O Que Significa Pensar a Transdisciplinaridade

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    O QUE SIGNIFICA PENSAR A TRANSDISCIPLINARIDADE?OS FUNDAMENTOS TICOS DO ENCONTRO DE DISCIPLINAS*

    Moyss da Fontoura Pinto Neto**

    Resumo O artigo busca compreender a estrutura intelectiva da transdisciplinaridade no apenas a partir de uma adio

    de disciplinas, pluralidade de enfoques ou grupo de especialistas, mas desde um rompimento que instaura um vazio no

    saber especfico para hospedar o Outro que traumatiza e rompe a ordem. Somente ento, com esse encontro tico,

    possvel comear a pensarpara alm das disciplinas.

    Palavras-chave: pensar, transdisciplinaridade, tica, encontro, hospitalidade.

    What means to think transdisciplinarity?The ethic fundaments of multi-discipline encounter

    Abstract The paper aims to understand the transdisciplinarity intellectual structure not only as an addition of disciplines,

    plurality of perspectives or group of specialists, but from a disruption that establishes a vacuum in specific knowledge to

    hostthe Other who traumatizes and breaks the order. Only after, with this ethical meeting, is possible to begin thinkingbeyond disciplines.

    Keywords: think, transdisciplinarity, ethics, meeting, hospitality.

    TRANSDISCIPLINARIDADE:UMA IMPOSIO DA COMPLEXIDADE

    No h como separar transdisciplinaridade de complexidade. J diz Morin (2001, p. 14) que oretalhamento das disciplinas torna impossvel apreender o que tecido junto, isto , o complexo,segundo o sentido original do termo. Um fenmeno complexo no exige apenas que o olhar deuma disciplina seja ampliado, tampouco que uma gama de conhecimentos em separado possa seunir para compreender, em uma soma de enfoques, o fenmeno. A complexidade exige, sobretudo,

    * Para professora Ruth Gauer.** Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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    um olhar integrado, porm em um sentido bem especfico: trans-cendente, trans-gressor. preciso que o prefixo transsupere as disciplinas para alm da adio da multidisciplinaridade: sa-beres no apenas conectados, mas misturados, miscigenados (PAREDES, 2004, p. 297), em que atransgresso da disciplina, a trans-disciplina-ridade, possa compreender os fenmenos sem o limi-

    te disciplinar. Antes, transgredindo-o. Como se fossem camadas de saber, mas sobretudo por con-ceitos intrusivos como alteridade, que deixam em suspenso todos os conhecimentos ento adqui-ridos e ameaam o equilbrio disciplinar.

    A transdisciplinaridade, a trans-gresso da disciplina, , antes de tudo, um aponte em direo aonovo, ao no pensado. O saber transdisciplinar no tem especial preocupao metdica: , antesdisso, uma pluralidadede mtodos, que se entrelaam a fim de buscar uma compreenso do Outro compreenso articulada na alteridade indecomponvel do fenmeno. No por acaso a disciplinacientfica se utiliza da expresso de relao social que foi to cara a Michel Foucault nas sociedadesmodernas, organizando disciplinarmente o conhecimento a partir do adestramento metdico,

    separando, confinando, fechando, eliminando a ambivalncia.O saber transdisciplinar procura exatamente romper com os extremosmetdicos das disciplinas,

    como imposio de fronteira. Eis exatamente o sentido de transgresso: violentar, em um sentidotraumtico, a organizao estrutural de determinada disciplina. Abalar seus alicerces, a partir deconceitos que colocam, como diz Edgar Morin (2001, p. 115), em transe as diversas reas do co-nhecimento. A transdisciplinaridade como rompimento da ordenao monoltica do conhecimento,da unidimensionalidade, ainda que mascarada sob o epteto de interdisciplinaridade, que na ver-dade apenas uma perspectiva unitria multiplicada, e no propriamente pluraldesde a sua origem,

    ainda que situada a meio caminho entre multie trans(POMBO, 2007).

    PENSARA TRANSDISCIPLINARIDADE

    O que, porm, significar pensara transdisciplinaridade? Para comear, por que o grifo em pen-sar, desde o ttulo?

    At o momento, nossa educao tem se traduzido em saberes fragmentados, sem pontos decontato e conceitos desestruturantes (MORIN, 2001, p. 15). Sistemas ordenados, fechados, autopoi-

    ticos. Sistemas cujo contato com os demais se d, sobretudo, por irritao, com singela adaptaodo esquema ordenado quando ameaa sua integridade estrutural. Em que medida, porm, essessaberes disciplinares so capazes de dar conta do novo? Reproduzindo-se em esferas fechadas,autoproduzindo e autorreproduzindo, qual a capacidade de esses sistemas darem conta do pensaro novo?

    Lyotard (1989, p. 17-31), em instigante ensaio, nomeado Se pudermos pensar sem corpo, colo-ca cincia e filosofia em dilogo. Sua ideia provar que o pensamento no existe sem corpo. O

    Cientista (Ele) argumenta que o corpo funciona tal como um hardwaree o pensamento como

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    software, sendo invivel uma articulao dos dois para alm do corpo humano. O projeto da cincia

    seria transplantar o pensamento para alm do Planeta Terra, cujo destino inevitvel, o de expirar

    quando o sol explodir. Um projeto, portanto, de sobrevivncia. Mas a Filosofia (Ela), com forte

    base fenomenolgica, responde de forma ainda mais contundente. Ela afirma que o campo visual

    tem limites alm da capacidade de viso. No apenas a memria que nos evita a percepo totaldo objeto; antes, ele constantemente esconde faces.

    A viso atual conserva consigo a imagem percepcionada no instante anterior sob outro ngulo.

    Antecipa a de h pouco. Destas snteses resultam identificaes de objetos, que nunca chegam a ser

    completas e que um olhar ulterior sempre poder solicitar, anular (LYOTARD, 1989, p. 25).

    O olharjamais esgota a exigncia da descrio exaustiva. Assim, na linguagem, no possvel o

    esgotamento dos significados latentes. A escrita no se esgota. Seria necessrio, para que existisse

    a hiptese do pensamento sem corpo, que se transportasse isso para alm do nosso planeta; essa

    capacidade do olho no visuale da escrita na linguagem. Esse dar corpo fundamental para o

    pensamento. E no uma operao meramente lgico-objetiva. Esse momento excedente suple-

    mento de origem similar diferensa que Derrida sempre procurou pr na posio de ori-

    gem-sem-origem, arqui-rastro que desmente a possibilidade da plena presena e marca o dife-

    rimento que o prprio tempo e, como tal, a prpria vida (DERRIDA, 1995, p. 188).

    Ao lado dessa necessidade de dar corpo, desse transbordamento que corri a metafsica da

    presena e impossibilita o pensamento de se reduzir sua esfera lgico-formal, existe ainda uma

    imbricao essencial para o pensamento que igualmente no permite sua simples transposiopara o domnio do maqunico: pensar e sofrer. O pensarexige sempre a conscincia de que existe

    uma margem inesgotvel de significados para alm daqueles que estamos adotando; e isso signifi-

    ca, sobretudo, uma limitao do pensamento. O sofrimento a dor do romper a presena; estamos

    sempre pensando o pensado. Em meio a essas inscries de presena, existem espaos em branco a

    serem preenchidos pelo pensamento. O ainda no pensado faz-nos mal pois sentimo-nos bem

    entre o j pensado, diz Lyotard (1989, p. 28).

    O dado transforma-se em dvel. Pensar recebero que nos vem do exterior, antes de tudo uma

    primariedade do vazio, do esvaziar-se. Isso contraria o postulado, que j sofrera srias rachadu-ras a partir das teses de Adorno, da identificao1. O sujeito apreenderia o objeto na medida em

    1 Vejamos: O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O preo que os homens pagam pelo aumento

    de seu poder a alienao naquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se com-

    porta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipul-los. O homem da cincia conhece as coisas na medida em que

    pode faz-las. assim que seu em-sitorna para-ele. Nessa metamorfose, a essncia das coisas revela-se como sempre a mesma, como

    substrato da dominao. Essa identidade constitui a unidade da natureza (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 24).

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    vel (DERRIDA, 1989). A ideia do universo como um campo de caa faz, em todo momento, umaligao poderosa do falocentrismo com o logocentrismo. Razo como ferramenta baconiana dedominao da natureza (TIBURI, 1995, p. 50).

    Em oposio a isso, a razo pode ser acolhedora. No aquela que pretende destecer as relaes

    do mundo e domin-las por meio de esquemas conceituais. No aquela que pretende esgotara totalidade do real por meio de representaes lgico-matemticas. A racionalidade totalitriatradicional pretende dilacerar o tempo, esvaindo-o do terreno do pensamento como se fosse umbice ao domnio da realidade. Pensamento que pretende extrair os sentidos das coisas-em-si-mes-mas, fora da contingncia temporal, identificando todo o real consigo prprio. Razo que, em Hegel,ganha seu contorno mximo: o real se identifica com o racional. A totalidade arrasta para dentro desi at mesmo a sua prpria negao, como um infinito bom (SOUZA, 2005, p. 163-167). A tentativade objetivao do mundo que, em Heidegger, ganha a dimenso de esquecimento do ser.

    Derrida (2004a, p. 43), comentando Lvinas, afirma que para este a razo ela prpria um rece-

    ber. E acolhimento supe o recolhimento, quer dizer a intimidade do em-sie a figura da mulher,a alteridade feminina (DERRIDA, 2004a, p. 45). A mulher a condio da interioridade, da ha-bitao, em que se forma a hospitalidade com o Outro. Ela promove o acolhimento. Forma racional,portanto, que no se dirige masculinidade dominadora, que entra em guerra com a realidade,travando uma relao de luta em que finalmente sai o conceito vencedor, com sua transparnciaque refletiria, pura e simplesmente, a essncia do objeto dominado. Racionalidade que teria seufundamento no receber, no acolher, do qual a morada feminina seria condio. a partir do femi-nino que se constitui a morada para o acolhimento, o receber.

    Notemos, no entanto, a observao de Derrida (2004a, p. 60):

    A outra abordagem desta descrio no protestaria contra um androcentrismo clssico. Poderia, mes-

    mo, ao contrrio, fazer deste texto uma espcie de manifesto feminista. a partir da feminilidade que

    ele define o acolhimento por excelncia, o acolher ou a acolhida da hospitalidade absoluta, absoluta-

    mente originria, pr-originria mesmo, quer dizer, a origem pr-tica, e nada menos que isso. O ges-

    to atingiria uma profundidade de radicalidade essencial e meta-emprica que leva em conta a dife-

    rena sexual numa tica emancipada da ontologia. Iria at confiar a abertura do acolhimento ao ser

    feminino e no s mulheres empricas de fato. O acolhimento, origem an-rquica da tica pertence

    dimenso da feminilidade e no presena emprica de um ser humano do sexo feminino.

    Esse pensamento da tica est, portanto, marcado pela diferena sexual, que nunca mais ser neu-tralizada (DERRIDA, 2004a, p. 61). Diferena essa que comparece tambm no texto de Lyotard, aindaque sob a forma de uma ausncia do Outro sexo que me move em direo completude original. Oprprio desejo seria mvel do pensamento. Mas, nessa inscrio entre o feminino e o masculino, umarazo passiva parece mais saudvel do que a nsia dominadora que ameaa a prpria existncia doOcidente. Diferena que apresenta a Filosofia enquanto Ela (LYOTARD, 1989, p. 28-29).

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    A PRIMAZIA DO ENCONTRO

    Ser que, aps o esvaziamento, h uma identificao do pensador com a disciplina que ento

    lhe chega como nova? Ento ser a transdisciplinaridade to somente uma questo de empatia com

    o Outro disciplinar?A perspectiva de Lvinas nos permite avanar na questo, adentrado at seu tempo mais antigo

    (SOUZA, 2000)4. Se surpreendermos aquele presente-futuro a partir de um rompimento, de uma

    trans-gresso, com a prpria disciplina de origem, subvertendo um fluxo linear que nos levaria, no

    mximo, a ter uma agregao de perspectiva, uma perspectiva de cincias auxiliares, necessrio

    ainda no cair na armadilha da reduo, que tambm desembocar em um sufocamento da trans-

    disciplinaridade. A reduo pela identificao, por isso, ir cair fatalmente na interdisciplinaridade,

    onde ocorrer, no mximo, uma agregao de conhecimentos. Assim, se o esvaziamento o que

    permite transgredir a perspectiva da cincia-maior e as auxiliares, o que permite que no haja

    uma simples reduo ontolgica, agregando-se, em somatrio, um empilhado de perspectivas, sem

    que haja qualquer transe epistmico?

    Seria necessrio assumir, ento, de certa forma, a incomensurabilidade do Outro minha ra-

    zo. No apenas incomensurabilidade: infinitude. O Outro que se oferece no pode ser esgotado

    na minha capacidade representacional, sequer minha compreenso. Outro, antes disso, o que

    transcende todas as minhas possibilidades racionais. o que chega, simplesmente, sem precisar

    ser pensado, em uma relao original, que no pode ser reduzida (LVINAS, 2005; SOUZA, 2000).

    Outro que chega e traz, por isso, como j havia notado Lyotard, uma aporia temporal. Relao

    que se inaugura no Rosto, com inviolabilidade da infinitude do Outro, fragilidade que se pecomo verdadeira forma de relao humana, distante da situao de poder prprio da racionalida-

    de tradicional. Abandonando o falocentrismo da razo invasiva, totalizante, caadora (ADORNO;

    HORKHEIMER, 1985, p. 24). Aqui, ao contrrio, a razo feminina, acolhedora, que no pretender

    esgotar a dimenso do Outro em uma caricatura, mas antes perceber a sua fora exatamente na

    sua nudeze fragilidade.

    Transdisciplinaridade, portanto, no pode ser separada da questo da alteridade. O pesquisa-

    dor-corpo, o pesquisador concreto, que no apenas um crebro desconectado da realidade (como

    as mquinas propostas a Lyotard), mas ser-no-mundo, est implicado na sua relao excedentedoconhecimento no encontro com algo que no domina (a(s) Outra(s) disciplina). Pensara transdisci-

    plinaridade j carrega uma relao anterior, original, tica, que pressupe o recebera presena do

    4 Diz o Souza (2000, p. 142): Trata-se porm de um tempo que no chega nunca a presente; no se presentifica em sua idia: Eis naanterioridade tica da responsabilidade, na sua prioridade sobre a deliberao um passado irredutvel a um presente que teria sido. Umpassado sem referncia identidade ingenuamente naturalmente assegurada de seu direito presena e onde tudo deveria ter co-meado [...] (SOUZA, 2000, p. 142).

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    Outro sem mutil-la com meu poder representacional, utilizando, quem sabe, aquilo que apenas

    me interessa. A transdisciplinaridade pressupe esse receber incondicional: at mesmo podendo

    ter efeitos desestruturadores. Significa abdicar francamente de qualquer sistema estruturado que

    naturalmente se converte em Totalidade.

    O efeito do acolhimento da alteridade , portanto, justamente o rompimento com a segurana (eviolncia) da Totalidade. A Totalidade, como projeto de razo que se desenvolve na histria da filo-

    sofia ocidental (SOUZA, 1998, p. 66-80), projeto de episteme, de um pensamento que se igualaria

    realidade, da hegemonia do intelecto sobre todas as demais relaes, de uma primazia epistemo-

    lgica. Projeto que isola o no ser, o Outro, a alteridade, e sufoca na ditadura do Mesmo. Todo o

    resto deixado de lado, tudo que no se enquadra nos quadrantes da racionalidade, tudo aquilo

    que rompe com a totalizao. Na imparcialidade da linguagem cientfica, o impotente perdeu in-

    teiramente a fora para se exprimir, e s o existente encontra a seu signo neutro (ADORNO;

    HORKHEIMER, 1985, p. 35; TIBURI, 1995, p. 42-46).

    No h, por isso, como dizamos, uma identificao com o Outro. Identificar seria retornar ao

    ponto zero, da razo tradicional, e novamente procurar compreender o Outro (ainda que em sen-

    tido heideggeriano) levaria fatalmente reduo e ao retorno da hegemonia do intelecto (LVINAS,

    2005, p. 26-29; TIBURI, 1995, p. 43). A inviolabilidade do Rosto pressuporia, por sua vez, um puro e

    simples receber, medida que o Outro irredutvel a conceitos. O identificar poderia at propor-

    cionar sentimentos de caridade, em uma espcie de empatia, mas nunca poderia fazer justia ao

    Outro, pois partiria sempre de uma caricatura desenhada pela prpria mnada que o percebe.

    Aplicar-se-o tais categorias transdisciplinaridade? Em que medida? Lvinas fala fundamental-

    mente do humano, do humano que chega. Propagar isso em um domnio cognoscitivo parece umaextenso no autorizada. Ser? No cremos. Primeiro, porque no existe neutralidade cognosciti-

    va; todo saber um saber que pretende uma aplicao e j tem, em si mesmo, uma salvaguarda de

    determinadas categorias epistemolgicas que nada possuem de neutralidade. Segundo, porque,

    conjuntamente com a relao de harmonia epistemolgica que se pretende com o olhar sobre o

    objeto, advm tambm uma relao simultnea, uma relao que est na habitaodo ser-que-pen-

    sa, que excede a nossa pura e simples percepo. Lvinas fala dos rastrosque deixamos enquan-

    to estamos no mundo. Rastros que excedem nossas possibilidades cognoscitivas; antes, revelam-nos

    que estamos no mundo para-alm da nossa conscincia. Heidegger prova que nossa habitao nomundo no coincide com o pensar, mas o excede (LVINAS, 2005, p. 24).

    Qual a relao, ento, disso com a transdisciplinaridade? Se a nossa habitao no mundo no

    coincide com o nosso pensamento, isso significa que presenciar a transdisciplinaridade, especial-

    mente enquanto relao de alteridade, no se esgota no pensara transdisciplinaridade. Carrega,

    alm disso, outra relao original, uma relao tica de recebero Outro-disciplinar. Uma relao

    que pressupe, se no quiser redundar em assassinato, o acolher, a moradia, o esvaziamento do

    eu nesse sentido. Uma relao que pressupe o esvaziamento de Lyotard e, ao mesmo tempo, a

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    dignidade do Rosto de Lvinas, na dimenso de alteridade que carrega. Relao que exige umaruptura temporalcom os nossos hbitos: em vez de aguardamos o Outro no nosso futuro pr-en-gendrado, fechado na dimenso do presente, abrimos espao contingncia, ao advir, a esseOutro inesperado.

    O ENCONTRO NA HOSPITALIDADE

    Como, ento, equacionar dimenses to inexoravelmente destinadas a no se reunirem, comu-nicarem, dialogarem? A diferena, quando realmente levada a srio, ou seja, quando realmenteposta como diferena irredutvel ao Mesmo, insuscetvel de apropriao ontolgica, parece apenasconvidar ao Encontro, que tende ao traumatismo. O Encontro com o Outro como tal, e a dificulda-de do estabelecimento do dilogo na tenso da diferena. Se retirarmos a possibilidade de identi-

    ficao, onde se constroem pontes de empatia, o que resta no Encontro?A identificao, entretanto, ainda se encontra na perspectiva mondica (RENAUT, 2004) ou

    egolgica da racionalidade contempornea. Para que a empatia ocorra, no necessrio um rom-pimento com o Eu, com o Mesmo, mas um simples projetar da representao sobre o Outro, que, noentanto, foge da reduo, da injustia diante da respectiva infinitude. A empatia, concebida comoidentificao, apenas pode servir de pretexto para um prolongamento do egocentrismo das mna-das modernas, do individualismo que se mantm alheio alteridade.

    Lvinas nos coloca em um dilema: sabemos que necessrio recebero Outro disciplinar por meio

    do esvaziamento de que falava Lyotard; sabemos, ainda, que esse Outro infinito, irredutvel ao Mes-mo, e que o processo de identificao nada mais faz do que violentar a diferena. Como equacionar,ento, esse Encontro, traumtico por excelncia dentro do mundo solipsista do monismo disciplinar?

    Jacques Derrida nos oferece uma das possveis alternativas com a noo de hospitalidade. Hos-pitalidade que no prope um acrscimo de tolerncia, mas seu oposto: a tolerncia significa umaposio de predomnio (pr-domnio) em relao ao Outro, que apenas tolerado como tal. Seucomponente cristo tem espcie de carter paternalista. A hospitalidade, por sua vez, o receberirrestrito, o reconhecimento do direito de visitao, o acolhimento sem restries.

    A hospitalidade pura e incondicional, a hospitalidade em si, abre-se ou est aberta previamente

    para algum que no esperado nem convidado, para quem quer que chegue como um visitante

    absolutamente estrangeiro, como um recm-chegado, no-identificvel e imprevisvel, em suma,

    totalmente outro. A visita poderia na verdade ser muito perigosa, e no devemos ignorar esse

    fato; mas ser que uma hospitalidade sem risco, uma hospitalidade apoiada em certas garantias,

    protegida por um sistema imune contra o totalmente outro, seria uma hospitalidade verdadeira?

    Embora, em ltima anlise, seja verdade que suspender ou suprimir a imunidade que me protege do

    outro possa estar muito prximo de uma ameaa de vida (DERRIDA, 2004b, p. 138).

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    A mnada disciplinar, na sua solido solipsista, chamada a ver o Outro na sua integridade deRosto, como Outro, e para isso precisa se esvaziar de si mesma para recebero que h de chegar, emum tempo aberto e contingente, um tempo que s se d na hospitalidade. , por isso, essa hospita-lidade, como abertura incondicional, a postura que permite o dilogo, daquele que advm como

    novo, sem que seja reduzido na sua infinitude por uma ontologia que nega a alteridade. A hospita-lidade torna-se o prprio nome daquilo que se abre ao rosto, daquilo que mais precisamente oacolhe (DERRIDA, 2004a, p. 39).

    Desde sempre, preciso ver que no estamos aqui fundamentalmente a discutir a questo estri-tamente epistemolgica. Se estamos a assumir as premissas de Lvinas, admitimos a primazia dadimenso tica, e que esse encontro epistmico entre as diversas disciplinas se situa, em primeiramo, nessa dimenso. Antesmesmo do equacionamento epistemolgico, em um passado resisten-te presentificao, mais antigo, se d o Encontro ticoentre as disciplinas, um encontro que de-pende da postura hospitaleira de cada um para que realmente possa se dar o dilogo.

    Sem a hospitalidade, fatalmente cairemos na inter ou multidisciplinaridade. Teremos mnadasampliando seu espectro de percepo, ou combinaes de enfoques fechados em uma viso soma-tria. Cada mnada (disciplina) se propor a olhar a Outra apenas enquanto o Mesmo sob outraroupagem, em um processo que poder, em sua forma mais rudimentar, ser apenas um receber daauxiliaridade; ou, sob a forma mais recauchutada, como processo de empatia, identificao.Ambas as formas apenas manifestam a hegemonia do Mesmo, que no acrescentar nada ao di-logo entre as disciplinas, como forma de transcenderem a si mesmas na medida em que encontramaquilo-que-no--o-Mesmo.

    Apenas quando o receber incondicionaldo Outro for o mote tico que guiar os rumos episte-molgicos, poder-se- comear a perceber saberes verdadeiramente transdisciplinares, cuja trans-gresso das fronteiras implica, na realidade, no uma ampliao de aspectos combinados nem umsomatrio, mas uma perspectiva que verdadeiramente manifeste um dilogo metodolgico e per-ceptivo. A complexidade verdadeiro Outro (apenas outro nome para a realidade) e, como tal, exigeque seja tratada em um patamar no qual a abertura mxima tica, o receber incondicional, seja ametodologia predominante. O saber disciplinar no negado, antes transtornado em um passoadiante, um passo de loucura. Um passo que pode representar, como sinalizou Derrida na citaoanterior, um risco sua prpria vida. Porm, sem ele, no h verdadeiros parmetros impossveis

    para fixar o possvel. Sem essa dimenso de responsabilidade, o dilogo no se inicia, acaba defa-sando-se em monlogos solipsistas ou simples assassinatos do Outro em redues representacio-nais que pretendem esgotar a infinitude no Cogito.

    Pensara transdisciplinaridade, por paradoxal que parea, , portanto, uma operao no apenasintelectual, como parece. Pensare existir no so circunstncias distintas; antes, como demonstra-ram Heidegger e Lvinas, esto no mesmo plano, ainda que de forma mais radical para o segundo. OEncontro com a disciplina nova somente ser verdadeiramente um dilogo quando estivermos, emprimeiro lugar, vaziosde ns mesmos, aptosa receber. Depois ser necessrio o reconhecimento do

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    Outro como tal, sem a reduo ontolgica, a identificao, para que, finalmente, a hospitalidade comele nos proporcione o dilogo. Somente ento teremos uma relao autntica. Uma relao, semdvida alguma, perigosa; porm, em ltima instncia, no apenas necessria, mas urgente.

    O paradoxal em pensara transdisciplinaridade, portanto, que a pensarno a esgota; h ques-tes em jogo que no se esgotam na compreenso. Somente na hospitalidade com o Outro o rece-ber transdisciplinar no mutila as disciplinas, e pode empreender um caminho mais saudvel emdireo a uma epistemologia que se livra da ideia de campo de caa.

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  • 8/8/2019 O Que Significa Pensar a Transdisciplinaridade

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