O RÉU CONFESSO DE UM CRIME INEXISTENTE
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O RÉU CONFESSO DE UM CRIME INEXISTENTE
[Ao meu irmão Gabriel Camunfunana em
memória ao sofrimento passado por Mpasso eu e
ele num dia único em que a amizade valeu mais que tudo.]
No coração de Chamankulo, arredores da cidade das acácias morava o mano Manonga.
Bem disposto, militarizado e estilado pela natureza mundana, Manonga, bom rapaz, não se
alheiava aos alheios da vida. Ele estava sempre disposto a se alhear e tornar seu o alheio.
Mudado há menos de três sois com pagamentos complementares marchados, Manonga se não
importa das destrezas da vida. A tristeza acumula o meio da sua solidão. A vida se preocupa em organizá-
lo sol-pós-sol. E a alegria de um novo viver toma conta o seu coração.
Saído de uma amizade encurralada, Manonga já está mergulhado no mar da reconstrução.
Manonga não quer da desgraça saber. Preocupado com o queimar dos telefones, mano Manó manda fazer
lembrança aos defuntos. Pede para dormir junto com eles no quarto-dispensa-cozinha, ou seja, no seu
tudo em tudo em um.
Padre Gwendjere chegou e fez rezar até voltarem os protectores do mano que bem o protegeram
segundo o momento em diante.
Reuniram-se os vivos. Foram chamados os mortos, todos, as Marikinhas, os Camunfunanas, os
Canhangas, os Leões e muito mais. Todos, todos ficaram ali sentados ao banquete do sermão que de
ninguém se esqueceu e começaram a dizer sem que Manonga se apercebesse:
- Filho, de hoje em diante os seus problemas estão resolvidos, pois embora na dita modernidade,
você foi capaz de nos dar um banquete de confraternização, o que muitos não o fazem. Os teus pares e
próximos se esquecem de nos como se nunca tivéssemos existido lá onde os nossos rebentos deixamos.
Em banquetes de azimu não há citação. Respeitamos a tradição, pois a voz nunca é de um. O
trabalho nunca é de um. É tudo de todos, razão da união e inclusão. Por isso o homem mundano e
terrestrado não entende facilmente, visto querer sempre tomar protagonismo das diegeses.
Cerimoniado o banquete, é como se Manonga previsse a chegada de difíceis momentos que por si
só não se aguentaria e que um único espírito sofreria o bastante para não suster a demanda. Daí o
banquete ter sido mesmo profetizado.
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Dias depois do banquete situações foram surgindo e Manonga erguendo a manga quando, certo
dia, num dia desses em que a dita Selecção Moçambicana de Futebol, enquanto selecção de amizades da
Baixa da cidade de Maputo, se preparava para sair da linha da victória, ou se diga, como nos está
habituada a fazer, se espectou na cama para ser telespetador do Moçambique (0) Marrocos (4), que nem
sequer, talvez, chegou a VER, viu a derrota e decidiu vender a alma à cama dando uma soneca merecida.
Ao meio dos sonos e sonhos, sob o olhar vigilante dos azimus que acabavam de ter o banquete,
eis o tremor: abre-se a porta, não, a porta é violentamente aberta e Manonga é obrigado pelos azimus a
voltar para o mundo físico: sem sonos nem sonhos.
Manonga depara-se com uma imagem humana por volta das 2 horas de madrugada, sem paixão
nem compaixão querendo, nas suas palavras, meter-se debaixo da cama. O que a imagem não sabia é que
o acesso à parte inferior da cama estava bloqueado pelo banquete, já imaginam, dos azimus. Ao menos
que fosse ladrão de pão, a pessoa provavelmente conseguiria, mas ladrão de alma, de jeito maneira
passaria sobre os banquetistas que de imediato acordaram o mano Manonga e, vendo que o intruso se
dirigiria para a parte menos ocupada, informaram-no que pegasse a sua arma, a menos mortal possível e
fizesse uso dela o mais rápido possível.
Manonga não se tardou, mandou uma mirada dos tempos dos pássaros lá em Namacata e
“piuuuuuuuuu”, acertou em cheio num dos órgãos que imobilizaram a imagem.
- Desmaiou, talvez vai a caminho da morte.
O certo é que a imagem tornou-se pessoa e, os que se não fizeram presentes em todos os
momentos diegéticos anteriores tiveram espaço para existir naquele momento.
Srge um movimento popular que nem sequer entendeu a capacidade defensiva de Manonga,
limitando-se a dizer:
- Bateu? Porque bateu?
O certo é que Manonga saiu desferido e com muito mais vida e coragem para enfrentar os
momentos que advinham. Acalmaram-se as vozes e saiu-se ao Hospital Central que de centro já nada tem
senão pela negativa.
Chegados ao hospital, a antiga imagem então pessoa foi directamente encaminhada à sala para os
inanimados, os defuntos resistentes para ver se lhe devolviam algo de animal de modo a responder antes
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da morte sobre a sua movimentação. Era noite e as pessoas se desfizeram delegando tudo nas mãos dos
enfermeiros e médicos que bem sabem queimar processos.
Enquanto os enfermeiros se preocupavam em repor os sinais de vida e a posterior
responsabilização, Manonga, tendo informado os seus companheiros Mulibwandje e Muwalavo, saíu
atrás da justiça.
Chegados à sexta esquadra, o agente delega-o à nona na qual também não foi possível registar a
queixa-denúncia-confissão, porque o agente aguardava pela “rendição”, Manonga explicava-se, diga-se,
confessava-se:
- Sr. Agente, eu bati numa pessoa que invadiu o meu quarto e está hospitalizada.
Felizes com a confissão, os agentes limitavam-se a dizer que ele tinha alguma razão, mas não
devia deixar fora de registo o acto para eventuais problematizações.
Saídos da nona esquadra, os três foram jogar a bola para relaxar um pouco a mente de Manonga
que estava completamente abalado.
Manonga ligava frequentemente para os familiares da sua vítima para saber um pouco mais sobre
o seu seu estado de saúde. Primeiro foi informado que ainda não havia informação clinica.
Horas depois, Manonga, ainda preocupado e bem transpirado pelo jogo e pela situação acindental,
liga para um dos familiares da sua vítima:
- Aló!
- Sim, Bom dia.
- Aqui fala Manonga. Gostaria de saber como vai a doente.
- Bom, os médicos ainda não disseram algo, por isso não te posso dizer nada agora.
Manonga ficou de olhos azuis. Como é que se comporta um indivíduo com essas informações? E
a voz continuou dizendo:
- Porém falta-me ver ainda a senhora que você bateu, pois está em casa e eu não a vi hoje.
Chuva de lágrimas em Manonga.
- O quê? Pode explicar-me melhor?
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- Sim. A pessoa que você bateu foi ao hospital andando e apanhou dois pontos. A outra, a quem
junto levamos ao hospital, é a minha esposa que já estava doente. Nós estávamos a fazer uma reza, tendo
uma das senhoras passado para o estado de “posse” espiritual e ido directamente ao seu quarto. É daí que
você a bateu, mas está completamente fora de perigo, aliás, nunca esteve em perigo.
Manonga, Manonga. Ele explodiu de felicidade em saber que estava a martirizar-se por um crime
não praticado. Se o tivera praticado, então, aí entrou a força dos azimus que inverteram radicalmente o
cenário.
Então Gwendjere o disse:
- Valeu o banquete!?
E Manonga tornou-se, então, réu confesso por um crime inexistente. Na mesma noite, ao chegar
em casa, Manonga fica sabendo que a doente perdera a vida.
Manonga não foi absolvido, absorveu-se em concílio dos deuses sob protecção dos anjos e seus
antepassados a quem já tinha pedido ajuda.
Gui Leão
Numa manhã de chuva, à caminho do mano Manonga.
20/10/12 (7:59min)