O Que Toca à a Psicologia

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Casa do Psicólogo® PSICOLOGIA ESCOLAR: EM BUSCA DE NOVOS RUMOS Adriana Marcondes Machado Marilene Proença Rebello de Souza (orgs.) Maria Cristina Machado Kupfer Beatriz de Paula Souza Cintia Copit Freller Yara Sayõo Jaqueline Kainnus Renata Laureti Guarido Renata Paparelli

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Casa do Psicólogo®

PSICOLOGIA ESCOLAR: EM BUSCA DE NOVOS RUMOS

Adriana Marcondes Machado Marilene Proença Rebello de Souza (orgs.)

Maria Cristina Machado Kupfer Beatriz de Paula Souza Cintia Copit Freller Yara Sayõo Jaqueline Kainnus Renata Laureti Guarido Renata Paparelli

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SOARES. M. (1986). Lin^ruagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo, Ática.

VELHO, G. (Org.) (1985). Desvio e divergência, uma crítica da Patologia Social. Rio de Janeiro, Zahar.

VEYNE, E (1982). Como se escreve a História - Foucault Revoluciona a Histó­ria. Brasília, Ed. Universidade de Brasília.

O QUE T O C A À / A PSICOLOGIA ESCOLi\

Maria Cristina Machado Kupfer , ,

Como todo jovem que se preza, a Psicologia Escolar não cansa de perguntar por sua própria identidade. O coro dos estudantes, profissionais e teóricos dessa área/ária vem repetindo de modo exaustivo e monocórdico uma só frase musical. Cantam em unís­sono: "qual é o papel do psicólogo escolar?".

Nos tempos da sua infância, a melodia era outra. Provinha da certeza de seus praticantes de que a Psicologia Escolar t inha assegurado o seu lugar no mundo da Educação. Jubilosamente, festejavam a imagem recém-construída, tomada porém de em­préstimo às ideologias que nela queriam ver uma prática ortopé­dica, corretiva das ações dos professores sobre as crianças. Mais que isso, pediam que confirmasse a máxima liberal segundo a qual as diferenças não provêm da desigualdade de oportunida­des e sim das diferenças individuais. Assim, buscando ir ao en­contro daquilo que seus criadores dela esperavam, a Psicologia Escolar elegia o objeto sobre o qual iria concentrar seus esforços: os problemas de aprendizagem das crianças.

Durante algum tempo, então, foi necessário que a Psicologia Escolar se alienasse nessa imagem que ela própria não construíra, mas que lhe conferia uma identidade e uma existência.

Para os psicólogos orientados por essa perspectiva, foi conferi­do um lugar concreto na escola, dentro do qual podia exercitar suas funções. Não se tratava nem de sala de aula, nem do pátio de

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recreação, nem das dependências administrativas. Era apenas uma sala de atendimento, um espaço em que podia aplicar testes. U m espaço à margem: caso fosse eliminado, em nada mudaria a con­figuração geral da escola. Se instalado a uma distância de dois quarteirões, seu trabalho poderia prosseguir sem prejuízos. Sua voz não fazia coro com as demais vozes da escola.

N o entanto, o psicólogo entrou na escola. E, lá dentro, não podia deixar de ouvir as vozes da escola. Tinha agora ao seu alcan­ce novos dispositivos teóricos de leitura da realidade escolar e de seus problemas. Sabia, por exemplo, do peso dos determinantes sociais sobre os problemas de aprendizagem. Dispunha das leituras estruturais, segundo as quais há uma relação de determinação recíproca entre os elementos de uma instituição. O u seja, não seria jamais possível estudar uma criança sem levar em conta as peculiares relações com seus professores e pais, por exemplo.

Diante dessa mudança de visão, o psicólogo passou então a en­frentar dois problemas: o da demanda e o da técnica. Em primeiro lugar, como participar mais ativamente da vida da escola, se só o que lhe pediam era que testasse, discriminasse e "expulsasse" as crianças indesejáveis.' Ei, caso uma brecha lhe fosse aberta, com que instrumentos iria trabalhar, se essas teorias mais recentes ajudavam a entender, mas pouco diziam sobre como intervir na real idade escolar?' A ética que o orientava era agora a ética da transforma­ção social, mas não tinha ideia de como promovê-la com os poucos instrumentos que a Psicologia lhe havia fornecido. Estamos agora naquele momento em que o pré-adolescente cresceu, mas não interiorizou ainda seu novo tamanho, e vive esbarrando pelos can­tos. Sua voz oscila frequentemente de um registro grave para um agudo, o que decididamente não facilita a sua participação no coro da escola! Ou seja, ora aceita seu antigo lugar de psicometrista, ora deseja participar de uma reunião de professores. De modo canhestro, opina, aponta erros, critica o modo "pouco afetivo" de alguns profes­sores, "interpreta-os". Quer agora ocupar o lugar do maestro do coro... A escola se fecha, o trabalho do psicólogo escolar sofre uma retração.

1. Justiça seja feita ao movimento institucitinalista e à proposta dos grupos operativos de Bleger. Tais ideias não chegaram, no entanto, u se constituir em uma prática efetiva junto aos psicólogos escolares em nosso mtio.

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Onde encontrar teorias psicológicas que viessem a orientar uma intervenção nas escolas ao mesmo tempo que levassem em conta a análise da realidade social? Que Psicologia poderia propor uma intervenção "não-alienante?".

Na busca das respostas a essas perguntas, o psicólogo acabou por " topar" com a Psicanálise. Não que ela já não estivesse de alguma forma presente. Estava, sim, exercendo influências sobre­tudo na Psicologia Clínica, e de modo impreciso quando se falava por exemplo em projeção, em identidade, em "desenvolvimento afetivo". Mas agora se tratava de ir beber diretamente da fonte, ir em busca da teoria psicanalítica da "personalidade".

De início, as perspectivas pareciam muito promissoras. Tudo levava a crer que a ética da Psicanálise não cíisava bem com a ideia de adaptação do indivíduo à realidade social, pois seus com­promissos eram com outras coisas; com o "desejo", por exemplo, muito embora não se pudesse entender exatamente do que se tratava quando se falava em desejo. A F'sicanálise era vista como uma prática não ideológica, e o que se pretendia, com a Psicanálise, era transformá-la em um auxiliar na luta pela transfomiação social: um homem mais equilibrado teria mais condições de lutar por ela.

N o entanto, as principais barreiras contra um casamento da Educação com a Psicanálise foram levantadas pela própria Psicaná­lise. N o início de sua obra, Freud acreditava que uma educação psicanaliticamente orientada podia ter um valor profilático, porque evitaria excessos repressivos e conseqíientementí; a instalação das neuroses. N o final, porém, essa crença havia sido desmontada: faça o que fizer um educador, não haverá como evitar a castração, o recalque e a neurose. Além disso, a sexualidade, o inconsciente e a morte, temas que constituem a seara da Psicanálise, precisam ser cuidadosamente evitados pelo educador. A Psicanálise e a Edu­cação assentam-se em terrenos opostos, não podem auxiliar-se mutuamente. Em virtude da antinomia entre essas duas práticas, não é possível transformar o professor em um psicanalista, nem criar um método pedagógico inspirado na Psicanálise (Millot, 1987).

Mais do que isso, o encontro da Psicanálise com a Educação e com o psicólogo interessado em intervir de modo "não-alienado" na instituição escolar criou ainda um outro impasse: as explicações dadas

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pela Psicanálise a respeito das origens dos problemas das pessoas parece não coincidir nem um pouco com as explicações que colo­cam um grande peso sobre os determinantes sociais.

Em busca de um esclarecimento a respeito desse aparente choque de opiniões, o psicólogo encontrou uma explicação que lhe pareceu satisfatória: se a Psicanálise não se importa com os determinantes sociais, é porque ela está operando com o sujeito do inconsciente, e não com o eu do sujeito.

O eu é constituído por identificações, e se molda a papéis sociais, se encaixa em tipos psicológicos, varia com as condições históricas. Para a Psicanálise, todo trabalho psicológico, seja ele realizado em uma psicoterapia individual, seja ele em uma insti­tuição, tem como alvo esse eu, e não o sujeito do inconsciente. Mas é preciso não esquecer que esse eu não se confunde com o eu do cogito, da consciência. Ele possui partes inconscientes, e é basicamente uma instância de defesa, o que o torna "cego".

Longe de haver, nessa formulação, um menosprezo pelo trabalho sobre o eu, o que a Psicanálise faz, ao afirmar essa distinção, é colocar com rigor um divisor de águas. A doença mental, por exemplo, é do âmbito do sujeito do inconsciente, e precisa ser tratada como tal ; os problemas de aprendizagem são na sua maioria problemas no funcionamento egóico, e, portanto, amplamente determinados pelas relações vividas pelas crianças no interior da instituição escolar.

A Psicanálise coloca, portanto, limites claros a respeito das possibilidades de uso dessa teoria fora dos consultórios: não pode auxiliar diretamente um professor, a não ser que esse proléssor se analise, não pode criar métodos pedagógicos inspirados por ela, e não tem os mesmos objetivos de qualquer trabalho institucional.

Levando em conta todas as restrições que a Psicanálise coloca, e admitindo que o trabalho do psicólogo em uma instituição escolar se dirija principalmente ao eu, poderia a Psicanálise contribuir para a leitura das instituições, para a definição de objetivos e para a cri­ação de "técnicas" de trabalho psicológico em uma escola?

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O "espaço psi" na escola

Modernamente, existem teorias que podem ajudar a respon­der afirmativamente a essa questão.

Será preciso ter em mente que a Psicanálise que vai nos ajudar não é a Psicanálise que se preocupa em descrever fases psicossexuais do desenvolvimento (oral, anal, e t c ) , nem é aquela interessada em apontar constantemente desígnios e motivações inconscientes para os comportamentos humanos - essas formas de Psicanálise não são, aliás, freudianas (Japiassu, 1982). A partir do ensino de Jacques Lacan, psicanalista francês, alguns parâmetros passam a dirigir de modo mais preciso o trabalho do analista. O discurso - e não o comportamento - é o alvo da análise, e uma vez que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, o analista estará operando com as leis de funcionamento da linguagem, e extraindo delas a eficácia de sua ação.

D i t o de outro modo, para essa Psicanálise a linguagem é con­dição do inconsciente, assim como é condição da Ciência, assim como é condição, fundamento, de toda construção cultural . Cori-dição, portanto, da construção das instituições humanas, e entre elas, a escola.

Transportando esses princípios para o âmbito de um trabalho inst i tucional interessado em adotá-los, admitir-se-á então que toda instituição está estruturada como uma linguagem. Se assim é, estará sujeita às leis de funcionamento da linguagem.

Se as instituições seguem essas regras, também podemos ler os discursos que ali se desenrolam da mesma maneira como se lê o discurso de u m suje i to em análise. Embora não estejamos psicanalisando as pessoas da instituição, estaremos aplicando as regras de funcionamento da linguagem à instituição como um todo.

Os discursos institucionais tendem a produzir repetições, mesmice, na tentativa de preservar o igual e gai-antir sua perma­nência. Contra isso, emergem, vez por outra, falas de sujeitos, que buscam operar rachaduras no que está cristalizado. E exatamente como "auxiliar de produção" de tais emergências que um psicóbgo pode. encontrar seu lugar: eis o que pode propor uma Psicologia na escoh que opere com parâmetros da Psicanálise.

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O que poderá acontecer quando uma instituiçã(3 estiver toda voltada para a repetição, para o igual? Pois bem, quando houver apenas repetições, quando houver apenas discursos cristalizados, os sujeitos não mais poderão manifestar-se. Não falarão, não po­derão "oxigenar-se", ou seja, não poderão beneficiar-se dos efeitos de verdade e de transformação que surgem quando há espaço para emergências ou falas singulares. Nesses casos, o resultado poderá ser a impossibilidade de criação de novos discursos, mais flexíveis e acompanhadores das mudanças. O passo seguinte é a fixação das crianças em estereotipias, em modelos que lhes são pré-fixa-dos; vem a inibição intelectual, o fracasso escolar. Para os demais grupos da instituição escolar em que não houver c irculação discursiva, o resultado será a falta de oxigenação e a consequen­te necrose do tecido social. A falta de circulação discursiva é o início do f i m de uma instituição, já que, não podendo jamais ficar parada, não lhe sobrará alternativa a não ser recuar, e in ic i ­ar a sua atrofia. Independentemente dos alvos a que se propõe essa instituição, eles não serão atingidos.

De modo contrário, quando há circulação de discursos, as pessoas podem se implicar em seu fazer, podem participar dele ativamente, podem se responsabilizar por aquilo que fazem ou dizem. Mudam ativamente os discursos, assim como são por eles mudadas, de modo permanente.

U m psicólogt) munido dessa leitura poderá então propor-se a criar condições para a produção de tais mudanças.

Note-se ainda uma outra conseqiiência do fato de encarar a instituição como linguagem. As modificações soÍTÍdas por um gru­po podem provocar modificações em outros grupos da inst i tui ­ção, sem que esses outros tenham sido tocados ou mencionados, já que a instituição está sendo encarada como uma rede de rela­ções interligadas e em constante movimento, na qual a mudança de um elemento provocará necessariamente uma alteração de posição nos demais. Isso é uma decorrência do fato de ela ser encarada como uma linguagem. Se há mudanças em um grupo de professores, essas mudanças poderão "transbordar" para o gru­po de crianças, sem que tenham sido dados conselhos, orienta­ções, ou sem que os professores tenham tido "consciência" da

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necessidade dessa mudança. Simplesmente o ângulo de visão passa a ser outro, e o que se vê é outra coisa.

U m psicólogo que faça, por exemplo, um grupo de professores, tendo como referência essa "leitura" institucional de modo amplo, e do grupo, em seu funcionamento interior, estará operando com princípios da Psicanálise, sem contudo estar psicanalisando ninguém.

Assim, acredita-se que um psicólogo possa, atualmente, pedir à Psicanálise que lhe forneça alguns princípios orientadores da construção de um espaço de trabalho dentro da escola.

Parâmetros do espaço psi

O espaço psi, definido por parâmetros tomados de empréstimo à Psicanálise, pode ser assim caracterizado:

1. O objetivo do trabalho do psicólogo na escola é o de abrir um espaço para a circulação de discursos, naquelas instituições em que a ausência dessa circulação estiver comprometendo a realização dos objetivos institucionais.

2. U m psicólogo estará "autorizado" a intervir ein uma institui­ção quando estiver criada a transferência, seu principal ins­trumento de trabalho, da qual extrairá seu poder de ação, e com a qual poderá criar o espaço psi na escola.

3. Diante da demanda da escola, o psicólogo não a atenderá, nem a recusará, mas a "escutará" (entendendo-se "escuta" em seu sentido psicanalítico).

4. O trabalho do psicólogo se movimentará na intersecção entre a Psicologia e a Pedagogia.

5. A ética que o orienta pode ser assim enunciada: um coorde­nador dirige os trabalhos, mas não dirige as pessoas^. Cada um deverá responsabilizar-se por aquilo que (iiz, condição para a eficácia da direção dos trabalhos. Disso se deduz ainda que o psicólogo não participa da definição ou da transformação

2. Paráfrase cie um dito de Lacan: "o analista dirige o tratamento, mas não dirige o sujeito".

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dos objetivos daquela instituição, pois não fa:; uso político do poder que lhe confere a transferência. Usa-a apenas para produzir efeitos de verdade nos participantes dos grupos, e para ajudar na reorganização das condições de "oxigenação" daquele'organismo.

Tais princípios requerem uma explicação sobre seus funda­mentos na Psicanálise. Seguem-se algumas delas.

A escuta í

A palavra recolocada em circulação é o alvo. Para isso, seria necessário apontar, mostrar, interpretar os sujeitos nos grupos, mos­trando aquilo que só o psicólogo pode escutar? Isto não seria tirar proveito das leis de funcionamento da linguagem, e sim das leis de funcionamento do poder da sugestão. Estaríamos tirando proveito do pedido dirigido ao psicólogo para que ele faça pela instituição. Há transferência de poder da instituição para as mãos do psicólogo, mas ele não deve usá-lo efetivamente, se quiser ser fiel aos princípios da Psicanálise.

Usando seu conhecimento sobre o luncionamento da lingua­gem, será necessário supor que só a palavra proferida pelo sujeito pode ser por ele ouvida. N o entanto, ele precisa dirigir sua fala a alguém para que esta retorne e ele a ouça. Não se ouve se não usar esse recurso^. Portanto, o psicólogo estará em posição de escuta ativa. Para que esses efeitos se produzam, é preciso, em primeiro lugar, que o psicólogo tenha sido colocado pelo falante em posição privilegiada. O falante precisa autorizá-lo a ser seu escutante. Essa autorização é "assegurada" pela transferência de que o psicólogo

3. Eis um trecho de O /lomem da n\d.u, seca, de Adélia Prado, que ilustra muito bem o valor da escuta em uma rmíílise: "Fbr que ["leso de Corcovado e não de Pão de Açúcar? Perguntou-me o doutor, inábil, recusarido meu primeiro discurso, tomando meu desenfeite orgulhoso por despojamento. Tinha mau sorriso. Não confi:iria àquele homem afoito a dor da minha alma. (...) O segundo doutor ouviu-me a um ponto C[ue eu mesma ouvi-me. Eu gostava da minha voz narrando, da tez, do sorriso obscenc, da estatura anã do.s monstrinhof. que permitia passear entre a estante e a poltrona de couro da sala, o doutor balançando a cabeça sem me criticar Falei de novo 'peso de Corcovado', ficou impassível escutando, era bom falar, chamar à luz do dia a população das trevas, meu desassosego". São Paulo, Siciliano 1994, pp. 87-88.

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será alvo. Em seguida, será necessário proferir um "escuto", para demonstrar essa sua disposição, para oferecer-se nessa posição específica e não em qualquer outra. A o contrário, caso atenda ao pedido proferido na superfície, é possível que se feche a possibi­lidade de aquele pedido ter suas "verdadeiras" raízes escutadas.

Em conseqiiência, um psicólogo não aceitará a demanda da instituição, e tampouco se recusará a aceitá-la. Só poderá escutá-la se quiser que os sujeitos nela envolvidos venham a saber efeti­vamente o que está em jogo, o que querem, do que precisam, e por que não podem formular tudo isso.

O espaço criado pela transferência

O trabalho do psicólogo cria na escola um espaço que não existe concretamente, que não é nem a sala de aula, nem a sala da diretora, nem o pátio de recreio. Trata-se de um espaço montado, de um recorte a partir de todos os espaços da escola. E um novo espaço que se cria quando se entra na escola.

Como montar esse espaço na escola? E por que ele não pode coincidir com os já existentes?

A partir do momento em que um psicólogo se dispõe a ouvir a demanda de trabalho psicológico feita por uma escola, já se inicia o desenho desse espaço. A escola autoriza o psicólogo a ocupar um determinado lugar, e essa autorização indica o esta­belecimento de uma transferência.

Sendo ele o alvo da transferência, é a ele que serão dirigidos os discursos, e essa é a condição para que ele possa lê-los. U m psicólogo pode saber sobre a relação que um sujeito estabelece com ele porque ele mesmo é o alvo. Mas não há como saber como é a relação de um professor com seu aluno. Mesmo indo observá-la em sala de aula, ou ainda que o professor a relate, estaríamos apenas vendo comportamentos, com um risco enorme de erros de i n t e r p r e t a ç ã o . S ó poderemos i n t e r v i r sobre as re lações transferenciais de que formos alvo, daí a necessidade de criar ins­tâncias especiais de trabalho, sem a interferência de outras tarefas ou de outras figuras de autoridade presentes.

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Após ser configurada pelo estabelecimento da transferên­cia, prossegue a montagem desse espaço quando o psicólogo cria enc|uadres mais ou menos fixos para acicmar seu "erf escuto"; monta grupos, marca reuniões. A o fazê-lo, põe a palavra em circu­lação. Falam ós professores no grupo, falam as crianças em outro, falam os pais na reuniíío. As alternâncias de falas, as relações que o psicólogo estabelece entre elas, vão "desenhando", dando* con­tornos a esse espaço. A transferência de que se é suporte e as falas encadeadas montam o campo psi em que circulará o psicólogo''.

Entre a Pedagogia e a Psicologia . ;, , , t

O espaço psi define-se, em termos de "conteúdos", a partir da intersecção entre o pedagógico e o psicológico. Ou seja, há aspectos do pedagógico que caem fora do seu âmbito, assim como há aspectos do psicológico que também não devem ser abordados. Se uma pro­fessora, por exemplo, põe-se a falar da infância, será preciso pensar a intersecção dessa história com a questão dela como professora ali. O trabalho dirige a discussão para esse espaço de intersecção, e despreza os aspectos mais propriamente psicanalíticos do discurso daquela professora. A o fazer isso, haverá também aspectos do peda­gógico c[ue cairão fora: técnicas de alfabetização, etc. Do âmbito institucional, ficarão dentro do espaço psi aqueles aspectos que di ­zem respeito, por exemplo, ao especial modo como as crianças e os professores vivem e filtram para si as relações de poder, e ficarão fora as ações concretas ciue buscam modificar tais relações.

A justificativa disso advém do âmbito possível de qualquer trabalho com a subjetividade psicanaliticamente orientado, mas realizado fora do enquadre do consultório: o âmbito será o do eu do sujeito, e portanto o das identificações, o dos papéis socialmen­te definidos. Em uma palavra, o do imaginário. O que está em jogo é o modo como aqueles professores imagi.nam seu papel, e quais os discursos em torno desse papel que imptídem seu exercício eficaz,

4- Para entender melhor a transferência, ver Milier, J. A. , Percurso de Lacan. Rio de Janeiro, Zahar, 1987.

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muito mais que a verdade últiraa daquele sujeito do inconsciente que "habita" um professor.

O psicólogo voltou agora, como no início, a não fazer parte do coro da escola. Tampouco é seu maestro, nem o compositor da melo­dia que entoam. Resta-lhe então o lugar do ouvinte, lugar difícil de manter. Mas não é pelo fato de haver um ouvinre que se justifica toda a mobilização de um coro? Não é por ele que trabalham, que se orientam? Se o psicólogo puder se manter nesse lugar, e se puder reproduzir em uma escola os efeitos que um ouvinte causa a um coro, não terá trabalhado para "consertar" uma escola, mas para ser um dos agentes na produção de uma instituição bem "concertada!"

Referências

JAPIASSiU, H . Introdução à Epistemylogia da Psicologia. Pio de Janeiro, Imago, 1982.

MILLOT,C.Freudanti-pedagogo. RiodeJaneiro,Zahar, 1987.

SOUZA, H . R. "Institucionalismo: a perdição das instituições". Temas IMESC, voLl,n«I,pi3.13-24,1984.