratar de câncer há onze anos e eu vim pra ficar com ela. Aí enquanto minha avó fazia o tratamento resolvi fazer cursinho. Prestei vestibular, me formei e estou morando aqui até hoje.

Foi de trás de um balcão que escutei parte da conversa corri-queira entre duas colegas de profissão, em que ambas contavam como acabaram fixando residência na cidade de Curitiba. Em co-mum, as duas mulheres haviam saído de pequenas cidades do interior para estudar na capital paranaense, como muitos jovens fazem todos os anos. O papo parecia ter iniciado, mas não dava a impressão de que se alongaria muito. Afinal, o encontro ali se-ria rápido. Coisa de nem um ou dois minutos. Mas antes que elas continuassem a contar suas histórias, eu, tomado pela curiosidade de ter ouvido o motivo que trouxe avó e neta para Curitiba, inter-rompi.

- Sua avó teve câncer?

- Sim.

- E vocês não querem me contar essa história?

Dias depois, em uma tarde fria de outono – característica do sul do Brasil – Maria Bezagio e a sua neta Kelly Tatiane de Souza, me recebem no apartamento que dividem na cidade de Pinhais, região metropolitana de Curitiba. Subo dois lances de escada acom-panhado pela Kelly que me alerta que sua avó Maria está bem a vontade se protegendo do tempo gelado munida de uma coberta.

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Reforço que o objetivo é justamente esse. Que as pessoas fiquem a vontade durante nossa conversa.

Logo que entrei no apartamento tive meu primeiro contato com Maria. Ela se senta novamente no sofá de três lugares no canto esquerdo, adornado com algumas almofadas cuja função é deixar aquela parte do móvel mais confortável. “Aqui é o canto dela”, revela Kelly, a neta que não tira os olhos da avó. Ela puxa uma cadeira e se senta diante de uma mesa redonda de madeira, enquanto me posiciono na outra ponta do sofá. Ficamos uns de frente aos outros. A televisão estava sintonizada em um desses programas de auditório. O som do aparelho era a nossa trilha so-nora.

Explico, agora à Maria, as razões que me levaram até ela. Porém, talvez na tentativa de ser agradável, acabei cometendo um deslize.

- A Kelly me contou que a senhora tem uma história bacana para contar pra gente dona Maria!

- É, agora que já passou é bacana. Mas na época foi barra, viu.

Envergonhei-me com a gafe, mas ao mesmo tempo percebi que mesmo eu não tendo usado a melhor das expressões para começar a conversa, Maria agiu de uma forma que me deu a primei-ra pista de como ela enfrentou a sua batalha. Com naturalidade. Em seguida, ela começa a contar sobre a época do diagnóstico no

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ano de 2005 na cidade de Juara, interior do estado do Mato Gros-so, quase na divisa com o Pará.

À época, a rotina dela era como a de muitas donas de casa Brasil afora. Enquanto a única filha trabalhava, ela cuidava dos afazeres do lar e dos dois netos. “Na verdade eu sinto como se tivesse três filhos”, confessa. O apego aos familiares fez com que ela mesma abrisse mão de trabalhar fora pois “não achava certo deixar as crianças na mão de outras pessoas”. A descoberta da doença foi quase que por acaso. Maria foi até a clínica médica da cidade porque em uma das mamas ela se queixava de um descon-forto. Ela se consultou com um clínico geral, um médico conheci-do dela chamado Áureo. Aproveitou a consulta e relatou também um problema hormonal. Algo que, para o médico, não era comum para uma senhora que já havia passado dos cinquenta anos. Então ele sugeriu realizar alguns exames mais aprofundados.

Poucos dias após essa primeira consulta e a realização dos exames, veio o resultado. Apareceram alguns miomas* no útero. Também chamados de fibroide uterino*, eles se desenvolvem a partir do tecido muscular liso do útero, o miométrio*. É considera-do um tumor benigno*, que não está associado a um risco aumen-tado de câncer no útero, e geralmente atinge as mulheres entre trinta e cinquenta anos. Diante do quadro, o médico sugeriu uma intervenção cirúrgica, pois em mulheres de meia idade, o que era o caso de Maria, o útero não tem mais nenhuma função.

Maria concordou com o procedimento. Ela aceitou, pois também

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imaginou que fosse o melhor a ser feito nesse caso, porque além dos problemas hormonais e a “falta de função” do aparelho re-produtor nessa etapa da vida, nas pequenas cidades do interior, conforme ela mesma contou, não há o costume de se realizarem biópsias* com frequência. Só mesmo em casos mais urgentes. Ou quando uma cirurgia como essa – de extração de útero, por exem-plo – é realizada.

A cirurgia foi realizada no dia 13 de abril de 2005, pelo mes-mo médico, o clínico geral Áureo, na cidade de Juara. Exatamente um mês depois desse procedimento, Maria e o médico estavam no consultório. As notícias não eram boas. O médico contou que, devido à realização da cirurgia e posterior biópsia, ele descobriu um câncer que não estava no colo do útero e sim no miométrio. A doença já se encontrava em um grau mais avançado.

Ela ouviu tudo com atenção. Não se assustou, nem lamentou o problema que o destino lhe impôs. Também não ficou pensan-do muito na gravidade da doença. Sua reação se resumiu a uma frase.

- Ok. Então vamos tratar.

O médico continuou a explicação e lamentou o fato de que a pequena cidade do interior onde eles viviam não possuía estrutura necessária para um tratamento de uma doença tão grave. Além de alertar a sua paciente dos poucos recursos existentes na cidade de Juara, ele aconselhou Maria a procurar uma cidade que tivesse mais recursos para o início do tratamento, que deveria ser imedia-

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to.

E foi o que ela fez.

Dois dias, dois mil quilômetros

Precisando se consultar com um médico oncologista, Maria viajou de Juara até a cidade de Sinop, também no estado de Mato Grosso, distante cerca de pouco mais do que 300 quilômetros. O especialista recomendou sessões de quimioterapia e radioterapia e deu o encaminhamento para que o tratamento fosse realizado em Cuiabá, capital do estado. Maria então voltou para casa e com a ajuda da sua única filha começou os preparativos para a viagem até a capital. Até que um telefonema mudou todos os planos.

- Eu liguei para um irmão meu que morava no Paraná. Ele me disse assim “você não vai ficar aí não. Já arrumei aqui, e você vai para Curitiba”. Então tá né? (risos).

O irmão de Maria morava em Umuarama, cidade do noroeste do estado do Paraná a 600 quilômetros da capital, Curitiba. A par-tir de alguns contatos, conseguiu uma consulta no Hospital Eras-to Gaertner, referência nacional no tratamento de pacientes com câncer. Maria conta que o irmão lembrou um caso na família ocor-rido trinta anos antes. Um sobrinho, então um bebê de um ano de vida, havia sido diagnosticado com um tipo de câncer raro, na região ocular e fez o tratamento no Erasto Gaertner. Para o irmão, não existia um argumento melhor. Maria lembra exatamente das palavras dele ao telefone.

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- Ele me disse assim: “se trinta anos atrás eles conseguiram salvar o Leandro, porque que eles não podem cuidar do seu caso e dar certo?”

Poucas horas depois dessa ligação Maria decidiu vir ao Paraná. Embarcaria para Curitiba naquele mesmo dia, uma quinta-feira 16 de maio de 2005. Entre a descoberta da doença e a decisão de se tratar no Erasto Gaertner, se passaram apenas três dias.

- Não parei pra pensar na minha casa, se vou ficar apegada nas minhas coisas...fechei a porta e vim!

Dois dias de viagem e 2.360 quilômetros depois, Maria che- gava à capital paranaense.

A oportunidade

Maria não desembarcou do ônibus sozinha. Sua neta, Kelly, veio junto com a avó para Curitiba. A jovem, então com 18 anos, nunca tinha saído de Juara, onde nasceu e viveu até então. A par-tir daquele momento, além de acompanhar a avó, havia o desafio da adaptação à mudança para uma grande cidade. Ao pisar pela primeira vez em solo curitibano, logo surgiu o primeiro empecilho. Acostumada com o clima quente e seco do centro-oeste brasileiro, a juarense sofreu com o frio glacial que fazia naquele dia. Zero grau.

Enfrentar a temperatura baixa era difícil. Mas era pior ficar sem a avó. Ao saber que Maria decidira aceitar o conselho do irmão e viajar até Curitiba, Kelly ficou muito abalada. A avó era

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uma presença constante. Ficar sem ela, mesmo que apenas por um tempo era algo que nunca havia passado pela sua cabeça.

- Eu entrei em desespero porque como eu sempre fui criada com ela... Ficar sem a minha avó eu ia ficar...

Tudo estava acontecendo muito rápido. A notícia da doença, a consulta com um especialista na cidade vizinha, a decisão de re-alizar o tratamento em uma cidade distante. Tudo isso mexeu com a cabeça da jovem que temia não saber como viver sem a com-panhia da avó. Porém, sua mãe tinha outros planos para ela. Tão veloz quanto o rumo dos acontecimentos naquela semana, veio a ordem para que ela arrumasse as malas e viajasse com a avó. Aquela era a chance para Kelly, que havia acabado de completar os estudos do ensino médio, sair da pequena cidade e ir para um grande centro. Caso ela não se adaptasse, ela poderia voltar assim que quisesse.

Em princípio ela veio para acompanhar a avó por apenas dois meses. Mas enquanto Maria ia realizando as etapas do tratamento em Curitiba, Kelly decidiu que faria cursinho para tentar uma vaga na universidade. Queria aproveitar que estava em uma cidade com mais oportunidades do que em sua cidade natal. Além disso, os estudos ocupavam a cabeça. E uma dava força à outra.

Vez por outra a saudade apertava e ela pensava em voltar para casa. Ela se lembrava dos finais de semana em Juara, da reunião com os amigos e sentia falta dos pais e do irmão. Quando via a neta triste, Maria dizia que ela podia ir que ela ficaria para

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terminar o tratamento. Mas uma não deixaria a outra sozinha.

- Na verdade se a Kelly fosse embora acho que eu ia acabar indo também.

- E se a senhora fosse eu também iria.

E não foram. Os sessenta dias iniciais agora já são anos. Kelly se formou em farmácia, começou a trabalhar e se acostumou com o frio. E Maria brinca dizendo que gosta tanto da neta que até ficou doente para ela poder ter uma oportunidade para mudar de vida. Kelly sorri e abaixa os olhos como se concordasse com a afirmação da avó que completa:

- Agora eu não vou mais embora mesmo!

O dia que não terminou

Maria e sua neta Kelly foram direto da rodoviária para a casa de uma sobrinha. Ficaram lá por cerca de um mês até que de-cidiram alugar um apartamento. Apesar de serem bem recebidas pelos parentes, elas decidiram que seria melhor para ambas um espaço apenas das duas. Maria é uma pessoa que diz não gostar de incomodar ninguém. Para ir às consultas ela preferia ir sozinha. Até mesmo a companhia da neta ela dispensou.

- Eu estou com o problema vou levar mais os outros também? Não, cada um vai cuidar da sua vida. Deixa que eu estou com o problema. Eles não conseguiam tirar o que eu tinha. O que eu tinha que tirar era lá (no hospital)!

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Maria cruza os braços e demonstra firmeza na fala. Ela foi bastante enfática ao dizer que a doença era um problema só dela. E ela iria enfrentá-lo sozinha. Ela se ajeita no sofá, firma o olhar no horizonte, e conclui.

- Não quero mais sacrifício de ninguém, basta o meu!

Maria explica o motivo que a levou a querer que ninguém deixasse o seus afazeres para acompanhá-la nas consultas ou em qualquer outro lugar que ela tivesse que ir. Logo nas primeiras consultas no hospital Erasto Gaertner, o médico responsável pelo caso disse que Maria teria que passar por mais uma cirurgia. In-felizmente as notícias não eram as esperadas. Era necessário esse novo procedimento, um pouco mais de um mês após o primeiro realizado no Mato Grosso, pois havia o receio de que o câncer começara a se espalhar para outros órgãos. Seria uma cirurgia relativamente simples.

Avó e neta foram até o hospital. Entretanto, no fim da cirur-gia, uma queda elevada da pressão arterial preocupou os médicos. Por conta desse problema inesperado, o procedimento que levaria poucas horas acabou por durar quase que um dia inteiro. Maria teve uma parada cardiorrespiratória.

Reanimada pela equipe médica, Maria não se deu conta do que havia acontecido com ela. Diz lembrar as enfermeiras chamando o nome dela e do som característico que os vários aparelhos de uma unidade de terapia intensiva (UTI) emitem.

- Eu escutava aquele pi pi pi (ela emula com a voz o bip dos

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equipamentos) mas eu estava em uma UTI e achava que era com os outros (risos).

- Depois de uma hora lá, quando eu me recuperei falei “não, o negócio é comigo!” (gargalha).

O relógio marcava 16 horas do dia seguinte à realização do procedimento. Foi quando Maria saiu da sala de cirurgia. Ela viu Kelly conversando com o profissional que havia comandado a operação. A essa altura a jovem, apesar de extremamente preocu-pada com a situação da avó, teve que se manter firme. Ela era o único familiar presente e se acontecesse algo seria ela quem teria que resolver todas as coisas naquele momento. Maria teve apenas uma preocupação. Pensando estar ainda no mesmo dia marcado para a cirurgia, chegou à conclusão que já estaria escuro fora do hospital.

- Ela não estava preocupada que ela estava ruim – conta Kelly.

- Ficou mais preocupada comigo, que estava sozinha, do que com ela mesma.

E Maria conta qual foi o pensamento que apareceu em sua mente quando viu a neta, sozinha, conversando com o médico logo após sua saída da unidade de terapia intensiva para o quarto.

- Mas como é que ela vai embora agora de noite! Ela não conhece nada! E de ônibus!

O que Maria ficou sabendo somente depois é que a neta já tinha ido para casa e retornado no dia seguinte. Por ainda não

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ter 60 anos completos na época, Maria não tinha poderia ter nenhum acompanhante em tempo integral no hospital, somente nos horários de visitação. Depois desse susto, o pós-operatório ocor-reu dentro do esperado. Agora era a hora do próximo passo.

Uma pausa para espairecer

As sessões de radioterapia* se iniciaram logo após a cirurgia. Esse é um tratamento no qual se utilizam radiações ionizantes (raio-x por exemplo), um tipo de energia direcionada para destruir ou impedir que as células do tumor aumentem. Essas radiações não são visíveis a olho nu, e durante sua aplicação o paciente não sente nada – ainda que em alguns casos o local onde a radiação é direcionada possa apresentar algum tipo de queimadura. Em alguns casos, a rádio, como é popularmente chamada, pode ser utilizada em conjunto com a quimioterapia, o que não foi o caso de Maria.

No início, Maria conta que uma das primeiras sessões ela ficou em isolamento por cinco dias. Nesse período, ela não recebeu visi-tas nem notícias de ninguém, nem mesmo da neta. Ficava deitada de barriga para cima, se alimentando de apenas líquidos e com di-ficuldade. Como não podia se mover, as refeições eram feitas com um auxílio de um canudinho, desses que encontramos facilmente em lanchonetes e bares.

Após esse período um pouco mais complicado, Maria conti- nuava o tratamento conforme eram marcadas as consultas e ses-sões. Sempre sozinha. Kelly se dedicava aos estudos. Diante dis-so, Maria diz que não pensava na doença. Pensava em se tratar e

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fazer o que tivesse que ser feito. Mas como toda pessoa, ela também tinha os seus momentos de altos e baixos. Para evitar ficar depri- mida ela descobriu seu próprio método.

- Quando eu me encucava com alguma coisa, eu pegava o ônibus e caía no mundo. Ia lá para o centro de Curitiba naquela rua quinze e ficava andando por lá até espairecer. Depois eu vinha embora.

Não dar margem aos pensamentos, principalmente os nega-tivos, era a maneira que Maria encontrou de não se deprimir nem entristecer. Kelly ainda reforça que a avó sempre foi uma mulher de ação. Faz primeiro para depois pensar no ato ou na consequên-cia. Ocupar a cabeça, para ambas, foi um dos principais motivos que as fortaleceram e deram ânimo para superar os dias mais ne- bulosos.

Ela se lembrou de uma conhecida. Uma amiga, da época em que ela morava em Juara. Por coincidência, tiveram o mesmo diagnóstico na mesma época. E por um capricho do destino, vive- ram situações semelhantes na família. Maria, diz acreditar que muitas vezes, problemas emocionais são um facilitador para o sur-gimento de doenças. Ficar triste e deprimido, piora a situação.

- O caso dela foi a mesma situação minha. Eu superei (a de-pressão). Ela caiu...

O tratamento com a radioterapia durou seis meses. Foi o pra-zo previsto pela equipe médica que planejaram 25 sessões para Maria. A cada vez que ela ia às sessões ela encontrava diferentes

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pessoas que estavam realizando tratamento no hospital Erasto Gaertner. Sempre conversava com um ou outro para passar o tem-po, ou mesmo para ouvir as histórias de quem queria desabafar. Porém, ela nunca ouviu ninguém lamentando ou reclamando da situação em que se encontravam e isso lhe chamava a atenção. E sempre via as pessoas uma única vez. Acabava por não saber o que aconteceu com cada uma daquelas pessoas.

O semestre que durou seis anos

Um semestre se passou e após esse período Maria foi liberada do tratamento com a radioterapia. Não recebeu alta, mas deve- ria realizar exames periódicos e completos, para avaliação e para se precaver de uma possível volta do câncer em alguma parte do corpo. Com mais tempo livre, resolveu voltar a trabalhar. Arran-jou trabalho como costureira em uma fábrica onde produz, entre outras coisas, materiais descartáveis para médicos, como toucas e proteção para os pés. Ainda hoje, trabalha na mesma empresa. Em horário comercial, perto de casa, seis dias por semana. A notí-cia de que estava livre do câncer veio seis anos depois do desem-barque naquela noite fria de maio de 2005. No entanto, todos os anos Maria faz um check-up minucioso.

Para Juara, vai vez por outra só a passeio. Prefere ir ao interior do Paraná, visitar a mãe e os irmãos. Ou para Cuiabá ver o outro neto. Quando vai à capital do Mato Grosso, a única filha que ainda vive em Juara costuma ir também. Kelly, sempre que o trabalho permite, viaja junto com a avó.

Ela conta suas histórias para quem tiver disposto a ouvi-las.

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Afinal, como ela mesma diz, gosta de uma boa conversa. A neta se espelha nela e se orgulha da maneira como a avó leva a vida. Diz que cresceu muito como pessoa deixando a casa dos pais e a cidade natal para acompanhar Maria em um lugar desconhecido. Maria, por sua vez, insiste em dizer que não se incomodou em en-frentar a doença e realizar o tratamento. Seria muito pior para ela se isso acontecesse à única filha ou a algum dos netos.

Entretanto, ela recomenda.

- Tem gente que diz que não vai ao médico porque quem procura acha. Mas se você não procurar você não acha. Se você achar, você cura!

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no controlePor Thamiris Mottin

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Era uma sexta feira, o dia estava típico de Curitiba, nublado e frio. Combinei de encontrá-la em seu trabalho. Quando cheguei lá, fui conduzida até a sua sala. A sala era simples, com janelas pequenas e talvez por causa do frio daquela manhã, estava bem gelada. Não havia muitos móveis, apenas uma mesa com uma cadeira de um lado e duas do lado oposto e alguns armários, que acredito guardarem arquivos. O ambiente, apesar de simples se enchia de elegância só com a presença dela ali.

Maristela de Andrade Michel é a coordenadora do Projeto Adolescente Aprendiz da Cidade Metropolitana de Araucária. No dia usava uma roupa preta, composta por calça e blazer, e com uma pashimina indiana puxada pro tom de azul, mas com umas estampas discretas. Ela usava maquiagem e tinha o cabelo ruivo bem escovado.

Durante a nossa conversa, ela contou o quanto tem discipli-na quando o assunto é saúde. Começou a fazer o checape anual a partir dos 40 anos, fazia os exames de rotina todos os anos, mais ou menos no mês de setembro. Mas no ano de 2014, talvez por causa da correria do dia a dia, com o trabalho, setembro pas-sou, outubro passou, e quando notou, já era início de dezembro. Maristela então ligou para o seu médico, o qual só teria horário para o dia 19, era a última consulta do ano.

- Meu médico não teria horário para antes do Natal, para eu marcar o retorno, então ficou para depois do dia 25. Fiz os exa- mes, busquei todos e guardei. A eco mamária, inclusive, eu peguei

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uma semana antes, estava escrito que eu não tinha nada, ótimo! Engavetei os exames.

Lá pelo dia 17, mais ou menos, Maristela lembrou que não havia buscado os resultados da mamografia. Quando finalmente os teve em mãos, ela acabou os deixando no carro, já que estava confiante que não havia nada de errado nos resultados dos outros exames:

- Estava aqui, e eu lembro que não quis sair para almoçar, então por alguma razão, que não me recordo agora, eu fui até o carro pegar esse exame para ler o laudo. Eu não lembro quais eram as palavras técnicas, mas ele dizia que eu deveria investigar e que era compatível com BI-RADS 5*.

Assim que leu o resultado, Maristela entrou em contato com o médico ginecologista, mas ele já havia saído de férias, e por isso o primeiro contato sobre o caso foi com a secretária. Maristela ex-plicou o que estava escrito no laudo, a secretária escutou e disse que retornaria a ligação.

- Mais tarde o meu médico ligou, eu falei para ele o que es-tava no exame e ele me passou o nome de um médico oncolo-gista. Nessa hora eu já sabia sobre o que se tratava, porque eu havia pesquisado na Internet o que significava aquela nomencla- tura, porque eu não estava familiarizada com ela ainda e lá estava escrito que 95% dos BI-RADS 5* são câncer.

Logo após a ligação, ela passou um e-mail para a filha Carol,

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contando a notícia. No mesmo momento, passou uma mensagem para as colegas de trabalho dizendo que achava que estava com câncer. A Carol hoje tem 28 anos, mora em São Paulo com o mari-do. Ela acompanhou a mãe em todos os momentos, chegando até a se hospedar na casa para ajudar com o que podia.

- Passei a mensagem para a Carol e para as meninas com um sentimento assim de pânico, passei as informações para o meu marido, que começou a ligar nas clínicas para marcar consulta com um oncologista e nenhuma tinha horário disponível, até que ele ligou em uma e a recepcionista disse que tinha uma desistência, para aquele dia e por coincidência era o mesmo médico que o gi-necologista havia indicado.

Nessa consulta o médico a deixou bem tranquila, explicou que achava que talvez nem fosse um BI-RADS 5 e que fariam uma res-sonância, e com base nela, eles conversariam. Então nos dias que se passaram, ela foi fazer o exame e com os resultados em mãos, ficou de ela passar as fotos pelo WhatsApp. Então o médico pediu uma biópsia.

- Para mim só foi difícil até eu saber o que eu iria fazer, depois disso encarei tudo com muita positividade.

No dia 26 de dezembro foi marcada a biópsia*, e quem a acompanhou foi a Carol. Maristela descreve a experiência como dolorida.

- Doeu aquilo, se eu tivesse que fazer outra seria só com

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anestesia geral – risos – foram cinco tiros que eu levei na mama, que eles tiram cinco pedacinhos. Então, ela injeta uma agulha lá dentro, e fica olhando na tela, você vê o teu tumor, a agulha entra, eu vejo ela entrar e quando ela dispara aquele botão, aquilo faz um estouro como se fosse um tiro e ela arranca um pedacinho, então eu pensei, falta quatro. - risos – o segundo doeu mais que primeiro, o terceiro doeu mais que os dois primeiros, no quinto eu já estava desesperada e eu me lembro de falar para a enfermei-ra, “me dá as tuas mãos aqui” porque doía demais. Então quando acabou a médica disse “agora o que você vai fazer. Você vai tirar as tuas férias, porque são 20 dias, antes de 20 dias eu não tenho o retorno, para você”.

As férias da Maristela são sempre na praia. Reunida com a família, com verão, piscina e sol, Maristela estava feliz. Em alguns momentos, quando ela lia um livro, por exemplo, vinha o pensa- mento: “é meu último livro, é meu último verão”. Ela diz que veio essa sensação de que tudo poderia acabar ali porque ela não sabia o que aconteceria com ela até então. Mais ou menos entre os dias 18 e 20 de janeiro ligaram, dizendo que a biópsia estava pronta e sem pensar duas vezes arrumaram as coisas e voltaram para Curitiba.

Quando pegou a biópsia, Maristela conta que não conseguiu esperar até a consulta com o oncologista, que foi marcada para o dia seguinte, então ela abriu o exame:

- Eu falei pra Carol não vou abrir, vou deixar para o médico

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abrir, mas eu não consegui, aquilo parecia que me queimava as mãos, eu pensava “não vou dormir se eu abrir mas se eu não abrir eu também não vou dormir”. - risos – Eu precisava saber o que tinha ali.

Elas estacionaram o carro e então o exame foi aberto.

- Eu me lembro da cara da Carol até hoje, e eu falei “É câncer. Carol tá confirmado”. Então esse é um momento que a gente per-de a fala, ela não tinha palavras para me dar e eu não tinha para falar para ela. E nisso meu irmão ligou perguntando o resultado, e eu falei que estava confirmado e ele também perdeu a palavra, não conseguia, parece que some o chão, a gente se sente impo-tente.

No dia seguinte, no consultório, Maristela pediu para que o nódulo fosse retirado. O médico explicou que como era pequeno dava sim para retirá-lo sem fazer nenhum outro tratamento antes da cirurgia, mas, ainda assim, ele gostaria de saber se ela não havia mais nenhum outro nódulo em outros órgãos. Dito isso ela foi encaminhada para realizar uma bateria de exames, mesmo com a grande quantidade, Maristela não se abateu e fez todos, conforme o médico havia pedido. Já com os resultados em mãos, pode-se ver que não havia mais nenhum outro tumor.

A cirurgia foi marcada para o dia 4 de fevereiro, Maristela foi acompanhada mais uma vez pela Carol:

- Foi a coisa mais linda, quatro homens, médicos né, vie-

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ram me assistir, me senti toda poderosa. Na cirurgia, foi feito uma reconstrução, eu não cheguei a retirar a mama, como meu tumor não era um tumor grande, não haveria necessidade de retirar a mama, mas ele deixou claro que não poderia me confirmar que não retiraria a mama caso fosse necessário.

No momento Maristela não se preocupou com a possibilidade de retirar a mama, ela conta que só foi se dar conta com a ideia da cicatriz depois. Realmente foi tudo muito rápido.

- Eu me lembro no dia seguinte, depois que passou o efeito da anestesia o médico entrou no quarto e perguntou “Você quer ver como é que ficou?” e eu pensei “Como é que ficou o que?” – risos – e ele queria me mostrar como é que ficou, por ele deixou mais em pé, fez toda aquela coisa, porque aos 55 anos a mama né … Mas em momento nenhum eu me preocupei com isso, eu não me lembrei de que eu faria uma reconstrução mamária, o meu foco era tirar o tumor. E foi tudo muito fácil para mim depois, a cirurgia foi no dia 4 à tarde, e no meio dia do dia seguinte eu ganhei alta, não foi preciso ir para casa com dreno.

Por causa da cirurgia, o médico deu a Maristela 30 dias de atestado e ela recusou, dizendo que não poderia ficar parada. De-pois de uma negociação, ele deu 15 dias, porque menos disso ele não poderia dar.

- Na verdade eu fiquei cinco dias afastada, porque naquelas semanas teve feriado de carnaval e aniversario de Araucária então o pessoal também não trabalhou. E quando eu voltei, fizeram uma

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festa aqui (trabalho), com bolo, orquídea, bexiga e foi uma delícia ser muito bem recebida por um pessoal que sempre me deu muito apoio.

Logo depois da cirurgia começaram as sessões de radiotera-pia, ao todo 25 sessões. Na cirurgia foi retirado o Linfonodo Sen-tinela*, que estava limpo, não tinha câncer, o tumor era positivo para hormônio e não precisaria de quimioterapia.

- Meu marido me levou para a primeira sessão de radiotera-pia e eu me lembro que foi feita a marcação e na época eu estava bronzeada e usava creme, então o moço me marcou e quando eu cheguei em casa a tinta tinha derretido toda! – risos – Ai eu voltei lá e ele falou “então não passa mais creme vou marcar tudo de novo”, então eles colocaram uns adesivos encima e eu fiquei mais ou menos um mês e meio com tudo aquilo.

Por causa da possibilidade de dar efeito colateral, o marido da Maristela a levou nas duas primeiras sessões:

- Não deu efeito nenhum, para mim era como bater uma fo-tografia, não senti nada, não tive um desconforto. Fui sozinha to-das as outras 23 sessões, optei por fazê-las no meu horário de almoço para não me atrapalhar no trabalho. Então meu horário de sair daqui é 11h30 e eu saia um pouquinho antes, 11h15 mais ou menos, porque eu tinha que chegar lá antes do 12h. Fazia a rádio em 5 minutos nem isso, 1h voltava assinar meu ponto e trabalhar. Então assim, foi uma tranquilidade para mim, não tive nenhuma reação, só no último dia, o moço tirou os adesivos, porque tinha no

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braço, na mama, e você não esquece daquilo e ele tinha me falado que eu não podia usar desodorante, não pode usar nada. No dia que ele tirou eu voltei para casa, tomei um banho maravilhoso e ... ó desodorante, levantou bolhas – risos - queimou né, ai eu voltei pra clínica e eles falaram “poxa, mas já estava com saudades da gente?” – gargalhadas.

Mesmo com tudo o que aconteceu, parecendo fácil ou não, Maristela conta que sentiu medo sim, sentiu no começo, quando não tinha ideia do que aconteceria, sentiu medo porque era algo desconhecido.

- Não me derrubou, eu disse que a gente teria que encarar, o que me deu medo foi lá no começo, que eu não sabia o que fazer. Então lá na praia eu estava nervosa, angustiada, tive meus mo-mentos sozinha, com muito medo de perder família, de perder a vida, de perder tudo. Mas eu nunca disse que não iria lutar.

A única vez que Maristela foi muito taxativa foi por conta da quimioterapia. Ela não nega que tenha medo do tratamento, principalmente porque é uma mulher e mulheres são sim, muito vaidosas. Ela sempre teve receio da quimioterapia e seus efeitos colaterais, como perder o cabelo, precisar se afastar das pessoas, os enjoos, entre outras coisas.

- Eu me lembro de olhar para o médico e dizer que não faria a quimioterapia, e então me lembro dele me perguntar se o que eu queria era morrer – risos – nesse momento eu disse a ele que se tivesse que fazer eu faria, mas eu não ia precisar e de fato não

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precisei – risos.

Em casos como esse, a presença da família e dos amigos é muito importante: em nenhum momento ela escondeu a doença e sempre recebeu deles um apoio muito grande. Maristela fala com a voz carregada de orgulho da filha, por ela ter ficado o tempo todo junto, ter participado mesmo com medo.

- Ela estava lá para me dar banho, lavar e pentear meus cabe-los, foi fantástico o apoio da minha filha e do meu marido também, mas eu o sentia um pouco mais preocupado e assustado, e a Carol muito presente, ela chorou, chorou muito, eu sei disso porque as pessoas me contaram que não queriam que eu soubesse que ela estava assustada e com medo, mas eu tive um apoio muito, muito grande dela. Inclusive quando eu terminei a radioterapia, chegou um buquê grande lá de orquídea branca, enorme e a enfermeira veio com aquilo para mim, os outros pacientes olharam e então ela falou assim “olha, sua filha pediu para te entregar…”, e foi assim do início ao fim, e eu acho que isso ligou muito mais a gente, não sei se é a possibilidade da perda, mas os laços ficam muito mais apertados.

Maristela conta que ela teve medo em um determinado mo-mento em que a Carol contou a ela que fez os exames preven-tivos e que um de seus resultados notou a presença de nódulos na mama. Nesse momento, quando havia a possibilidade de ver a filha doente, o sentimento que veio a tona foi algo parecido com a revolta:

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- A Carol me contou e então eu pensei, “um raio não cai duas vezes no mesmo lugar” - risos – Nesse momento eu chorei mais, eu chorava por ela e não por mim, aquele momento eu senti uma revolta, eu falava assim “não é possível, não é. Com ela não!”, mas aí quando veio o resultado, estava lá que não havia sido detectado a malignidade.

Apesar desse único momento, Maristela conta que toda a sua experiência foi muito tranquila, foi tudo muito leve. Hoje ainda em tratamento, ela chora, mas com lágrimas de emoção e não de medo ou por pensar “por que isso aconteceu comigo?”, não. A cada três meses ela pensa, “é hoje que eu vou fazer o exame, tomara que não tenha nada”. O medo existe, lógico, é natural: “to-mara que nunca mais volte e se voltar a gente vai encarar”.

- E assim o que eu posso dizer de tudo isso? Eu fiz muitos agradecimentos! Agradeci realmente pela forma que essa doença veio pra mim, porque assim, eu não sei por que vem essa doença, não sei se vem para nós refletir, não se ela vem para mudar alguma coisa na gente, não sei por que, eu não consegui, mesmo pensando, eu não consegui saber por que veio, mas eu agradeço a forma que ela veio, porque foi uma forma muito tranquila até então.

Maristela vai comemorar em breve o seu primeiro ano sem a presença da doença, e segue firme, uma vez que terá que vencer mais quatro anos. Por meio de uma tabela, feita por seu marido no programa Excel, ela acompanha todos os dias o andamento

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do tratamento, que no momento como ela diz, está com 19,8 por cento do tratamento feito.

- De certa forma, eu não sei se é isso, mas é bom eu me sentir no controle, diz Maristela com um sorriso no rosto.

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quando a vida assume a direção

Por Fernanda Bertonha

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A paixão de Marcos pelas corridas de rally é tão perceptível quanto sua vivacidade. Ao entrar em sua residência, basta olhar para o lado direito para ter a visão de uma infinidade de troféus. Eles são de todos os tamanhos, alguns em formato de capacete, outros em moldes de veículos parecidos com aqueles em que ele costuma correr. Cada troféu vem acompanhado de uma lembrança: mas nenhuma delas supera aquela segunda colocação na prova de dezembro de 2012. Até chegar lá, algumas marchas precisaram ser trocadas com maior paciência.

Em meados de abril de 2011 Marcos começou a notar alguns sintomas em seu corpo: havia perdido peso, uns quatro quilos, e vinha sentindo uma espécie de fraqueza. A justificativa para eles foi facilmente encontrada na época, já que a fase era de mudanças na empresa. Marcos não dormia e nem se alimentava como deve- ria. Se deitava perto das 3 horas da manhã, acordava às 6 horas e só tomava um copo grande e cheio de café preto na empresa para conseguir ficar acordado. Depois só almoçava, não jantava. Resu-mindo, o almoço era sua única refeição. Para ele, isso justificava a perda de peso.

- Eu tenho uma prima que trabalha na empresa também e parei um dia para conversar com ela depois de ir ao banheiro. Aí a Jaqueline, uma funcionária, me chamou para ver um negócio no computador dela. Logo ela falou: “Marquinho, que é isso no seu pescoço? Tem uma bola no seu pescoço”. No susto, falei que já estava tratando no médico. Aí voltei correndo no banheiro e olhei no espelho. “Meu Deus o que é isso? ”. Me deu um desespero. Em

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seguida liguei para a Bia, minha esposa, porque me lembrei que eu já estava tendo dificuldade para respirar.

Marcos logo associou a íngua* em seu pescoço a um proble-ma nas vias aéreas, o que justificaria a sua falta de ar. No mesmo dia, ele procurou um otorrinolaringologista. Entrou no carro pró- ximo às 17 horas e percebeu que estava sem gasolina para dirigir de Araucária à Curitiba. A alternativa encontrada foi ligar para um médico amigo especialista: o otorrino Emerson.

- Seis meses antes eu sofri um acidente grave no rally. Está no Youtube e tal. Eu lesionei duas vértebras e faltou muito, muito pouco para eu ficar tetraplégico. Eu lesionei o c3 e o c4 e “pinçou” um nervo que aciona o pulmão, ou seja, que manda oxigênio para o órgão. Logo depois do acidente, eu não conseguia puxar o ar inteiro, só em pequenas quantidades. Mas se o nervo tivesse sido cortado, a comunicação com o pulmão seria interrompida na hora e eu automaticamente teria tido uma parada respiratória. Enfim, achei que fosse por causa disso que eu ainda respirava com difi-culdade.

Carros, alta velocidade, adrenalina, potência e coração a mil são peculiaridades que não podem faltar na rotina de Marcos. Di-ante disso, abrir mão das competições, temporadas, emocionantes largadas e trocas de marcha para a recuperação no pós-acidente não foi uma simples tarefa.

O otorrino não hesitou em atender Marcos naquele dia, ape-sar de estar de folga.

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- Liguei para o doutor, expliquei o que eu tinha. Ele respon-deu: “onde você tá? Eu tô aqui em Araucária dando uma volta de moto”. Ah, ele tinha uma motona, dessas de 1100 cilindradas.

O médico pediu para que Marcos fosse à sua residência, onde ele chegaria dentro de cinco minutos. Então ele abasteceu o carro, foi para lá e ambos chegaram juntos ao destino combinado.

Marcos foi atendido na casa do médico – ele estava de folga e, felizmente, tinha todo o aparato tecnológico em sua residên-cia. Emerson conectou os aparelhos que analisariam seu paciente na enorme TV da sala e bastaram alguns instantes para consta-tar que na garganta não tinha nada. Mas, devido à dificuldade para respirar, aplicou em Marcos um medicamento para dor com a orientação de que no dia seguinte ele o procurasse no Hospital São Vicente.

No outro dia, Marcos foi ao hospital. Fez um ultrassom no pescoço – o qual não identificou nada de anormal. E em sequên-cia, foi orientado a realizar exames de tomografia na garganta e no tórax.

- Eu tinha medo de tudo. Eu não sabia nem o meu tipo san-guíneo, para você ter uma ideia. Imagina o meu desespero com a agulha da tomografia. Aliás, não é uma agulha né, é um tubo de esgoto. Aí a menina me disse o seguinte: “olha, é a primeira vez né? Você vai ter a sensação de que fez xixi nas calças”. E de re-pente tum, dá aquela sensação. Sério, alguém já fez? Você tem a nítida de que deu vexame e molhou tudo ali.

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Assim que o exame foi realizado, Marcos foi chamado no con-sultório. O médico virou a tela do computador em sua direção e afirmou que havia descoberto o seu problema. Pelo jeito, a falta de ar não estava na garganta, mas sim, em seu pulmão esquerdo. Marcos foi orientado a olhar para a tela, onde poderia ver o seu pulmão cheio de água.

- Mas como água?

Em seguida explicou que havia uma grande chance de que Marcos estivesse com um derrame pleural*, doença que, por sua vez, leva ao desenvolvimento de um linfoma.

Marcos saiu do consultório com uma lista de vários oncologis-tas indicados pelo otorrinolaringologista, que lhe orientou a ligar para um deles assim que o exame ficasse pronto. Mas, o resultado só veio na véspera do feriado de primeiro de maio. Marcos teve, em vão, várias tentativas de agendamento de consultas com espe-cialistas, mas aparentemente, todos estavam aproveitando o feri-adão.

- Você acha que eu localizei algum daqueles médicos da lista para consultar? Nada. Tava todo mundo viajando. Não tinha crise, né? Peguei o exame, olhei, não entendi porcaria nenhuma. Mas hoje a gente é craque já. A Bia sugeriu consultarmos o planto- nista do hospital São Vicente para aliviar a angústia, e foi isso que fizemos.

A atendente informou a Marcos e a esposa que o único plan-tonista disponível era pneumologista. Então, o casal aguardou para

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que pudesse ser atendido por ele.

Bia se lembra com detalhes da expressão do médico:

Após verificar os exames, o médico olhava o resultado, olha-va para gente. Olhava o exame, olhava para gente. Aí ele falou: “Marcos, sinto te comunicar, mas você está com câncer”.

- Naquela hora, faltou chão. Você não sabe o que pensar na hora. A primeira coisa que passa na cabeça é: “fudeu”. Não deu nem tempo de o doutor parar de falar e a Bia já abriu o berreiro. Ela começou e não parava mais de chorar. – Diz Marcos com toda a naturalidade.

Sua esposa completa a fala:

- O problema é que até então a gente tinha a ideia de que quem tinha câncer morria. Mas só até então, né?

Marcos não fazia ideia de como deveria prosseguir.

O pneumologista perguntou qual era o plano de saúde de Marcos. Em seguida, pediu para que ele e a esposa esperassem do lado de fora enquanto ele verificava a possível existência de um centro de referência para tratamento da doença. Instantes depois, o hospital foi informado: Vitória, no bairro Cidade Industrial de Curitiba (CIC).

O CIC é o bairro curitibano que abriga o complexo indus- trial da capital. É o maior em extensão territorial, com altas taxas de desigualdade social na região. Sendo assim, se por um lado é

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altamente desenvolvido em fábricas e indústrias, de outro, ainda é marcado pela divergência entre pobres e ricos.

- A hora que ele falou “hospital referência no CIC” aí eu pen-sei: agora que eu tô morto mesmo. Pronto, agora que eu vou des-sa para uma melhor – brinca Marcos.

Felizmente, o Hospital Vitória (de propriedade da operadora de plano de saúde de Marcos) localizado no CIC era recém-inaugu-rado e qualificado para atendimentos na área de oncologia – o que justifica um andar inteiro dedicado aos tratamentos da doença.

Com o diagnóstico oficializado, alguns medos começaram a passar na cabeça do corredor de rally, que há pouco tempo havia tido a exultação de subir ao pódio pela primeira vez com seu filho ainda bebê:

- Ah, tá com câncer? É uma sentença de morte. Quando você recebe a notícia, você não sabe a intensidade da doença. Em alguns casos, é questão de duas semanas. E você pensa. E agora? O que é que eu vou fazer? Não vou ver meu filho crescer? Eu não sou casado legalmente. Como ficará essa questão dos direitos?

Naquela mesma noite, Marcos reuniu sua família a fim de ali- nhar quais seriam os próximos passos a serem tomados. O pri- meiro, principal e mais importante era claro: “blindar” a mãe, que tem problemas de coração, da notícia.

- Vamos falar que eu estou com problema na garganta, qualquer coisa. Menos câncer.

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No início, Marcos foi bombardeado de informações por todos os lados. Seu chefe chegou a lhe ligar, em um dia qualquer, para informar que já estava tudo pronto para que ele fosse tratado em São Paulo. Mas, para ficar próximo da família, Marcos optou por ficar.

Linfoma de Marcos “Gianecchini”

O que deveria ser um procedimento simples – uma biópsia* – acabou se complicando. O gânglio* que precisava ser alcança-do para coleta do material estava em um local de difícil acesso no pescoço, o que fez com que Marcos precisasse se submeter a uma cirurgia relativamente complexa para colher o material.

O resultado da biópsia revelou que Marcos estava com um linfoma* não-hodking* nas células B, o que afeta a produção dos glóbulos brancos no sangue. O drama é semelhante ao que foi en-frentado pelo ator Reinaldo Gianecchini alguns meses antes de seu diagnóstico.

Marcos não perde a piada:

- “Tava” na moda, né. Esses foram os meus dias de Gianecchini.

Marcos teve que esperar um tempo até que os ciclos quimi-oterápicos fossem liberados pelo plano de saúde, o que agravou sua situação respiratória.

- Chegou ao ponto em que que não conseguia mais dormir deitado, passei a dormir sentado no sofá e com muita, muita difi-culdade para respirar. Quase sofri uma parada cardiorrespiratória.

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Fui então levado ao hospital para ser medicado e passei a noite internado.

Felizmente, logo a liberação do plano saiu e Marcos deu início ao tratamento quimioterápico. No dia seguinte após a primeira sessão, sua respiração já começava a melhorar.

- No total foram 6 ciclos com alguns percalços no caminho – principalmente devido ao problema da imunidade. Ela che- gava muito próxima a zero pela ausência dos glóbulos brancos responsáveis pela defesa do organismo.

Durante o tratamento, o país também enfrentava uma epi-demia: a da gripe H1N1.

- Aí eu não podia nem pensar em sair de casa. Se eu pegasse a gripe, esqueça. Sem chance, aí já era né? Eles falavam que eu não podia nem abrir a geladeira para evitar o risco de pegar um resfriado – conta ele.

Bia se recorda da época em que receber visitas era impossível:

- Todos os médicos falavam sobre a restrição. E nem por causa da gripe, mas sim por conta da imunidade.

Certa vez um dos ciclos de quimioterapia foi adiado, pois Marcos não conseguiu alcançar a imunidade necessária para rea- lização do procedimento. Para recuperar as defesas do organismo, ele precisou se submeter a uma alimentação especial e rigorosa: composta por bastante fígado de boi e brócolis.

- A minha mãe tem uma receita, que eu não sei o que ela põe,

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que tirava aquele gosto ruim do fígado. Aí eu colocava algo para comer junto, o arroz, os brócolis, e disfarçava o gosto. Mas eu não podia ir na casa da mãe por causa da imunidade. Minha irmã trazia a marmita, deixava ali fora. Ela largava um tupperware e pegava o outro.

A prisão domiciliar

Ficar trancado em casa durante os seis meses de tratamento foi, certamente, uma das etapas mais complicadas para Marcos. Quando se sentiu preparado, ele postou a notícia em suas redes sociais, especificamente, no Facebook:

- Nossa, foi a melhor coisa que eu fiz. O apoio que eu recebi foi fantástico. Em questão de 5 minutos já tinha quase 300 men-sagens de apoio ali. Eu passava o dia conversando com um e com o outro. Nessa época ainda não tinha o whatsapp, ainda bem. Se não imagina só? De repente, descobria que tem mais gente do que eu imaginava passando pela mesma situação.

A prima de Marcos, Giovana, teve um colega diagnosticado com o mesmo linfoma que ele – mas em uma época em que esse tipo de câncer era extremamente raro. Ele se chama Henrique e foi submetido a mais de 15 tratamentos, todos eles ineficazes até a real descoberta do problema. Hoje, curado, disputa campeonatos esportivos de alta intensidade, como o famoso Iron Man. Paralela-mente aos objetivos esportivos, Henrique busca ajudar pacientes diagnosticados com o mesmo linfoma, deixando-os mais confiantes sobre os próximos passos. Certo dia, Giovana avisa Marcos que Henrique entrará em contato por telefone.

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- Esse cara é muito 10. Ele me ligava e falava: “quando você vai fazer a sua primeira quimio? O negócio é o seguinte. Você vai chegar lá, vai tomar um tanto de soro, você pode passar mal” ... enfim. Ele me adiantava todos os passos. Mas o mais grandioso deles eu me recordo até hoje em detalhes. Ele perguntou o quão apegado eu era com o meu cabelo, afinal, eu teria que raspá-lo em breve, e depois complementou: “antes de fazer a quimio, ou no máximo um, dois dias depois, você vai raspar a sua cabeça. Passa a máquina 0”. Eu quis saber o porquê. “Bom, vai cair né? E é o seguinte: você tem que mostrar para a doença que quem manda é você. Você não vai esperar o teu cabelo cair, olhar no espelho e ver ele caindo. Você vai raspar, na máquina 0 e pronto. Você vai falar para a doença: quem manda aqui sou eu, não você”.

Henrique adiantou vários passos da doença e fez Marcos vê-la de outro modo.

- Lembro que no último ciclo quimioterápico eu passei um pouco mal. Todas as sessões eu voltei dirigindo o carro. Na última eu não estava muito legal, mas fiz questão de voltar no volante.

- Por quê? – Questionei.

- Mostrar quem é que manda.

Ficar em “prisão domiciliar”, como ele gosta de chamar o período em que ficou seis meses em casa, não foi nada fácil para Marcos. Durante esse tempo, suas únicas saídas eram para o hos-pital ou para a realização de exames. Além disso, era necessário

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estar sempre com a máscara no rosto, para evitar qualquer tipo de contaminação.

- A melhor parte de sair de máscara é que todo mundo foge de você. Aí eu ia fazer exame de sangue. Eu chegava, sentava. Se tinha alguém perto, logo se afastava. Era muito engraçado, diver-tido. Essa parte foi bacana – ri ele ao recordar.

Marcos relacionou o tempo em que ficou em casa com um período de férias. Aliás, mais ou menos isso: logo no começo ele pediu para que o pessoal da empresa onde trabalha instalasse um acesso remoto no seu computador pessoal, o que permitia que ele gerenciasse sua equipe de casa. E foi nesse meio termo que Marcos decidiu:

- Esse ano eu volto a pilotar um carro de rally.

Dito e feito. Em outubro de 2012, os ciclos previstos foram concluídos e uma série de exames realizados. Em meio aos re-sultados, a tão esperada notícia de que Marcos estava livre do câncer. A partir de agora, só seria necessário o acompanhamento – primeiramente a cada três meses, e depois, a cada seis.

- Bom, mas eu mesmo só vou me sentir curado quando estiver dentro de um carro de rally.

Em cima do pódio

Em dezembro de 2012, lá estava Marcos, na cidade de Blu-menau (Santa Catarina), voltando às competições logo na última

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etapa da temporada.

- Confesso que não foi fácil segurar a emoção quando larguei o primeiro trecho da prova. E apesar de ainda estar muito debilita-do fisicamente, ainda consegui, junto com meu amigo e navegador Laercio Reginatto, conquistar a segunda colocação na prova.

Subir ao pódio sempre foi importante e extremamente significativo para Marcos. Mas dessa vez, a vitória era em dobro.

- Simbolicamente, o momento representou muito não só a mim, como também aos familiares e amigos que sempre estiveram do meu lado.

Durante toda nossa conversa, Marcos expõe a sua facilidade para lidar com qualquer tema. A camiseta escolhida para nos rece-ber era branca e tinha o famoso ícone do jacaré verde na lateral. Mas, nos pés, os clássicos chinelos exalavam a simplicidade de quem aprendeu a ver a vida de outro modo. Ele está com a barba bem-feita e frequentemente o vemos mexendo nos cabelos lisos.

De um lado da mesa deixou o celular, um verdadeiro compa- nheiro para algumas de suas histórias. Do outro lado, uma garrafinha de água que ganhou após a participação em uma corri-da de rua – este hobbie, por sua vez, adquirido após o tratamento.

Antes de começar a gravar, falamos sobre tudo. Começamos com a justificativa do projeto de conclusão de curso e logo estáva-mos interagindo sobre corridas de rally, musculação, sobre licores artesanais e até mesmo sobre como os memes das redes sociais

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retratam nosso cotidiano.

Bia também se recorda dos episódios em que eles brincavam de corrida de cadeira de rodas no hospital. Se há forma mais leve de levar a vida, desconheço.

- Olha, e eu só vou em velório quando eu preciso mesmo. Faço tudo para não ir. Na época da doença, falei para meus amigos: “se eu falecer vai ser o seguinte. Depois que enterrou lá, vai todo mundo para o boteco (eu vou deixar a grana) e vão tomar pelo menos dois barris de chopp. Eu quero todo mundo bebendo e dando risada.

Marcos esteve disposto a nos contar cada detalhe de sua história, mesmo que com pausas devidamente justificadas: para nos mostrar uma piada divertida no Instagram, um de seus troféus ou vídeos do rally ou para buscar um pacote de salgadinho para o filho de seis anos, que acompanhou nossa conversa do sofá. Mal sabe ele a intensidade da experiência que viveu ao lado do pai, mesmo que com apenas dois aninhos de vida na época.

Aquele 1%

- Bom, eu jogo como goleiro né. Aí eu percebi que tinha algo errado quando comecei a levar uns gols meio esquisitos.

Em um dos exames de rotina, em agosto de 2014, Marcos foi informado de que alguma coisa poderia não estar da forma como deveria. Logo em seguida ele foi submetido a alguns procedimen-tos e então veio a descoberta: um câncer no cérebro.

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- Quando eu fui diagnosticado com o tumor no cérebro, eu pensei, e agora? Que parte do cérebro eu vou precisar tirar? Vai afetar o que? Mobilidade, visão, olfato ... O que vai acontecer? O que vai paralisar? Você não tem noção no início. Aí te falam: é no cerebelo*. Lá no centro do cérebro. É complicado.

Os médicos avaliaram que, devido ao histórico de Marcos, havia 99% de chance de que o tumor fosse maligno.

- Quando eu diagnostiquei o câncer no cérebro fui em vários médicos. Aí fui em um doutor conhecido meu aqui em Araucária. Ele falou: “O negócio é seguinte. Você está com um tumor no cére-bro e com hidrocefalia. O primeiro passo é tratar a hidrocefalia. Hoje é dia 2. Amanhã eu viajo para os EUA e volto dia 20. Agenda lá com a Denise para o dia 22, data que vai estar marcada a sua cirurgia. Mas relaxa: eu acho que você aguenta até lá”. Ele falou assim de boa, brincando ... legal para caramba. E pensar que esse cara teve câncer no cérebro e tava lá ... e ainda ia fazer a minha cirurgia.

No dia 22 de setembro de 2014 a cirurgia de hidrocefalia foi realizada com sucesso. Agora, era preciso esperar a liberação dos equipamentos solicitados pelo médico por parte do plano de saúde para que o segundo procedimento cirúrgico pudesse ser realizado. Esse seria mais arriscado, já que removeria o tumor na região cen-tral do cérebro, especificadamente, no cerebelo.

No grande dia, em novembro de 2014, a cirurgia que poderia levar o dia todo para ser finalizada, levou pouco mais de uma hora.

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O motivo?

- Aquele 1%.

O tumor de Marcos era benigno, o que fez com que, feliz-mente, pudesse ser removido do cerebelo sem qualquer sequela.

- Como é que eu não vou ter fé? – Afirma ele, ao lado da esposa e filho.

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Posfácio Transformar uma experiência negativa e dolorosa em algo construtivo é um dos grandes desafios do ser humano. Lidar com os obstáculos que a vida impõe sem permitir que eles mudem a nossa essência e nos tornem pessoas amarguradas. A ideia de escrever esse livro está vinculada a isso: no dia 13 de agosto de 2015, momento em que as equipes do 7º período de Jornalismo da PUCPR definiam os seus temas de Trabalho de Conclusão de Curso, minha mãe foi internada em um hospital de Curitiba. Sentia dores de cabeça terríveis, tonturas, tinha pequenos desmaios e ainda estava completando mais de 9 anos de luta contra o câncer.

A partir desse momento, posso dizer que eu abandonei a minha equipe. Enquanto Fernanda, Jaderson, Marcio e Thamiris se esforçavam ao máximo para delimitar um tema, eu passava boa parte dos dias e noites no hospital, aguardando um diagnóstico e fazendo companhia para aquela que sempre foi a minha melhor amiga. No fim de agosto, veio o resultado de um exame que com-provou que os sintomas dela eram aquilo que mais temíamos: o câncer havia reincidido e dessa vez estava espalhado pelo líquido que percorre o cérebro e a medula espinhal.

Ela foi transferida para o Hospital Erasto Gaertner, referência

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no tratamento de câncer, e o médico que assumiu seus cuidados logo disse para nós, familiares, que nada poderia ser feito além de tentar oferecer qualidade de vida enquanto minha mãe estivesse entre nós. Tempo que foi muito curto. Após perder gradativamente os movimentos, a audição de um dos ouvidos e a visão dos dois olhos, ela partiu, no dia 4 de setembro.

Minha equipe de TCC é formada pelos melhores amigos que fiz durante a faculdade e todos acompanharam muito de perto esse acontecimento. Após o falecimento dela, em uma reunião de grupo, surgiu a ideia de contar a história da minha mãe e de outras pessoas que também tivessem lutado bravamente contra o câncer, assim como ela! Conversamos muito e concluímos que esses rela-tos inspiradores mereciam ser contados e que é papel do jornalista dar voz a eles.

Não seria possível dizer exatamente de qual de nós foi essa ideia, porque realmente foi algo que partiu de todos. A minha fe-licidade ao ver meus colegas e amigos abraçando essa causa foi imensa. Principalmente por pensar que podemos ajudar as pes-soas fazendo isso, inspirar quem está enfrentando uma batalha como essa, mostrando que existem coisas que o câncer jamais vai destruir. Como por exemplo, os ensinamentos da minha mãe, que sempre me disse que o melhor que temos a fazer é olhar para o próximo com carinho e ajudar todas as vezes possíveis.

E foi dessa forma que começamos a construir esse trabalho e que a escrita me ajudou a superar aos poucos uma perda tão

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significativa.Tivemos a chance de conhecer pessoas incríveis e saímos de cada entrevista com um sentimento diferente, mas algo em comum: a certeza de que tínhamos acertado completamente na escolha do tema.

Mônica Seolim, maio de 2016.

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GlossárioBiópsia: procedimento de retirada de uma amostra de tecido vivo do organismo para fins de diagnóstico.

BI-RADS 5: O BI-RADS é uma padronização que analisa características de lesões mamárias. O número 5 demonstra uma suspeita muito forte de câncer de mama e exige cirurgia.

CA 15-3: exame cujo principal objetivo é acompanhar a resposta do organismo ao tratamento de câncer de mama, identificando possíveis recorrências.

Câncer neuroendócrino: câncer que surge nas células que formam o sistema endócrino.

Corticoide: medicamento especialmente utilizado em inflamações.

Deglutição: ação de engolir.

Derrame pleural: acúmulo de líquido entre os tecidos que reves-tem os pulmões e o tórax.

Fibroide uterino: estrutura fibrosa presente no útero.

Íngua: nome popular para o inchaço de gânglios linfáticos, espe-cialmente na virilha.

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Leucemia: doença maligna que se caracteriza pela proliferação anormal de elementos celulares que dão origem aos glóbu-los. Por consequência, o tecido normal é substituído por células cancerosas.

Leucócitos: também conhecidos como glóbulos brancos, são célu-las presentes no sangue com função de defesa do organismo.

Linfoma Não-Hodgkin: câncer caracterizado pela modificação e multiplicação exagerada de células linfáticas.

Linfonodo: gânglio ou nódulo linfático.

Linfonodo sentinela: primeiro gânglio linfático que recebe células malignas oriundas de um tumor canceroso primário por meio da circulação linfática.

Linfonodomegalia: hipertrofia de um gânglio linfático.

Líquido raquidiano: líquido formado por água, proteína, glicose, glóbulos brancos e hormônios. Está presente nos espaços em tor-no do cérebro e da medula espinhal.

Medula: substância presente dentro dos ossos longos e no peque-no intervalo entre ossos esponjosos.

Metástase: Formação de tecido tumoral, localizada em um lugar distante do sítio de origem. Por exemplo: pode se formar uma metástase no cérebro originário de um câncer no pulmão. Sua gravidade depende da localização e da resposta ao tratamento instaurado.

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Morfina: substância usada para aliviar dores agudas fortes, que suprime dores físicas e emocionais e tem efeitos que duram de 4 a 6 horas.

Neoplasia maligna: tumor maligno, câncer.

Nódulo: lesão de consistência sólida, maior do que 0,5 cm de diâmetro, saliente na hipoderme.

Osso sacro: osso com formato de pirâmide quadrangular localiza-do na base da coluna vertebral com a base para cima e o ápice para baixo.

Proctoscopia: exame realizado no reto e ânus.

Punção: operação que penetra uma cavidade ou coleção líquida, usando instrumentos perfuradores para retirada de líquido.

Punção lombar: operação que consiste em penetrar a região lom-bar com instrumento perfurador para retirada de líquido.

Quimioterapia: emprego de substâncias químicas no tratamen-to de doenças, as quais atuam contra germes patogênicos, sem exercer danos no paciente.

Radioterapia: método que utiliza diversos tipos de radiação ioni-zante para tratamento de doenças oncológicas.

Síndrome Cri-du-chat: alteração nos cromossomos que pode provo-car microcefalia, assimetria facial, má formação da laringe, defi-ciência do tônus muscular e outras consequências.

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Tumor: massa, formação de tecido.

Tumor benigno: inchaço de uma determinada região pelo aglome- rado de células, mas que não entra em metástase e não é perigoso para a saúde.

Tumor maligno: massa formada por células carcinomatosas, passíveis de entrar em metástase. Ou seja, células com alguma anomalia, que se multiplicaram excessivamente formando o tumor e que podem se espalhar para outros tecidos e órgãos.

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Sobre os autores

Esse livro foi escrito por cinco alunos no último ano do cur-so de Jornalismo, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

Fernanda Bertonha tem 21 anos, é curiosa como uma boa jor-nalista deve ser e sempre buscou o lado mais humano e cidadão da profissão que escolheu exercer. Jaderson Policante, de 35 anos, é o mais sensato dos cinco! Sua visão mais madura acerca dos fatos e das pessoas lhe ajuda a ser mais profundo no ato de escrever.

Marcio Galan, de 21 anos, é criativo e foi o primeiro a usar a expressão que acabou se tornando o nome desse livro. Mônica Seolim, 21 anos, é sensível, falante e encontrou na escrita uma verdadeira terapia. Thamiris Mottin, 25 anos, muito prestativa, fez desse projeto uma experiência ao entrar em contato com situações delicadas e pessoas que tiveram tanto a ensinar para ela.

Com semelhanças e diferenças, cada um esses cinco autores ofereceu toda a sua dedicação para que esses dez relatos de luta e coragem pudessem ser contados.

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Você percebeu que cada capítulo começa com uma página de cor diferente? Cada uma delas, representa o combate ao tipo de câncer enfrentado pelo personagem em questão. A revis-ta norte-americana Self foi a responsável por criar esse padrão,

ainda na década de 1990.

Para comentários ou sugestões, entre em contato conosco:

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