o Que Quer Dizer Cativar

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O QUE QUER DIZER CATIVAR?PUBLICADO EMLITERATURAPORTLIO ROSSI

Sei que um tanto clich, masO Pequeno Prncipe, de Antoine de Saint-Exupry, foi, sem dvidas, um livro que marcou profundamente minha formao humanstica. Lembro-me de, com mais ou menos 8 anos de idade, ouvir repetidamente uma fita cassete com a histria que tanto me envolvia. Mais ou menos nessa idade, ainda com algumas dificuldades no vocabulrio, li o livro.Vale mencionar que existiam muitas conexes afetivas particulares dentro de meu mbito familiar ali. Havia um exemplar do livro em minha casa que foi presente de meu pai para minha me, no sei se do casamento deles, ou de um de seus aniversrios. Na dedicatria, na caligrafia de meu pai, seguida da data de seu casamento, havia apenas a citao do que, provavelmente, a frase mais conhecida do livro:Tu te tornas eternamente responsvel por aquilo que cativas.Cresci tendo essa passagem entre outras como importante elemento formador de carter e, inclusive, de aspiraes. Portei esse mandamento comigo por muitos anos, tanto para relaes de amizade quanto para expectativas de relaes amorosas, na mais plena e grata crena naquele senso de comprometimento amoroso com o outro.Bem verdade que, aos 8 anos de idade e por muito tempo a definio do verbo cativar apresentada pela Raposa como algo muito esquecido pelos homens, que significaria criar laos, sempre me foi suficiente. No me lembro se busquei o verbete no dicionrio naquela poca.Alis, o que um dicionrio, afinal?! Formalismo, frieza, objeto que me parecia, por vezes, estpido, quando, depois de uma busca rdua com minhas mos de criana decorando a ordem do alfabeto, ao finalmente encontrar o verbete que desejava naquele exemplar pesado do Aurlio maior do que a lista telefnica da cidade onde eu morava a resposta que eu ansiava se resumia a: ato ou efeito de... e um substantivo cujo significado eu permanecia sem conhecer.Definitivamente, a definio da Raposa era mais interessante e me servia muito mais. E, por muito tempo, foi o que almejei em minha vida: criar laos, tornar-me responsvel por outros, numa relao recproca e especial, carregada de afeto. Alis, o termo responsabilidade foi bem marcado e recorrente em minha formao, mas isso conversa para minha analista.Alguns anos se passaram e os mandamentos do Pequeno Prncipe se converteram em espcie de lembranas doces, afetuosas, de uma inocncia perdida, embora o verbo cativar no tivesse perdido, para mim, a sua magia. Alis, um dos adjetivos que me soava mais fantsticos e que eu mais desejava ouvir de algum era cativante.Sempre que eu elogiava algum com essa palavra, estava carregado de toda uma histria afetiva minha que o sujeito elogiado jamais poderia conceber. Soava, para mim, como o elogio supremo: algo mais refinado e significativo do que adjetivos como apaixonante, fascinante. Cativante implicava laos, relao ou desejo, inteno - de continuidade... eternidade.Por outro lado, conheci pessoas que, onde eu via beleza, viam, na eterna responsabilidade, um fardo demasiado e um tanto quanto injusto. Compreendo bem seu argumento: se, frequentemente, o adjetivo cativante usado como sinnimo de sedutor e apaixonante, tornar-se eternamente responsvel por algum que se apaixonou por voc independente de suas intenes muitas vezes, soa como carregar um peso que no seu.Isso tambm ganha um peso especial em relacionamentos que se encerram na maioria das vezes, sem consenso no que a citao meiga e romntica das primeiras semanas convertida em cobrana: Voc me cativa e depois me abandona? Cad a sua responsabilidade? Se houvesse um manual de chantagem emocional, penso que o discurso da Raposa seria a sua principal referncia.H alguns anos atrs, comecei a estudar a lngua francesa. Tendo adquirido certa fluncia, busquei alguns textos que apreciava em suas verses originais. Ao ler ento os captulos referentes ao encontro do Pequeno Prncipe com a Raposa, deparei-me com um verbo novo para mim:apprivoiser.Eu conhecia o captulo que estava lendo e sabia que o verbo havia sido traduzido como cativar. Mas achei curiosa a grande diferena do termo, uma vez que o francs e o portugus partilham de uma raiz latina e que os cognatos so muito comuns.Busquei ento o termo em dicionrios e me deparei com significados como domesticar, tornar um animal menos selvagem, domar. A traduo para o portugus est bem adequada: tornar cativo, reduzir a cativeiro.Lembro-me que, poca dessa descoberta, fiquei surpreso e um pouco decepcionado, mas depois deixei de lado. Muitas outras leituras e identificaes vieram ao longo da minha vida e no dei tanta importncia. Confesso no saber por que razo isso me ocorreu nos ltimos dias. Penso que tenha relao com o amadurecimento de ideias que venho cultivando nos ltimos anos sobre amor e liberdade(a quem se interessar, trato disso em outro artigo aqui na Obvious, chamado: "Por uma reviso de nossa economia dos afetos".Talvez por ter construdo uma identificao forte com ideais de liberdade, inclusive na esfera amorosa, tenha me deparado com uma contradio constitutiva de minha identidade. A ideia de cativeiro, domesticao, causa-me hoje uma repulsa insuportvel. De modo que reconhecer a contradio formadora no exatamente confortvel.Contudo, vendo tanto as crticas ao discurso da responsabilidade quanto analisando o discurso da Raposa isolando a varivel romntica, de um ponto de vista mais literal da relao entre humanos e animais, concordo em um aspecto: Tu te tornas, sim, eternamente responsvel pela vida de um animal selvagem que, por efeito de fora (tua), tu privaste de liberdade e autonomia.Se tu privas um ser vivo de cuidar de sua sobrevivncia para cerc-lo em um quintal e deixar sua alimentao, higiene, sade e existncia completamente tua merc, tu te tornas, sim, eternamente responsvel por aquilo que cativas. E seria, no mnimo, um crime, abdicar desta responsabilidade.Direciono ento a questo para outro foco que, em funo do sentido fofo que atribudo ao termo cativar, muitos crticos no consideram. O problema no tornar-se eternamente responsvel, pois precede a responsabilidade: o problema domesticar, aprisionar, cercear. Ou mesmo, desejar, almejar isso e investir nesse projeto.H muitos aspectos simblicos interessantes de se explorar na figura da raposa em Exupry se nos ativermos a essa traduo menos romntica deapprivoiser. Alis, depois que eu me dei conta desse verbete, confesso que o livro fez muito mais sentido para mim.A raposa, na literatura ocidental, em geral smbolo de esperteza, malcia... na maioria das vezes, personagem vilanesco que ataca galinheiros, que engana... tambm um animal da caa esportiva, ou seja: mata-se raposas por diverso.No somente um animal selvagem, como um animal cuja simbologia frequentemente remete esperteza em sua pior interpretao moral possvel. De qualquer forma, apesar de sua semelhana com os caninos domsticos, esse animal visto antes como uma ameaa.No h interesse em domesticar uma raposa. Ao contrrio, h mrito, na caada, em mat-la, em superar sua esperteza. A raposa do Pequeno Prncipe marginal, subversiva, excluda. Nessa situao, ela v ces de guarda e de caa sendo afagados, alimentados, criados numa relao de laos ou amarras? com seus proprietrios humanos.Ser cativada por um humano um sonho impossvel para a raposa. A possibilidade s vai aparecer com algum que, claramente, como ela mesma observa, no daqui. E, ainda por cima, uma criana, smbolo mximo de inocncia e ingenuidade na cultura ocidental moderna. A raposa s pode ser cativada por algum que completamente alienado, de outro planeta, alheio dinmica das relaes humanas e terrestres.Da perspectiva de um animal que sistematicamente perseguido, mais do que compreensvel que ele anseie o cativeiro ao ver os afagos e recompensas que os submissos ces que a caam recebem. Isso alm da garantia de segurana: ao invs de ter os homens tentando mat-la, ela os teria ocupados precisamente em mant-la viva. realmente uma priso atraente. Mas para qual finalidade? interessante lembrar que a raposa no fala ao Pequeno Prncipe do cativar como uma relao igualitria. Ela quase implora para que ele a cative. Interessante observar tambm que ela recusa brincar com ele no primeiro encontro porque ainda no foi cativada. Brincar com crianas coisa de animal domesticado. E poder brincar um privilgio.De todo modo, algo que compreendi apenas tardiamente, que se trata de uma relao romanceada de submisso. E a submisso no est na responsabilidade, pois o responsvel precisamente aquele que domina, que assujeita, que domestica. Configura-se, claramente, uma sufocante assimetria que, inevitavelmente, produz a dependncia e implode a reciprocidade.Entretanto, pela cultura na qual somos formados, romanceamos nossas prises, enchemo-las de adornos, flores e citaes descontextualizadas de Clarice Lispector. Celebramos a benesse de ser antes um animal domesticado que perseguido e execrado, enquanto muitos, em funo de sua raa, sexualidade e/ou aparncia, so apenas raposas. Aliviados, abrimos mo do penoso encargo de nossa liberdade.

Guardo comigo o afeto e as memrias doces do que foi e O Pequeno Prncipe para mim. Alis, sou profundamente grato a elas pois, se no existissem, eu jamais poderia elaborar tal reflexo.De todo modo, no nego a responsabilidade daquele que cativa, mas proponho algo que talvez at demande uma responsabilidade maior, qui, transcendental: tempo de abandonar todas as pretenses de aprisionamento do outro; destruir qualquer inteno de cativeiro e, quem sabe um dia, amar sem construir cercas e sem adestrar o outro para o nosso afago como recompensa.

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