O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE FRENTE...

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FACULDADE BAIANA DE DIREITO CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO LUCAS MEIRELLES MIRANDA O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE FRENTE À RELEVÂNCIA DAS RELAÇÕES SOCIOAFETIVAS Salvador 2016

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    FACULDADE BAIANA DE DIREITO

    CURSO DE GRADUAO EM DIREITO

    LUCAS MEIRELLES MIRANDA

    O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE FRENTE RELEVNCIA DAS RELAES

    SOCIOAFETIVAS

    Salvador 2016

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    LUCAS MEIRELLES MIRANDA

    O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE

    FRENTE RELEVNCIA DAS RELAOES SOCIOAFETIVAS

    Monografia apresentada ao curso de graduao em Direito, Faculdade Baiana de Direito, como requisito parcial para obteno do grau de bacharel em Direito. Orientador: Profa. Luciano Lima Figueiredo

    Salvador

    2016

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    TERMO DE APROVAO

    LUCAS MEIRELLES MIRANDA

    O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE

    FRENTE RELEVNCIA DAS RELAES SOCIOAFETIVAS

    Monografia aprovada como requisito parcial para obteno do grau de bacharel em

    Direito, Faculdade Baiana de Direito, pela seguinte banca examinadora:

    Nome:______________________________________________________________

    Titulao e instituio:____________________________________________________

    Nome:______________________________________________________________

    Titulao e instituio: ___________________________________________________

    Nome:______________________________________________________________

    Titulao e instituio:___________________________________________________

    Salvador, ____/_____/ 2016

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    AGRADECIMENTOS

    Primeiramente a Deus, por ter me dado foras, sade e discernimento para chegar at este momento. minha famlia, por todo carinho, amor e suporte incondicional. A todos os professores, amigos e colegas que, direta ou indiretamente, participaram da minha formao e me ajudaram nessa caminhada.

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    A persistncia o caminho do xito.

    Charles Chaplin

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    RESUMO

    O presente trabalho visa abordar o reconhecimento da multiparentalidade, temtica cada vez mais comum na sociedade brasileira e que ainda no possui legislao especfica que estabelea suas diretrizes. O direito de famlia dinmico e, na tentativa de acompanhar os avanos da coletividade, est em constante evoluo e precisa ser constantemente debatido. A famlia no mais limitada, havendo um grande leque para a sua constituio. Diversas so as possibilidades de parentesco de acordo com o Cdigo Civil. No h que se definir pai e filho apenas pela consanguinidade, mas tambm pela posse de estado de filho aliada ao afeto da relao entre eles, surgindo a figura da filiao socioafetiva. Dadas essas possibilidades, no h que se falar em um critrio prevalente, mas sim na possibilidade de aplicao de qualquer deles ou ambos, quando necessrio, surgindo o instituto da multiparentalidade. O reconhecimento desse novo estado paterno-filial o reconhecimento da afetividade como valor jurdico e a afirmao e consagrao dos princpios garantidos pela Constituio Federal de 1988 e que regem o Direito de Famlia. O critrio biolgico no mais o nico definidor da relao de filiao, dada relevncia das relaes socioafetivas. Configurada e provada a existncia de ambas as filiaes e considerando que este o melhor interesse para o filho, aps cuidadoso estudo de cada casa de maneira individual, o magistrado deve optar pela multiparentalidade, que trar consigo consequncias no mbito patrimonial, na prestao de alimentos, registro civil e direito de convivncia e que no podero ser usados como justificativa para o seu no reconhecimento por conta de omisso legislativa sobre o tema. Palavras-chave: Parentesco; filiao; familia; socioafetividade; melhor interesse do filho; posse de estado de filho; multiparentalidade; consequncias

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    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    art. artigo

    CC Cdigo Civil

    CF/88 Constituio Federal da Repblica

    des. Desembargador

    Coord. Coordenador

    Ed. Edio

    STF Supremo Tribunal Federal

    STJ Superior Tribunal de Justia

    TJ Tribunal de Justia

    RE Recurso Extraordinrio

    RESP Recurso Especial

    IBDFAM Instituto Brasileiro de Direito de Famlia

    ECA Estatuto da Criana e do Adolescente

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    SUMRIO

    1 INTRODUO ...................................................................................................... 09 2 PRINCPIOS APLICVEIS.................................................................................... 11 2.1 PRINCPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR ......................................... 11

    2.2 PRINCPO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ......................................... 14

    2.3 PRINCPIO DA AFETIVIDADE ........................................................................... 15

    2.3 PRINCPIO DA PLURALIDADE DAS FORMAS DE FAMLIA ............................ 17

    2.4 PRINCPIO DA IGUALDADE DE FILIAO ...................................................... 19

    2.5 PRINCPIO DA PROIBIO DO RETROCESSO SOCIAL ................................ 20

    3 PARENTESCO E FILIAO ................................................................................. 22 3.1 ASPECTOS GERAIS .......................................................................................... 22

    3.2 CONCEITO DE PARENTESCO ......................................................................... 25

    3.2.1 Modalidades de paretesco ............................................................................ 26 3.3 CONCEITO DE FILIAO.................................................................................. 29

    3.4 A FILIAO BIOLGICA ................................................................................... 31

    3.5. A FILIAO SOCIOAFETIVA E A DEFINIO DE CRITRIOS PARA O SEU

    RECONHECIMENTO ............................................................................................... 32

    3.5.1 Da posse do estado de filho ......................................................................... 34 3.5.2 Da (im)possibilidade de revogao do vnculo afetivo .............................. 38 3.6 O FILIAO BIOLGICA X FILIAO SOCIOAFETIVA ................................... 42

    3.7 A MULTIPARENTALIDADE: NOES GERAIS ................................................ 46

    3.7.1 Definio do Conceito ................................................................................... 47

    4 DO RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE ..................................... 49 4.1 DIVERGNCIAS QUANTO AO RECONHECIMENTO ....................................... 49

    4.2 O POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL NO DIREITO BRASILEIRO ........ 54

    4.3 DA LEGITIMIDADE PARA PLEITEAR O RECONHECIMENTO DA

    MULTIPARENTALIDADE ......................................................................................... 58

    4.4 DOS DIREITOS E DEVERES DECORRENTES DO RECONHECIMENTO....... 61

    4.2.1 A questo dos Alimentos Devidos ............................................................... 62 4.2.2 Da relao sucessria ................................................................................... 64

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    4.2.3 Do direito ao Nome ........................................................................................ 66 4.4.4 Do direito de Convivncia ........................................................................... ..68

    6 CONCLUSO ...................................................................................................... ..70

    REFERNCIAS ...................................................................................................... ..75

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    1 INTRODUO

    Trata o presente trabalho acerca da possibilidade de reconhecimento da

    multiparentalidade em decorrncia da importncia que a realidade ftica possui na

    vida dos indivduos e dos avanos alcanados pelo direito de famlia ao longo dos

    anos.

    O tema foi escolhido pois fonte de divergncias doutrinrias e jurisprudenciais

    quanto a sua instituio, inclusive o Supremo Tribunal Federal havia reconhecido a

    existncia de repercusso geral da matria, julgando-a e fixando sua tese vinculante

    apenas no ms de setembro do ano de 2016, durante a execuo deste trabalho

    monogrfico.

    O direito de famlia est em constante transformao em decorrncia de uma rpida

    evoluo da estruturao da sociedade e seus costumes. O carter patriarcal da

    famlia no possui mais espao, perdendo tambm o seu condo patrimonialista. O

    que se almeja agora a busca da felicidade e no h como discriminar os mais

    diversos e diferentes arranjos familiares.

    Quando se trata de multiparentalidade, deve-se entender que a relao

    estabelecida entre um filho com mais de um pai ou de uma me de forma

    concomitante, sendo um deles de origem consangunea e outro de origem

    socioafetiva. uma relao que vai se desenvolver sob a luz dos princpios regentes

    do direito de famlia, que vo possuir papel de destaque na abordagem dessa

    temtica. Existe a linha de autores e magistrados que defendem a sua aplicao por

    entenderem que no h sobreposio do carter socioafetivo ao biolgico e nesta

    seara que o presente trabalho vai se manter.

    Seguindo a subdiviso desta obra, o primeiro captulo trata de estudar os princpios

    que embasam o direito famlia, com especial destaque para aqueles que tm

    aplicabilidade direta quando necessrio o estudo para o reconhecimento da

    multiparentalidade, sendo eles o princpio do melhor interesse. H a diviso entre o

    princpio do melhor interesse do filho; princpio da dignidade humana; princpio da

    afetividade; principio da pluraridade das formas de famlia; igualdade da filiao; e

    por fim, o princpio da proibio do retrocesso social. Ver, a partir da suas

    definies e conceituaes, a importncia destes para tal instituto.

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    O segundo captulo responsvel por tratar acerca das diversas modalidades de

    parentesco, inclusive a filiao, a mais importante delas. D-se inicio com uma breve

    exposio da evoluo das famlias, seus conceitos e caractersticas com relao as

    mudanas que a sociedade sofreu e passou a exigir que tal temtica ganhasse uma

    nova abordagem. Vai se buscar esclarecer no que consiste o parentesco, suas

    formas, at se chegar nas relaes filiatrias. Para o prosseguimento deste capitulo,

    delimitaremos os critrios estabelecedores da filiao e os fatores relevantes na sua

    anlise comparativa e individual, at alcanar o conceito de multiparentalidade.

    Por fim, o terceiro captulo surge para tratar do reconhecimento desse novo instituto,

    observando o que foi fixado pelo Recurso Extraordinrio 898.060 abordando

    divergncias doutrinrias aliadas ao estudo do posicionamento jurisprudencial do

    ordenamento brasileiro quanto a esse tema comparando, tambm, com o direito

    estrangeiro e abordagem trazida por este. Em tpicos subdividos se dar a anlise

    das consequncias, direito e deveres, oriundos do reconhecimento da

    multiparentalidade, destacando os principais pontos que geram discusso, como a

    multihereditariedade e aplicao da Lei de Registros Pblicos.

    O trabalho se conclui com o levantamento de todos os pontos trazidos e, na viso do

    presente autor, o melhor posicionamento quando se enfrenta tais casos, qual seja

    admitir a multiparentalidade e a coexistncia das filiaes socioafetiva e biolgica,

    alm da relativizao quanto aplicao de algumas normas que sero utilizadas de

    forma anloga diante da omisso de uma legislao especifica regente.

  • 11

    2 PRINCPIOS APLICVEIS

    No h como tratar acerca do Direito de Famlia sem pontuar a importncia dos seus

    diversos princpios norteadores. Muitos desses princpios esto expostos de forma

    expressa e clara na Constituio Federal, no nosso ordenamento jurdico e outros

    esto presentes de forma implcita, mas igualmente importantes nesse instituto.

    No dizer de Pablo Stolze Gagliano (2011, p. 71), constitui tarefa muito pretensiosa

    esgotar todos os princpios informadores do direito de famlia e por isso temos que

    direcionar o estudo para uma melhor eficincia.

    imprescindvel, portanto, discorrer acerca dos princpios que regulamentam e

    fundamentam os direitos que viro a surgir em relao ao instituto da

    multiparentalidade.

    Dentre os diversos princpios que regem o direito de famlia, caber aqui a escolha

    do presente autor, ao tratar sobre aqueles os quais julga ser mais importantes ao

    tema em questo, sendo eles: (1) princpio do melhor interesse do menor, (2)

    princpio da dignidade da pessoa humana, (3) princpio da afetividade, (4) princpio

    da pluridade das formas de famlia, (5) princpio da igualdade de filio e (6)

    princpio da proibio do retrocesso social.

    Esses princpios possuem conexo direta com as consequncias geradas pelo

    reconhecimento da multiparentalidade frente importncia das relaes

    socioafetivas.

    2.1 PRINCPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR

    O referido princpio, como o prprio nome reflete, tem como premissa garantir ao

    menor, prole, o seu desenvolvimento da melhor maneira possvel, onde as

    decises tomadas pelos responsveis estejam sempre em consonncia com o

    interesse do menor, devendo o judicirio, quando necessria for a sua ao, buscar

    alcanar e proteger esse ideal principiolgico.

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    Segundo posicionamento de Guilherme Gama (2008, p. 08)esse principio traz uma

    nova linha de entendimento:

    O princpio do melhor interesse da criana e do adolescente representa importante mudana de eixo nas relaes paterno-materno-filiais, em que o filho deixa de ser considerado objeto para ser alado a sujeito de direito, ou seja, a pessoa humana merecedora de tutela do ordenamento jurdico, mas com absoluta prioridade comparativamente aos demais integrantes da famlia de que ele participa. Cuida-se, assim, de reparar um grave equivoco na histria da civilizao humana em que o menor era relegado a plano inferior, ao no titularizar ou exercer qualquer funo na famlia e na sociedade, ao menos para o direito.

    A Constituio Federal de 1988, em seu artigo 227, caput, garante criana,

    adolescente ou jovem, de forma prioritria, o direito vida, alimentao, sade,

    cultura, educao, ao lazer, profissionalizao, dignidade, ao respeito,

    liberdade e convivncia familiar e comunitria, sendo reforado de forma expressa,

    ainda, pela lei 8.069 de 13 de julho de 1990, conhecida como Estatuto da Criana e

    do Adolescente, no caput do seu artigo 3, nos artigos 4 e no seu artigo 7:

    Artigo 3: A criana e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes pessoa humana, sem prejuzo da proteo integral de que trata essa Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento fsico, mental, espiritual e social, em condies de liberdade e de dignidade. Artigo 4: dever da famlia, da comunidade, da sociedade em geral e do poder publico assegurar, com absoluta prioridade, a efetivao dos direitos referentes vida, sade, alimentao, educao, ao esporte, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria. Artigo 7: A criana e o adolescente tem direito a proteo vida e sade, mediante a efetivao de polticas sociais pblicas que permitam o nascimento e desenvolvimento sadio e harmonioso, em condies dignas de existncia.

    Aqui a criana no mais tratada como aquela que tem sempre que se submeter s

    vontades e anseios alheios, tendo o seu processo de amadurecimento e formao

    da personalidade amplamente respeitados. Nas relaes oriundas da

    socioafetividade, um dos principais, seno o principal fator a vontade que a parte

    manifesta para a realizao daquela condio e agora o menor possui proteo

    estatal naquilo que vai ser melhor para o seu desenvolvimento.

  • 13

    Dos artigos acima expostos, deve-se destacar que o Estatuto da Criana e do

    Adolescente pautado na doutrina da proteo integral. O principio do melhor

    interesse do menor e a proteo integral esto completamente interligados, alm de

    onde essa doutrina est pautada na peculiar condio de fragilidade e

    vulnerabilidade em que se encontram o menor e o adolescente, o que gera para eles

    o beneficio de uma proteo especial.

    Nas palavras de Antnio Carlos Gomes da Costa (1992, p. 19), um dos redatores do

    ECA, essa doutrina afirma o valor intrnseco da criana como ser humano; a

    necessidade de especial respeito sua condio de pessoa em desenvolvimento; o

    valor prospectivo da infncia e da juventude, como portadora da continuidade de seu

    povo e da espcie e o reconhecimento da sua vulnerabilidade, o que torna as

    crianas e adolescentes merecedores de proteo integral por parte da famlia, da

    sociedade e do Estado, o qual dever atuar atravs de polticas especficas para

    promoo e defesa de seus direitos.

    Nesse sentido, Rodrigo da Cunha Pereira (2012, p. 150-151) doutrina que no existe

    de forma clara e aplicvel a todo e qualquer caso uma definio preconcebida

    acerca do que vai ser melhor para a criana ou adolescente. Aqui deve-se entender

    que esses indivduos, alm de possurem as garantias fundamentais que so dadas

    a todo e qualquer individuo, possuem direitos fundamentais especiais, que mantm

    relaes muito prximas com esse princpio que possui um contedo aberto, que

    dever se ajustar aos contornos de cada caso concreto apresentado, para que se

    alcance o melhor interesse da melhor maneira possvel.

    Em suma, o principio do melhor interesse do menor alm de servir como guia para

    as relaes entre a criana e o adolescente com seus familiares, sociedade e

    Estado, fundamental na resoluo de conflitos de normas, uma vez que, sempre

    que possvel, deve-se optar pelo interesse melhor da criana e do adolescente.

    Garantir o melhor interesse da criana romper todas as barreiras de preconceitos

    que possam existir em relao a ela, evitando que um julgamento moral errneo

    possa interferir quando se tratar do desenvolvimento do menor.

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    2.2 O PRINCPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O DIREITO DE

    FAMLIA

    O principio da dignidade da pessoa humana um dos maiores, seno o maior

    princpio existente no ordenamento brasileiro, sendo aplicvel a diversos temas e

    entendimentos. Expresso na Constituio Federal de 05 de outubro de 1988, no seu

    artigo 1, inciso III como um principio fundamental do estado brasileiro, esse principio

    carrega consigo uma responsabilidade extrema, considerado por maioria da doutrina

    como um princpio solar.

    Para a definio do conceito deste, surge a dificuldade por conta da sua importncia,

    mas conceituado, na sua noo jurdica, pelos autores Rodolfo Pamplona Filho e

    Pablo Gagliano Stolze (2011, p. 74), como uma traduo de um valor fundamental

    de respeito existncia humana, segundo as suas possibilidades e expectativas,

    patrimoniais e afetivas, que so indispensveis felicidade e a realizao do

    individuo como pessoa. Ainda, esse princpio tem o papel de garantir o direito de

    viver de forma plena, sem a interveno de particulares ou do estado na sua

    concretizao.

    Corroborando com o exposto acima, Rodrigo da Cunha Pereira (2002, p.115) ao

    citar a doutrinadora Carmem Lucia Antunes Rocha, leciona que esse princpio

    estabeleceu uma nova forma de pensar o sistema jurdico, sendo a dignidade o

    principio e fim do direito:

    Dignidade o pressuposto da idia de justia humana, porque ela que dita a condio superior do homem como ser de razo e sentimento. Por isso que a dignidade humana independe de merecimento pessoal ou social. No se h de ser mister ter de fazer por merec-la, pois ela inerente vida e, nessa contingncia, um direito pr-estatal.

    Ento, a partir da definio deste principio, entende-se o quo extenso vai ser o seu

    alcance nas diversas reas do direito de famlia, sendo esse um macroprincpio base

    para a aplicao de todos os demais, e, uma vez incorporado pela Constituio

    Federal, torna-se limite para o prprio Direito e para a sociedade, posto que no se

    permitido ir alm dos limites da dignidade humana. O Estado, alm de possuir o

    dever de no agir de forma a ir de encontro a esse princpio, deve promover essa

    dignidade atravs de condutas ativas, tentando assegurar ao mximo o bem-estar e

    garantias mnimas a cada indivduo.

  • 15

    No que diz respeito ao direito de famlia, Rolf Madaleno (2013, p. 45) deixa claro que

    o planejamento familiar est embasado na dignidade da pessoa humana e da

    paternidade responsvel, cabendo aos pais, dentre outras garantias, assegurar o

    direito dignidade, liberdade, ao respeito, que so garantias mnimas de uma vida

    tutelada sob o signo da dignidade da pessoa.

    O direito de famlia encarregado de tratar, alm de questes patrimoniais, de

    aspectos biolgicos, afetivos e sociais que unem os sujeitos, onde se encontrar a

    incidncia desse princpio de forma clara, no respeito s escolhas, no respeito s

    atitudes e no respeito prpria famlia. na dignidade da pessoa humana que se

    firma um dos principais pilares argumentativos para se defender as diversas formas

    de relaes, sejam de filiao ou de famlia, em todas elas devendo ter a sua

    vontade respeitada e encontrar no Estado a devida proteo que este lhes pode

    garantir.

    Maria Berenice Dias (2011, p. 62-64) leciona que na medida em que a dignidade da

    pessoa humana foi elevada a fundamento da ordem jurdica, houve a opo

    expressa pela pessoa, ligando os institutos realizao da sua personalidade. Esse

    fenmeno despatrimonializou os institutos jurdicos, colocando a pessoa humana no

    centro da proteo do direito. O princpio da dignidade da pessoa humana significa

    uma igual dignidade para todas as entidades familiares.

    Nesse sentido, conforme entendimento de Rodolfo Pamplona Filho e Pablo

    Gagliano Stolze (2011, p. 76), conclui-se que o respeito ao principio da dignidade da

    pessoa humana s estar completo, s ser plenamente efetivo, quando levado em

    conta o mbito das relaes de parentesco e familiares.

    2.3 PRINCPIO DA AFETIVIDADE

    Nesse ponto, importante que se entenda esse principio como um dos principais

    norteadores da formao, da unio familiar na sociedade. Durante muito tempo a

    afetividade foi tratada s margens do direito de famlia, pois, numa sociedade com

    um direito enrijecido, antiquada, no havia meios possveis ainda, diante de todo o

    preconceito e julgamentos perante a sociedade que existiam de forma extensa em

    um passado no to distante, desse principio ser comparado ao fator biolgico, s

  • 16

    relaes consanguneas. Contudo, mesmo com essas dificuldades, as relaes de

    afetividade foram ganhando espao.

    Nos dias atuais, claro perceber que a afetividade j no mais mera coadjuvante

    e garantiu lugar de destaque nas relaes de familia, sendo os seus laos

    respeitados de maneira igual ou superior queles biolgicos. Maria Berenice Dias

    (2015, p.52) afirma que o princpio da afetividade fundamenta o Direito de Famlia na

    estabilidade das relaes socioafetivas em primazia das relaes patrimoniais e

    consanguneas. Ainda h a possibilidade de aplicao do termo affectio societatis no

    direito de famlia como forma de expor o afeto, a vontade entre duas ou mais

    pessoas para formar uma sociedade, uma famlia.

    O principio da afetividade est muito ligado ao principio fundamental felicidade,

    sendo o Estado responsvel, alm de tudo, a atuar de modo que, de alguma forma,

    ajude os cidados a realizarem seus projetos pessoais racionais e desejos legtimos.

    Mesmo no estando entre os princpios da Carta Maior, o afeto foi enlaado no

    mbito da sua proteo (DIAS, 2015, p. 52).

    Em consequncia desse novo ponto de vista, dessa nova valorao referente

    afetividade, segundo Jos Neves dos Santos (2014, p. 01), tal principio est

    intrinsecamente ligado ao sentimentalismo humano, no podendo ser afastado de

    forma alguma dos sentimentos de famlia, de querer ser famlia.

    Neste sentido segue o leciona Rodrigo da Cunha Pereira (2012, p.215) ao tratar

    sobre a relevncia desse princpio:

    uma das mais relevantes consequncias do princpio da afetividade encontra-se na jurisdicizao da paternidade socioafetiva, que abrange os filhos de criao. Isto porque o que garante o cumprimento das funes parentais no a similitude gentica ou a derivao sangunea, mas, sim, o cuidado e o desvelo dedicado aos filhos

    Caber ao juiz, quanto aferio da presena do carter afetivo, mais do que a

    aplicao de uma interpretao racional, devendo compreender as partes

    envolvidas, respeitando as diferenas e valorizando, acima de tudo, os laos de

    afeto que os unem (PAMPLONA E GAGLIANO, 2011, p.92).

  • 17

    2.6 PRINCPIO DA PLURALIDADE DAS FORMAS DE FAMILIA

    Durante anos, a partir da Carta Magna de 1937 que instituiu normas sobre a famlia

    e, principalmente, o casamento, que era este reconhecidamente o nico meio de

    constituir uma famlia, at o advento da Constituio Federal de 1988.

    A famlia, como ser tratada com maior riqueza mais adiante, possua, antes de

    qualquer coisa, uma finalidade econmica, poltica e religiosa, onde prevalecia o

    poder e a deciso da figura masculina. Com a promulgao da vigente Constituio,

    o modelo patriarcal e hierarquizado foi superado, e ento nasceram princpios

    norteadores que destituram o casamento do seu papel de protagonista, tornando-se

    apenas uma das formas de constituio familiar no ordenamento brasileiro,

    extinguindo-se o termo muito utilizado at ento de famlia legtima.

    Em seu Artigo 226, a Carta Maior consagra o principio da pluralidade das formas de

    famlia, trazendo consigo as possibilidades de formaes familiares previstas, dentre

    elas, a unio estvel, as famlias monoparentais e, o mais conhecido, o casamento.

    Mas, nesse momento, necessrio que se observe o mundo ftico e suas

    evolues, onde se percebe que o contedo do referido artigo no um limitador,

    mas sim rol meramente exemplificativo. Existem diversas outras possibilidades

    familiares que se fazem presentes na sociedade moderna e s quais so devidos os

    mesmos direitos e proteo estatal.

    Com autoridade, Rodrigo da Cunha Pereira (2012, p. 194-195) doutrina:

    da Constituio da Repblica que se extrai o sustentculo para a aplicabilidade do princpio da pluralidade de famlia, uma vez que, em seu prembulo, alm de instituir o Estado Democrtico de Direito, estabelece que deve ser assegurado o exerccio dos direitos sociais e individuais, bem como a liberdade, o bem-estar, a igualdade e a justia como valores supremos da sociedade. Sobretudo da garantia da liberdade e da igualdade, sustentadas pelo macroprincpio da dignidade, que se extrai a aceitao da famlia plural, que vai alm daquelas previstas constitucionalmente e, principalmente, diante da falta de previso legal.

    A famosa unio estvel, segundo o Cdigo Civil de 2002, em seu artigo 1.723,

    ser reconhecida como entidade familiar entre o homem e a mulher, configurada na

    convivncia pblica, contnua e duradoura e estabelecida com o objetivo de

    constituio de famlia. Tambm, segundo a lei, a unio estvel deve ser equiparada

    ao casamento e sua converso em casamento facilitada ao mximo. O

  • 18

    entendimento de que esse artigo seria aplicado apenas relao entre homem e

    mulher foi superado pelo Supremo Tribunal Federal, explicitado no seu informativo

    n. 625, excluindo qualquer significado que impedisse o reconhecimento da unio

    entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.

    Seguindo este entendimento, o Conselho Nacional de Justia editou a Resoluo

    nmero 175, de 14 de maio de 2013, que passou a vedar a recusa de habilitao,

    celebrao de casamento civil ou de converso de unio estvel em casamento

    entre pessoas do mesmo sexo (PEREIRA, 2015, p. 31-35).

    Neste mbito das diversas maneiras de se constituir uma famlia, existe uma que

    necessrio tratar com maior ateno no presente trabalho, que so as chamadas

    famlias parentais. Essas famlias podem se formar pelo vinculo de parentesco

    biolgico ou pelo vnculo socioafetivo. No primeiro se encaixam as famlias

    monoparentais, onde a prole criada por apenas um dos pais e nem por isso ser

    descaracterizada como famlia. Existem tambm as comunidades formadas por

    irmos que no convivem com seus pais e at mesmo avs e netos, todos estes

    sendo abarcados pelo conceito de famlia.

    O Estatuto das Famlias, Projeto de Lei 470/2013 que tramita no Senado Federal, no

    seu artigo 69 traz a devida definio do que foi tratado acima:

    Art. 69. As famlias parentais se constituem entre pessoas que tm relao de parentesco ou mantm comunho de vida instituda com a finalidade de convivncia familiar. 1 Famlia monoparental a entidade formada por um ascendente e seus descendentes, qualquer que seja a natureza da filiao ou do parentesco. 2 Famlia pluriparental a constituda pela convivncia entre irmos, bem como as comunhes afetivas estveis existentes entre parentes colaterais.

    Alm do tratado acima, o novo direito nos permite citar inmeras outras

    possibilidades, como as famlias reconstitudas, que consistem naquelas que

    nascem de um novo relacionamento onde os envolvidos trazem filhos de um

    relacionamento passado de forma a compor essa nova famlia, na qual nem todos

    tero parentesco entre s, mas haver um grau de parentesco com a prole em razo

    da unio do casal reconstitudo, no importando se o outro companheiro que se

    separou ainda se faz presente fsica ou emocionalmente perante o filho que est no

    seio desta nova famlia (FERREIRA e ESPOLADOR, 2009, p.107).

  • 19

    Essa famlia ter na socioafetividade, onde a convivncia, sentimentos recprocos e

    laos criados possuem tanta fora, a sua base. Dessa relao que busca a

    felicidade plena e a dignidade humana, surgiro, alm do lao familiar reconhecido

    pela sociedade e pelo direito, paradigmas mais novos ainda, como o fenmeno da

    multiparentalidade, que ser tratada com mais cuidado ao longo desta obra.

    Portanto, em sntese de Caio Mrio da Silva Pereira (2015, p. 33-36), as famlias

    modernas desapareceram com a organizao patriarcal, havendo a mudana de

    paradigma relacionado quela que era composta por homem, mulher e filhos. Dessa

    nova concepo no h que se falar em desprestgio do termo famlia, pois no

    mundo moderno imprime tambm uma feio moderna a ele. Com base nesse

    princpio, o Estado se torna responsvel por garantir a proteo das diversidades de

    ncleos familiares existentes, que so unidos pela busca pela da felicidade e

    realizao pessoal.

    2.4 PRINCPIO DA IGUALDADE DA FILIAO

    Por um longo tempo, os filhos eram distinguidos de acordo com o estado civil dos

    pais, eram divididos em legtimos, se os pais fossem casados, ou ilegtimos se os

    pais no tivessem uma relao conjugal, sendo subdivididos entre os naturais,

    adulterinos, quando fruto de uma relao paralela ao casamento ou incestuosos,

    que se dava por parentes impedidos de se casarem (MADALENO, 2008, P. 99).

    Com o advento da Constituio Federal de 1988, a discriminao relativa a filiao

    foi afastada, em parte, no havendo mais tratamento diferenciado tanto no que diz

    respeito aos direitos, como em relao s consequncias patrimoniais para aqueles

    filhos havidos fora do casamento, assim como tambm quanto a denominaes

    pejorativas.

    Embora ainda no se tenha chegado ao modelo ideal de igualdade protegida por lei,

    j houve um avano significativo no que diz respeito aos filhos biolgicos e adotivos,

    mas que ainda gera discusses a respeito da filiao socioafetiva.

    O Cdigo Civil Brasileiro traz em seu artigo 1.569 disposio no sentido de que

    aqueles filhos havidos ou no da relao de casamento, ou por adoo, tero os

  • 20

    mesmos direitos e qualificaes, proibidas quaisquer designaes discriminatrias

    relativas filiao.

    Tal artigo tem a sua matriz constitucional no artigo 227, pargrafo 6, da Carta Maior,

    que assim estabelece, in verbis:

    Art. 227. dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito vida, sade, alimentao, educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de coloc-los a salvo de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso.

    6 Os filhos, havidos ou no da relao do casamento, ou por adoo, tero os mesmos direitos e qualificaes, proibidas quaisquer designaes discriminatrias relativas filiao.

    Na atualidade, ante a evidente fora que a afetividade, a dignidade da pessoa

    humana, dentre outros princpios e conceitos, torna-se fcil perceber que a

    sociedade alcanou um novo patamar, no qual o principio da igualdade est

    abrangendo, tambm, a filiao por afetividade. H, de forma clara, mais uma vez, a

    equiparao da filiao biolgica com a filiao afetiva, tema amplamente tratado.

    Ento, independentemente da origem do filho, seja biolgica, adotiva, reproduo

    assistida, afetiva, etc., haver a isonomia de direitos entre eles, sem quaisquer

    discriminaes. Por fim, uma consequncia importante da afirmao do principio da

    igualdade entre os filhos tornar o interesse do menor o principal critrio na soluo

    de conflitos familiares que os envolva, tirando aquela hierarquizao que dava

    primazia a figura paterna (CHAVES e ROSENVALD, 2015, P. 103).

    2.5 - PRINCPIO DA PROIBIO DO RETROCESSO SOCIAL

    A proibio do retrocesso social de suma importncia no aspecto de

    reconhecimento dos direitos de famlia e, em especial, para o tema que aqui ser

    amplamente abordado: a multiparentalidade. Por esse princpio vedado retroceder

    ao patamar anterior ao do reconhecimento, ante as necessidades ainda no

    reconhecidas legalmente (SANTOS, 2014, p. 01).

  • 21

    Faz-se mister pontuar a importante proteo trazida por este principio queles

    reconhecimentos como a igualdade entre filhos, a igualdade entre sexos, a

    diversidade dos entes familiares, dentre outros.

    A Constituio Federal de 1988 trouxe no seu bojo e atribuiu ao Estado a

    capacidade e competncia para tutelar aquilo que surgisse e que fosse amplamente

    conhecido, mas no tivesse um amparo legal. Esse foi o primeiro passo para que as

    novas relaes que hoje esto espalhadas por toda a sociedade, dentre elas, o

    reconhecimento multiparentalidade no Brasil, se consolidassem. (SANTOS, 2014, p.

    02)

    Aponta Ricardo Mauricio Freire (___, p. 08), que a eficcia vedativa do retrocesso

    deriva da eficcia negativa, segundo a qual as conquistas relativas aos direitos

    fundamentais no podem ser excludas pela supresso de normas jurdicas

    progressistas.

    Ainda, Renata Cezar (2011, p.01) afirma que o princpio da proibio do retrocesso

    social confere aos direitos fundamentais, em especial aos sociais, estabilidade nas

    conquistas dispostas na Carta Poltica, vedando a alterao pelo Estado. No

    garante uma imutabilidade eterna, mas sim segurana jurdica contra aes

    retrocessivas do Estado que ignorem os direitos adquiridos. Para que um direito

    venha a ser alterado, que passe por um longo processo de analise para que traga

    benefcios queles a que se destina, buscando modificaes que aumentem seu

    alcance.

  • 22

    3. PARENTESCO E FILIAO

    Todo homem possui a necessidade de se relacionar, de interagir e conviver com

    outros indivduos. O homem, como ser social, tem na socializao a busca por

    novas descobertas, a realizao pessoal na sua plenitude. Faz-se presente a

    indispensabilidade de conhecer as suas origens, os seus antepassados e a cultura

    na qual est inserido, como parte do seu desenvolvimento pessoal e social. A

    influncia e as implicaes geradas por esses fatores so diversos, exercendo um

    papel importante at mesmo na construo da identidade de cada individuo.

    O conceito de famlia no se confunde com os conceitos de parentesco e de filiao.

    Diversas so as formas como o parentesco e como a filiao vo se estabelecer,

    podendo at coincidirem em alguns pontos, mas faz-se necessria a diferenciao

    entre ambos, sem, contudo, gerar discriminaes ou desigualdades decorrentes dos

    diversos tipos, em respeito ao principio da igualdade entre os filhos e a dignidade da

    pessoa humana, princpios-basilares da Constituio Federal de 1988.

    3.1 ASPECTOS GERAIS

    No passado, a famlia possua caractersticas que eram incontestveis. Sob o olhar

    do Cdigo Civil de 1916, a famlia era visualizada com carter fortemente

    patrimonialista, com a finalidade de reproduo, tendo grande representao

    religiosa e tambm poltica. Era uma relao hierarquizada, onde a figura do

    homem, o carter patriarcal era muito forte, decidindo os rumos a serem tomados

    pelos demais membros dessa sociedade, de forma, em regra, inquestionvel. O

    menor no tinha a sua vontade levada em considerao e tampouco havia alguma

    legislao que desse alguma garantia a suas escolhas e ao seu interesse, estando

    sempre a vontade do patriarca frente da vontade dos demais, preservando a

    unidade familiar acima de qualquer outra relao.

    A famlia era criada com um forte carter patrimonial, onde existia a figura de unio

    entre famlias por conta do patrimnio e, portanto, pensando sempre na preservao

    desses bens que estavam em jogo com a instituio do casamento. Segundo o

  • 23

    Cdigo Civil de 1916, havia a classificao entre filhos legtimos, que eram aqueles

    filhos biolgicos concebidos na constncia do casamento, e os ilegtimos, que eram

    fruto de relaes extraconjugais ou qualquer outra situao e que no possuam

    qualquer direito perante o patrimnio ou ao afeto, o carinho e proteo que todo

    menor, na concepo atual, deve receber. No era possvel o reconhecimento da

    paternidade.

    O tratamento dado a esses filhos era desprezvel, deixados sempre margem da

    sociedade, preservando a instituio do casamento, garantindo a paz quela relao

    que era assegurada na lei.

    Paulatinamente, com o passar dos anos e o avano da sociedade, o carter

    hierarquizado, patriarcal vai se mitigando na sociedade, no dia a dia, dando mais

    espao mulher e aos filhos. Alguns marcos carecem ser citados como,

    primeiramente, o advento do Decreto-Lei n 4.737, de 24 de setembro de 1942, que

    tratava acerca do reconhecimento dos filhos naturais, seguido pela Lei n 883, de

    1949, que permitiu a qualquer dos cnjuges o reconhecimento de filho havido fora

    do casamento e ao filho foi dada a possibilidade de ao para buscar seu

    reconhecimento. Posteriormente, com a Lei do Divrcio em 1977, que trouxe outras

    alteraes de relevncia, como a equiparao do direito de herana de todos os

    filhos (GILDO, 2016, p. 01).

    A sociedade foi evoluindo, valorizando a importncia das relaes afetivas para a

    realizao a nvel pessoal e coletivo dos indivduos que convivem entre si, e o

    direito, que busca sempre acompanhar os avanos sociais, mesmo que de forma

    lenta, consagrou tais mudanas com a promulgao da Constituio Federal

    Brasileira em 05 de outubro de 1988.

    Segundo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenlvald (2015, p. 539-540), o

    Texto Constitucional, no seu artigo 227, pargrafo 6, colocou fim a um perodo que

    no deixou grande nostalgia, determinando a igualdade substancial entre os filhos,

    evitando qualquer tipo de discriminao, almejando a dignidade da pessoa humana

    como uma finalidade importante para a Repblica Brasileira. Alm do fim das

    condutas discriminatrias entre filhos, entende ainda que no h qualquer outro

    obstculo existente determinao da filiao, sendo vedado qualquer limite

    determinao deste vnculo.

  • 24

    A Constituio atual rompeu com o sistema que regulamentava o impedimento ao

    reconhecimento ou a contestao da filiao, sendo consagrada, em seguida, pelo

    Estatuto da Criana e do Adolescente - Lei 8.069/90 em seu artigo 26 e artigo 27,

    e corroborada pelo Cdigo Civil de 2002, nos artigos 1.601, 1.606 e 1.596 (FARIAS

    e ROSENVALD, 2015, p. 540).

    O afeto passa ser a base das relaes familiares, ou seja, alm do vnculo

    biolgico, a socioafetividade tambm reconhecida como um fator capaz de

    estabelecer entidades familiares e relaes, tendo como orientao, como norte, o

    princpio da afetividade.

    Ainda, afirma de Rolf Madaleno (2008, p.472), no h como desconsiderar a

    constante evoluo por que passam as relaes parentais no plano social e jurdico,

    sendo criados e aceitos novos arranjos familiares, diferentes do modelo tradicional

    familiar, como ocorre com as famlias reconstitudas, famlias monoparentais e

    famlias homoparentais, que possuem seus vnculos reconhecidos pelos tribunais.

    Ao ampliar os diversos conceitos de famlia, o legislador terminou por aumentar

    tambm o conceito de parentalidade, dando-lhe um carter pluralista e, ao mesmo

    tempo, afastando adjetivaes advindas da origem dessa relao. Com isso,

    passou-se a reconhecer, alm do parentesco por vinculo biolgico e por vinculo

    matrimonial, tambm um parentesco por vnculo socioafetivo, estabelecido por

    outras maneiras menos usuais e no to comuns aos olhos da sociedade. (FARIAS

    e ROSENVALD, 2015, p. 515).

    Ento hoje, o que se deve entender quando se fala em famlia que esta gira em

    torno de um vnculo de afetividade, ou seja, que a famlia um grupo social fundado

    no lao afetivo, sendo este a diferena especifica que define a entidade familiar. o

    sentimento mtuo entre os indivduos na busca da felicidade plena, com a realizao

    pessoal da dignidade humana, conjugando suas vidas de forma intima em um

    ambiente de solidariedade, com consequncias patrimoniais.

  • 25

    3.2 CONCEITO DE PARENTESCO

    Como j mencionado anteriormente, embora a filiao seja a relao de parentesco

    com mais destaque, mais conhecida, esses conceitos no se misturam e

    necessrio que se demonstre tais diferenciaes.

    Parentesco, na acepo jurdica do termo, , segundo pensamento de Paulo Lbo

    (2011, p. 205), uma relao estabelecida pela lei, nos limites definidos por esta, ou

    por deciso judicial que unem uma pessoa aos demais que participam daquela

    entidade familiar, identificando-as como pertencentes quele grupo social que

    possuem direitos e deveres recprocos e para com o resto da sociedade.

    Ento, possvel afirmar que o parentesco, fugindo rapidamente dos termos legais,

    uma relao fundada na vontade, no afeto entre as partes, onde existe um

    verdadeiro sentimento de pertencimento quele grupo familiar. Cristiano Chaves e

    Nelson Rosenvald (2015, p.518) concluem que no se pode estar reduzido ao

    vinculo gentico, sendo preciso reconhecer a presena de outras formas de

    parentesco como o decorrente da adoo e da socioafetividade, consagrando o

    principio da igualdade.

    No Brasil, o vinculo de parentesco estabelecido por linhas e a contagem ser feita

    por graus. No que tange a diviso em linhas, temos o parentesco em linha reta, que

    estabelecido por aqueles que mantm uma relao de descendncia ou

    ascendncia, decorrente ou no do vinculo biolgico, conforme o artigo 1.591 do

    Cdigo Civil de 2002. Existem tambm as linhas colaterais ou transversais, que so

    estabelecidas atravs de um ponto comum, de um s tronco, como definido tambm

    no Cdigo Civil no artigo 1.592 Dentro dessa classificao caber o parentesco

    decorrente da socioafetividade, independendo de um lao gentico. (FARIAS e

    ROSENVALD, 2015, p. 522).

    O grau entendido como a distncia entre as geraes que confere maior ou menor

    aproximao entre as pessoas conectadas pelo parentesco. A classificao de

    parentesco quanto a graus definida pelo artigo de numero 1.594 do vigente Cdigo

    Civil e, no entendimento de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2011,

    p. 650), este delimita um critrio fundamental para a fixao dos graus que o

    critrio do numero de geraes, se aplicando tanto para o parentesco em linha reta

  • 26

    como no colateral, sendo que neste ultimo necessrio encontrar o ascendente

    comum e descer ao parente que se busca.

    Entretanto, necessria se faz a observao de que parentesco no se confunde com

    famlia, ainda que seja radicada nela as suas referencias, pois delimita a aquisio,

    o exerccio e o impedimento dos mais variados direitos, mesmo dentro do direito

    pblico (LBO, 2011, p. 205).

    3.2.1 Modalidades de Parentesco

    O parentesco permite outra modalidade de classificao, que derivada da

    diferenciao quanto a sua natureza. A lei que rege a sociedade atual, no seu artigo

    1.593, permite trs distines possveis, que so o parentesco natural, o parentesco

    civil e o parentesco por afinidade, que ser amplamente exposto e discutido na parte

    que segue.

    Entretanto, cabe salientar que essa classificao no pode, e no tem a finalidade

    de reconhecer diferentes direitos, qualificaes ou diferenas de tratamento entre as

    modalidades de parentesco, sob o prisma do principio da igualdade, onde existe a

    clara e correta proibio da discriminao. A seguir, ento, como forma meramente

    organizacional para facilitar o estudo e entendimento, d-se sequencia s definies

    abaixo.

    O parentesco natural, como o prprio nome permite deduzir, aquele decorrente

    dos vnculos consanguneos, sendo unidos pela carga gentica, podendo ser fruto

    de relaes sexuais ou tcnicas de reproduo assistida, sem quaisquer

    diferenciaes. fundado nas relaes de sangue existentes entre duas pessoas

    quando uma descende da outra ou ambas de um antepassado ou tronco familiar

    comum, cujo liame natural diferente daquele que forma a entidade familiar atravs

    do casamento, por exemplo. (MADALENO, 2008, p.472).

    Aqui j possvel identificar, a ttulo exemplificativo para facilitar o entendimento,

    como o direito de famlia mutvel. Quando comparamos o conceito supracitado,

    que j teve status de superioridade em relao aos demais e que hoje j no goza

    desse privilgio. Quando comparado, por exemplo, com o Direito Romano,

  • 27

    percebemos que este conceito acompanhou de perto as mudanas ao longo dos

    anos. Na Roma antiga, o conceito de consanguinidade no possua tanta

    importncia, pois naquele tempo o conceito de famlia englobava, de forma

    preponderante, os liames civil e religioso. A base familiar era feita por aqueles que

    estavam sob o ptrio poder da mesma pessoa, sendo indispensvel entre eles o

    lao de culto.

    O vinculo conhecido como Agnao no era derivado da consanguinidade, sendo

    reconhecido pelo culto e no pelo nascimento, passando este a ganhar fora a partir

    do enfraquecimento da religio. (VENOSA, 2015, p.235-237).

    O parentesco por afinidade , logicamente, estabelecido por uma relao de afeto.

    Atravs deste parentesco sero firmados liames vinculativos entre cnjuges ou

    companheiros juntamente com seus respectivos parentes, naturais ou civis, com

    limitao fixada nos ascendentes, nos descendentes e nos irmos do cnjuge ou

    companheiro, extinguindo-se quando ocorre a anulao, o divrcio ou a morte de um

    dos cnjuges.

    de suma importncia, a essa altura, afirmar que essa regra no absoluta,

    comportando uma exceo quanto linha reta, referente ao sogro, sogra, enteado

    ou enteada, a afinidade jamais se extinguir por conta do da dissoluo do

    casamento ou da unio estvel. Deve-se atentar ao fato de que marido e mulher e

    companheiros, inclusive homoafetivos, no so parentes entre si, tendo seu vinculo

    estabelecido em decorrncia da convivncia ou conjugalidade.

    Segundo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2011, p. 529-530), a

    afinidade, ento, depende da celebrao de um casamento ou da constituio de

    uma unio estvel. Identifica que no h problemas quanto ao casamento, pois o

    inicio da afetividade ocorre com a sua celebrao, que possui trs finalidades gerais,

    que so a estabilidade do sistema das relaes sociais, seguido da manuteno

    patrimonial com a sua posterior sucesso e a criao de direitos e deveres

    recprocos limitados. Quanto unio estvel, se torna um pouco mais trabalhoso,

    pois difcil a definio precisa do estabelecimento da afinidade, sustentando, de

    forma concreta e serena, que estabelecida a convivncia more uxrio, possuindo a

    inteno de viver como se fossem casados, comearo a fluir de forma automtica

    os efeitos desse tipo de parentesco.

  • 28

    Corroborando com o tema, Silvio de Salvo Venosa (2015, p. 237-239) traz que por

    ser tratar de uma relao de fato, as unies estveis sem casamento tornam as

    relaes de parentesco confusas e duvidosas, pois essa declarao da existncia de

    um lao depende, em regra, das partes implicadas. Porem, essa relao no pode

    deixar de ser considerada em todos os campos jurdicos, embora possua tais

    dificuldades na sua caracterizao.

    Faz-se mister, ainda, trazer lume a norma que reconhece a possibilidade de

    reconhecimento da unio estvel mesmo entre aqueles que no esto morando na

    mesma casa, norma esta sumulada pelo Supremo Tribunal Federal na smula de

    numero 382:

    STF, Smula 382: A vida em comum sob o mesmo teto, more uxrio, no indispensvel caracterizao do concubinato.

    Sobre esse tema, o Cdigo Civil vigente estabelece, verbis:

    Artigo 1.595: Cada cnjuge ou companheiro aliado aos parentes do outro pelo vnculo da afinidade. 1o O parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, aos descendentes e aos irmos do cnjuge ou companheiro. 2o Na linha reta, a afinidade no se extingue com a dissoluo do casamento ou da unio estvel.

    No h como se aplicar a estabilizao da afinidade no casamento putativo, que

    aquele no qual se verifica um vicio posterior sua celebrao, suscetvel de

    anulao, pois, mesmo verificando-se a presena de boa-f dos cnjuges, os efeitos

    desse casamento no alcanaro terceiros, sendo limitado a eles mesmos e prole,

    entendimento este expressamente exposto no Cdigo Civil:

    Art. 1561. Embora anulvel ou mesmo nulo, se contrado de boa-f por ambos os cnjuges, o casamento, em relao a estes como aos filhos, produz todos os efeitos at o dia da sentena anulatria.

    1 Se um dos cnjuges estava de boa-f ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis s a ele e aos filhos aproveitaro. 2 Se ambos os cnjuges estavam de m-f ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis s aos filhos aproveitaro.

    A ltima modalidade de classificao quanto natureza o parentesco civil. O

    Cdigo Civil de 1916, em seu artigo 336, afirmava que esta forma de parentesco era

    unicamente firmada atravs da adoo, entre adotante e adotado. Como sabido

  • 29

    que o direito, em regra, busca acompanhar o desenvolvimento da sociedade, tanto

    na parte cultural como nos princpios e costumes, natural se tornou a alterao deste

    dispositivo frente s novas necessidades e novos valores que foram surgindo.

    Nasce ento, com o artigo 1593 do Cdigo Civil de 2002, norma segundo a qual

    expressa que o parentesco se d por consanguinidade ou qualquer outra origem,

    trazendo consigo novas possibilidades.

    A acepo desse termo permite, a partir de ento, concluir que o parentesco civil

    no ser decorrente apenas da adoo, sendo que a doutrina e jurisprudncia

    admitem mais dois tipos que se enquadram nessa definio. A primeira aquela que

    decorre da reproduo heterloga, ou seja, aquela que utiliza material gentico de

    terceiro. A segunda tem embasamento na parentalidade socioafetiva, na posse de

    estado de filhos e no vinculo social de afeto (TARTUCE, 2015, p. 1188).

    A interpretao do artigo 1.593 do Cdigo Civil de 2002 identifica a necessidade de

    um conceito mais amplo de parentesco onde, diante de uma perspectiva

    multidisciplinar, percebe-se a relevncia do afeto, consentimento e responsabilidade,

    dando-se forma ao parentesco socioafetivo.

    Esse tipo de parentesco, que no vai se enquadrar nas definies de parentesco

    natural, mas sim resultante da socioafetividade pura, sendo esse perfil consensual e

    a vontade mtua constante entre as partes, o amor, carinho que hoje despontam

    como principal fator chave para a formao do ncleo familiar, possuindo grande

    relevncia nas decises tomadas hoje pelo judicirio. (GAGLIANO E PAMPLONA

    FILHO, 2011, p. 646).

    3.3 CONCEITO DE FILIAO

    A mais importante relao de parentesco , sem duvida, a filiao e dela vo se

    estruturar todas as regras sobre parentesco consanguneo. um dos meios de

    formao dos ncleos familiares e da realizao da personalidade humana.

    Segundo Silvio de Salvo Venosa (2015, p. 245-248), na acepo jurdica, a filiao

    um fato jurdico que tem como sujeitos os pais e filhos, compreendendo todas as

  • 30

    suas relaes, sejam elas constitutivas, modificativas ou extintivas, das quais se

    desenvolvem diversos efeitos.

    Na concepo de Diogo Leite de Campos (2010, p. 316) quando se trata de filiao,

    est-se adentrando a zona da liberdade, dos direitos da personalidade, onde todo

    ser humano tem direito a procriar ou assumir um filho, tratando-se de uma faculdade

    de cada indivduo de se realizar como humano e prosseguir a sua felicidade, a

    felicidade do seu meio familiar. Por vezes a filiao no vai decorrer da

    consanguinidade, restando igualmente possvel advir de uma relao de

    convivncia, de afeto, possuindo uma importncia igual ou, em alguns casos,

    superior quela gentica.

    Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2015, p. 543) definem que a

    filiao uma relao de parentesco estabelecida entre pessoas que esto no

    primeiro grau, em linha reta entre uma pessoa e aqueles que foram os seus

    genitores ou que a acolheram, criaram, baseando-se no amor, afeto, carinho,

    procurando sempre o seu melhor desenvolvimento, seu bem-estar e realizao

    pessoal.

    Corroborando com tal definio, segue Silvio Rodrigues (2002, p.319), propondo um

    entendimento de filiao como uma relao de parentesco, em primeiro grau e em

    linha reta, que liga uma pessoa quelas que a geraram ou a receberem como se a

    tivessem gerado.

    Eduardo A. Zannoni, doutrinador argentino especializado na rea, citado por

    Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2015, p. 544) traz a definio de

    filiao como o conjunto de relaes, determinadas pela paternidade e maternidade,

    vinculando os pais e filhos.

    Para Arnoldo Wald e Priscila M. P. Corra da Fonseca (2013, p. 304-305), seguindo

    a linha de raciocnio j exposta neste trabalho, sob a luz da Constituio Federal de

    1988, em seu artigo 227, paragrafo 6, este probe qualquer discriminao entre

    filhos, abrangendo quaisquer das possibilidades de filiao possveis. Porm, ainda

    h uma diferenciao no que tange queles filhos nascidos na constncia do

    matrimonio e aqueles que no esto nessa condio quanto presuno de

    paternidade. Os artigos 1.597 e 1.598 so a prova disso. Sendo assim, apesar da

    filiao, qualquer que seja, no alterar os direitos da prole, quele concebido sob a

  • 31

    gide do casamento ser conferida a presuno de paternidade do marido da

    genitora.

    Em suma, so trs os critrios de determinao da filiao: o primeiro o critrio

    jurdico ou da presuno legal onde o legislador, no cdigo civil, faz algumas

    presunes; o segundo critrio biolgico, decorrente do vnculo gentico, da

    consanguinidade; por ultimo, o terceiro o critrio socioafetivo, que construdo no

    cotidiano, sendo baseado no afeto, no melhor interesse da criana, na realizao

    como pessoa e no principio basilar da dignidade da pessoa humana.

    3.4 A FILIAO BIOLGICA

    A filiao biolgica definida pelo vinculo sanguneo, ou seja, estabelecida pela

    ligao gentica entre os sujeitos da relao, nesse caso, pais e filhos. O critrio

    definidor para a descoberta da origem gentica de um indivduo o exame de DNA,

    um grande avano para a cincia e responsvel por garantir a veracidade dessa

    condio. A verdade alcanada por esse exame to satisfatria a ponto do

    Superior Tribunal de Justia, na sua smula de nmero 301, afirmar que o pai que

    se nega a se submeter ao exame de DNA induz presuno juris tantum de

    paternidade.

    Ensina Fabio Ulhoa Coelho (2011, p. 167) que a filiao biolgica pode ser natural

    ou no. Na filiao biolgica natural o filho concebido numa relao sexual entre

    os pais, e na filiao biolgica no natural concebido em decorrncia do emprego

    de tcnica de fertilizao assistida.

    Acerca da fertilizao assistida, o autor Carlos Alberto Ferreira Pinto (2009) leciona:

    As principais tcnicas de reproduo assistida podem ser divididas em grupos: a inseminao artificial homologa ou heterloga [...] Na inseminao artificial, tcnica mais simples e antiga, na qual a fecundao se da dentro do corpo da mulher, temos tcnicas de reproduo assistida homologa e heterloga. A reproduo assistida homloga aquela na qual o material gentico empregado proveniente do casal interessado na reproduo. J a reproduo assistida heterloga aquela na qual h a impossibilidade de utilizar o seu material gentico, e nesse caso necessria a utilizao de gametas de terceiros (doadores) para que ocorra a reproduo.

  • 32

    Sintetizando, a inseminao homologa pressupe que a mulher seja casada ou

    esteja em unio estvel e que o smen utilizado seja fornecido pelo cnjuge ou

    companheiro, sendo utilizada quando o casal enfrenta dificuldades quanto a

    fecundao natural atravs de relaes sexuais. A heterloga aquela em que o

    smen de um doador que no o marido/companheiro em decorrncia de casos de

    esterilidade do marido, incompatibilidade do fator RH, etc e por conta disso, com

    frequncia, se recorre aos bancos de esperma, onde os doadores no so e no

    devem ser conhecidos. (VENOSA, 2015, p. 263)

    Ao tratar de filiao biolgica lato sensu, cabe salientar que essa uma relao

    jurdica estabelecida pelo curso natural da vida, obrigatria, que afeta os envolvidos

    e toda a sociedade ao redor, pois essa verdade biolgica possui, ainda, um

    significado muito forte perante a sociedade. Porm, nos dias atuais, no h como

    esta prevalecer a todo o momento. O direito de conhecer sua origem gentica um

    direito fundamental, relativo ao direito de personalidade. Ento, o papel do exame de

    DNA revelar essa verdade, sem, no entanto, atestar nem impor uma convivncia

    relacional entre as partes. No haver a imposio do verdadeiro sentido de

    maternidade e paternidade.

    Nesse sentido Thbata Fernanda Suzigan (2015, p. 01) aduz que de um lado existe

    a verdade biolgica, facilmente comprovada com um exame de DNA, que demonstra

    a ligao biolgica entre duas pessoas, e, de outro lado, h o estado de filiao, que

    decorre do convvio dirio e do cotidiano vivido entre pais e filho, que constitui o

    fundamento essencial da famlia, relaes fundadas no amor, no carinho e, portanto,

    de mais valor, pois so relaes voluntrias, que no dependem de um laudo

    pericial para serem provadas. nesse contexto que surge a importncia de abordar

    a relevante temtica da filiao socioafetiva, que possui fundamental importncia no

    campo da famlia.

    3.5. FILIAO SOCIOAFETIVA E A DEFINIO DE CRITRIOS PARA O SEU RECONHECIMENTO

    A essa altura, aps longo desenvolvimento deste projeto, resta claro que com todas

    as evolues atravessadas pela sociedade juntamente com o direito e, em especial,

  • 33

    o direito de famlia, a fora da afetividade no pode ser mais contestada e sim

    desenvolvida para que a sua abrangncia se expanda.

    O conceito de socioafetividade ganha fora aps o advento do Cdigo Civil vigente,

    o qual, em seu artigo 1.593, ao usar a expresso outra origem, introduz ampla e

    extensiva interpretao acerca desse conceito. Rodrigo da Cunha Pereira (2012, p.

    215) exalta tambm a importncia do artigo 1.597 do mesmo Cdigo, a partir do

    momento em que foi admitida a presuno de paternidade de filho advindo de

    reproduo artificial heterloga, desprezando-se o vnculo biolgico e,

    consequentemente, privilegiando-se o vnculo afetivo em decorrncia da autorizao

    do pai, garantindo a ele todas as responsabilidades inerentes.

    Ento, a filiao socioafetiva aquela que no advm do vnculo biolgico, mas sim

    do vnculo afetivo, do ato de vontade, respeito recproco e do amor construdo ao

    longo do tempo, dia aps dia, com base no afeto, independentemente da

    consanginidade. Funda-se na clausula geral de tutela da personalidade humana,

    salvaguardando a filiao como elemento fundamental para a formao da

    identidade da criana e formao da sua personalidade.

    Julie Cristine Delinski, citada por Rolf Madaleno (2013,p.487), identifica essa nova

    estrutura da famlia brasileira que passa a dar maior importncia aos laos afetivos,

    e aduz j no ser suficiente a descendncia gentica, ou civil, sendo fundamental

    para a famlia atual a integrao dos pais e filhos atravs do sublime sentimento de

    afeio e afirma que a paternidade e a maternidade possuem um significado mais

    profundo do que a verdade biolgica, onde o zelo, o amor filial e a natural dedicao

    ao filho revelam uma verdade efetiva.

    Nathalia Gildo (2016, p.01) relaciona diretamente com princpios:

    O princpio da afetividade est relacionado com a convivncia familiar e com o princpio da igualdade entre os filhos, constitucionalmente assegurado. A filiao evolui do determinismo biolgico para o afetivo, ao passo que, as inmeras relaes existentes, visam uniformemente o bem-estar pessoal. Embora implcito na Constituio, apresenta-se como dever jurdico, presumido nas relaes entre pais e filhos. O afeto, em si, um sentimento voluntrio, desprovido de interesses pessoais e materiais, inerente ao convvio parental, constituindo o vnculo familiar.

  • 34

    Insista-se que o que vai garantir o cumprimento das funes parentais no a

    semelhana e origem gentica mas sim o cuidado e zelo dedicados aos filhos. A

    filiao biolgica no garantia de uma experincia de paternidade, de maternidade

    ou de filiao verdadeira e nem a sua presena garantia de que o individuo se

    estruturar como sujeito. De outra forma, o cumprimento de funes maternas e

    paternas pode garantir um desenvolvimento saudvel pessoa. Portanto, a verdade

    biolgica se torna insuficiente, pois famlia representa muito mais do que um dado

    natural ou gentico, sendo, na sociedade atual, algo cultural, e com isso a filiao

    abrange muito mais do que a semelhana entre os DNA (PEREIRA, 2012, p. 212-

    217).

    Na tentativa de estabelecer critrios, a doutrina traz tona a necessidade de

    reconhecimento de trs requisitos bsicos para a identificao da filiao

    socioafetiva, que so o reputatio, nominatio e o tractatio, conceitos estes ligados a

    condio de posse do estado de filho. Estes trs conceitos garantem a experincia

    de famlia e o pressuposto do afeto. A filiao socioafetiva decorre da posse do

    estado de filho e corresponde verdade aparente.

    3.5.1 Da Posse de Estado de Filho

    Ao tratar deste tema, infelizmente, o Cdigo Civil vigente no contempla

    expressamente o entendimento quanto a posse de estado de filho, estabelecendo

    apenas no seu artigo de nmero 1.605, ao colocar que poder se provar a filiao

    por qualquer meio de prova admitido em direito quando existirem veementes

    presunes resultantes de fatos j certos, oferece uma margem de interpretao que

    ficar a cargo dos doutrinadores do direito brasileiro e dos magistrados em cada

    caso concreto. No entanto, muitos desses consideram que tal instituto j est

    integrado ao nosso ordenamento jurdico de forma implcita.

    A origem gentica comprovada pelo exame de DNA no o nico meio possvel

    para afirmar a existncia de uma relao paterno-filial. Essa relao, esse vnculo

    pode ser tambm demonstrado no cotidiano, nas atitudes do dia-a-dia, com a

    presena da afetividade. a chamada dessacralizao do DNA, afirmando que

    este no um meio vinculatrio. a partir de ento que surge o conhecimento da

  • 35

    posse do estado de filho. O propsito da posse do estado de filho provar a

    existncia de uma relao filiatria permitindo que o filho que convive

    cotidianamente com o seu pai, mesmo que esteja registrado, demonstrando todos os

    vnculos que um filho possuiria para com o seu genitor, podendo obter todas as

    consequncias jurdicas dessa condio (FARIAS e ROSENVALD, 2015, p.548)

    Paulo Lbo (2011, p.237) afirma que a aparncia do estado de filiao revela-se

    pela convivncia familiar e pelo efetivo cumprimento pelos pais dos deveres de

    guarda, educao e sustento do filho, de modo similar ao comportamento que

    caracterstico de outros pais e filhos que vivem em sociedade. a prova da filiao

    pela situao de fato.

    Caio Mario da Silva Pereira (2010, p. 375-376) coaduna com o acima exposto e diz

    que a paternidade socioafetiva, sob a noo da posse de estado de filho, no se

    funda no nascimento, mas sim num ato de vontade, que se sedimenta no terreno da

    afetividade. A posse do estado de filho uma posse anloga posse das coisas.

    Longe de tratar uma pessoa como um objeto, significa que o individuo esta de posse

    de uma situao equivalente de filho. Para a fixao desta posse, faz-se

    necessrio a presena de trs requisitos concomitantemente: nominatio, tractatio e

    reputatio.

    De forma inicial, ao se falar em tractatio, remete-se a tratamento. E esse ponto que

    importante. Para a caracterizao desse requisito exigido que se prove que o pai

    concedia quele que se quer saber se filho ou no, tratamento como se filho fosse.

    O requisito acima tratado, o tratamento, segundo Eduardo dos Santos (2003, p. 157-

    158):

    Depende da personalidade de cada pessoa, do seu temperamento e carter, da sua categoria e condio social, situao econmica e familiar, grau de educao e instruo e hbitos, isso porque se pode chamar algum de filho sem lhe dar, entretanto, o tratamento de filho. Para o jurista, o tratamento de filho (des)velado atravs de duas condutas: a primeira, pelos atos de proteo e amparo econmico (sustento, vesturio, educao ou colocao); a segunda, pela afetividade por parte dos pretensos pais (carinho, ternura, desvelo, amor, respeito). [...] No basta a prtica de um ato isolado, com sentido incerto, isto , no so suficientes meros fatos episdicos, sem relevncia. Exige-se reiterao, regularidade e seqncia. Os atos equvocos, clandestinos, espordicos, avulsos e isolados no revelam tratamento.

    Em sequncia, cabe tratar acerca da reputatio, que a reputao social daquele

    individuo, daquela relao mantida entre os envolvidos. O tratamento que se dava a

  • 36

    parte era conhecido de maneira pblica, de forma notria na sociedade. Essa fama

    a exteriorizao de uma realidade para o pblico, devendo haver convico acerta

    dessa relao paterno-filial existente. Nesse momento no ser suficiente o fato de

    algum ter apenas escutado um boato ou situao similar, sendo necessrio o(s)

    terceiro(s) ter (terem) vivenciado de fato algum momento de afeto e convivncia

    entre pai e filho (TOMASZEWSKI e LEITO, 2007, p.15)

    Por fim, nominatio a utilizao do nome de famlia. Porm, no se exige que na

    posse do estado de filho se utilize do nome familiar como um fator necessrio para o

    seu reconhecimento e aceitao no caso concreto. Portanto, esse um requisito

    que possui uma importncia pequena ou at nenhuma importncia, visto que na

    sociedade brasileira, em regra, no convvio dirio, o individuo identificado pelo seu

    pr-nome, no sendo possvel ao individuo ostentar de maneira clara e publica o

    nome do seu pai afetivo, no comprometendo em nada no processo de acolhimento

    da posse do estado de filho (FARIAS e ROSENVALD, 2015, p. 548-549).

    De acordo com o entendimento dos mesmos autores supracitados, o papel

    preponderante da posse do estado de filho conferir juridicidade a uma realidade

    social, pessoal e afetiva induvidosa, conferindo mais direito vida e mais vida ao

    direito. Nessa mesma linha, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2011,

    p. 632-634) concluem que o reconhecimento de novas possibilidades de constituio

    das famlias e novas modalidades de filiao, se refletem em um Direito de Famlia

    mais humano e solidrio.

    A jurisprudncia atual corrobora com tal entendimento, como se colhe do v. acrdo

    proferido na Apelao Cvel APC: 20150510068078, pela colenda 1 Turma Cvel

    do Tribunal de Justia do Distrito Federal, que tinha por objeto alterar a reconhecida

    existncia de paternidade socioafetiva, in verbis:

    APELAO CVEL. DIREITO DE FAMLIA. AO DE RECONHECIMENTO DE FILIAO SOCIOAFETIVA POST MORTEM. INVESTIGAO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POST MORTEM. FILHA DE CRIAO. EXISTNCIA DE PAI E ME REGISTRAL/BIOLGICO. POSSE DO ESTADO DE FILHO. EXISTNCIA. NATURAL TRATAMENTO DA AUTORA COMO FILHA. APELAO CONHECIDA E NO PROVIDA. SENTENA MANTIDA. 1. Pretende a parte apelante a modificao da r. sentena da instncia a quo para que se reforme a declarao da existncia de paternidade socioafetiva entre a apelada e os falecidos genitores dos apelantes, e determinao de supresso da paternidade biolgica e registral, bem como a alterao do nome da apelada para contemplar o

  • 37

    patronmico dos pretendidos pais afetivos, com o que poderia habilitar-se como herdeira dos de cujus; 2. Diz respeito a quaestio juris aqui debatida chamada paternidade socioafetiva, conceito relativamente recente na doutrina e jurisprudncia ptrias, segundo o qual, apartando-se da filiao meramente biolgica ou natural, e mesmo da filiao civil, pela adoo regular, tem-se o desenvolvimento da relao parental de filiao pelos laos afetivos que se podem estabelecer entre pessoas que, entre si e socialmente, se apresentem e se comportem como pai/me e filho; 3. A jurisprudncia, mormente na Corte Superior de Justia, j consagrou o entendimento quanto plena possibilidade e validade do estabelecimento de paternidade/maternidade socioafetiva. 4. A consagrao da chamada paternidade socioafetiva, na doutrina e na jurisprudncia, no pode representar a transformao do afeto e do amor desinteressado em fundamento para a banalizao da relao parental de filiao no-biolgica, porque a efetiva existncia desta, antes de tudo, h de decorrer de um ato de vontade, de uma manifesta inteno de estabelecimento da paternidade ancorada na densidade do sentimento de afeio e de amor pelo outro ente humano.[...] 6. A posse do estado de filho, condio que caracteriza a filiao socioafetiva, reclama, para o seu reconhecimento, de slida comprovao que a distinga de outras situaes de mero auxilo econmico, ou mesmo psicolgico. Rolf Madaleno cita o nomen, a tractacio e a fama como fatores caracterizadores da posse do estado de filho (REsp 1189663/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/09/2011, DJe 15/09/2011); 7. O que se comprovou nos autos foi o lao sentimental socioafetivo entre a apelada e os de cujus de forma declarada e pblica. Segundo se extrai dos depoimentos das testemunhas, a apelada era tratada publicamente como filha de casal, e os chamava de me e pai. dizer que havia, quer na relao privada, quer socialmente, a caracterizao de uma verdadeira relao paterno-filial; 8. Recurso conhecido e no provido. Sentena mantida integralmente. TJ-DF - APC: 20150510068078, Relator: ROMULO DE ARAUJO MENDES, Data de Julgamento: 02/09/2015, 1 Turma Cvel, Data de Publicao: Publicado no DJE : 11/09/2015 . Pg.: 103)

    Ainda em anlise desse instituto jurdico, resta o questionamento quanto a se o fator

    tempo de relacionamento possui alguma influncia nas decises que tenham por

    objeto o reconhecimento da posse de estado de filho; se haveria algum prazo

    mnimo para esse reconhecimento.

    A doutrina no aceita que um prazo seja estabelecido, pois necessria a anlise

    de cada caso de forma singular, sendo cada caso nico. Assim, o magistrado ter

    discricionariedade para analisar fatos e provas que lhe venham a ser apresentados.

    Em concluso, Adauto de Almeida Tomaszewski e Manuela Nishida Leito (2007,

    p.16), expem que na anlise ftica desse instituto devem ser sopesados o amor e a

    preocupao entregues ao filho, o ambiente saudvel que permita o pleno

    desenvolvimento, fsica e psicologicamente, do mesmo, enfim, todas as condies

    pessoais e materiais que permitam se alcanar o que garantido pelo principio do

    melhor interesse da criana.

  • 38

    3.5.2 Da (Im)Possibilidade de Revogao do Vnculo Socioafetivo

    Foi visto durante todo este trabalho que o vnculo estabelecido com os pais,

    principalmente quando fundado na socioafetividade, molda o carter do filho, sua

    personalidade e os mais diversos aspectos da sua vida. Partindo da idia de que a

    relao paternal molda a personalidade e a identidade do filho, eventual revogao

    do estado de filiao desencadearia adversas consequncias, tanto de ordem

    patrimonial, como tambm, e principalmente, de ordem emocional e psicolgica.

    Afinal, alm de a desconstituio influir em alguns direitos e deveres, a mesma

    desvincularia o menor dos seus pais e parentes colaterais, o que sem dvida

    ocasionaria drsticas mudanas psicolgicas nesses indivduos. Dessa maneira,

    considerar a possibilidade da retirada do menor do seio da sua famlia, dos cuidados

    constantes dos seus pais, admitir que a vida do menor venha a desmoronar.

    (SUZIGAN, 2015, p. 01)

    Entendem Cristiano Chaves e Farias e Nelson Rosenvald (2015, p.549-550), que

    quando se esta estabelecida a filiao baseada na posse do estado de filho,

    caracterizando a paternidade/maternidade socioafetiva, no ser possvel a

    retratao ou revogao por vontade unilateral ou mesmo bilateral dos envolvidos.

    Todos os efeitos jurdicos decorrero normalmente, de forma automtica, no se

    admitindo contradita fundada em fator gentico. O vinculo afetivo, quando

    reconhecidamente estabelecido, gozar da mesma proteo e valor que garantido

    aos vnculos biolgicos.

    O reconhecimento da socioafetividade por via judicial no ser obrigatrio para que

    esses direitos se efetivem, bastando os indcios e presunes quanto existncia da

    paternidade.

    O Superior Tribunal de Justia entende que a identidade dessa pessoa, resgatada

    pelo afeto, no pode ficar deriva em face das incertezas, instabilidades ou at

    mesmo interesses meramente patrimoniais de terceiros submersos em conflitos

    familiares.

    o que se colhe do v. acrdo a seguir reproduzido, proferido pelo e. STJ no RESP

    1059214-RS, 2008/0111832-2, in verbis:

  • 39

    Ementa: DIREITO DE FAMLIA. AO NEGATRIA DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA NEGATIVO. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. IMPROCEDNCIA DO PEDIDO. 1. Em conformidade com os princpios do Cdigo Civil de 2002 e da Constituio Federal de 1988, o xito em ao negatria de paternidade depende da demonstrao, a um s tempo, da inexistncia de origem biolgica e tambm de que no tenha sido constitudo o estado de filiao, fortemente marcado pelas relaes socioafetivas e edificado na convivncia familiar. Vale dizer que a pretenso voltada impugnao da paternidade no pode prosperar, quando fundada apenas na origem gentica, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva. 2. No caso, as instncias ordinrias reconheceram a paternidade socioafetiva (ou a posse do estado de filiao), desde sempre existente entre o autor e as requeridas. Assim, se a declarao realizada pelo autor por ocasio do registro foi uma inverdade no que concerne origem gentica, certamente no o foi no que toca ao desgnio de estabelecer com as ento infantes vnculos afetivos prprios do estado de filho, verdade em si bastante manuteno do registro de nascimento e ao afastamento da alegao de falsidade ou erro. 3. Recurso especial no provido.

    O egrgio Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul corrobora com a mesma linha

    de pensamento, verbis:

    APELAO CVEL. AO NEGATRIA DE PATERNIDADE. IRREVOGABILIDADE. PREVALNCIA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Da apelao: Restou comprovado nos autos que o recorrente no o pai biolgico do apelado, mas os estudos sociais constataram a existncia de vnculo socioafetivo. A relao jurdica de filiao foi construda tambm a partir de laos afetivos e de solidariedade. O mero arrependimento no constitui razo capaz de revogar ato de reconhecimento da paternidade, efetuado modo espontneo, que irrevogvel. Do Agravo Retido: A paternidade apreciada por diversos meios de prova, sendo incabvel a percia postulada, inclusive, porque seu resultado no seria suficiente para afastar o relacionamento paterno filial que se instaurou no curso do tempo. Apelo e agravo retido desprovidos. (Apelao Cvel N 70047722079, Stima Cmara Cvel, Tribunal de Justia do RS, Relator: Munira Hanna, Julgado em 22/05/2013)

    Sobre esse posicionamento, Thbata Fernanda Suzigan (2015, p. 01) entende que

    se o interesse da criana for erguido ao patamar de princpio basilar, nem mesmo o

    rompimento da convivncia tem o condo de afastar o vnculo criado, e o

    reconhecimento da paternidade/maternidade socioafetiva produz tanto efeitos

    patrimoniais como pessoais, gerando o chamado parentesco socioafetivo, para

    todos os fins de direito, aplicando-se o princpio da solidariedade sob o fundamento

    da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criana ou adolescente.

    Seguindo a mesma linha de pensamento, Cristiano Chaves de Faria e Nelson

    Rosenvald (2015, p. 594) expem ainda que:

  • 40

    O lao socioafetivo depende, por obvio, da comprovao da convivncia respeitosa, publica e firmemente estabelecida. Todavia, no preciso que o afeto esteja presente no instante em que discutida a filiao em juzo. No raro, quando se chega s instancias judiciais, exatamente porque o afeto cessou, desapareceu, por diferentes motivos (no sendo razovel discuti-los). O importante provar que o afeto esteve presente durante a convivncia, que o afeto foi o elo que entrelaou aquelas pessoas ao longo de suas existncias. Equivale a dizer: que a personalidade do filho foi formada sobre aquele vinculo afetivo, mesmo que, naquele instante, no exista mais. Aqui calha, com preciso, a adoo brasileira, em que uma pessoa registra como seu filho um estranho e, depois de anos de afeto e de um cotidiano como pai e filho, quer negar a relao filiatoria por algum motivo. Mesmo cessado o afeto em determinado momento, nesse caso, a filiao se estabeleceu pelo critrio afetivo, que deve ser reconhecida pelo juiz.

    A impossibilidade da revogao do vnculo socioafetivo reconhecido a posio

    doutrinria e jurisprudencial preponderante, em regra, no ordenamento jurdico

    brasileiro.

    Mas convm ao presente estudo proceder-se uma rpida analise comparativa entre

    os institutos da adoo e o da filiao socioafetiva no que concerne possibilidade

    de revogao dos mesmos.

    No h duvidas de que aps o reconhecimento jurdico do vnculo socioafetivo

    surgem inmeras consequncias e responsabilidades para o pai em relao ao seu

    filho e efeitos jurdicos decorrentes desse reconhecimento. Segundo leciona Adriana

    Karlla de Lima (2011, p.05), os efeitos jurdicos da socioafetividade so idnticos aos

    efeitos gerados pela adoo, que esto garantidos no Estatuto da Criana e do

    Adolescente em seu artigo 39, que so: a) a declarao do estado de filho afetivo; b)

    a feitura ou a alterao do registro civil de nascimento; c) a adoo do sobrenome

    dos pais afetivos; d) as relaes de parentesco com os parentes dos pais afetivos; e)

    a irrevogabilidade da paternidade e da maternidade sociolgicos; f) a herana entre

    pais, filhos e parentes sociolgicos; g) o poder familiar; h) a guarda e o sustento do

    filho ou pagamento de alimentos; i) o direito de visitas, entre outros.

    Embora os efeitos jurdicos entre adoo e vinculo socioafetivo sejam iguais, como

    explicitados acima, no primeiro caso pode-se admitir, de forma excepcional, a

    revogao, o que, a nosso ver, no pode ocorrer no caso da filiao socioafetiva..

    Com efeito, a adoo, conforme algumas decises dos nossos tribunais, quando se

    configura apenas no plano legal, sem alcanar e concretizar-se no mundo ftico, no

    atingindo a sua finalidade de unir adotante e adotado realmente como pai e filho, vai

  • 41

    permitir a revogao desse ato, como reconhecido e decidido pelo Tribunal de

    Justia do Rio Grande do Sul, na AC 70003681699, da qual foi relator o

    Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, in verbis:

    ADOO. REVOGAO. POSSIBILIDADE EM CASOS EXCEPCIONAIS. Tal excepcionalidade configura-se bem no caso concreto, onde o vnculo legal jamais se concretizou no plano ftico e afetivo entre adotante a adotada, uma vez que esta nunca deixou a convivncia de seus pais sangneos. Adoo que nunca atingiu sua finalidade de insero da menor como filha da adotante.DERAM PROVIMENTO, POR MAIORIA. (Apelao Cvel N 70003681699, Stima Cmara Cvel, Tribunal de Justia do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 27/02/2002

    Em outra deciso muito mais prxima proferida pelo Tribunal de Justia de So

    Paulo, foi revogada a adoo de uma mulher pela falta de vinculo socioafetivo, uma

    vez que a adotada nunca havia se sentido como filha do adotante.

    O Instituto Brasileiro de Direito de Famlia, em consonncia com essa deciso,

    tambm entende que possvel a revogao da adoo nos casos em que no h

    afetividade, portanto no retratando o registro civil o que ocorre na realidade, alm

    da adoo, no caso, no constituir de forma efetiva nenhum beneficio ao adotando,

    como ressalta o artigo 1.625 do Cdigo Civil.

    Nas palavras da Defensora Pblica Cludia Tannuri, membro do IBDFAM:

    Acredito que a possibilidade de excluso da paternidade e revogao da adoo seja possvel em situaes excepcionais, quando inexiste qualquer vnculo afetivo entre as partes. A relao entre pai e filho pressupe a existncia da afetividade; quando ela no existe, o registro civil passa a no retratar a realidade, uma vez que inexiste paternidade biolgica ou socioafetiva. importante ressaltar ainda que o artigo 1.625 do Cdigo Civil dispe que somente ser admitida a adoo que constituir efetivo benefcio para o adotando .

    Aliado a essa situao, deve-se tambm analisar se existe vontade mutua entre as

    partes, valorizando os princpios da dignidade da pessoa humana, do melhor

    interesse do menor e da proteo integral.

    Conclui-se, portanto, que possvel a revogao da adoo, quando ausente o

    pressuposto da afetividade, o que jamais ocorrer no vnculo formado unicamente

    atravs da socioafetividade, onde o primeiro requisito preenchido foi a vontade, do

    carinho recproco, do sentimento de pertencimento a um mesmo ncleo familiar, no

    cabendo, portanto, a desconstituio ou revogao deste vnculo socioafetivamente

    formado.

  • 42

    3.6 FILIAO BIOLGICA X FILIAO SOCIOAFETIVA

    Da anlise realizada a respeito dos conceitos de filiao biolgica e filiao

    socioafetiva, quando se passa a tratar da sua aplicao na resoluo de conflitos no

    mundo ftico, surge o questionamento de uma possvel sobreposio, da existncia

    ou no de uma hierarquia entre estes.

    Por todo o aspecto valorativo dado socioafetividade e os princpios regentes do

    direito de famlia, pode-se chegar a concluses divergentes, o que merece

    cuidadoso estudo.

    Quando se falou h pouco acerca da impossibilidade de revogao do vnculo

    socioafetivo, no se pode entender que este sempre vai prevalecer sobre a filiao

    biolgica.

    O que se quer impedir com esse instituto que uma reconhecida filiao resultante

    de uma relao socioafetiva, relao essa que foi fundada sobre os referidos

    preceitos, no pode se romper pela simples falta de consanguinidade ou de registro,

    em nada impedindo que o filho venha a buscar o reconhecimento da sua origem

    biolgica de forma concomitante, sem a prevalncia ou extino de alguma das

    formas ora tratadas.

    At o advento da Constituio Federal de 1988, at quando o vinculo biolgico era

    absoluto sobre o afetivo, no havia igualdade entre filhos e a famlia era definida

    apenas com o casamento.

    Com a Carta Magna de 1988, houve a insero de novos princpios e valores que se

    adequaram aos anseios da sociedade, que se fundam na felicidade recproca,

    havendo a desbiologizao da filiao e a expanso das formas de vinculo paterno-

    filial forjado na socioafetividade.

    Nesse diapaso, Paulo Luiz Netto Lbo (2010, p.62) sintetiza tal evoluo baseada

    nos novos princpios constitucionais, como o melhor interesse da criana e do

    adolescente:

    O princpio inverte a ordem de prioridade: antes no conflito entre a filiao biolgica e a no-biolgica ou socioafetiva, resultante de posse de estado de filiao, a prtica do direito tendia para a primeira, enxergando o interesse dos pais biolgicos como determinantes, e raramente contemplando os do filho. De certa forma, condizia com a ideia de poder

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    dos pais sobre os filhos e da hegemonia da consanginidade-legitimidade. Menos que sujeito, o filho era objeto de disputa. O principio impe a predominncia do interesse do filho, que nortear o julgador, o qual, ante o caso concreto, decidir se a realizao pessoal do menor estar assegurada entre os pais biolgicos ou entre os pais no biolgicos. De toda forma, deve ser ponderada a convivncia familiar, constitutiva da posse do estado de filiao, pois ela prioridade absoluta da criana e do adolescente.

    Ento, com o passar dos anos e o aumento de aes envolvendo esses institutos, -

    filiao biolgica e filiao socioafetiva - no desenvolvimento do posicionamento

    doutrinrio cresceu a ideia de que no h uma formula estabelecida de qual dos

    tipos de filiao ir prevalecer no caso concreto.

    Cristiano Chaves de