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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO
URUGUAI E DAS MISSÕES URI– CÂMPUS DE
FREDERICO WESTPHALEN
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA
O RIO GRANDE DO SUL EM CANTO E CONTO: A VERTENTE REGIONALISTA
Mestranda: Vanice Hermel
Orientadora: Profª. Dra. Denise Almeida Silva
Frederico Westphalen- RS
Outubro de 2014
Vanice Hermel
O RIO GRANDE DO SUL EM CANTO E CONTO: A VERTENTE REGIONALISTA
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras – Mestrado em Letras, área de
concentração em Literatura Comparada, como requisito parcial
para a obtenção de Título de Mestre em Letras, sob a orientação
da Profª Drª Denise Almeida Silva.
Frederico Westphalen- RS
Outubro de 2014
Dedico este trabalho aos meus alunos, os quais eu
reconheço como principais inspiradores da minha
formação profissional.
4
Agradecimentos
A Deus, pelo presente da Vida e por tudo o que tem me
proporcionado através dela.
À minha mãe, presença constante em todas as etapas dos meus
estudos.
À família linda que Deus me deu, pelo apoio incondicional. Sou
muito grata, Rodrigo e Antonella, pelos momentos de cumplicidade e
felicidade!
Também agradeço às pessoas que de alguma forma ou de outra
vivenciaram comigo esse momento de escrita, de aprendizado, de
alegrias, de angústias. Lembro, neste momento, dos meus sogros José e
Vera, os quais eu agradeço pelo apoio, pela compreensão e por
entenderem a companhia do computador em nossas férias. Não posso
deixar de agradecer pelos cuidados da Carmem comigo, com a casa e
com a Antonella em todo o período do mestrado.
À professora Denise Almeida da Silva agradeço carinhosamente,
pela atenção, confiança, carinho, palavras, incentivo, sabedoria, pelos
ensinamentos, pela dedicação, pela luz e energia transmitidas durante
todo o percurso da pesquisa. Serei sempre grata, professora!
Aos professores do Programa de Pós-graduação em Letras pelo
carinho, pela dedicação e pelos valiosos ensinamentos dispensados a
mim e às minhas colegas.
5
De todas as literaturas regionais do Brasil, tenho a
impressão que a gaúcha é a que mais apresenta uma
identidade de princípios, uma normalidade geral
dentro do que é bom, uma consciência de cultura, uma
igualdade intelectual e psicológica, que a tornam
fortemente unida e louvável.
Mário de Andrade (1939).
6
RESUMO
Esta dissertação intenta investigar a persistência da vertente regionalista na
literatura gaúcha em dois gêneros literários, o conto e a canção. Propomo-nos a
analisar a função do território - o pampa, na formação da identidade do povo
gaúcho, e a sua representação no conto de vertente gauchesca e na canção regional
produzida no Rio Grande do Sul. O percurso analítico inicia com o registro
da literatura oral, representada pelo Cancioneiro; enfoca o desenvolvimento do
conto na literatura gaúcha, ressaltando sempre a vertente regionalista, e,
especialmente, a visão mitificada do gaúcho e de sua terra. Encerra, novamente,
com a literatura oral, como representada pela canção de vertente regionalista. O
contato estabelecido entre o conto e a canção se justifica porque entendemos que
este segundo gênero, a partir do momento em que se evidencia, no conto, uma
diminuição gradativa da tematização regionalista, constitui-se, na
contemporaneidade, como veículo de manutenção e exploração dos temas antes
explorados pelo conto. O estudo do percurso da evolução da vertente regionalista
no conto foi realizado tomando como base a pesquisa de Gilda Neves Bittencourt,
que distingue quatro nuances distintas no conto regionalista gaúcho; para o estudo
da canção recorremos à periodização da canção gauchesca proposta por Francisco
Cougo Júnior. Através da análise dos contos, comprovamos que, em boa parte de
sua história, conto e regionalismo foram indissociáveis. Desde as primeiras
manifestações românticas, houve uma duração prolongada do regionalismo nesse
gênero, embora tenha havido uma diminuição na prática do conto regionalista, no
que denominamos, seguindo ainda tipologia de Bittencourt, fase intervalar e de
revisionismo crítico. De outro lado, na análise das canções, verificamos a
persistência da vertente regional, porém não de modo uniforme, pois a canção
retoma, na contemporaneidade, desde o Rio Grande pastoril até o Rio Grande
heroico, oscilando motivos da guerra, da violência, êxodo rural, com a idealização
e revisionismo crítico da vida no pago, do próprio mito do centauro dos pampas e
do monarca das coxilhas. Entendemos que este estudo é uma das possibilidades de
leitura que o conto regionalista e a canção nos possibilitam percorrer e, que,
portanto, é uma discussão que não se esgota. Ressaltamos a contribuição desta
pesquisa para o estudo da canção regionalista gaúcha, uma vez que são
encontrados poucos estudos monográficos a respeito.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura gaúcha. Conto. Canção. Mito. Vertente
regionalista.
7
RESUMEN
Esta disertación intenta investigar la persistencia de la temática
regionalista en dos géneros literarios, el cuento y la canción. Proponemos a
analizar la función del territorio – el campo, en la formación de la identidad del
pueblo gaucho, y su representación en el cuento de temática gaucha y en la
canción regional producida en el Rio Grande do Sul. El camino analítico de esta
disertación empieza con el registro de la literatura oral, representada por el
Cancioneiro; se centra en el desarrollo del cuento en la literatura gaucha,
resaltando siempre, con destaque, la temática regionalista. El contacto establecido
entre el cuento y la canción se justifica porque entendemos que este segundo
género, a partir del momento en que se evidencia, en el cuento, una disminución
gradual de la tematización regionalista, constituyéndose, en la contemporaneidad,
como vehículo de manutención y exploración de los temas antes explorados por el
cuento. El estudio del camino de la evolución de la temática regionalista en el
cuento fue realizado tomando como base la pesquisa de Gilda Neves Bittencourt,
que distingue cuatro matices distintas en el cuento regionalista gaucho; para el
estudio de la canción recorrimos a la periodización de la canción gaucha
propuesta por Francisco Cougo Júnior. A través del análisis de los cuentos,
comprobamos que, en buena parte de su estória, cuento y regionalismo fueron
indisociables. Desde las primeras manifestaciones románticas, hubo una duración
prolongada del regionalismo en el género, mismo que tenga ocurrido una
disminución en la práctica del cuento regionalista, en el que denominamos, de
acuerdo aún con la determinación de Bittencourt, fase intervalar y de revisionismo
crítico. De otro lado, en el análisis de las canciones verificamos si la persistencia
de la temática regional, no de modo unánime, pues la canción retoma, en la
contemporaneidad, desde el Rio Grande pastoril hasta el Rio Grande Heroico,
mesclando motivos de la guerra, de la violencia en el campo, éxodo rural, con la
idealización y revisionismo crítico de la vida en el ambiente campesino, del
propio mito del centauro de los pampas y del monarca de las coxilhas.
Entendemos que este estudio es una de las posibilidades de lectura que el cuento
regionalista nos posibilita seguir y, que, por lo tanto, es una discusión que no se
agota. De la misma forma, resaltamos la contribución de esta pesquisa en el
estudio específico de la canción regionalista gaucha, una vez que son encontrados
pocos estudios al respecto de la misma.
PALAVRAS-CLAVE: Literatura gaucha. Cuento. Canción. Mito. Vertente
regionalista.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................10
1 A NARRATIVA DO RIO GRANDE PASTORIL E HEROICO: CULTURA,
REPRESENTAÇÃO, HISTÓRIA E MITO......................................................16
1.1 A vertente regionalista: cultura e representação.............................................16
1.2 O Rio Grande pastoril e heroico: uma perspectiva histórica...........................21
1.3 Mito: o gaúcho monarca das coxilhas e o centauro dos pampas.....................27
2. A VERTENTE REGIONALISTA NA LITERATURA GAÚCHA:
CANCIONEIRO, CONTO, CANÇÃO..............................................................32
2.1 A literatura oral: o cancioneiro rio-grandense.................................................32
2.2 O conto regionalista gaúcho.............................................:..............................36
2.2.1 A persistência do conto e o modelo regionalista .........................................36
2.2.2 Nuances regionalistas no conto gaúcho .......................................................38
2.2.3 Desenvolvimento histórico do conto regionalista: da fase transicional à de
renovação...............................................................................................................46
2.3 A canção regionalista gaúcha..........................................................................55
2.3.1 O resgate das tradições: o movimento tradicionalista..................................61
2.3.2 Os festivais: a explosão nativista no Rio Grande do Sul..............................67
2.3.3 De 1980 em diante: Memórias, produção acadêmica e revisionismo..........73
3. A VERTENTE REGIONALISTA EM CONTO E CANTO: O HOMEM, O
ESPAÇO E O TEMPO........................................................................................80
3.1 O CONTO REGIONALISTA.......................................................................80
3.1.1 A idealização do herói gaúcho: Apolinário Porto Alegre.............................81
9
3.1.2 Influências real-naturalistas e desaparecimento do herói: Darcy
Azambuja...............................................................................................................90
3.1.3 Tradição e inovação sob o influxo do modernismo: João Simões Lopes
Neto....................................................................................................................... 96
3.1.4 O regionalismo crítico ou social: Cyro Martins..........................................102
3.1.5 A fase de transição: Luiz Carlos Barbosa Lessa........................................108
3.1.6 A nova vertente regionalista dos anos 70: Josué Guimarães......................117
3.2 A PERSISTÊNCIA DA VERTENTE REGIONAL NA CANÇÃO
GAÚCHA............................................................................................................125
3.2.1 Inventando as tradições...............................................................................125
3.2.1.1 Pedro Raymundo......................................................................................126
3.2.1.2 Vitor Mateus Teixeira..............................................................................131
3.2.1.3 Leovegildo de Freitas..............................................................................140
3.2.2 A era dos festivais.......................................................................................149
3.2.2.1 Sergio Napp..............................................................................................151
3.2.2.2 Cesar Escoto.............................................................................................158
3.2.2.3 José Claudio Machado.............................................................................164
3.2.3. A canção regionalista dos anos 1980 em diante........................................168
3.2.3.1Luiz Marenco............................................................................................168
3.2.3.2 Mano Lima...............................................................................................174
3.2.3.3 Jayme Caetano Braum..............................................................................181
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................189
REFERÊNCIAS................................................................................................197
ANEXO...............................................................................................................205
10
INTRODUÇÃO
Esta dissertação intenta delinear a persistência da vertente regionalista na
literatura gaúcha em dois gêneros literários, o conto e a canção. Assim proposta, a
análise atém-se ao estudo da vertente regionalista na literatura gaúcha. Tomamos,
aqui, o qualificativo regionalista como designando uma literatura que, além de
precursora de um tipo humano, o gaúcho do pampa, também marca um espaço
original, a Campanha, espécie de ―habitat‖ genuíno desse homem. O viver telúrico
do gaúcho, num espaço definido e demarcado com rigor, é a grande marca
caracterizadora do discurso regionalista sulino, que se revela empenhado na busca
do matiz regional, enquanto elemento reforçador de uma identidade.
Cientes da importância dessa definição para esse trabalho, alongamo-nos
mais acerca do assunto no capítulo 1; por ora, importa, ainda, ressaltar que a
vertente regionalista é uma das vertentes da literatura gaúcha. Como é sabido, é
possível evidenciar outras vertentes na literatura gaúcha, além da regionalista:
uma social, na qual avulta a prosa urbana, a partir de 1930, uma existencial-
intimista, além da memorialista ou de reminiscência, sem falar na vertente que
explora as memórias dos imigrantes, em narrativas de temática urbana, de feição
psicológica, de introspecção, umas caracterizadas pelo realismo cruel e trágico,
outras pelo fantástico (BITTENCOURT, 1999, p. 59). A lista, evidentemente, não
é exaustiva; cumpre apenas a função de ressaltar que a vertente escolhida não
esgota as possibilidades de realização da literatura gaúcha.
Partiremos do princípio de que o discurso literário é capaz de influenciar
atitudes, comportamentos e interferir na representação da vida político-cultural,
visto que pode ser compreendido como uma manifestação que tem a linguagem
como matéria principal. Afinal, a palavra é capaz de criar e modificar, além de
expressar uma postura, uma cultura, uma ideologia na qual o escritor se coloca em
relação à realidade, à humanidade e à sociedade ao escrever e reler o mundo, em
um processo contínuo de construção, leitura e transformação.
Neste sentido, o ato de produzir literariamente envolve a relação intrínseca
com a história, cultura, indivíduo e grupo social. Na perspectiva de Pozenato
11
(1974, p. 22), a literatura é o resultado de uma feitura: é, por isso, um fato e uma
obra. Como fato, ela se alinha com todos os fatos que fazem a história; e, como
obra, é o resultado de um fazer individual e social e, assim, um fenômeno de
cultura. A história e a cultura são, pois, suas fronteiras.
Afirmamos, acima, que este trabalho intenta estudar a persistência da
vertente regionalista na literatura gaúcha; esta, caracteristicamente, abrange a
mitificação do homem e da terra do Rio Grande do Sul. Faz-se, pois, necessário o
esclarecimento desses dois termos. Com referência ao mito e sua percepção no
coletivo, recorremos trabalho a Boschi & Vieira (1986, p. 19) quando esta o
caracteriza como ―uma verdade insofismável que – ao lado dos códigos e
costumes – preside às relações interpessoais e comportamentos individuais de
determinado grupamento humano‖. Assim compreendido, o mito é uma
instituição social, história fundadora e explicativa do mundo. É expresso em única
linguagem possível de determinar as nuances da cultura que o elabora e que ele
representa, porque cada cultura só pode efetivamente se expressar em linguagem
própria.
A construção do mito do gaúcho, em que se dá a passagem do gaúcho-
pária ao gaúcho herói, é verificada no momento em que após a conquista da terra,
o estancieiro necessita do homem socialmente inferior, para defender e executar o
trabalho pastoril na sua propriedade. Assim, conforme Maria Eunice Moreira
(1979, p. 176) ―quando o marginal se torna útil para a classe dominante, é
consagrado como herói‖. Esse redimensionamento enfatiza, pois, a bravura do
soldado, de um lado, e do peão, do outro, consagrando o gaúcho em posição
superior, imprimindo à palavra um sentido de heroísmo e cavalheirismo.
Na literatura, a imagem do gaúcho só se transformou em mito devido à
influência romântica, momento em que a criação do imaginário passa por um
processo de idealização do qual a literatura se apropria, reconstruindo e
reforçando essa ideologia. Ao falarmos em mitificação na literatura,
apontamos para o processo que dá origem ao gaúcho ―centauro dos pampas,‖ e ao
gaúcho ―monarca das coxilhas‖.
O gaúcho centauro dos pampas acha expressão já na literatura oral: ―é
muito conhecido, de grande opinião. Possui traços vigorosos, viris, positivos,
altivo e indomável‖ (MAROBIN, 1985, p. 45). Vive livre, sem limites de tempo e
de espaço. Ao gaúcho monarca das coxilhas, estão associadas as características de
12
heroísmo e valentia. Nesse sentido, o monarca representa a figura de um herói
―nobre e valente, arrogante e modesto, ativo e honrado, glória e orgulho do
Brasil‖ (BRASIL, apud MAROBIN, 1985, p. 49).
Julgamos, ainda, necessário afirmar a razão por que, neste trabalho,
utilizamos a denominação ―literatura gaúcha‖ em detrimento do uso da expressão
―literatura-sul-rio-grandense‖. Apoiamo-nos, para isso, no raciocínio de Fischer
(2004), para quem ―literatura gaúcha‖ remete a uma identidade que é autônoma e,
ao mesmo tempo simbólica; diferentemente do termo ―literatura sul-rio-
grandense‖, que designa, meramente, a coordenada espacial. A opção pelo termo
literatura gaúcha, portanto, ressalta o valor simbólico e o viés identitário e, assim,
nos encaminha-nos para a análise que almejamos.
O percurso analítico desta dissertação inicia com o registro da literatura
oral, representada pelo Cancioneiro; enfoca o desenvolvimento do conto na
literatura gaúcha, ressaltando sempre, a vertente regionalista, e, especialmente, a
visão mitificada do gaúcho e de sua terra. Encerra, novamente, com a literatura
oral, como representada pela canção de vertente regionalista.
A canção, considerada como gênero literário, será considerada a partir de
uma perspectiva sócio-histórica, uma arte através da qual o indivíduo reforça seus
laços identitários, ao mesmo tempo em que mantém viva a representação e
mitificação da terra e da gente gaúcha.
Era necessário delimitar um corpus analítico para o presente estudo. Uma
vez que ambicionávamos demonstrar a persistência da vertente analítica através
de sua sobrevivência na canção, era necessário que afirmássemos, inicialmente,
sua existência com clareza. Assim, partimos do conto, gênero no qual a existência
da vertente regionalista já está, reconhecidamente, registrada, em trabalhos como
os de Coutinho (1955), Leite (1978), Zilberman (1980), Cesar (1994), Fisher
(2004), Bittencourt (1999). No entanto, para a coerência lógica deste trabalho, era
necessário que retomássemos este fato; além disso, consideramos que este
trabalho oferece uma contribuição relevante ao registrar essa persistência –
embora não tão frequente, nem predominante, como o foi até os anos 1930 – até
nossos dias, como o atesta o conto de Josué Guimarães aqui analisado.
O estudo do percurso da evolução da vertente regionalista no conto foi
realizado tomando como base pesquisa de Gilda Bittencourt, a qual percebe a
existência de no mínimo quatro regionalismos, os quais, através de diferentes
13
nuances, fizeram-se presentes, oferecendo um colorido diverso sem alterar,
contudo, o núcleo central representado pela figura do gaúcho e pelo espaço
ficcional da campanha. O primeiro regionalismo foi o romântico, embasado na
idealização do herói gaúcho, atrelado ao passado guerreiro; o segundo,
denominado de tradicional, com influência real-naturalista, narra as
transformações da sociedade e o desaparecimento do antigo gaúcho; o terceiro
visa transformar a tradição, através do influxo do modernismo baseado no modelo
de Simões Lopes e o quarto, e último, um regionalismo chamado de crítico ou
social que, ao mesmo tempo em que denuncia a decadência da vida campeira,
mostra a proletarização do gaúcho.
Seguindo essa tipologia, selecionamos um conto para ilustrar cada uma
dessas fases, e, portanto, quatro autores, aos quais acrescentamos, ainda, dois
outros, acompanhando o desenvolvimento histórico do conto regionalista no Rio
Grande do Sul. Uma vez que o período de prevalência do conto já fora
contemplado através dos contos selecionados para a análise das três primeiras
nuances regionalistas, selecionamos para análise ainda dois outros contos, através
dos quais evidenciamos o período de transição, em que perdura, na vertente
regionalista, a presença da velha tradição, à qual se ajunta renovação de
linguagem e/ou temática, e outro que demonstra o período de renovação
verificada a partir dos anos 1970. Dessa forma, buscamos acompanhar o percurso
da vertente regionalista no gênero em questão. Sob o olhar da primeira nuance
regionalista, escolhemos o conto ―Monarca das coxilhas‖, de Apolinário Porto
Alegre, dado o importante papel de Apolinário para a configuração da literatura
regionalista gaúcha, pois foi o autor que recuperou a figura do guasca herói já
inscrito no imaginário coletivo através do cancioneiro; como representante do
segundo regionalismo selecionamos o conto ―Velhos tempos‖, de Darcy
Azambuja, pois essa narrativa evidenciou a atualização do regionalismo gaúcho,
através da denúncia da transformação da Campanha diante do processo de
modernização e urbanização. Com relação ao terceiro regionalismo, escolhemos
―Trezentas onças‖, de João Simões Lopes Neto, pelo importante papel
desempenhado por Simões na literatura gaúcha; quanto ao quarto e último
regionalismo da tipologia de Bittencourt, selecionamos o conto ―Tempo de seca‖,
de Cyro Martins, pois nesse conto o herói vai assumir uma nova posição,
apresentando uma vida que ainda se associa ao campo, aos afazeres e lidas
14
campeiras, porém em uma sociedade que está decadente frente a nova economia,
apontando para uma nova condição do antigo herói.
Incluímos, ainda, em nosso trabalho o conto ―O boi das aspas de ouro‖, de
Barbosa Lessa, publicado no ano de 1958, para demonstrar a permanência dos
traços regionalistas em meio aos elementos de ruptura, os quais demonstraremos
de modo específico, no capítulo analítico do conto. Por último, evidenciaremos a
renovação no conto regionalista através da leitura ―Cavalo cego‖, de Josué
Guimarães, um dos poucos autores que nos anos 1970 escreve narrativas
regionalistas, porém diferencia-se do modelo vigente no início do século ao narrar
à realidade do antes herói.
Na análise de todos os contos, nossa leitura foi pautada com vistas a
identificar a representação da paisagem campeira, os papeis sociais, a relação
entre patrão e peão, o meio rural e o urbano, os quais fornecem traços distintivos à
representação ficcional da identidade regional gaúcha.
Assim como foram escolhidos critérios para a seleção dos contos, fazia-se,
também, necessário critério para a ordenação de nossa exposição sobre o percurso
histórico do desenvolvimento do gênero canção no Rio Grande do Sul, bem como
para a seleção das canções analisadas. Utilizamos, aqui, a tipologia da canção rio-
grandense utilizada por Cougo (2012), que divide a historiografia da música
gauchesca em três principais fases: a primeira, denominada por ele de: Inventando
as tradições, a qual corresponde o período entre os anos 1948-1971; a segunda
fase, a da Ebulição nativista, que compreende os anos 1971-1980 e, a terceira à
que o autor se refere como Memórias, produção acadêmica e revisionismo, dos
anos 1980 em diante. A partir dessa tipologia, houvemos por bem selecionar
canções lançadas nos períodos indicados, escolhendo compositores (referimo-nos
aos autores das letras, que, em alguns casos, coincidiam com o da música)
representativos de cada fase.
Dessa forma, selecionamos, para a primeira fase, Pedro Raymundo, Vitor
Matheus Teixeirinha e Leovegildo José de Freitas, por considerarmos que foram
esses os poetas que fizeram nascer o estilo regionalista na canção gaúcha e, pela
simplicidade ao cantar o Rio Grande, são ainda fonte de inspiração para novas
gerações de músicos sulinos. Da segunda fase, destacamos justamente
compositores que surgiram em meio ao período dos festivais e que continuam, na
contemporaneidade, cantando a cultura gaúcha: Sérgio Napp, Cesar Escoto e José
15
Claudio Machado. Com relação à terceira e última fase, buscamos exemplificar a
persistência da vertente regional nas canções de Luiz Marenco, Mano Lima e
Jayme Caetano Braun, cujas carreiras profissionais foram impulsionadas pelo
motivo regionalista de idealização romântica do gaúcho herói.
A dissertação foi estruturada em três seções. A primeira delas constitui-se
em introdução conceitual, e traz noções fundamentais para o embasamento das
ideias aqui construídas: discutimo conceito de representação, cultura e
regionalismo, bem como resenhamos brevemente o desenvolvimento histórico do
Rio Grande do Sul pastoril e ―heroico‖, visão a partir da qual se construíram os
mitos da monarquia e do centauro dos pampas, conceitos que são, também,
apresentados. No segundo capítulo, delineamos o percurso da vertente regionalista
na literatura gaúcha, iniciando com o registro da literatura oral, representada pelo
Cancioneiro; enfocamos, a seguir, o desenvolvimento do conto na literatura
gaúcha, e, novamente passamos à literatura oral, representada pela canção de
vertente regionalista.
Encerrando a dissertação, e antecedendo à conclusão, o terceiro capítulo
refere-se à proposta analítica, em que primeiramente demonstramos o
desenvolvimento da vertente regionalista no conto e, especialmente, a visão
mitificada do gaúcho e de sua terra até o momento em que observamos a
diminuição de tal tematização, para então, evidenciarmos a
permanência/predominância desta vertente na canção regionalista gaúcha até a
contemporaneidade. Assim organizada, pensamos ser possível investigar a
permanência de uma vertente regionalista na representação do homem e da terra
do Rio Grande do Sul em conto e canto.
16
1 A NARRATIVA DO RIO GRANDE PASTORIL E HERÓICO:
CULTURA, REPRESENTAÇÃO, HISTÓRIA E MITO
1.1 A vertente regionalista: cultura e representação
Ao enfocar a vertente regionalista no conto e na canção gaúcha, este
estudo atém-se a uma das possíveis narrativas do Rio Grande do Sul – a do Rio
Grande pastoril e heroico, na qual sobressaem os mitos do gaúcho centauro dos
pampas e do monarca das coxilhas. Nessa narrativa, avulta em importância a
associação do estado do Rio Grande do Sul com a imagem do gaúcho e com um
território – o Pampa, o qual também recebe o nome de Campanha, em virtude de
sua extensão e da predominância das grandes extensões de terra, que se estendem
pelo Uruguai e Argentina. Evidentemente, não há um caráter determinístico entre
a paisagem e a representação de seu tipo humano; porém, como Marobin (1985)
observa, a paisagem externa de uma região, se não determina a paisagem interna,
com a sua temática, ideais, mitos e lendas, ao menos contribui para o seu
condicionamento.
A disposição dos elementos advindos da cor local, do tipo escolhido, da
linguagem e ideologia tem efeito significativo para uma criação literária,
constituindo um efeito de sentido particular, resultado de composição formal que
acaba por revelar o sentido da obra. Constatamos, da mesma forma, o
regionalismo enquanto fator primordial para o reconhecimento e projeção da
literatura gaúcha.
O regionalismo se caracteriza no Rio Grande do Sul a partir de três
elementos principais: o meio geográfico, o tipo – a personagem, e o tempo
histórico. O painel territorial dos campos abertos, sem limites, teve decisiva
influência na formação do imaginário gaúcho. A vinculação entre essa paisagem e
seu habitante é tão intensa que Zilberman assinala: ―a personagem na narrativa
regional confunde-se com o homem da Campanha. O privilégio atribuído a certo
tipo está de antemão associado à valorização de um espaço: o pampa (1980, p.
36)‖.
No percurso histórico deste Estado, emana uma tradição que revela seu
tempo de formação, povoamento e a relação do homem com a terra. O privilégio
do espaço na representação literária constitui-se em um dos fatores determinantes
17
para a definição de uma literatura regional: para Lúcia Miguel-Pereira, da cor
local decorre as demais peculiaridades do regionalismo: tipo humano, linguagem e
costumes representados. A autora enfatiza elementos primordiais na formação do
conceito:
Para estudar, pois, o regionalismo, é mister delimitar-lhe o alcance; só
lhe pertencem de pleno direito as obras cujo fim primordial for a
fixação de tipos, costumes e linguagens locais, cujo conteúdo perderia
a significação sem esses elementos exteriores, e que se passem em
ambientes onde os hábitos e estilos de vida se diferenciem dos que
imprime a civilização niveladora (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p. 179).
Também Afrânio Coutinho (1955) enfatiza o valor da ―cor local‖, sem a
constituir, contudo, como o elemento predominantemente distintivo de uma
literatura regional. Coutinho concebe esta última a partir de duas feições: a
primeira, ampla, diz que toda obra de arte é regional quando apresenta como pano
de fundo um lugar ou quando parece brotar desse local particular. Nessa situação,
ressalva, uma obra poderia ser localizada numa região, mas tratar de assunto
universal, de modo que essa particularidade local lhe seria apenas ficcional. Já a
segunda feição aborda o que considera o regionalismo em sentido autêntico: diz
ser regional uma obra que não somente é localizada numa região, como também
retira a sua ―substância real‖ das particularidades deste lugar:
Essa substância decorre, primeiramente, do fundo natural – clima,
topografia, flora, fauna, etc. – como elementos que afetam a vida
humana na região; e em segundo lugar, das maneiras peculiares da
sociedade humana estabelecida naquela região e que a fizeram distinta
de qualquer outra. (COUTINHO, 1955, p. 146-147)
A concepção ampla de regionalismo é partilhada por Ligia Chiappini
Morais Leite (1978, p. 155), para quem a obra literária regionalista é ―qualquer
livro que, intencionalmente ou não, traduza peculiaridades locais‖, definição que
alguns tentam explicitar enumerando tais peculiaridades: ―costumes, crendices,
superstições, modismo‖ e vinculando-as a uma área do país: ―regionalismo
gaúcho‖, ―regionalismo nordestino‖, ―regionalismo paulista‖ etc. Assim sendo,
poder-se-ia falar tanto de um regionalismo rural quanto de um regionalismo
urbano. Essa mesma autora afirma que toda obra literária seria regionalista,
enquanto, com maiores ou menores mediações, de modo mais ou menos explícito
ou mais ou menos mascarado, expressa seu momento e lugar. Desse modo, para a
18
autora, um regionalismo mais estrito se daria apenas em função da gradação de
intensidade e relevância que o momento e o lugar ocupam em uma obra.
Adotando uma visão menos flexível e, portanto, mais específica, Zilberman
(1980, p. 32) pensa o regionalismo a partir de dois aspectos: um primeiro
denominado a ―cor local‖, o qual denota a insistência de um povo em um espaço,
determinando um tipo humano, desde sua linguagem aos costumes; um segundo,
que se refere à natureza ideológica e enfatiza a influência do meio sobre o
indivíduo, entendendo este como resultado do próprio espaço:
Somente ao cenário é permitida a individualização [...]. Deste modo,
se no coração da totalidade brasileira cabia destacar certo tipo
humano, era porque o local onde vivia tinha acabado por se imprimir
nele, determinando seus hábitos e modos de ser‖ (ZILBERMAN,
1980, p. 32).
Como se vê, a compreensão do regionalismo em uma obra literária está ora
ligada à representação de uma realidade regional, ora à intenção de realizar esta
representação. No primeiro sentido, está evidenciada a presença do elemento
local, mesmo que situado, ou ainda datado; na outra perspectiva, existiria uma
deliberação quanto ao ato de representar literariamente determinada região,
marcada por pressupostos estéticos e ideológicos. Assim a entende, também,
Pozenato (1974, p. 15), que, ao se posicionar sobre o regionalismo, menciona que
―chamar-se-á, pois regionalismo aquela representação do regional que obedece a
um programa, a uma vontade de fazer, a um projeto elaborado segundo as
convenções e a ideologia do que se pode denominar um movimento literário‖. Ao
mencionar a vertente regionalista do conto e da canção, este trabalho alia-se à
visão dos teóricos que compreendem uma intencionalidade no uso da paisagem
regional, à qual se alia um posicionamento ideológico.
Pozenato salienta a importância do relacionamento entre uma peculiar
formação cultural e sua representação literária: ―o fazer que dá origem à cultura
vai impor sua marca também no fazer literário. E todo fazer importa num modus
faciendi, isto é, traz estigma daquele que o constrói. O modo de fazer gaúcho é
que vai caracterizar o modo de cultura e da literatura regionais‖.
Ora, a noção de cultura pode ser interpretada de modos diversos. Roberto
DaMatta (1997) entende que a cultura é a maneira de viver total de um grupo,
sociedade, país ou pessoa. Nessa ―maneira de viver‖ está embutida uma vivência
19
comum, que implica regras que foram definidas coletivamente, através de suas
relações sociais. Como estas são cambiantes, ao longo do tempo a construção de
uma cultura corre paralela a sua própria transformação.
Já Martins (2007) ressalta a complexa imbricação entre o individual e o
social e a esfera hegemônica de uma comunidade, ressaltando a função do poder
na formação cultural de um povo. Para o autor, a cultura subdivide-se em três
esferas: a individual, que determina o sujeito enquanto língua, espaço, religião,
liames particulares– ou seja, aquilo que é processado e incorporado, de modo mais
ou menos involuntário, por cada individuo; a coletiva, intimamente associada à
individual, dado que um indivíduo compartilha seus referentes individualizantes
(língua, espaço, etc.) com os demais; ambas, a individual e a coletiva, estão
vinculadas e dependem da configuração elaborada pelo poder, o qual pode ser
visualizado através da cultura pública ou estatal que, por sua vez, organiza a
sociedade, gerenciando o sistema de produção e circulação de ideias.
Outra visão, ainda, é trazida por Silva (2000), a partir do ângulo dos
Estudos Culturais, uma noção que entende cultura como estando intimamente
atrelada à produção de significados: essa visão enfatiza as relações entre
representação e cultura. Hall (2003c), afirma que é a representação que faz a
ligação entre cultura, linguagem e significado, já que cultura poderia ser definida
como o modo pelo qual a linguagem é usada para dizer algo significativo sobre
algo ou alguém, ou para representá-los. Nesse sentido, a representação é parte
essencial do processo pelo qual o significado é produzido entre os membros de
uma cultura, e envolve o uso da linguagem, e os signos e imagens usados para
representar objetos, situações e indivíduos.
A representação envolve dois processos intimamente associados: um
―sistema‖, pelo qual todos os objetos, pessoas e eventos são associados a um
conjunto de conceitos, ou representações mentais, que permitem com que um
indivíduo interprete significativamente o mundo a seu redor; um segundo sistema,
a ele associado, que consiste na constituição de correspondências entre nosso
mapa conceitual e um conjunto de signos, organizados em várias linguagens, que
os representam. Nesse processo, indivíduos que pertencem à mesma cultura
interpretam, de maneira geral, um mapa conceitual semelhante, de forma que
tendem a compartilhar o modo de compreender os signos linguísticos, o que
forma um substrato que permite sua comunicação. Por esse motivo, Hall propõe
20
que uma das maneiras de se pensar cultura seja em termos dos mapas conceituais
e sistemas linguísticos compartidos, e dos códigos que governam as relações de
tradutiblidade entre eles. Fala-se, aqui, em tradutibilidade porque os códigos não
são atributos essenciais, mas produtos de convenções socialmente fixadas em uma
dada cultura.
Assim pensada, a cultura é o local de significação em que os grupos
sociais, ainda que em posições diferentes de poder, buscam impor sua
singularidade para a sociedade: ―a cultura é, nesta concepção, um campo
contestado de significação. O que está centralmente envolvido nesse jogo é a
definição da identidade cultural e social dos diferentes grupos‖ (SILVA, 2000, p.
133-134).
A cultura fornece um sistema classificatório que estabelece fronteiras
simbólicas entre o que está incluído e o que está excluído; esses processos advêm
da necessidade humana de pertencer a determinado grupo, e seu pertencimento ou
não é resultado de análises comparativas e valorativas. Percebe-se, aqui, mais uma
vez a relação entre língua, cultura e poder, visto que, como descreve Guareschi
(2006) são os discursos, ou seja, as práticas culturais que produzem uma dada
identidade, as quais tomam certos padrões como absolutos, gerando marcadores
excludentes que passam a serem definidos enquanto relevantes:
Ao delimitar comportamentos, modos de ser e agir, os discursos
estabelecem normas, padrões, e, ao mesmo tempo, afirmam e
constituem aquilo que é diferente a esta identidade, que não é apenas o
seu oposto, mas é tudo aquilo que não está incluído nesta referência.
(GUARESCHI, 2006, p. 84).
Dessa forma, ao analisarmos as representações do gaúcho no conto e
canção rio-grandense de vertente regionalista, estamos frente a construções de
pertencimento simbólicas, visões identitárias que afirmam um modo de pensar o
habitante do Rio Grande. Quando se considera a construção do discurso
regionalista do Rio Grande do Sul, é relevante ainda perceber a forma como a
referência ao espaço, enquanto matriz de uma identidade cultural regional, é
construída. De forma geral, não se dá apenas pela descrição física e característica
da paisagem, mas também como pela apresentação da região como espaço heroico
– voltamos, aqui, a considerar como os moradores de uma determinada
comunidade cultural constroem seus valores e significados.
21
A vida dos habitantes do pampa – gaúcho primitivo e o colonizador – foi
alicerçada por, principalmente duas características: a definição da fronteira, a qual
fortalecia os sinônimos tanto de afastamento (do resto do país), como de
―bairrismo‖ no inconsciente coletivo dos rio-grandenses; e a sobrevivência no
pampa, que configurou, no gaúcho, as características de homem selvagem e
bárbaro, em virtude da caça bruta e do uso da natureza do pampa como única
fonte de sobrevivência.
Nesse contexto, a responsabilidade diante do território suscitou
posicionamento histórico frente às lutas políticas e às guerras. Ruben Oliven
(1992) descreve o gaúcho como um tipo formado pela inserção do sujeito com o
meio ambiente e pela sua experiência desde muito cedo com a guerra. Segundo
ele, ―o gaúcho é socialmente um produto do Pampa, como politicamente é um
produto da guerra [...]‖ (p.11). Cesar (1971) ressalta mesmo que o gaúcho usou
antes da enxada, a escopeta; antes do trigo, a pólvora. Contudo, se a formação da
identidade gaúcha evidencia, de um lado, a formação guerreira, de outro atrela-se
à vida pastoril como elemento primordial da constituição de sua gente.
A próxima seção resenha a narrativa histórica da formação do Rio Grande,
destacando, juntamente com a descrição da formação pastoril e das guerras que
impactaram no imaginário rio-grandense, bem como a etimologia do termo
gaúcho e sua ressignificação ao longo da história.
1.2. O Rio Grande pastoril e heroico: uma perspectiva histórica
A configuração espacial do território iniciou-se com os povos indígenas,
que foram ao longo do tempo expulsos da terra pelas reduções jesuíticas e pelos
tropeiros, seguidos pelo desenvolvimento das estâncias de criação de gado para
abastecimento da Região Sudeste do Brasil.
A influência dos tropeiros na configuração da história do Rio Grande do
Sul é bem documentada; Augusto Meyer (1957), evidenciando a autoridade dos
arquivos, afirma que, antes do vocábulo gaúcho, o que aparece nos documentos
para designar o habitante do estado é a palavra gaudério, aplicada, segundo ele,
―aos aventureiros paulistas que desertavam das tropas regulares, identificando-se
com a vida rude dos coureadores e ladrões de gado‖ (1957, p. 17).
22
Essa atividade marginal exercida pelos gaudérios se estendeu por mais de
um século da história do pampa. Meyer sublinha este tempo narrando o esforço
dos guardas para a repressão: ―os campos, não obstante, continuavam cheio de
―vagabundos,‖ ―changadores‖ e outros desocupados, que viviam dos gados
alheios, do contrabando e da venda de couros e graxa aos portugueses‖ (1957, p.
19).
Ainda de acordo com Augusto Meyer (1957), o viajante Auguste Saint-
Hilaire, que esteve na província do Rio Grande do Sul em 1820, em diversos
trechos referiu-se ao gaúcho como bandido, marginal e pilhador, indivíduo sem
pátria que luta unicamente pelo saque. Da mesma forma, Nicolau Dreys (1839,
apud ZILBERMAN, 1985, p. 20), em sua descrição da província de São Pedro,
nomeou e definiu os tipos humanos por ele conhecidos apresentando uma
diferenciação entre a figura do rio-grandense e do gaúcho. Sobre o rio-grandense,
ele afirmou que ―este é preferencialmente um homem do campo, veste
indumentária característica e manifesta predileção pelo cavalo como meio de
locomoção e companheiro inseparável‖. Porém, segundo sua perspectiva, o
gaúcho era definido como um sujeito sem moral, sem conduta e pudor que se
diverte, sofre, mata e morre com a mesma promiscuidade:
Sem chefes, sem leis, sem polícia, os gaúchos não têm moral social,
senão as ideias vulgares, e, sobretudo uma sorte de probidade
condicional que os leva a respeitar a propriedade de quem lhes faz
benefício ou de quem os emprega, ou neles deposita confiança
(MEYER, 1957, p. 21).
Augusto Meyer assegura que o sentido pejorativo da palavra gaúcho
manteve-se quase sem alteração até meados do século XIX:
Azara, Saint-Hilaire, o anônimo de Cinco años em Buenos Aires,
Arsene Isabelle, Alcide D‘Orbigny, todos são concordes em
apresentá-los como homens sem lei nem rei, coureadores,
changadores, gaudérios; os campistas perturbadores da paz, a que se
refere Bettamio, os vagamundos que tanto alarmavam o governador
José Custódio, passados tantos anos, ainda não perderam de todo a
mobilidade espantosa, a insolência andarenga, o cunho abarbarado.
(MEYER, 1957, p. 21).
Meyer sinaliza a importância de se considerar a consciência histórica do
meio em sua relação com a fronteira aberta, ―sujeita a uma revisão de limites que
se prolonga por mais de cem anos, os campos abertos‖ (1957, p. 21). A formação
23
do gaúcho de vida solta, de peão pobre em sua disponibilidade marginal, é fruto
de um círculo vicioso que compreende, segundo o autor, ―latifúndio, pastoreio
patriarcal, abundância de gado alçado, fronteira aberta‖ (1957, p. 26), de forma
que pode ser explicada a partir do fator econômico: ―entra na história como
decorrência daquele complexo cultural representado pelo cavalo, o gado alçado e
a valorização do couro, movendo-se num meio de pampas abertas, onde as raias
avançam e recuam‖ (MEYER, 1957, p. 28).
Os primeiros povoadores do território formam, desde o princípio, uma
complexa gama cultural. Cada grupo que aqui chegava trazia consigo a cultura de
origem para demonstrá-la na convivência com as outras. Eram guaranis,
espanhóis, paulistas, lagunistas, mineiros, açorianos, além de outros.
Desde a colonização, o Rio Grande do Sul apresentou uma integração lenta
e frágil. As disputas políticas entre Portugal e Espanha, referentes ao domínio da
região, dificultaram tanto a integração quanto a proximidade do território gaúcho
aos países de língua espanhola. Nesse sentido, a identidade cultural da sociedade
que se forma no sul do país se constituiu de modo paralelo à formação cultural
nacional. Guilhermino Cesar relembra que o Rio Grande do Sul viveu, no
primeiro século e durante o período colonial, momentos instáveis:
Portugal temia perdê-lo; os jesuítas, em primeiro lugar, e os soldados
castelhanos, logo depois, penetraram o pampa pelo Oeste e pelo Sul
dispostos a consolidar a posse da terra para o seu rei. (CESAR, 1971,
p. 29).
Por outro lado, podemos dizer que a localização fronteiriça do estado do
Rio Grande do Sul atribuiu a este espaço a configuração de guardião do
nacionalismo em face dos países vizinhos. Assim, em meio a interesses políticos
traçados pela atração dos povos pela terra de São Pedro em virtude da necessidade
de prover carne a animais de tração para as demais capitanias, a colonização foi
marcada por apreensão e lutas. A sociedade resultante de todos esses impasses foi
fortalecida internamente, e passou a buscar por uma identidade regional e nacional
distintiva, ainda que por isso tivesse que lutar.
O Brasil perdeu a Colônia do Sacramento, mas o Rio Grande do Sul se
tornou uma de nossas províncias; adotou com sacrifício os valores
portugueses comuns à formação nacional, e lutou de armas na mão
para se manter brasileiro.Entretanto, desaparecidos os fatores de
24
ordem externa que perturbaram a fixação do seu arcabouço físico,
evoluiu sem deixar de ser o centro de um processo social dos mais
dramáticos, por isso mesmo dos mais ativos na caracterização do
Brasil contemporâneo.(CESAR, 1971, p. 29).
A posição geográfica e as fortes influências externas, frutos da
colonização, ocasionaram o que Maria da Glória Bordini aponta como
―isolamento histórico‖ no Rio Grande do Sul. Este, segundo Cesar (1971, p. 69),
não aconteceu simplesmente no âmbito geográfico e político: ―foi, sobretudo,
cultural‖. De fato, como Cesar observa, o isolamento influiu na formação de uma
identidade forte e autônoma:
A sociedade rio-grandense, acostumada ao sofrimento oriundo da luta
com os espanhóis e do clima ríspido e variável, adquiriu bem cedo,
isolada como se achava no extremo Sul, a certeza de que não podia
esperar grande coisa dos irmãos do Norte. Persuadiu-se de que só
devia contar com suas próprias forças. O isolamento enrijou-a, dando-
lhe energia interior paras superar deficiências e dificuldades. (CESAR,
1971, p. 69)
A relação da Campanha, enquanto lugar praticado, revela, de um lado, a
oscilação das fronteiras e, de outro, geograficamente, os tratados políticos. Diante
disso, a identidade que se forma a partir do espaço tem a influência de vários
aspectos: a paisagem campeira, a condição da fronteira, e as lutas reveladas no
entorno da história.
Foram, entretanto, como sinalizam Boschi & Vieira (1986), as fronteiras
movediças que perduraram por quase dois séculos, em virtude das lutas entre
castelhanos e portugueses, que fomentaram o espírito guerreiro daqueles que
ocuparam a terra: o indivíduo é responsabilizado a defender este espaço, forjando
o que viria a ser o estereótipo de herói. Os ―feitos heroicos‖ praticados na defesa
do pampa vão reafirmando a ideia de um indivíduo superior, e forjando a noção de
um gaúcho sem medo, que pela terra é capaz de superar obstáculos.
Esse primeiro momento, vivenciado desde as origens até por volta do ano
de 1834, demonstra o princípio da formação territorial do Rio Grande do Sul
representado pela luta pela defesa do território. O ano de 1835 marca o início de
uma das guerras mais demoradas do continente americano com duração de 10
anos, a Revolução Farroupilha ou a Guerra dos Farrapos, que ocorreu na província
de São Pedro do Rio Grande do Sul durante o período regencial, entre 1835 e
25
1845. Esse foi um conflito regional que objetivava renovar o sistema federalista
através da substituição da monarquia por um regime republicano e, ainda
pretendia separar a província do resto do Brasil, em busca de mais liberdade
administrativa, por parte dos proprietários de terra para a sua província.
Mesmo tendo como nome Guerra dos Farrapos, essa guerra não foi feita
por camponeses ou escravos, mas sim, por grandes proprietários de terras,
estancieiros que lutavam por seu interesse específico sem apresentar, no entanto,
uma proposta de acabar com a escravidão ou melhorar a vida dos camponeses. Os
estancieiros queriam garantir o lucro das grandes fazendas pecuárias e exercer o
poder político do Rio Grande do Sul com mais autonomia. Uma das causas para o
descontentamento de estancieiros eram os altos impostos cobrados no comércio de
couro e charque e, reclamavam ao governo imperial sobre os impostos cobrados a
concorrência Uruguai e Argentina, países onde também se produzia charque e que
pagavam menos impostos do que o próprio Rio Grande do Sul.
Depois de um ano do início da Guerra, as tropas farroupilhas já tinham
registrado diversas vitórias diante das tropas imperiais e, em 11 de setembro do
mesmo ano é proclamada, pelos revoltosos, a República Rio-Grandense. Poucos
anos depois, em 1845, após diversos ataques militares severos, os farroupilhas, já
enfraquecidos e desgastados, firmaram um acordo com o Duque de Caxias em
março de 1845, o tratado do Ponche Verde, que garantiu os interesses dos
revolucionários gaúchos e a hegemonia territorial do império. Com o término da
Guerra dos Farrapos, a recém-proclamada República Rio-Grandense foi
novamente integrada ao Império do Brasil.
A participação do gaúcho nas revoltas alterou sua percepção por parte das
autoridades militares. Como Meyer comenta, enquanto para os capitães-generais,
autoridades e proprietários de terras, o gaúcho não passava de um ladrão e
coureador, para os capitães de milícia e comandantes de tropas empenhados em
guerras de fronteira o gaúcho era sinônimo de bombeiro, alvo para inimigo, e bom
auxiliar. Nas guerras de independência do Prata ou nas campanhas do sul, atuou
como lanceiro, miliciano.
Mais tarde, a palavra ganhou sentidos adicionais: em certo tempo, no Rio
Grande do Sul, para o homem da cidade, ―gaúcho‖ denominava o trabalhador
rural, o peão da estância, o habitante da campanha; na poesia representava o bom
ginete, campeiro destro que se identificava relativamente com o termo guasca,
26
monarca. Finalmente, tornou-se nome gentílico que designa todos os nativos do
sul-rio-grandense. Ocorreu, assim, a ressemantização do termo, através da qual
um tipo social que era considerado desviante e marginal foi apropriado,
reelaborado e adquiriu um novo significado positivo, sendo transformado em
símbolo de identidade do Estado (OLIVEN, 1989).
Para Gonzaga, esta mudança de representação no reconhecimento do
gaúcho deu-se por motivos ideológicos. Eram precisos homens para a guerra em
1835. Então, ressaltar suas virtudes e fazê-los acreditar nelas era fundamental para
encorajá-los a servir destemidamente. Assim, ―[...] o peão seria insuflado através
de ‗injeções‘ ideológicas. Absorviam-se os valores da rude vida campeira:
destemor, força, astúcia [...]‖ (GONZAGA, 1980, p. 119).
Boschi & Vieira (1986, p. 25), ao se posicionarem sobre a ressignificação
do termo gaúcho, apresentam uma leitura sobre o nascimento do herói,
relacionando-o também à constituição ideológica advinda do meio. Segundo a
autora, o sinônimo de valentia atribuído ao herói gaúcho fora determinado pelo
meio físico-social; desse modo, a valentia é aceita como condição e, inclusive,
como meio de sobreviver em uma região exposta com frequência a conflitos.
Ainda assim, Boschi & Vieira asseguram que o protótipo fora construído pela
classe dominante com vistas a manter vivo o interesse de muitos pela terra que era
de poucos.
Dessa forma, o gaúcho peão, sem questionar sua função e ainda sentindo-
se devedor de gratidão ao patrão pelo espaço na terra, aceitou o emprego da
violência. No dizer das autoras ―o gaúcho ‗nascido para herói‘, cumpre o destino
de boi, na canga do soberano‖ (1986, p. 25). Boschi & Vieira ressaltam a
ideologia relacionada à terra e à formação do gaúcho através do seguinte
argumento: ―O valente não nasceu da terra; fez-se por ela‖ (p. 25). Segundo elas,
o apelo em favor de uma unidade coletiva elevou o gaúcho do protótipo ao mito.
27
1.3 Mito: o gaúcho monarca das coxilhas e o centauro dos pampas
Hall (2003b, p. 62) observa que todas as identidades se localizam em um
determinado espaço e em um tempo simbólico, produzindo ―geografias
imaginárias‖, ―paisagens‖ características, a partir tanto de seu senso de ―lugar‖,
como também de suas localizações no tempo em tradições inventadas que ligam o
passado e o presente: mitos e narrativas de nação que conectam o indivíduo a
eventos históricos no plano nacional.
As primeiras representações do gaúcho na literatura datam entre 1737 e
1896, tendo um forte impulso principalmente a partir de 1835, com a Revolução
Farroupilha. O aproveitamento do homem do campo no plano ficcional – o peão,
o campeiro, e, depois o gaúcho – vai nortear as produções dessa vertente literária.
Este momento vai corresponder a um regionalismo romântico –
retomamos, aqui, a classificação de Pozenato (1974, p. 43), que distingue três
momentos no regionalismo: regionalismo romântico, regionalismo realista e
regionalismo modernista. O regionalismo romântico funda-se através de uma
relação mítica e documentária que visa ao mesmo tempo responder a uma carga
ideológica e a uma convenção estética. A realidade observada aos olhos de um
regionalista romântico – paisagem, tipos, costumes – recebe uma visualização
mítica que a leva para um ―plano de idealidade‖ (p. 43).
É assim que, por exemplo, evidencia-se a representação de uma
democracia no campo, expressa pela relação entre peão e fazendeiros. Tal
harmonia existencial fortalece a idealização e frutifica as matrizes ideológicas da
formação no imaginário popular do Rio Grande do Sul. Nesses textos
regionalistas, há divisão social (fazendeiro e peão), mas não desigualdade, nem
conflito. Acima de tudo, há que valorizar um espaço, e os seres que nele
convivem:
A personagem na narrativa regional confunde-se com o homem da
campanha. O privilégio atribuído a um certo tipo está de antemão
associado a valorização de um espaço: o pampa. Com isto, assumem
importância capital ainda um conjunto de valores e uma estrutura
social. [...] Entre estes dois setores da vida social não há antagonismo,
mas solidariedade, não porque compartilhem as posses materiais – a
estância, o gado – mas porque todos devem demonstrar as mesmas
virtudes humanas. (ZILBERMAN, 1980, p. 36)
28
Zilberman ainda salienta (1985, p. 21) que o regionalismo na literatura
encampa a visão do gaúcho, tornando-se uma das facetas de um processo de
valorização da cultura local que se enraizou no Sul e se expressou, de maneira
variada, em diferentes modalidades artísticas, como a música, a dança, as artes
plásticas.
A imagem do gaúcho, guerreiro e peão, é evidenciada primeiramente na
literatura oral, através do cancioneiro popular, no momento em que homem rural é
enobrecido a partir do elogio de suas qualidades como trabalhador, amante e
soldado. Guilhermino Cesar (1971, p. 103) comenta esse processo de mitificação
da imagem do gaúcho no âmbito histórico afirmando que tudo ―conspirou para
conferir ao viver pampeiro expressão e colorido de nobreza patrícia‖. Nos
cancioneiros, o gaúcho apresenta as seguintes características: a revolta; a
solidariedade; a simplicidade; a força; o cavalo como companheiro inseparável, o
gosto pela liberdade, a obstinação à sua sina, a coragem, a valentia, a aversão a
estrangeiros, a honra, a dignidade e a solidão. (1971, p. 103).
A configuração da imagem do gaúcho como representativo do Rio Grande
do Sul deu-se a partir de duas principais esferas: uma, de procedência popular, que
levava em consideração a indumentária e os hábitos e modos de falar, e a outra, de
natureza erudita, que se vincula a associação do gaúcho à figura mítica e a os
fatores históricos integrados a personalidade do gaúcho, como a índole guerreira e
livre constituída em virtude da formação de sociedade pastoril.
Na literatura regionalista gaúcha, a narrativa de uma relação harmônica
entre o homem e o seu espaço corresponde a um processo de mitificação; para
Zilberman (1980, p. 41) ―essa mitificação do espaço e dos objetos que fazem parte
dele explica a universalidade atribuída ao lugar da ação‖, promovendo ao mesmo
tempo a superioridade do homem rio-grandense.
O herói guerreiro é constituído a partir de dois símbolos: ―centauro das
coxilhas‖ e, mais tarde, pelo ―monarca das coxilhas‖. O centauro é reconhecido
pela sua bravura, considerado o gigante destemido. A descrição que faz Oliven do
centauro das coxilhas é exemplar:
Mas o habitante da campanha, o ―índio‖, o ―chiru‖, com que ele
próprio arrogantemente se acoima [...] abrange horizontes mais
amplos; não vacila, não teme, não titubeia Em todas as suas atitudes é
destro, é ágil, é decisivo. A planura, a guerra, o cavalo ensinaram-lhe a
andar, a agir, a correr. Dir-se-ia mesmo que entre ele e o pingo se
29
firmou uma aliança de marcha precipitada, para frente. Essas
características incisivas, a surgir em relevos de legenda, elevaram até
bem pouco o homem, na mitologia americana, a altura dos Centauros.
(OLIVEN, 1920, apud ZILBERMAN, 1985, p. 27)
Já ao monarca é conotada a imagem de um mundo positivo, sem males,
plenamente livre. Marobin (1985, p. 46), ao se referir a ambos, centauro e
monarca, afirma que estes ―dominavam altivos, livres, valentes, ciosos de seu
espaço aberto em que exercitavam, dia e noite, a sua robustez, sua monarquia e
sua liberdade‖.
Tão enraizado se tornou esse modo de pensar que, quando da chegada de
imigrantes em 1824 e 1875, é a cultura do gaúcho que vai predominar:
A tradição local possuía suficiente unidade para se impor como padrão
principal de cultura. Depois de um marginalismo inicial, em que as
duas colônias permaneceram com sua vida própria, inclusive a língua
de origem, o processo de integração começa a dar-se pela assimilação,
por parte dos imigrantes, dos valores culturais dos primeiros
povoadores do território. De um modo geral, salvo as peculiaridades
facilmente observáveis, é a cultura do gaúcho que vai servir de
elemento aglutinador dos novos habitantes. (POZENATO, 1974, p.
24)
A predominância da cultura rio-grandense diante das demais não se
justifica apenas por esta ser a mais antiga, mas, segundo Pozenato, também pelo
prestígio já evidenciado e também ―forjado‖ pelos fundadores do território: ―todos
os fundadores de povos acabam se tornando modelo exemplar, padrão de cultura,
para os pósteros‖ (1974, p. 25). Forja-se, assim, um mito de origem.
De fato, não apenas os elementos conscientes, teorizados, são os
responsáveis pela organização da vida social, pois esta depende também de fatores
míticos, mais ou menos difusos, que subjazem a sua elaboração e manifestação
concretas. Para tanto, deve ser conferida atenção especial aos mitos de origem,
como observa Eliade (2006), os quais adquirem força de modelo exemplar quando
referentes a um acontecimento primordial, que teve lugar no começo do tempo.
Como Barthes chama a atenção, o mito efetua uma essencialização dos
fatos, passando da história à natureza:
O mito não nega as coisas; a sua função é, pelo contrário, falar delas;
simplesmente, purifica-as, inocenta-as, fundamenta-as em natureza e
em eternidade, dá-lhes uma clareza, não de explicação, mas de
30
constatação [...] Passando da história à natureza, o mito faz uma
economia: abole a complexidade dos atos humanos, confere-lhes a
simplicidade das essências, suprime toda e qualquer dialética,
qualquer elevação para lá do visível imediato, organiza um mundo
sem contradições, porque sem profundeza, um mundo plano que se
ostenta em sua evidência, cria uma clareza feliz: as coisas parecem
significar sozinhas, por elas próprias. (BARTHES, 1982, p. 163-164).
A constituição de heróis pode ser vista como a forma de obter um espaço
organizado em que é possível viver. De certa forma, é conferida ao fator mítico a
constituição de uma identificação coletiva, motivo pelo qual, o mito pode ser
considerado, de certa, forma uma invenção e uma captura. (POZENATO, 1974,
p. 25). Como Pozenato ainda resenha, uma conjunção de fatores contribuiu para a
formação do mito do gaúcho heroico:
Quando os gaúchos aderem ao ideário romântico brasileiro, que
propunha a criação de uma literatura autônoma, encontram no
passado local, sem indecisões, a fonte da exaltação nativa. Era na
figura do guasca, cercada da grandeza e da imaginação coletiva, e já
―trabalhada‖ pelo cancioneiro popular. Verificou-se, pois o que se
chama de uma feliz convergência de propósitos. Os românticos
tomaram essa figura como receberam, isto é, já idealizada, já dotada
de conteúdo romântico, e a engrandeceram segundo convenções da
escola. Mas, transferiram ao peão da estância as qualidades heróicas
do gaúcho primitivo. (POZENATO, 1974, p. 43)
Por outro lado, Chaves relembra como o interesse dos grandes
proprietários, que precisavam de homens para servir duplamente aos negócios da
estância e à atividade guerreira em defesa da fronteira, sempre ameaçada,
contribuiu para a formação do mito:
[...] nobilitaram o antigo guasca, salteador marginal das planícies
abertas e travestiram-no na imagem idealizada de campeador e
guerreiro. Nasceu assim, mais na imaginação do que na realidade, o
vulto de um herói coletivo: másculo, forte, viril, mulherengo,
destemido diante do invasor, sempre acompanhado de sua montaria
inseparável. (CHAVES, 1994, p. 38).
Assim, pode-se inferir que o gaúcho – centauro dos pampas ou monarca
das coxilhas – é uma invenção construída a partir da ideologia. Eram necessários
muitos homens para trabalhar nas estâncias e defender as fronteiras sulinas: ao
garantir que eles acreditassem na sua força e heroísmo, tornava-se mais fácil fazê-
los zelar pela estância, pelo gado, pelas fronteiras. A partir de uma
supervalorização dos peões, de um heroísmo elevado e inventado, fazia-se com
31
que houvesse mão de obra para as estâncias e que os trabalhadores se sentissem
importantes. Criou-se, assim, um tipo humano que até hoje identifica a literatura
no Rio Grande do Sul e os moradores do estado.
32
2. A VERTENTE REGIONALISTA NA LITERATURA GAÚCHA:
CANCIONEIRO, CONTO, CANÇÃO.
2.1 A literatura oral: o cancioneiro rio-grandense
A literatura oral, segundo Guilhermino Cesar (1971), foi produzida antes
da chegada dos imigrantes. A maioria das peças do cancioneiro gaúcho remontam
aos primeiros tempos da colonização. Recordemos que os alemães chegaram em
1824, e os italianos em 1875; o período antes dessas datas é apontado pelo autor
como sendo o momento em que a oralidade era manifestação predominante. Sobre
a literatura oral, Cesar (1971) afirma que ela ―mereceu de cada um dos
componentes contribuição muito variável, mas as lendas conhecidas versam na
maioria assuntos da campanha‖ (p. 43), assinalando, desse modo, a preeminência
do pastoreio como fator concorrente na formação da nova sociedade.
A produção do cancioneiro gaúcho está reunida em três importantes
coletâneas: Cancioneiro guasca (1910), organizado por Simões Lopes Neto,
Cancioneiro da revolução de 1835 (1935), documentado por Apolinário Porto
Alegre, e Cancioneiro gaúcho (1952), coletado por Augusto Meyer. A obra
Cancioneiro Guasca foi compilada por Simões Lopes Neto, que utilizou três
fontes principais para a sua elaboração: Anuário da Província do Rio Grande
do Sul, Almanaque literário e estatístico do Rio Grande do Sul e Almanaque
popular brasileiro. Segundo Augusto Meyer (1959, p. 3), além do cuidado de
buscar referencial em vários escritores, Simões consultou a tradição oral, que foi
por ele transformada num ―admirável instrumento de estilo‖.
Guilhermino Cesar (1971) assegura que havia certo ―tratamento‖ poético
que configurava a marca iniludível dos pagos; segundo o autor, havia uma forma
original de acentuar foneticamente imagens advindas da paisagem,
São formas originais de exprimir, acentos fonéticos particulares,
imagens tiradas da paisagem, da flora, da toponímia, dos
acontecimentos locais, e eis aí o relevo particular que nos interessa,
como índice de uma preferência que irá condicionar, de certa maneira,
a produção literária e até mesmo as tendências da maioria dos leitores. (CESAR, 1971, p. 45)
33
A produção do cancioneiro ilustra, de modo significativo, a cultura
gaúcha, seja pelos costumes relembrados, seja pela imagem do guasca e sua
postura – Cesar (1971) registra que ―o guasca é sempre positivo e viril‖. Esse
mesmo gaúcho, vencedor de touros, enérgico, leal, não é avesso à confissão de
amor, mas mesmo aí preserva a afirmação da masculinidade, como se pode
observar na quadra de Múcio Teixeira citada por Guilhermino Cesar (1971, p. 47)
em Os Gaúchos: ―Não mandes mais o moleque/ Trazer tanto recadinho/ Põe o
xale na cabeça/ Vai me esperar no caminho‖. Há, também, no Cancioneiro, a
participação do negro, do escravo, o que se explica pelo desprezo, pelo descaso
com que é tratado pelo branco: nos versos, encontravam veículo para a expressão
de suas amargas vivências. Por outro lado, a mulata, na pena de seus outros, é
vista como fonte de desejo, e se constituiu em um dos grandes temas do folclore
gaúcho; o platino, ao contrário, pouco aparece e jamais é exaltado.
Uma das temáticas do cancioneiro é o motivo da monarquia, que expressa
o canto da vida ―semibárbara‖ do gaúcho primitivo: ―o individualismo, o
nomadismo, a liberdade sem peias, a exaltação da coragem pessoal, o amor à
aventura, o culto da monarquia transbordam de cada quadra com vigor
inimitável‖. (p.48) Augusto Meyer (1959, p. 212) afirma que é antigo o motivo da
monarquia como sugestão literária, como se pode perceber no soneto Monarca, de
antes da revolução de 1835, enviado por José Gabriel Teixeira, do Rio do Pardo, à
redação do Anuário de Graciano A. de Azambuja, em 1891, que foi documentado
por Augusto Meyer:
Nos meus pagos sou moço conhecido
Por monarca de grande opinião;
Tenho fama em todo este rincão
E por Deus que sou quebra destemido.
E se houver algum mais presumido.
Que apareça esse grande quebralhão,
Que lhe hei de pisotear no seu garrão
E a rebenque levar esse atrevido.
Sou torena e meio abarbarado
Se me pisam no poncho, já me esquento
E puxo do facão enferrujado
(MEYER, 1959, p. 212)
Para Augusto Meyer (1959), tanto o soneto Monarca quanto o Gaúcho
Forte são documentos que comprovam a persistência do romantismo gauchesco
34
no regionalismo gaúcho evidenciando a nostalgia romântica da vida dos
monarcas,
Gauchadas destas tenho feito muitas,
Por isso ela me chamou um dia:
Rei dos monarcas, gauchito em regra,
Por Deus! Eu digo: Que ela não mentia.
(MEYER, 1959, p. 213)
Vemos, através das quadras, a imagem de um gaúcho altivo. No soneto
Monarcas é possível perceber a necessidade do gaúcho se diferenciar dos demais,
expressando, para isto sua força e virilidade, que se opõe, inclusive, à figura de
Deus. No segundo, Gaúcho forte, a personagem é ainda o rei, o sublime mesmo
que desregrado.
Assim como a monarquia, outro tema de fundamental importância para o
cancioneiro é a celebração do cavalo – tema predileto do gaúcho, que, aos olhos
do autor Augusto Meyer (1957, p. 10), está disposto ao lado da mulher e da
coragem pessoal: ―Estou velho, tive bom-gosto/Morro quando Deus quiser/Duas
penas levo comigo: Cavalo bom e mulher‖. Ao cavalo também está associada a
liberdade, independência e convite ao deslocamento para um novo lugar,: ―Ao
botar o pé no estribo/ Meu cavalo estremeceu/ Adeus, morena que ficas/ Quem
vai-se embora sou eu!‖
Até o início da Revolução Farroupilha, na primeira metade do século XIX,
o tipo antropológico do gaúcho havia adquirido feição bem característica, que o
distingue dos demais, na zona fronteiriça, do resto da população. Segundo
Guilhermino Cesar (1971, p. 50), ―quem percorra o cancioneiro gaúcho perceberá
bem viva as pegadas do heroísmo farrapo‖. O cancioneiro preferiu a louvação dos
nomes e feitos, ainda que para isto precisasse exaltar os rebeldes. Para
Guilhermino Cesar, ―a poesia popular, encarando temas e situações pelo prisma
dos sentimentos elementares, não podia, com sobradas razões, ter afinidades com
os defensores da monarquia. Foi toda para Bento Gonçalves, Canabarro,
Garibaldi, Neto, para os gloriosos imprudentes de Piratini, a admiração
enternecida dos cantores. (1971, p. 50)
O poeta anônimo, mesmo depois da derrota ―dos rebeldes‖, fixou junto ao
coletivo a reação afetiva da população. Sobre este fato, Cesar considera que o
cancioneiro exerceu ―seu ofício de bardo‖, ou seja, buscar na sociedade as
35
motivações, as grandes paixões, crenças e também desilusões para cantar (1971, p.
50). Assim sendo, considera-se que os cancioneiros recolheram as grandes
paixões, esperanças, crenças e desilusões da coletividade. O lirismo anônimo,
como é denominado por Cesar (1971, p. 62), influenciou a poesia culta através do
valor documental da força genuinamente gaúcha. Cesar afirma que ―a nostalgia do
campo, entre os gaúchos é fator de permanente sugestão lírica‖, acrescentando
ainda que ―não é a nostalgia da paisagem física, mas dos seres humanos, bravos e
fortes, que humanizaram este pago e são recordados com ternura embevecida‖. (p.
62)
Marobin (1985, p. 42), ao analisar a fase da oralidade, considera-a como
de formação do substrato literário; segundo ele o ―mérito‖ desta fase se instala na
atitude de incorporar as estórias populares, de lendas com fundo literário. Segundo
ele, esse substrato literário recebeu contribuições lusas, africanas e indígenas. A
lusa estaria composta pelos elementos do ―amor, alegria, luto, sofrimento, morte;
mescla do sacro e do profano; temática de nostalgia, tristeza pelos que estão
ausentes; mescla e superposição de elementos históricos lusos, árabes e
divagações da fantasia popular‖. De outro lado, as contribuições africanas estão
contidas nas temáticas de ―submissão e desprezo com que era tratado o negro pelo
branco, como se verifica na lenda do ―Negrinho do Pastoreio‖, ―O Negro
Bonifácio‖ e outros‖. Por fim, Marobin (1985) considera que ―a contribuição
guasca marca presença na exuberância animal; espírito positivo e viril; beleza
física; vida andeja e semibárbara; campo aberto, sem fronteiras, sem estradas e
sem cerca de arame farpado‖. (1985, p. 41) Essas fontes continuam, na
perspectiva do mesmo autor, a sustentar as temáticas dos romances e poemas de
cunho regional,
Os escritores fiéis às suas origens voltam-se, constantemente, para
esse subconsciente coletivo do povo simples, e refrontalizam as suas
inspirações, as suas narrativas de fundo regional e universal. Essas
estórias, de forte enraizamento popular, são depositárias de símbolos
das lutas entre o bem e o mal, a felicidade e a desgraça‖. (MAROBIN,
1985, p. 42)
Zilberman também ressalta a contribuição dos núcleos primitivos e,
portanto, populares na tradição poética das primeiras manifestações literárias no
Rio Grande do Sul. Segundo ela, o verso, até o início do século XX, teve maior
36
preferência em detrimento da prosa, isto porque haveria no verso maior facilidade
de divulgação. Para a autora, a Província sulina, diferentemente das demais
regiões, cultivou a relação com o ―cancioneiro folclórico‖. A valorização do
mundo gauchesco sempre esteve presente na temática, ocupando-se ―dos motivos
populares e da ideologia da classe latifundiária‖ (1980, p. 11).
Augusto Meyer considera que a formação tumultuada do Rio Grande do
Sul só foi revivida através da simplicidade obtida na tradição da poesia anônima.
Para ele, ―os gritos de peleia devorados pela vastidão das coxilhas, como o sangue
bebido pela terra‖ só foram revividos pela simplicidade disposta pela tradição da
poesia anônima. O autor ainda sublinha que ―a grande revolução, mal esfriaram os
ânimos, entrou logo para o domínio da história‖ (1959, p. 29).
Como se vê, diante das afirmações de Augusto Meyer (1959), Guilhermino
Cesar (1971), Luiz Marobin (1985) e Regina Zilberman (1980), a literatura oral,
através do cancioneiro popular, marca a fase inicial da literatura gaúcha,
fortalecida pelo emprego e valorização de lendas, e anuncia o regionalismo
através da utilização do espaço e da caracterização do tipo sulino.
2.2 O conto regionalista gaúcho
2.2.1 A persistência do conto e o modelo regionalista
Considerado como a forma literária mais praticada nas letras gaúchas
desde o Partenon Literário, o conto teve papel primordial na formação cultural do
Estado do Rio Grande do Sul, fazendo-se presente em todas as etapas do
desenvolvimento literário rio-grandense sem apresentar, inclusive, modificações
cruciais relativas à antiga tradição regionalista até meados do século XX.
Segundo Bittencourt, existem motivos específicos que justificam não só a
preferência pela narrativa curta, mas também a duração mais prolongada do
modelo regionalista no conto rio-grandense. Dentre os motivos mencionados pela
autora, está o fato de o conto ter sua origem na tradição oral e, assim, ser
considerado uma ―forma simples‖, que permanece, sendo narrado através dos
tempos, do mesmo modo que outras narrativas curtas, como a lenda, o mito.
Segundo Bittencourt,
37
O aproveitamento do material folclórico e mítico em grande parte dos
contos e o emprego de procedimentos usuais na tradição oral – como a
existência de um narrador que relata a própria experiência, ou o
processo de remeter a história a um espaço atemporal ou mítico –
comprovam essa aproximação tanto com o folclore como com as
chamadas ‗formas simples‘ de André Jolles (1976) (BITTENCOURT,
1999, p. 35).
Ainda com relação à origem do conto na tradição oral, Bittencourt (1999,
p. 35), cita Gotlib (1985), que entende o conto como ―uma forma que permanece
através dos tempos, recontada por vários, sem perder sua forma e opondo-se, pois,
à forma artística, elaborada por um autor, única, portanto, e impossível de ser
recontada sem que perca sua peculiaridade‖.
A capacidade do conto de ser recontado e repassado oralmente sem perder
sua característica original fez com que se tornasse um dos substitutos mais
importantes da tradição oral. Nas comunidades em que circulava, era transmitido
por detentores da experiência e do saber coletivos, os quais funcionavam como
verdadeiros elos condutores na rede de comunicação cultural. Assim foi, também,
na primitiva sociedade sul-rio-grandense, na qual o principal meio de ligação
cultural entre as várias estâncias que formavam o núcleo populacional era o velho
peão:
Uma das características mais notáveis do peão itinerante, dentro de
toda ficção gauchesca, é justamente o seu poder de contar histórias,
sua memória impressionante, capaz de reter os mínimos detalhes, e o
dom de prender a atenção da gurizada e da peonada nos serões
noturnos à beira do fogo nos galpões. (BITTENCOURT, 1999, p. 34-
35)
É justamente da figura do contador oral, que exerceu um papel
fundamental tanto para a gênese do conto quanto para a fixação temática de cunho
regionalista, que provêm os contistas que, através da linguagem literária,
ocuparam-se do viver gaúcho e da construção de suas raízes e singularidades.
Também é a proximidade e a identificação com os casos de galpão outro motivo
que justifica a preferência pelo gênero conto.
Tal preferência, como já assinalado ao início deste capítulo, verifica-se
desde o Partenon Literário, ao qual Guilhermino Cesar credita o nascimento da
primeira geração de escritores regionalistas do Estado, que se deixaram atrair pelo
passado gaúcho. Como Marobin (1985, p. 44) descreve, ―a literatura que
38
cultivavam era a regionalista, gauchesca, viril, combativa, de exaltação do herói‖.
Já nessa época, a representação do peão da estância como personagem de
distintiva altivez e coragem corresponde a uma construção ideológica:
O peão de estância, herdeiro do monarca das coxilhas, dos heróis dos
tempos inteiros, o peão já era agora uma desbotada imagem da
liberdade e ousadia do outro, passou a representar para os escritores,
por efeito de uma transposição perdoável, o brio, a altivez, a coragem
pessoal do antigo senhor das savanas. Ocupou aqui o lugar que
coubera ao índio e ao negro na literatura liberal que desde Macedo
enfartava as letras do centro e do norte do país. Para o seu sofrimento,
para a sua resignação de pátria em decadência, caminhou célebre a
imaginação dos nossos artistas. (CESAR, 1971, p.173-174).
Essa geração, a da metade do século XIX, vai descobrir o Rio Grande para
a vida literária, explorar o rico filão de seus costumes, hábitos e tradições, atuando
de modo fecundo no processo para a formação de uma cultura gauchesca: então
aparecem os primeiros textos mitificando o gaúcho e o seu passado campeiro.
Cesar assegura que a escolha pela temática da campanha e manutenção da língua
do peão nas obras não tem apenas a intenção de definir o grupo e a si mesmo: ―a
razão das razões‖ apontada pelo autor é que o artista do Rio Grande ―procurou,
explicando-se, explicar-se ao Brasil‖. (1971, p. 174).
2.2.2 Nuances regionalistas no conto gaúcho
Os primeiros contistas gaúchos regionalistas desenvolveram em seus
escritos uma temática marcada pela valorização das situações de vida da
população na campanha, até porque esta é a fundamentação da literatura dos
pampas. Bittencourt (1999) considera problemático o estabelecimento de uma
periodização do conto gaúcho, uma vez que ela se reduz praticamente a duas
grandes fases: a primeira, essencialmente regionalista, que vai das origens da
literatura sul-rio-grandense até o final da década de 50 do século XX, e a segunda,
contemporânea, que começa com a década de 1960 e se estende até os nossos
dias.
Sabe-se, no entanto, que neste percurso, o regionalismo não se consolidou
como um tipo de representação uniforme, pois, como acentua Bittencourt (1999,
p. 21-22), podem ser observados no mínimo quatro regionalismos, os quais,
39
através de diferentes nuances, fizeram-se presentes, oferecendo um colorido
diverso sem alterar, contudo, o núcleo central representado pela figura do gaúcho
e pelo espaço ficcional da campanha. O primeiro regionalismo foi o romântico,
embasado na idealização do herói gaúcho, atrelado ao passado guerreiro; o
segundo, denominado de tradicional, com influência real-naturalista, narra as
transformações da sociedade e o desaparecimento do antigo gaúcho; o terceiro,
que visa transformar a tradição, através do influxo do modernismo baseado no
modelo de Simões Lopes e o quarto, e último, um regionalismo chamado de
crítico ou social que, ao mesmo tempo em que denunciou a decadência da vida
campeira, mostrou a proletarização do gaúcho.
O livro de contos Paisagens (1874), de Apolinário Porto Alegre, assinalou
o início de uma contística regionalista, arraigada à cor local, que se desenrolava
em um espaço restrito, com a pretensão de mostrar os usos, costumes e linguagem
de um tipo humano. Bittencourt (1999, p. 23) afirma que, na leitura desses
primeiros textos, fica evidente a representação de um universo fechado em uma
única região, constituída por dois segmentos principais: os fazendeiros,
proprietários das terras, e os seus subordinados os peões, os quais se mantinham
envolvidos em uma ideologia democrática, uma relação fraterna e igualitária,
[...] patrão e empregado igualavam-se ao tomarem chimarrão na
mesma cuia e ao vestirem-se com as mesmas indumentárias, trazendo
dividendos aos proprietários rurais que ficava, assim, bem-vistos na
sociedade sulina. Da mesma forma, introjetou-se no imaginário
popular do Rio Grande uma imagem de harmonia e unidade que
interessava a essa classe dirigente manter, não só como forma de
controlar as tensões sociais, mas também para obter a coesão e a força
de que necessitava para fazer frente aos inimigos externos.
(BITTENCOURT, 1999, p. 23)
Essa fase inicial, de influência romântica, se empenhou na busca do matiz
regional enquanto elemento reforçador de uma identidade sul-rio-grandense ante o
centro do país. Guilhermino Cesar (1994, p. 29) afirma que ―os primeiros
regionalistas foram impressionados principalmente pelo gaúcho solitário,
marginalizado, entregue a uma atividade aventurosa, numa fronteira agitada pelas
rivalidades entre Portugal e Espanha. A poesia e o romance, o conto e o teatro,
desde o romantismo viram nele a sua ‗matéria‘‖. Ao desenvolver tal argumento, o
40
autor narra a idealização do gaúcho através da caracterização do ―monarca das
coxilhas‖ e do ―centauro dos pampas‖.
A segunda fase, apontada por Bittencourt (1999) como momento de
influência do realismo-naturalismo, se instala no conto sul-rio-grandense já nos
primórdios do século XX. Neste regionalismo depurado dos ornamentos e da
idealização romântica, surge o nome de Darcy Azambuja que, ainda que mantenha
o caráter regionalista, passa a apontar para as situações vividas pelo homem do
campo e a crise na terra. Ao lado dele, também está LAF- Luís de Araújo Filho,
com a obra Recordações gaúchas (1905), na qual podemos evidenciar um
registro objetivo da paisagem e dos costumes, em que o gaúcho aparece despido
da ―tralha romântica‖, da ―aura mítica‖ e do ―monarca das coxilhas‖
(BITTENCOURT, 1999, p. 24). O narrador da obra de LAF é considerado por
Chaves (1994) como o antecedente de Blau Nunes, dos Contos gauchescos de
Simões Lopes, cuja primeira publicação foi no ano de 1912.
A obra de Simões, que obteve reconhecimento apenas na sua segunda
edição publicada pela Editora Globo em 1926, fez com que o conto regionalista
rio-grandense atingisse a sua maioridade, servindo de modelo para toda uma
corrente da gauchesca brasileira que se desenvolveu no Rio Grande do Sul ao
longo dos anos 20 e início dos 30. A apreciação da obra de Simões, quatorze anos
após sua publicação inicial, fez-se sob o impacto da influência modernista,
sinalizada por Bittencourt como a terceira fase do regionalismo sulino.
Essa fase, para Bittencourt, com relação ao nível de regionalismo, reforçou
o gosto pelos temas locais, o culto pelas raízes culturais e também pelo patrimônio
histórico: constata-se que tanto Recordações Gaúchas, quanto os Contos
Gauchescos rememoram casos do passado. Bittencourt delineia os principais
traços que inscrevem Lopes Neto dentro de uma tradição regionalista:
O que se constata, inicialmente, é que Simões Lopes não é original na
escolha da temática básica de seus textos, uma vez que eles são ainda
expressões genuínas do regionalismo tradicional, por haver ali uma
intenção explícita de mostrar um espaço físico, particularizado, por
meio de uma prosa mimética. [...] Desta forma, a obra de Simões
conserva a mesma matriz regionalista [...] (BITTENCOURT, 1999, p.
25).
41
Junto à escolha temática, tem-se, por outro lado, na escrita de Lopes Neto,
―uma confluência de elementos culturais‖, nos quais é possível perceber desde a
herança de Alencar, como a presença do estilo cancioneiro de cantar o
regionalismo até a influência do Partenon e a renovação obtida no naturalismo de
LAF. Essa heterogeneidade, ora nostálgica, ora idealizadora e, ainda, certo cunho
realista na abordagem da causalidade entre os fatos e a sucessão cronológica do
tempo, além da descrição de paisagens e indivíduos, assumem um caráter
diferenciado à literatura do autor:
[...] a utilização do mito do gaúcho ganha um tratamento poético,
diverso de um emprego puramente ideológico; da mesma forma, a
presença de quadros descritivos aparentemente naturalistas está
sempre relacionada a um destino individual, do personagem ou
mesmo do narrador Blau Nunes, ou seja, a ―mancha‖ descritiva não
vale por si só, mas desempenha uma função específica dentro da
narrativa. Por outro lado, o uso de uma voz narrativa interior ao
mundo representado e a consequente perspectiva subjetiva com que a
realidade é narrada, contraria, de certa forma, os padrões do realismo.
(BITTENCOURT, 1999, p. 26)
Lopes Neto conseguiu transferir para suas obras literárias, com
naturalidade, os feitos do típico homem do pampa. Conhecendo o universo das
charqueadas, o escritor pelotense recolheu diretamente de peões, vaqueanos e
estancieiros o material para a sua narrativa. Naturalmente, enlaçou as temáticas à
linguagem popular numa proposta realista de usos e costumes vivenciados pela
população. Bosi (1974, p. 214) menciona que Simões Lopes é o caso ―limite de
uma tradição ou cultura que se encarna em uma sensibilidade riquíssima sem
perder nem desfigurar (ao contrário, sublinhando) seus traços específicos. É o
exemplo mais feliz da prosa regionalista no Brasil antes do Modernismo‖.
A função ideológica da representação mítica do gaúcho e de seu passado
por Lopes Neto foi analisada, ainda, por Leite (1978). Segundo a autora, embora
Simões esteja associado ideologicamente à classe dominante, ele não evidencia
em sua produção os valores e a visão de seu mundo, nem mesmo atribui a este o
poder, pois para ele é sempre o simples peão que recebe a aura heroica. Ao contar
a história a partir da figura do velho e pobre peão e, relativizando o caráter
guerreiro do gaúcho, é possível evidenciarmos na produção de Simões Lopes
Neto, como postula Bittencourt (1999, p. 27), a história do gaúcho a pé que
apareceria mais tarde, nos anos 30. De certa maneira, compreendemos que a obra
42
simoniana sugere algo da modernidade ficcional do século 20, pois o tratamento
literário depositado ao elemento local ressalta aspectos regionais e universais,
mantendo, segundo Bittencourt, o seu diferencial regional em seu ―status
literário‖, na sua autonomia estética.
É importante mencionar, no entanto, que antes dessa releitura modernista
de Simões Lopes, mencionada anteriormente, Alcides Maya se destacava por sua
postura crítica, sendo apreciado pela atuação intelectual no panorama cultural
gaúcho. Maya, que desde 1902 pertencia à Academia Rio-Grandense de Letras,
foi o primeiro autor rio-grandense a ser eleito pela Academia Brasileira de Letras,
em 1913. Com sua obra ficcional composta de um romance e dois livros de
contos, esse autor segundo Bittencourt (1999, p. 28) ―de certa forma, antevê a
nova forma regionalista que vigoraria a partir do terceiro decênio do século,
particularmente no romance‖.
No livro de contos Tapera, de 1911, sob o prisma de Bosi (1974, p. 214),
Maya serviu-se da matéria regional para projetar uma preocupação de estilo
―elegante‖ e frondoso, caro à literatura da época: Maya era um caso extremo de
mistura parnasiano-regionalista, incapaz de abrir caminhos para sua escrita, ao
contrário de Simões Lopes Neto. Embora seus escritos centralizem o gaúcho
decadente, despreparado para a nova realidade advinda do progresso, o autor
continua romântico ao narrar, com nostalgia, a deterioração do homem do campo
outrora mitificado. Bittencourt (1999, p. 28) considera que, nessa nostalgia e
nesse saudosismo, o autor ―continua prestando tributo ao mito primitivo‖.
Diferentemente de uma postura realista, pontes são lançadas em direção ao
passado, as quais tornam viva a essência inicial do regionalismo em busca ―de um
tempo perecido‖.
No entanto, a melancolia narrada por Maya não agradou à nova geração de
intelectuais, já influenciada pelas ideias modernistas, que propunham o modelo de
Simões para a superação da realidade gaúcha. Bittencourt adverte que:
Na verdade, a intenção de modernização do regionalismo gaúcho,
inerente a essa ―geração de novos‖ dos anos 20, não seguia um projeto
específico e bem fundamentado, obedecendo muito mais ao desejo,
difundido igualmente pela Semana de 22, de romper com tudo que
representasse o passadismo. (BITTENCOURT, 1999, p. 29)
43
O reconhecimento da permanência do viés regionalista tradicional, de
motivo idealizador, em ambos os autores, imbuído de descrições detalhadas e
linguagem ornamentada, denota que a renovação buscada ocorreu muito mais no
plano intencional do que na prática. Mesmo o grande modelo dessa onda
regionalista dos anos 20, Simões Lopes Neto, manifesta-se ―naquilo que nele era
comum ao regionalismo anterior - a idealização do passado heróico, o telurismo e
a visão mítica do gaúcho.‖ (BITTENCOURT, 1999, p. 29). Assim, a pretendida
adesão ao modernismo, resultou na retomada do tom exaltatório e da essência
regionalista presentes desde a literatura produzida pelo grupo do Partenon
Literário no século XIX.
A vertente regionalista na prosa de ficção de Apolinário Porto Alegre,
Alcides Maya e João Simões Lopes Neto recebeu de Guilhermino Cesar a
definição de ―Idade de Ouro‖, pois, para esse autor, a prosa de ficção gaúcha deste
tempo fixou, pela primeira vez, sua identidade dentro do quadro mais amplo da
literatura brasileira. Bittencourt lembra a opinião de Lígia Leite (1978, apud
BITTENCOURT, 1999, p. 30), segundo a qual havia um propósito ideológico
nesta ―revivescência‖ do regionalismo, pois os contos dos anos 20 apresentavam
―um misto de função doutrinária, utilitária e imediatista‖ e pretendiam ―divulgar‖
os valores gaúchos, ocupando-se da mitologia regional, com vistas a projetar
política e economicamente o estado do Rio Grande do Sul junto ao poder central.
Esse fundo ideológico que permeia o regionalismo é observado não somente na
literatura, como também na cultura de um modo geral.
Essa utilização ideológica, imbricada igualmente no folclore e no
cancioneiro popular, introjetou, desde cedo, o imaginário rio-
grandense, um conjunto de valores e ideias que interessava à classe
dominante manter, como forma de preservar a sua hegemonia. Assim,
uma literatura autenticamente gaúcha seria aquela fundamentada nos
valores que representassem, na memória popular rio-grandense,
determinados arquétipos culturais já enraizados na sua tradição.
(BITTENCOURT, 1999, p. 33).
O fortalecimento da cultura regional é reflexo, também, do isolamento do
Rio Grande, que fez com que acreditassem que a única literatura autenticamente
gaúcha seria a que abordasse as questões regionalistas, que já a essa época não
predominavam, dada a nova realidade sócio-econômica. Porém, até o início do
século 20, faziam parte do acervo cultural rio-grandense todos os elementos
44
inerentes à vida no campo, o que vinha a caracterizar a região da campanha como
a fatia mais importante da vida sulina, pois, à época, o urbano ainda era precoce e
pouco representativo.
Distante das influências urbanas e, consolidada como cultura dominante
nos dois primeiros séculos, a civilização rio-grandense, envolta pelo seu passado
heroico das lutas de fronteiras, contribui para solidificar os mitos e as tradições.
Nesse contexto, era natural, também, como postula Pozenato (1974, p. 40), ―que a
gauchesca fosse a representação artística daquela cultura mais amplamente
estabelecida e reconhecida no Estado‖.
Ainda com relação à persistência da vertente regional na contística sulina,
soma-se, segundo Bittencourt (1999, p. 36) a ordem editorial, que contribui em
grande escala para prolongar tal tradição. Até a metade do século 20, no Rio
Grande do Sul, o mercado editorial era bastante restrito, uma vez que se resumia à
atuação da Livraria do Globo. Em Porto Alegre, desde a década de 1920, a livraria
do Globo vinha desenvolvendo um trabalho importante, funcionando,
praticamente, como um centro cultural.
A partir da década de 1930, contudo, a Globo, já consolidada enquanto
editora, substituiu a produção local pela tradução de obras da literatura mundial.
Na linhagem ficcional, apenas as narrativas curtas (novela ou conto) dos autores
gaúchos, na sua grande maioria de temática regional, eram publicadas. Isto
porque, tanto o poder quanto o setor intelectual formavam um bloco homogêneo
que dominava a produção literária também em seu processo de transmissão,
gerando, praticamente, um monopólio da literatura regionalista, praticada pela
maioria do ―Grupo da Globo‖. Esse grupo, de acordo com Bittencourt (1999, p.
37) era formado pela elite intelectual, muitos deles comprometidos com o setor
dominante, em virtude, de suas próprias origens e de suas ligações com a política
do estado.
Ressaltamos, no entanto, que diferentemente do conto, a poesia e o
romance romperam com a antiga tradição literária, sob a influência do movimento
modernista a partir do final dos anos 20. Ainda assim, há que se mencionar que
essa adesão à nova corrente não foi imediata, nem mesmo houve uma quebra
radical com os antigos propósitos devido ao enraizamento do simbolismo na
poesia e do regionalismo na ficção. A poesia, segundo Gilda Bittencourt (1999),
por meio de um processo evolutivo contínuo, acompanhou as mudanças vindas de
45
outros países, as quais podem ser visualizadas pela consistência na adesão do
movimento simbolista e, depois, pela adoção dos princípios modernistas
sinalizados pela Semana de 22. A ficção romântica, por sua vez, apresentou
também a fuga do localismo através de produções diversificadas que passaram a
evidenciar narrativas urbanas, sentimentais e de costumes, a luz de modelos
europeus.
À medida que a relação campo/cidade aflora, tem-se no conto sul-rio-
grandense uma modificação do tipo humano. O antes peão ou estancieiro é agora
um morador da cidade, que discute a sua classe social, não tem a terra a sua
disposição para subsistência e se submete a um patrão mais exigente. O homem,
nesse espaço, será visualizado numa relação problemática de perda e
despertencimento. Os pobres-diabos, imigrantes, o proletariado urbano e sua luta
pela sobrevivência e permanência são parte do painel humano das narrativas
seguintes.
Esse momento é evidenciado por Bittencourt como o quarto e último
regionalismo, o qual registra uma escrita de denúncia com relação à sociedade
campeira, narrando a proletarização do gaúcho. Se a anterior literatura gaúcha de
vertente regionalista caracterizara-se pela temática associada à terra, com a nova
narrativa as formas e as abordagens foram diversificadas e ampliadas, como
sinaliza Zilberman:
O Rio Grande do Sul, em processo de modernização e urbanização
paulatina, mas irreversível, assiste ao aparecimento de nova geração
de escritores, que atua sob condições diferentes: as cidades prosperam,
a instrução pública se expande, a literatura tem oportunidades
crescentes de difusão. Os temas se generalizam, rompendo-se o
monopólio do veio gauchesco. E o Regionalismo dispõe-se a
responder aos novos tempos. (ZILBERMAN, 1985, p. 31)
Os escritores sul-rio-grandenses, ao enveredarem para esta linha, passam a
refletir sobre a situação social, ideológica e econômica do povo, tanto que, seis
décadas depois, isso ainda continua prevalecendo na obra sul-rio-grandense. O
papel da literatura, agora é criar um valor essencial à história. E nesse âmbito,
como propõe Zilberman (1985, p. 35), não existe mais uma ligação/convivência
entre a produção e o universo de que se fala. O ser mítico, neste momento, assume
nova significação: ―manifesta a cisão do indivíduo, os conflitos que o dividem e
que não alcançam conciliação senão no mito‖.
46
2.2.3 Desenvolvimento histórico do conto regionalista: da fase transicional à
fase de renovação
Embora Bittencourt, perceptivamente, não julgue adequado estabelecer
uma periodização com relação ao conto gaúcho, distingue algumas fases em sua
evolução. A primeira, de prevalência do conto de viés regionalista, corresponde ao
que Guilhermino César chama de ―Fase de Ouro‖, e já foi enfocada, neste
trabalho, ao descrevermos as nuances do conto regionalista com relação aos
autores das primeiras décadas do século XX.
Especialmente a partir da década de 1930, porém, inúmeras
transformações nacionais produziriam efeitos no estado do Rio Grande do Sul.
Esse pano de fundo histórico desencadeou novas possibilidades temáticas,
discutindo os novos valores circundantes do universo gaúcho. A década de 1930
assinala, segundo Bittencourt (1999, p. 30), ―o decréscimo da participação do
conto na literatura gaúcha, após dois decênios de uma produção significativa do
gênero e suas variações. Essa hegemonia é substituída, nos anos 30, pelo
romance‖.
A nova configuração social, advinda do espaço representado pela cidade,
e, a emergência de assuntos apoiados no presente e em seus problemas, enfim, a
realidade de cunho urbano, fez com que novos escritores surgissem. Ao referir-se
à predominância do romance sobre o conto, Zilberman associa a emergência
romanesca no sul à que ocorre no panorama nacional:
O surto de romances na década de 30, no Sul, quando, nos anos
anteriores, dominara sobretudo o conto e suas variações (o caso, a
mancha, às vezes a crônica), não pode ser dissociado do fenômeno
nacional que coincide com a edição das primeiras obras de ficção de
Graciliano Ramos, Raquel de Queirós, Jorge Amado, José Lins do
Rego, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena, Marques Rebelo‖.
(ZILBERMAN, 1985, p. 31)
No entanto, ainda que tenha havido a ascensão do romance, notamos que o
conto não acompanhou o mesmo ritmo visualizado anteriormente, na poesia e na
ficção romanesca, uma vez que se mostrou praticamente insensível à renovação
modernista. Embora haja alguns contistas que, ao longo dos anos 30, 40 e 50, se
47
afastaram do modelo regionalista, criando obras de temática urbana, intimista ou
social, a leitura de suas produções revela a permanência do passadismo, através de
uma visão de mundo conservadora que se firmara na estética anterior. Inicia-se,
assim, uma fase intervalar no gênero conto que durou cerca de três décadas e se
caracterizou pela alternância do regionalismo com um principiante conto urbano.
Os contistas dessa fase são considerados por Bittencourt (1999) como escritores
de transição, ou seja, escritores que apresentam em suas criações tanto elementos
renovados quanto tradicionais.
Bittencourt (1999, p. 38) entende que Dyonélio Machado, ao lançar, em
1927, o livro Um pobre homem, é o autor mais antigo que se propôs a escrever a
partir dos padrões do século 19, denotando a influência simbolista da
modernidade literária ao descrever temperamentos e personalidades; revela,
contudo, traços da antiga tradição. Juntamente com Dyonélio Machado, Erico
Verissimo também integrou o grupo de autores de transição. Embora tenha sido
consagrado como romancista, foi com um livro de contos que iniciou sua vida
literária. Sua participação nos autores de transição deve-se principalmente ao fato
de que, ainda que seus contos fujam da temática regionalista, não mostram
nenhum traço de modernidade sinalizado pela Semana de 22.
A autora cita ainda o nome de Ernani Fornari, mais conhecido como poeta,
como sendo outro escritor de transição. Fornari escreveu o livro de contos A
guerra das fechaduras (1931), apresentando uma dicção atualizada em uma
paisagem urbana que revela o modo de viver citadino da capital gaúcha nos anos
30. No entanto, perduram os traços novecentistas, visualizados na produção de
Dyonélio, além de simbolismo na construção do enredo, de uma reflexão
filosófica, à moda naturalista (BITTENCOURT, 1999, p. 41).
Nesses autores, não prevalece o conto, mas o romance em Erico e
Dyonélio, e a poesia em Fornari. Diferente destes, Bittencourt (1999, p. 43) cita
Telmo Vergara como contista urbano dessa época, o qual construiu sua obra
baseado em histórias curtas, apresentando certa regularidade, sobretudo na década
de 1930, quando escreveu cinco livros de contos. Sobre Vergara, Bittencourt
discorre que:
A preferência pelo gênero e a configuração literária de seus textos
fazem dele um dos importantes precursores do conto contemporâneo
no Rio Grande do Sul, pois, em sua obra, é possível perceber, bem
48
mais frequentemente do que na dos autores anteriores, traços
modernizantes, tanto no trato da linguagem como na estrutura da
narrativa, identificando-o, assim, com um tipo de prosa que já se
praticava em alguns pontos do País, sob a inspiração reformista gerada
pela Semana de 22. (BITTENCOURT, 1999, p. 43)
Mesmo optando pela linha intimista, Vergara não deixou de se preocupar
também com o exterior, não só pelo espaço em que se movimentam as
personagens, como também pela fixação do espaço social, representado pela
precária e incipiente sociedade capitalista sulina. (BITTENCOURT, 1999, p. 44)
A obra de Cyro Martins – Campo fora (1978), mesmo que apresente
traços de transição (desaparecimento do confronto campo e cidade- abordagem da
marginalização e pobreza do homem do campo), ocupa-se, ainda, em retratar o
gaúcho apegado à terra e seu histórico de valentia.
Ainda cultivando o mesmo propósito regionalista, citamos Darcy
Azambuja, com seus contos gauchescos reunidos em Coxilhas, lançados em
1954, que seguem a mesma linhagem regionalista iniciada em No galpão, em
1925. Assim como Martins, Azambuja também mantém vivos os valores da
ideologia regionalista anterior, colocando, no entanto, no mesmo plano, as
transformações que vão denunciar não só o mito do gaúcho como a degradação da
sociedade campeira.
Nessa fase de transição, encontramos também, o nome de Ivan Pedro
Martins, que escreveu em 1955, o livro de contos Do campo e da cidade, o qual,
como o título sugere, apresenta uma síntese da vida na sociedade rio-grandense.
Seus contos se inscrevem tanto na tradição de ruptura, quanto no próprio
regionalismo. O gaúcho, nesses contos campeiros, está empobrecido, porém ganha
uma postura mais crítica sobre as desigualdades sociais associadas à relação entre
patrão e peão. Assim configurados, os contos acabam por desmitificar a chamada
democracia rural tão fortemente expressa pela antiga tradição.
A antiga visão nostálgica que embasou o regionalismo é substituída, em
sua ficção, pela descrença e pela falta de perspectivas no futuro. Bittencourt
(1999, p. 46) comenta que: ―a solução para o gaúcho é partir, abandonar
definitivamente a sua terra, ou então lutar por outro tipo de sociedade, sem
diferenças‖. A partir disso, Ivan Pedro Martins inverte a posição do gaúcho diante
de seu patrão, ao qual sempre foi aliado na defesa dos ideais comuns; agora,
representará a luta de classes. Todo esse conteúdo é trabalhado através de uma
49
linguagem bastante coloquial, despida dos costumeiros ornamentos. Ainda assim,
Bittencourt (1999, p. 47) registra que se fossem analisados outros aspectos de
cunho literário, os contos de Ivan seriam considerados bastante tradicionais, pois
segundo a autora ―ele emprega com frequência os quadros descritivos, à moda
real-naturalista, para retratar o ambiente de pobreza e miserabilidade das
personagens [...]‖ ―da mesma forma, utiliza com certa regularidade os símiles e as
metáforas para expressar os sentimentos pessoais [...]‖
Barbosa Lessa, em 1958, também vai reproduzir em seus contos
gauchescos, reunidos na obra intitulada O boi das aspas de ouro, o culto aos
valores passados. Expressa, ainda, a concepção de uma sociedade fechada, com
valores próprios, sem deixar de apontar para a transformação da sociedade
campeira, para o empobrecimento do gaúcho, através de uma linguagem que
lembra a de Simões Lopes - permeada de metáforas e de comparações com o meio
circundante.
Essa fase intervalar se caracterizou pela coexistência de obras em que
perdura, na vertente regionalista, a presença da velha tradição, à qual agora se
propõem algumas transformações, tanto temáticas quanto de linguagem, o que
imprime certo ar de modernidade. A partir da abordagem temática dos escritores
de transição, percebe-se que não houve, no conto gaúcho, uma fase modernista
que coincidisse com o que se fazia nos demais gêneros da literatura gaúcha -
poesia e romance.
Para Bittencourt (1999, p. 21) ―a verdadeira renovação do conto rio-
grandense só vai ocorrer a partir da década de 1960, quando se dá, de fato, a sua
atualização em termos de linguagem e de temática‖. Surgiu, na década de 1960,
um novo tipo de narrativa curta no sul do País, com temas e formas inovadoras,
dicção coloquial e paisagem urbana. Este é o momento que assinala uma
sequência de transformações nos âmbitos político, social, econômico e cultural,
que além de modificarem a sociedade, acabaram por determinar o aparecimento
de uma nova fase na contística do estado do Rio Grande do Sul. Tal fato, porém,
não pode ser visto isoladamente já que, também em nível nacional, a situação do
conto se transformara substancialmente na segunda metade do século.
A partir daí, tanto cresce o número de autores e de livros publicados, como
desponta uma crítica especializada no gênero. Os críticos Herman Lima, Edgar
Cavalheiro, Afrânio Coutinho vão incluir em suas análises a história do conto
50
brasileiro, acentuando a sua significação na formação do quadro literário nacional.
Faz-se interessante pontuar que a explosão do conto converge com a instauração
de uma nova ordem política. Frente à ditadura, a intelectualidade, em sua grande
maioria, manifestou seu repúdio ao acirramento da liberdade individual, visando
combater, para tanto, o regime militar.
A produção deste tempo adquiriu, segundo Bittencourt (1999, p. 60), ―um
caráter peculiar de conscientização e de denúncia‖. Os contistas dessa fase, além
de apresentarem essa postura crítica, buscaram formas de expressão singulares, a
fim de conferirem uma autenticidade fundada na cultura nacional. Mesmo diante
das influências europeias, o conto brasileiro procurava fixar sua identidade,
procurando, desde a linguagem, demonstrar uma expressão genuína, com um
vocabulário mais próximo da fala coloquial. Segundo Bittencourt (1999, p. 61)
Graciliano Ramos, teve um papel importante, pois inspirou muitos contistas
contemporâneos com seu ―coloquialismo e simplicidade‖.
Ao lado de Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Murilo Rubião e do
próprio Mário de Andrade, que já haviam garantido seus espaços na contística
nacional, estão, segundo Bittencourt: Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan,
José J. Veiga, Rubem Fonseca, Autran Dourado, Luiz Vilela, Samuel Rawet e
João Antonio, que vão dar continuidade e, também, propor novos modos de
representação do real. Resumidamente, a temática assumida por esses autores
percorre: o veio psicológico em Lygia Fagundes Telles e Samuel Rawet; o
realismo cruel e trágico de Dalton Trevisan ao retratar o homem contemporâneo; a
vertente do fantástico de José J. Veiga; a violência através de uma narrativa
brutalista de Rubem Fonseca; o tempo – tanto o que passa inexoravelmente,
quanto o que permanece vivo na produção limiar entre o romance e o conto de
Autran Dourado; a infância retratada com simplicidade por Luiz Vilela; e, por
último, o trânsito entre o documental e o ficcional a partir de uma ambientação
urbana e marginal muito próxima de Rubem Fonseca, de João Antonio.
No Rio Grande do Sul, a geração de 1970 compreende, na perspectiva de
Bittencourt (1999, p. 70) ―contistas que iniciaram de fato a sua carreira nessa
década, mas é também formada por autores que já haviam publicado nos anos 60,
seja em obras individuais, seja em antologias coletivas‖. Entre os autores
representativos desta fase estão Moacyr Scliar, Sérgio Faraco, Caio Fernando
Abreu. Nessa época,
51
A narrativa curta gaúcha adquiriu, com isso, uma nova face, seguindo
tendências diferenciadas e apresentando modos de composição
inusitados, enriquecendo sobremodo a nossa produção literária. O
contexto histórico, político e cultural havia igualmente colaborado
para a transformação do perfil do escritor gaúcho, produzindo outros
tipos de preocupações e problemas que redundaram naturalmente em
assuntos literários. (BITTENCOURT, 1999, p. 70-71)
Paulatinamente, a narrativa urbana passou a ser marca dominante do conto
na década de 1970. Os contos dos anos 70 seguiram o rumo das produções
evidenciadas em outros pontos do país e, portanto, se configuram mediante uma
proposta atualizada e moderna: ―A brevidade, a condensação e a instantaneidade‖
são, na ótica de Bittencourt (1999, p. 72), suas características mais evidentes.
Nessa década, a autora percebe quatro grandes vertentes, uma das quais
corresponde a um regionalismo renovado.
Uma primeira vertente, a vertente social, caracterizou-se pela análise da
sociedade e suas relações sendo considerada como a mais extensa e variada. As
condições históricas, culturais, bem como as transformações sociais evidenciadas
até a implantação do regime ditatorial originaram uma representação que variou
entre a essencialmente realista, verossímil e a expressão metafórica, mais tênue
com relação à realidade narrada. Os autores deste tempo são: Josué Guimarães,
Moacyr Scliar, Rubem Mauro Machado, Tânia Faillace, Caio Fernando Abreu,
Flavio Moreira da Costa, Laury Maciel e Flávio Aguiar.
A vertente existencial/intimista inclui textos com caráter individual, que
preconizam a relação do indivíduo consigo e com o mundo que o cerca. ―São
narrativas que enfatizam a perspectiva subjetiva, desnudando os mistérios que se
escondem no interior do ser humano, revelando seus desejos ocultos ou até
mesmo percorrendo os subterrâneos nebulosos, às vezes enigmáticos e
perturbados, da sua mente‖. (BITTENCOURT, 1999, p. 92). No Brasil, Clarice
Lispector é a pioneira desta vertente, entre os nomes destacados deste período
estão: Caio Fernando Abreu e Tânia Faillace que já foram mencionados na
vertente social e, Carlos Carvalho, Ieda Inda e João Gilberto Noll.
A vertente memorialista ou da reminiscência infantil contempla, de um
lado histórias ambientadas na infância – relatadas por um adulto que revive seu
passado e, de outro, contado por uma criança que vai relatar os fatos como os
52
percebe. A diferença existente entre ambas é o tipo de narrador. Na primeira o
narrador recorre à memória, evocando uma lembrança, na segunda temos um
narrador que agrega a experiência ao seu eu e vivência passados através de um
ângulo infantil. Os contos desta vertente temática referem-se, basicamente, às
experiências traumáticas, sem deixar de tratar também dos costumes de uma
geração. Tem como principais contistas: Caio Fernando Abreu, Carlos Carvalho,
Tânia Faillace, Moacyr Scliar, Sérgio Faraco, Flávio Aguiar e Rubem Mauro
Machado.
Ainda que sejam raros os autores que na década de 1970 trabalham na
linha regionalista, estes, quando o fazem, partem para uma abordagem renovada,
pois os valores preconizados antigamente estão frágeis, tanto na imagem do
gaúcho, quanto na valorização da campanha enquanto espaço sagrado. No grupo
de contistas dos anos 70, as narrativas regionalistas são encontradas apenas em
Josué Guimarães e Sérgio Faraco; Tânia Faillace, em seu segundo livro, intitulado
Tradição, família e outras histórias, apresenta dois contos ambientados no
campo, porém localizados geograficamente no nordeste brasileiro.
Depois, Josué Guimarães, em suas obras Os ladrões (1970) e O cavalo
cego (1979), apresenta uma temática regionalista, porém sua linguagem, ainda que
coloquial, não faz uso de termos campeiros; o narrador figura apenas enquanto
observador ou interlocutor, pois nota-se o distanciamento do mesmo com relação
ao universo representado. Ainda, em Os ladrões, uma morte considerada inglória
para a gauchesca (inglória por não conferir um caráter honroso ao gaúcho) é
narrada. O conto vai revelar, ainda, as desigualdades que imperavam nas tropas
gaúchas, desfazendo, portanto, a ideia da democracia rural defendida antigamente.
Segundo Bittencourt:
Fica evidente a preocupação em focalizar a decadência das oligarquias
rurais, com seus desmandos e autoritarismo. Desmistificando as
qualidades identificadas com o gaúcho tradicional, como a valentia, a
honestidade e a dignidade, o autor desfaz alguns mitos da gauchesca e
mostra os estertores de uma classe que deteve o poder ao longo da
maior parte da história do Rio Grande do Sul, como já havia feito
Erico Verissimo em seus romances. (BITTENCOURT, 1999, p. 127)
Enquanto Josué Guimarães centraliza seu olhar nas classes dirigentes,
Sérgio Faraco ocupa-se dos menos favorecidos, dos empobrecidos mantendo,
contudo, a altivez em seus personagens que buscam preservar o seu mundo das
53
influências alheias. Os contos focalizam as relações fronteiriças entre o Rio
Grande do Sul e a Argentina, portanto suas produções revelam a invasão de
estrangeiros no espaço rural. Bittencourt considera que Faraco aproxima-se de
Simões Lopes ao determinar o grupo dos de fora e dos de dentro. (1999, p. 127) A
campanha é um mundo decadente vivida apenas na esfera da lembrança que
desfaz o caráter glorioso expresso no regionalismo rio-grandense de outrora.
O regionalismo neste período passa a ser evidenciado, portanto, sem o
culto dos valores da nobreza e valentia da figura do gaúcho-herói e sem a
mitificação do espaço – a campanha, conforme é sinalizado por Gilda Bittencourt:
O herói de agora já não é mais aquela personagem altiva, associada ao
cavalo e conhecida como "o centauro dos pampas", mas o homem
empobrecido, proletarizado, que vive numa nova ordem econômica
que o expulsou do campo obrigando-o a procurar modos alternativos
de sobrevivência, nem sempre lícitos e honrosos, que se apresentam
como a única solução para continuar vivo. O sentimento que domina
esse gaúcho de agora é o da desterritorialização, já que perdeu todas as
suas ligações e referenciais: com a terra, com a cultura, com os
costumes, com o passado guerreiro. (BITTENCOURT, 1999, p. 123)
Há uma visão nostálgica de um tempo distante – o passado ficou para trás,
pois ele sabe que esse foi definitivamente suplantado pelo avanço do progresso
que introduziu novos hábitos e modificou completamente a vida campeira. A
impossibilidade de associar a terra com a cultura aparece como conflito
vivenciado pelas personagens. Permanece, nesse novo regionalismo do conto sul-
rio-grandense, segundo Bittencourt (1999, p. 123), ―a crítica às oligarquias rurais,
mostrando que a sua decadência e seu gradativo desaparecimento devem-se, em
grande parte, à desagregação moral e à degeneração dos costumes de seus
dirigentes, os antigos caudilhos‖.
O quadro literário dos anos 70 é bastante peculiar, pois nele são
contemplados tanto os elementos de tradição e de ruptura como manifestações
heterogêneas que incluem o romantismo, regionalismo, biografismo e
memorialismo. Em uma comparação histórica entre a geração de contistas dos
anos 20 com a geração dos anos 70, Bittencourt (1999, p. 229) observa profundas
diferenças. Para ela, na primeira, havia, entre a classe letrada e a estrutura de
poder, uma ligação intrínseca que obstava um posicionamento crítico verdadeiro,
juntamente com ―uma intenção implícita de reafirmar os valores regionais como
54
forma de impor-se perante a União‖. Ou seja, ―a sua literatura privilegiava a
diferença para afirmar sua identidade diante da nação‖.
Ao contrário, na geração de 70, o que impera é um sentimento de
integração, pois, como afirma Bittencourt (p. 229), ―tanto os escritores se
afinavam com o novo padrão do intelectual brasileiro, ligado ao pensamento de
esquerda, como também a sua produção literária respondia às mesmas
inquietações‖. O conto deste tempo não revela nenhuma aproximação com o
modo regional de contar histórias, nem mesmo privilegia conteúdos locais.
Bittencourt considera que os contistas dos anos 70 tiveram êxito em suas
participações na literatura rio-grandense:
[...] revitalizaram um gênero que sempre teve um lugar relevante na
sua história, consolidando a sua importância e o seu papel e repetindo
fenômeno semelhante acontecido na década de 1920, período em que
o conto foi a forma literária mais praticada pelos nossos escritores [..]
A colaboração dos autores gaúchos fertilizou ainda mais a vitalidade
do conto brasileiro nos duros anos 70, que, expressando-se através das
―frestas‖, buscava consolidar uma manifestação literária de amplitude
nacional (BITTENCOURT, 1999, p. 242).
O conto pós-modernista vem ocupando um espaço significativo na
literatura rio-grandense. Integrantes de uma nova geração são, por exemplo, Jane
Tutikian e Tina Schumacher. Vários autores dedicaram-se, predominantemente,
ao gênero, como é o caso de Sérgio Faraco e Aldyr Garcia Schlee; ambos
cultivam, dentre outros, o viés regionalista. Por outro lado, nas últimas décadas,
em razão do florescimento das tradições gaúchas, alguns autores, como Antônio
Augusto Fagundes, voltaram-se para o conto galponeiro, apresentando
peculiaridades observadas na linguagem gauchesca, na temática ligada às lidas
campeiras, às tradições e aos costumes, tendo como personagem o peão, o
fazendeiro.
Como já assinalado na introdução, com o propósito de demonstrar a
persistência da vertente regional no conto sul-rio-grandense, escolhemos seis
autores e, de cada um deles, seis contos, os quais serão alvo de análise no capítulo
três. Nossa leitura será pautada com vistas a identificar a representação da
paisagem campeira, os papeis sociais, a relação entre patrão e peão, o meio rural e
o urbano, que fornecem traços distintivos à representação ficcional da identidade
regional gaúcha. Por ora, contudo, interessa-nos demonstrar, tal como fizemos
55
com o conto, o percurso do desenvolvimento histórico da canção regionalista no
Rio Grande do Sul.
2.3 A canção regionalista gaúcha
Expusemos, até aqui, como o conto gaúcho inscreveu o imaginário da
mitificação de um tipo humano – o gaúcho heroicizado – e de seu território. As
sinalizações do passado, do antigo imaginário do campo, foram registradas, como
já observamos, mais intensamente até a mudança da temática da década de 30;
depois da opção pela vida na cidade, percebemos que os rastros da cultura, do
passado de glória e motivos gaúchos persistem, ainda, no conto, mas com muito
menor intensidade. No entanto, esse ideário vai sendo recuperado pela memória
coletiva através de outras instâncias artísticas e gêneros textuais. Lançaremos
nosso olhar para a continuidade e ou persistência desse imaginário mítico na
canção regionalista. Apresentamos, aqui, um panorama do desenvolvimento
histórico da canção gaúcha, suas vertentes e temáticas. Inicialmente, buscaremos
definir o conceito de canção enquanto gênero.
O gênero canção apresenta uma estrutura híbrida, articulando melodia e
letra para a construção de sentido. Essa é, de fato, sua característica primeira. Para
Tatit (2008), o que faz uma música ser considerada uma canção é a fala por trás da
melodia: ―Tanto a letra quanto a melodia devem passar a mesma mensagem, como
na época em que surgiram as primeiras canções, em que pareciam recados:
amorosos, uma bronca ou até uma exaltação‖. Da mesma forma, Tatit (2008)
demonstra em seu texto as relações inerentes entre a música e a poesia, pois em
sua acepção ―não adianta fazer poesia, porque, se ela não puder ser dita, não vira
canção. E você pode ter também uma música extremamente elaborada, mas se ela
não suscitar uma letra, não tiver entoação, também não é canção‖.
Wisnik, em seu livro Sem receitas – Ensaios e canções, de 2004, traz
excelente contribuição para a discussão a que ora nos propomos, pois, como
professor de literatura, ensaísta e músico, afirma que a canção ajudou resolver o
dilema entre música e literatura, no momento em que ela entrelaçou essas duas
artes em suas produções. Segundo esse autor, canção é ao mesmo tempo música e
56
poesia. Assim sendo, podemos nos referir à canção como poesia cantada, ao
mesmo tempo em que podemos perceber a melodia em um texto. Dada a nossa
formação, e os objetivos desta pesquisa, analisaremos a canção enquanto poesia.
Morrigi e Bonoto (2004) ajudam-nos a pensar a canção como uma
mensagem portadora de significados que orienta, em um determinado momento
histórico, o grupo social ao qual ela é destinada. Do mesmo modo, Cyntrão
(2006) demonstra que, através da canção, são revelados os sujeitos de cada tempo,
identificando as relações sociais permeadas pela ideologia do discurso:
O cancionista produz um discurso que é sempre a dialética das práxis
sociais, na confluência de suas inspirações subjetivas. Buscar nas
letras poéticas o ser social e suas reflexões existenciais significa
identificar as estruturas de poder sinalizadas em sua semântica, já que,
se a palavra é o fenômeno ideológico por excelência, os signos
emergem do processo de interação entre uma consciência individual e
outra, e o desvelamento da estrutura sígnica do objeto poético expõe a
verdade (real ou imaginária) do sujeito e do grupo (CYNTRÃO 2006,
p. 11).
Entendida como uma forma de cultura que amplia a compreensão da
atualidade no processo de significação e ressignificação da nacionalidade, a
canção atua como um elo entre a construção da representação social e cultural.
Cyntrão (2006, p. 10) sinaliza que o artista compositor que trabalha com a letra e a
melodia teve e tem papel fundamental nos processos de construção cultural, já que
a canção ocupou legitimamente um espaço muito amplo, pois se tornou um
veículo artístico por excelência da expressão do imaginário popular.
A canção é filha do seu tempo, carrega em si uma composição que se afina
ao grupo social e ao seu tempo histórico, retratando sentimentos, evocando
memórias, valores e anseios daqueles que a produziram. É justamente a
possibilidade de revelar o tempo histórico e cultural que nos anima ao estudo da
canção como texto literário para esse estudo, pois entendemos que a canção
constitui-se em um vasto material na qual se podem debruçar leituras que
possibilitem apreender as diversidades formadoras da cultura à qual pertencemos.
Pesavento (1985), ao mencionar a respeito da canção enquanto construção
cultural, afirma que a presentificação do passado não nos remete apenas para o
fato evocado, mas se instala no tempo e no espaço, interligando palavras e
imagens, correlacionando sentidos.
57
Em O século da canção, Luiz Tatit estuda a canção popular brasileira
produzida no século XX. O autor ressalta a relevância e qualidade da canção
produzida no Brasil nos últimos cem anos:
Se o século XX tivesse proporcionado ao Brasil apenas a configuração
de sua canção popular poderia talvez ser criticado por sovinice, mas
nunca por mediocridade. Os cem anos foram suficientes para a
criação, consolidação e disseminação de uma prática artística que,
além de construir a identidade sonora do país, se pôs em sintonia com
a tendência mundial de traduzir os conteúdos humanos relevantes em
pequenas peças formadas de melodia e letra‖ (TATIT, 2008, p. 11).
Conforme Tatit registra, no Brasil a canção nasceu na década de 1920,
com a invenção do gravador. Até então, músicas eram muito improvisadas, e não
havia nada fixo para que todos decorassem e cantassem. Era até frequente os
compositores não decorarem a própria composição, apenas o refrão, o que Tatit
chama de ―gravador natural‖, por ser repetido muitas vezes.
No decorrer do século XX, a canção popular brasileira foi se tornando
uma das principais manifestações artísticas do país. O avanço tecnológico
possibilitou primeiro a gravação e, depois com a invasão do rádio permitiu, ainda,
a difusão para o público ouvinte. Os anos 30 consolidaram o samba como o
principal gênero musical brasileiro, entre a marchinha e a seresta. Tatit (2008)
afirma que essa importância dada ao samba privilegia sua flexibilidade enquanto
gênero possível de ser remodelado e, portanto, utilizado desde o carnaval até
momentos românticos.
A bossa nova, por sua vez, considerada, segundo Tatit (2008) como a
herdeira direta do samba, iniciou um processo de triagem, visando a eliminar os
excessos perceptíveis tanto na melodia, quanto na letra. Diferentemente do que a
bossa nova ofereceu à canção brasileira, o tropicalismo apresentou a ―mistura‖
assimilando numerosas dicções, passando pelos gêneros internacionais, pelo
folclore, pelo mundo pop, enfim o tropicalismo se relacionou com todas as
influencias que a música brasileira recebeu.
A heterogeneidade de gêneros e estilos marcou a última década do século
da canção brasileira. Nesse período, também ocorreu a predominância da música
cantada em português, o que segundo Tatit (2008), contrariou o que havia sido
pensado em termos de mercado, pois mesmo diante do avanço da produção de
58
consumo norte-americana a canção, em língua portuguesa, continuou a se
perpetuar no cenário da música.
Voltando o olhar para o recorte da canção brasileira que nos propomos a
investigar de modo particular, passamos a apresentar o percurso histórico da
canção gaúcha através de suas fases, e principais compositores. Consideraremos,
que a canção, a partir da utilização de imagens simbólicas já cristalizadas no
imaginário social, resgata e atualiza o mito, recuperando os antigos valores
preconizados na sociedade sul-rio-grandense, os quais o gaúcho canta e glorifica
ainda nos dias atuais.
Antes de nos determos, especificamente, na historiografia da canção
gaúcha, faz-se importante mencionar que esse é um estudo ainda novo, se
observados os trabalhos acadêmicos que foram organizados com vistas a estudar a
história da canção; da mesma forma consideramos importante discutir, em um
primeiro momento, a terminologia atribuída à canção gaúcha.
Sabemos que já foram utilizadas várias nomenclaturas com referência à
música produzida no Rio Grande do Sul. Fonseca (1998) denomina canção gaúcha
de música popular rio-grandense; Ratner (2010) refere-se a essa produção como
música típica gaúcha, mas, no decorrer do texto, usa a nomenclatura música
regionalista gaúcha. Dentre as nomenclaturas mais utilizadas, a mais significativa
foi ―música regionalista gaúcha‖, porém o uso dessa definição foi questionado
quando, em 1970, João Carlos D‘Ávila Paixão Côrtes e Luiz Carlos Barbosa
Lessa propuseram dividir o gênero musical gaúcho em três subgêneros:
tradicionalismo, nativismo e regionalismo.
Cougo (2012), em estudo sobre a história da música gaúcha, afirma que a
expressão ―música gauchesca‖ sugere maior amplitude conceitual, por apontar
para uma trajetória sempre ascendente, que apresentaria, portanto, grande poder
de mobilização, tanto no sentido de resgate das tradições mais ancestrais, como no
de mesclar as tradições aos diversos elementos que vão se agregando à vida
cultural dos gaúchos. Assim, Cougo utiliza o termo ―música gauchesca‖ com o
intuito de:
[...] descrever a produção musical criada e/ou inspirada a partir dos
principais fatores identitários do Rio Grande do Sul, especificamente
aqueles ligados ao contexto rural/agropastoril que é, em termos
rítmico-harmônicos, fortemente influenciado pelo contato direto com
a cultura dos países platinos (Argentina e Uruguai) e pela imigração
59
ítalo-germânica – além do estreito vínculo com as culturas indígena,
africana e portuguesa‖. (COUGO, 2012, p. 3)
Em nosso trabalho, utilizaremos a nomenclatura canção regionalista
gaúcha, por entendermos que, através dessa, incluiremos as manifestações
musicais que ocorreram em solo gaúcho, tanto pelo viés tradicionalista, quanto
pelo nativista. Essa opção terminológica ainda se justifica por considerarmos que
ambos os movimentos traduzem as peculiaridades locais, imbuídos pela recriação
poética da linguagem, da ambientação e dos tipos humanos, expressando traços
históricos que caracterizaram o regionalismo sulino.
As matrizes culturais nas quais se encontram a fundamentação da música
produzida em chão gaúcho, segundo Ratner (2010), foram sendo articuladas
pouco a pouco, mediante as fortes influências étnicas e culturais que se
assentaram na região e incrementadas, também, pela influência renovadora do
imigrante e migrante. Entre as influências culturais que estão diretamente
relacionadas com a produção musical gaúcha, Ratner salienta inicialmente o
elemento ibérico:
Em que pese a origem preponderante da população gaúcha seja
portuguesa, há, não apenas em face da proximidade geográfica, mas
também em torno da própria história da consolidação da fronteira sul
do país, um longo processo de mútuos intercâmbios com uruguaios e
argentinos, populações que correspondem a dois países dos mais
importantes da América espanhola. Neste ponto, é relevante destacar
que, em que pese a nossa historiografia geralmente acentue os
portugueses e os espanhóis como duas nacionalidades díspares, deve-
se ter em mente que Portugal, embora já conte com séculos de
independência como entidade estatal autônoma, de um modo geral
sempre esteve muito intimamente vinculada à vizinha Espanha,
ecoando, em significativa medida, o período em que constava como
apenas uma de suas regiões. (RATNER, 2010, p. 1).
Considerando o momento de ocupação ibérica, podemos estabelecer vários
pontos de contato identitário entre a cultura portuguesa e a hispânica, refletindo
certo parentesco entre as formas musicais vindas destes países. Por esse prisma, as
formas musicais advindas de Portugal aproximam-se das formas espanholas, as
quais forneceram subsídios à música típica da região do Prata, inclusive em suas
especificidades.
60
Em sua exposição sobre as matrizes que originaram a música típica
gaúcha, o autor faz menção, ainda, ao elemento oriental, que perpassa a produção
musical da região europeia, advindo, especialmente, das influências árabes,
judaicas, góticas, ciganas, o que representa realmente um diferencial significativo
da música produzida naquela península europeia em relação a outras formas
musicais que se consolidaram no velho mundo. Ratner observa sua influência na
configuração da figura do gaúcho:
A própria figura mítica do ―gaúcho‖ brasileiro, enquanto o elemento
que, montado a cavalo, explora a atividade pastoril/pecuária, foi muito
influenciada, na sua configuração regional, pelas práticas e costumes
dos seus equivalentes uruguaios e argentinos, o que vem refletir
também, naturalmente, na música feita no RS, que tem grande
influência da produção musical daquela região (RATNER, 2010, p. 2).
Claro, é importante mencionar que a figura mítica do gaúcho brasileiro
está atrelada e relacionada também aos tropeiros peões, cavaleiros, vaqueiros do
resto do país, os quais, como já mencionamos em outra oportunidade em nosso
trabalho, tiveram sua importância devido a se constituírem em elos de
comunicação com o centro do país. Assim, a cultura gaúcha articulou e recebeu
diversas influências, as quais também estão expressas em sua forma de fazer
canção.
O jornalista Juarez Fonseca (1998) busca, em seu artigo intitulado ―Dos
gaudérios aos punks‖, registrar a história da música popular rio-grandense.
Segundo Fonseca (1998, p. 180), até fins do século passado a manifestação
musical no Rio Grande do Sul restringia-se praticamente à música de dança: ―nas
cidades reproduziam-se as danças europeias, como a valsa, a polca, a mazurca, o
schottish. No campo havia primeiro a chula, nascida em meados do século 18 em
meio as tropeadas [...] e logo, a música ‗fandagueira‘‖.
O período que envolve a passagem do século 19 para o século 20 viu o Rio
Grande do Sul importar música europeia. Embora a música popular brasileira já
estivesse consolidando suas formas a partir das gravações e das primeiras
emissoras de rádio o Rio Grande vinha assumindo a música dos imigrantes
italianos e alemães. A música negra passou praticamente despercebida em solo
gaúcho comparada a sua atuação em centros como Bahia e Rio de Janeiro. O
motivo disto, segundo Fonseca seria:
61
As vastidões das estâncias pecuárias ‗empregavam‘ poucos escravos,
ao contrário das plantações de café e cana-de-açúcar em São Paulo e
no Nordeste. No Rio Grande, os negros só se reuniram como
coletividade em torno das (poucas) charqueadas (FONSECA, 1998, p.
181).
Se seguirmos a historiografia da música regionalista gaúcha sugerida por
Cougo (2012), evidenciamos três fases fundamentais: a primeira, denominada por
ele de ―Inventando as tradições‖, à qual corresponde o período entre os anos
1948-1971; a segunda fase, a de ebulição nativista, que compreende os anos 1971-
1980 e, a terceira, a que o autor se refere como ―Memórias, produção acadêmica e
revisionismo‖, dos anos 1980 em diante.
2.3.1. O resgate das tradições: o movimento tradicionalista
A participação nas constantes lutas mantidas para a demarcação e
manutenção de suas fronteiras, o esforço para ocupação do território e, em
especial, para a solução dos limites fronteiriços, a liberdade de que gozavam os
habitantes deste extremo Sul ao trotear pelos infindos horizontes de seus campos,
as lides do dia-a-dia, as conversas em torno da roda de mate são fatores que,
segundo Mariange (1976, apud Cirne, 2011, p. 265), contribuíram para o
fortalecimento do sentimento de apego ao torrão natal por parte do gaúcho.
Foi justamente esse apego à querência um importante fator para o
surgimento do tradicionalismo gaúcho, para o qual colaboraram entidades que
antecederam o movimento tradicionalista organizado, surgido nos anos 1940. A
primeira entidade registrada foi a Sociedade Sul-riograndense, fundada pelo
professor e historiador Antônio Álvaro Pereira Coruja em 1851. Organizada para
reunir os gaúchos saudosos da querência, para Savaris (2008, apud Cirne, 2011, p.
266), ―fazia reviver, na capital do Império, os costumes típicos do Rio Grande‖.
Surge depois, em 1868, a Sociedade Partenon Literário, sobre a qual já estudamos
no capítulo referente ao conto, e que deu às produções regionalistas personalidade
e força: as primeiras obras literárias de cunho regional partiram dos integrantes
dessa sociedade.
Mais tarde, em 1881, fundou-se a agremiação 20 de Setembro, com o
intuito de exaltar a história dos heróis farrapos. Em 1898, João Cezimbra Jacques
62
fundou, em Porto Alegre, o Grêmio Gaúcho, o qual promoveu e se destacou pelas
festividades gaudérias – desfiles, conferências. Cirne (2011, p. 266-267) considera
essa última entidade como a precursora do culto das tradições gaúchas: ―na época
reconhecida e prestigiada por altas autoridades do estado, foi a pedra fundamental
do que mais tarde seria identificado como ―Tradicionalismo gaúcho‖.
Essas entidades mencionadas marcaram uma época, fazendo toda a
diferença no culto às tradições, pois auxiliaram na perpetuação e, também na
constituição de uma representação campeira na cultura urbana. Além dessas,
Cirne (2011) descreve a participação de outros clubes, também de fundamental
importância, que antecederam a fundação do então ―35‖ Centro de Tradições
Gaúchas (CTG). Entre eles estão: União Gaúcha, de Pelotas, Centro Gaúcho, de
Bagé, Grêmio Gaúcho, de Santa Maria, Sociedade Gaúcha Lomba-rio-grandense,
de Novo Hamburgo e Clube Farroupilha, de Ijuí.
Os primeiros registros fonográficos brasileiros só apareceram a partir de
1911, quando os imigrantes Theodoro Hartlieb e Savério Leonetti decidem
investir no mercado de discos, montando as companhias gravadoras Casa Hartlieb
e Casa A Eléctrica, ambas em Porto Alegre. Segundo ele, ―Juntas, estima-se que
estas empresas tenham lançado cerca de mil registros, dentre os quais estão os
xotes: Pisou-me no poncho e Está de tirar lixiguana, gravados, em 1913, por
Lúcio de Souza, em solo de acordeom‖. (COUGO, 2012, p. 5). Essas podem ter
sido as primeiras gravações da ―música gauchesca‖.
A nova conjuntura econômica do final da Primeira Guerra Mundial levou
ao fechamento da Casa A Eléctrica em 1924, momento em que a Europa voltou a
produzir seus próprios discos. A incipiente ―música gauchesca‖ passou, então, a
ocupar um espaço marginal nos anos 20, sendo considerada de baixa qualidade e
rotulada de grosseira, carregada, muitas vezes, por um tom humorístico que
ajudava a causar rejeição pelas classes letradas do meio urbano.
Este quadro só mudou com o aparecimento da rádio, que atuou de modo
significativo na difusão do gênero regional. A primeira estação de rádio de Porto
Alegre foi a Rádio Sociedade Rio-Grandense fundada em 1924; a segunda foi a
Rádio Sociedade Gaúcha, fundada em 1927; a terceira foi a Rádio Difusora
Portoalegrense, fundada em 1934, e a quarta a Rádio Farroupilha. Esta última foi,
segundo o memorial de Landell de Moura, organizada e fundada por Flores da
Cunha, Luiz e Antônio, filhos do então Governador do Estado, General Flores da
63
Cunha e Arnaldo Balvê, que assumiu a direção da Rádio Farroupilha e, desde essa
época, foi um dos mais destacados radiodifusores do Sul do Brasil.
O período que envolve os anos 1930 evidencia, em um primeiro momento,
o afastamento da velha classe dominante diante da ascensão de Getúlio Vargas e,
junto a isso, registra-se a perda da força do tradicionalismo incipiente associado às
entidades anteriormente citadas; até o final da Segunda Guerra Mundial, o Rio
Grande do Sul vivenciou esse afastamento das raízes e culto tradicionalistas.
Por esse motivo, o final da década de 1940 é marcado pela ameaça dos
modismos estrangeiros à cultura rio-grandense. Nesse período, quase ninguém
pensava, muito menos cultuava as tradições. Segundo Cirne (2011, p. 267),
―Vestir-se como campeiro e andar na cidade era motivo de gozação. Os veículos
de comunicação de massa saturavam-se de tanto estrangeirismo‖.
A ordem geral dos maiores centros do País, irradiadores da ―moda‖, era
imitar o que vinha de além-mar ou seguir os moldes dos EUA, isso no que tange
ao cinema, disco, literatura e revistas. Desta época, existe apenas o registro da
Brigada Militar no que diz respeito às manifestações gaúchas que reverenciavam a
figura de Bento Gonçalves junto ao seu monumento no dia 20 de setembro.
Para Cirne (2011, p. 267), nessa época o próprio povo gaúcho ignora seu
patrimônio histórico cultural. No entanto, com o intuito de acender o amor à
Pátria e o culto aos heróis do passado, buscou-se incentivar a juventude através da
reorganização do tradicionalismo. A primeira atividade com esse propósito foi
organizada por estudantes do Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, os
quais, liderados por João Carlos D‘Ávila Paixão Côrtes, fundaram o
Departamento de Tradições Gaúchas, movimento estudantil de diversas camadas
sociais e segmentos étnicos. Estes enviaram um comunicado à imprensa, cujo
primeiro parágrafo dizia:
O Grêmio Estudantil Júlio de Castilhos, sentindo a necessidade de
perpetuação das tradições gaúchas, fundou, aliando aos seus já
numerosos departamentos, o das Tradiçoes Gaúchas, procurando
assim preservar este legado imenso dos nossos antepassados,
constituído do amor à liberdade, grandeza de convicções representadas
pelo sentimento de igualdade e humanidade (CÔRTES, apud CIRNE,
1994, p. 43).
O objetivo do Departamento era encontrar um caminho para resgatar os
traços regionais, buscando ressaltar e renovar a identidade da terra gaúcha. Esse
64
mesmo departamento foi o que realizou a primeira Ronda Gaúcha, que logo
recebeu a denominação de Ronda Crioula. A Ronda previa, segundo Cirne (2011,
p. 269) ―o acendimento de um candeeiro crioulo, o primeiro baile gauchesco com
concurso de danças e trajes, palestras, concurso literário e uma série de momentos
equestres‖. A Ronda Crioula foi a precursora da Semana Farroupilha.
Ainda no ano de 1947, no dia 07 de setembro, nasce o culto à Chama
Crioula, novamente pelas mãos de Paixão Côrtes, acompanhado de Cyro Dutra
Ferreira e Fernando Machado Vieira. Sete meses após a realização da Ronda
Crioula, em 24 de abril de 1948, foi fundado, no porão da casa da família Simch,
o ―35‖ CTG- Centro de Tradições Gaúchas, denominado de ―templo urbano‖ para
o culto ao mito do gaúcho herói.
O nascimento do Centro de Tradições Gaúchas está associado também,
segundo Dacanal (1998), a um grande fluxo migratório de habitantes das regiões
de pecuária, ainda na segunda metade da década de 40, atraídos pela oportunidade
de ascensão social oferecida pela industrialização e pela rápida expansão do setor
terciário da economia gaúcha, seguiram em direção aos centros urbanos, em
particular Porto Alegre. Dacanal (1998, p. 85) afirma que os migrantes não eram
simplesmente peões incultos ou deserdados sociais: ―pelo contrário, procedentes
quase sempre de famílias de estratos inferiores da oligarquia ou das regiões mais
atrasadas da campanha, alguns conseguiram não apenas estudar como também
fazer carreira como profissionais liberais, pequenos empresários, etc‖.
Marcados fortemente pelo passado agrário, os migrantes sentiam-se
excluídos diante da cultura urbana. Assim, buscando uma imagem para que
pudessem se reconhecer, acabaram por recriar na cidade um espaço cultural que
os identificasse. Dacanal (1998) considera que, nessa intenção de formular a sua
identidade, os migrantes recuperaram uma tradição bifronte:
Por um lado adotam elementos culturais – na linguagem, no vestuário,
na música, etc. – dos segmentos sociais inferiores do campo e, por
outro, assimilam, materializando-a em escala até então nunca vista, a
ideologia autojustificadora e destilada pelo estrato superior da
oligarquia rural do passado, cuja cultura, é preciso deixar bem claro,
fora sempre rígida e rigorosamente marcada pela tradição europeia
(em particular francesa). (DACANAL, 1998, p. 85).
65
Os CTGs, em um primeiro momento, restringem-se à capital e às
principais cidades do interior, reunindo os migrantes, quase sempre de classe
média. O fundo ideológico observado por Dacanal manifesta-se através da
recriação das formas culturais visualizadas, principalmente, nas quatro palavras-
chave: galpão, patrão, peão e prenda. Em muitos lugares, especialmente cidades
interioranas, os CTGs acabaram substituindo, como local de convivência, a
própria igreja. Dacanal (1998, p. 86) afirma que ―nas comunidades menores ou
naquelas culturalmente mais atrasadas, os CTGs passaram a assumir a função de
espaço de poder, através do qual os grupos dirigentes se legitimavam‖.
Difundindo-se pelos municípios rio-grandenses, os CTGs vieram a
valorizar e prestigiar a figura humana do gaúcho. Conforme Lessa (2000), os
Centros de Tradições Gaúchas compõem-se de diversos núcleos: o núcleo básico
– o ritual do mate, como escola de cordialidade; a invernada campeira, que
buscava recuperar o cavalo através de práticas desportivas; a invernada artística,
que preparava ―a gurizada‖ para os festivais da escola; a invernada mirim, voltada
para as crianças, com o objetivo de transmitir a elas através da dança as noções de
sociabilidade e, por último o fandango, momento festivo de interação familiar. Em
síntese, Lessa (1998, p. 76) acredita que os CTGs representavam não a expressão
de mero passadismo, mas o retorno a uma cultura: ―Não se trata de reviver,
esterilmente, o Passado. Mas, sim, de resgatar, do passado, a Esperança perdida‖.
Assim organizado, o Movimento Tradicionalista institui práticas de culto a
partir das quais glorifica um passado atualizado no presente, manifestando
preocupação com a construção coletiva de identidades regionais. As lideranças
tradicionalistas se preocupam com a autenticidade no culto das tradições.
Exemplos são os folcloristas Maria e João Carlos Paixão Côrtes que apresentam
uma produção bibliográfica em torno da temática regionalista, discorrendo desde a
indumentária até à promoção de cursos de danças tradicionalistas ministradas em
CTG‘s.
Através dos patronos Barbosa Lessa e Paixão Côrtes, durante pelo menos
20 anos, o tradicionalismo foi o responsável direto por estabelecer os parâmetros
sobre a autenticidade ou não do cancioneiro gaúcho, delimitando fronteiras e
definindo (às vezes inventando) suas características. Mesmo diante de polêmicas e
contradições, os tradicionalistas da primeira fase aproveitaram os espaços
66
concedidos ao período inicial do mercado brasileiro, difundindo o movimento nas
rádios e colunas dos jornais mais reconhecidos do momento.
Nilda Jacks (2003) considera que o tradicionalismo originou-se de forma
espontânea e foi crescendo a ponto de se tornar ―código cultural‖. Este período
inicial caracteriza-se pela criação de espaços e momentos específicos para o culto
das tradições gaúchas em um cenário urbano, recriando o gaúcho nas suas vestes,
no seu espaço natural- a campanha. A expansão do Tradicionalismo suscitou a
necessidade de uma entidade que regulamentasse as atividades que se vinculavam
ao culto da tradição, nesse sentido em 28 de outubro de 1966, foi fundado o MTG.
O site oficial do Movimento Tradicionalista Gaúcho destaca como atividades
oficiais: Congresso Tradicionalista, Convenção Tradicionalista, Enart, Festa
Campeira, Concurso de prendas. É nesses eventos e, também no cotidiano do
CTG, que ocorre a vivência do ser tradicionalista, do ser gaúcho através da
afirmação das identidades grupais.
Cougo (2012, p. 6) sinaliza a primeira intervenção direta do Movimento
Tradicionalista Gaúcho na fonografia gaúcha com a gravação do também primeiro
disco do Conjunto Farroupilha, editado pela Rádio Serviços e Propaganda Ltda.,
pois o prefácio assinado pelo maestro Aldo Taranto diz o seguinte: ―as melodias
aqui interpretadas não têm sabor de produções urbanísticas; são autênticos
motivos colhidos pelos lídimos representantes do ‗35 – Centro de Tradições
Gaúchas‘‖.
Essa fase inicial deixou documentados os ritmos que pouco tempo depois
seriam elevados à condição de ―típicos‖ da música sulina, especialmente a polca,
a trova e o xote – nenhum deles originário do Rio Grande do Sul, mas todos com
características adaptadas ao cenário local.
Esse período se resumiu musicalmente ao rádio, isto porque, como sinaliza
Fonseca (1998), só haveria destaque real se o músico partisse do seu estado e,
emigrar não fazia parte da tradição dos gaúchos. Fonseca credita ao programa de
rádio Grande Rodeio Coringa, da Rádio Farroupilha, à importância do Movimento
Tradicionalista. Nessa fase, ninguém superava a Rádio Farroupilha, que
apresentava sua discoteca, constituída pelas antigas gravações de 78 rpm, a mais
completa do rádio sulino. Através dos programas de rádio, cantores, conjuntos e
trovadores fizeram sua popularidade. Fonseca acrescenta ainda que o ―programa
se apoiava também, no início, do sucesso primeiro regional e logo nacional do
67
Conjunto Farroupilha e de outra formação, igualmente mais requintada, Os
Gaudérios. Ambos são a ponta da música folclórica revelada ou criada pelo
tradicionalismo‖. (1998, p. 182)
Entretanto, o Conjunto Farroupilha logo se radicou no Rio de Janeiro, e
passou a interpretar outras regiões brasileiras, apresentando também um repertório
internacional. Porém, o primeiro artista gaúcho que se destacou nacionalmente é
anterior a tudo isso: Pedro Raymundo, integrante, na década de 40, da Radio
Nacional do Rio de Janeiro com a popularidade de ―Adeus Mariana‖.
Pedro Raymundo e Gildo de Freitas foram os nomes de sucesso no Grande
Rodeio Coringa e podem, segundo Fonseca (1998), ser considerados como os
definidores da vertente popularesca que produziu a seguir Teixeirinha e José
Mendes. Da mesma forma, Cougo enfatiza o papel exemplar de Pedro Raymundo
para o desenvolvimento dessa gauchesca:
Pedro Raymundo, que estrelou dois filmes e gravou dezenas de discos
de 78rpm, foi o primeiro cantor sulino de êxito nacional que fez uso
do traje típico gaúcho (botas, bombachas, lenço ao pescoço, chapéu de
abas largas e cinturão). Seu sucesso chamou atenção de outros
cantores que logo passaram a imitá-lo (COUGO, 2012, p. 5).
Vitor Mateus Teixeira, o Teixeirinha, que figurou como o grande
representante da música sulina, imagem consolidada durante 25 anos de carreira,
foi no início reconhecido apenas nas rádios interioranas. Ao lado de Teixeirinha,
Gildo de Freitas e José Mendes também conseguiram grande destaque. Ainda na
década de 50, surgem os nomes de Tonico e Tinoco, Honeyde e Adelar Bertussi,
acordeonistas que, a partir de 1955, deram impulso ao estilo serrano da música
gauchesca.
2.3.2 Os festivais: a explosão nativista no Rio Grande do Sul
Nos anos 60, o estado do Rio Grande do Sul, vive um momento de euforia
da música feita em solo rio-grandense, tendo como princípio a influência
universitária, movida também pela repulsa à ditadura. Esta foi, segundo Fonseca
(1998), ―uma mobilização no País inteiro, coincidindo com o momento maior de
renovação e massificação da música no século‖. Os festivais chegam a Porto
68
Alegre, fixando, como sublinha Fonseca (1998, p. 183-184), três marcos, dois em
1968:
O II festival Sul-Brasileiro da Canção Popular, promovido pela Rádio
e TV Gaúcha, premiou o samba tradicional através de Túlio Piva [...] e
o I Festival Universitário da MPB, promovido pelo Diretório
Acadêmico da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, que refletiu a
nova música brasileira e reuniu compositores e intérpretes daqui e do
centro do País. O terceiro marco foi o segundo festival da Arquitetura,
em 69, já sob o signo tropicalista, anárquico, contraditório, radical e
estimulante (FONSECA, 1998, p. 184).
Os festivais universitários revelaram novos nomes e a Faculdade de
Arquitetura acabou entrando para a história da música gaúcha. Informalmente, nas
noites do diretório, aconteciam as rodas de som, dentre as quais surgiu o grupo
Canta Povo. Esse momento é sinalizado por Cougo (2012) como a segunda fase
da música regionalista, período em que se evidencia o início dos festivais,
principalmente da Califórnia.
A trajetória da Califórnia tem início quando uma emissora de rádio da
cidade de Uruguaiana, na fronteira do Brasil com a Argentina, promove o I
Festival da Canção Popular da Fronteira em 1970. A constância dos festivais de
música popular se espalhava por todo o território brasileiro. Neste festival da
fronteira, Colmar Duarte, juntamente com Júlio Machado, inscreveram uma
milonga intitulada ―Abichornado‖, que foi desclassificada pelo seu teor
gauchesco. Em sinal de protesto, desde então, Duarte passou a fomentar a ideia de
realizar um festival que aceitasse somente canções com temas e ritmos regionais,
e que tivessem a intenção de ―valorizar o que fosse culturalmente representativo
do que se entendia como nosso‖ (DUARTE, 2001, p. 14).
Para alcançar seu propósito, Duarte procurou a direção do principal CTG
da cidade de Uruguaiana, O Sinuelo do Pago e, em 1971, assumiu sua presidência,
com a intenção de realizar a I Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul.
Segundo Duarte, o nome do festival:
Vem do grego, ―significa conjunto de coisas belas‖. No RS,
chamaram-se ‗califórnias‘ as incursões que Chico Pedro fazia, na
Cisplatina, a fim de resgatar os bens de brasileiros lá radicados que
sofriam perseguições (1850). Mais tarde, ‗califórnias‘ passou a
designar corrida de cavalos da qual participassem mais de dois
animais (...). Com as significações de ‗conjunto de coisas belas‘ e
69
‗competição entre vários concorrentes em busca de grandes prêmios‘
foi que o nome CALIFÓRNIA DA CANÇÃO NATIVA prevaleceu
entre seus idealizadores. (CD I Califórnia da Canção Nativa do Rio
Grande do Sul, contracapa)
Importante foi, também, o papel exercido pela Rádio São Miguel de
Uruguaiana, pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), pela Ordem dos
Músicos do Brasil (OMB) e pela Companhia Jornalística Caldas Júnior, que foram
agentes importantes para a realização do festival. O próprio prêmio Calhandra de
Ouro (ave de belíssimo canto que não suporta o cativeiro), criado pelo artista
Paulo Ruchel, revela a síntese do evento, o qual, segundo Duarte, explica-se a
partir de três principais elos: o canto, o convívio e a liberdade.
A poética da canção dessa vertente gauchesca é fortemente arraigada na
figura do gaúcho, o habitante do pampa, homem sem lei descrito por vasta
literatura, cujas características constituem a base temática da música gauchesca:
―franqueza nas atitudes e nas palavras, o narcisismo, a bravura quixotesca, a
instantaneidade impulsiva das resoluções, a veemente vocação cívica, a altaneria,
o bom humor, mesclado a irreprimíveis explosões sentimentais e fatalistas‖
(LESSA, 2000, p. 54 - 55).
Havia, contudo, segundo Lopes (1987, apud, DUARTE, 2009, p. 14), um
confronto ideológico que permeava a formação da Califórnia, o qual era resultante
de uma mistura entre o romantismo nacionalista, de fundo liberal-idealista e
mitificador, e, o modernismo campeador de caminhos novos. A polêmica
instalava-se, justamente, sobre o gaúcho a ser cantado: o mitificado, monarca, ou
um tipo desmitificado, obtido pela visão da classe média intelectualizada.
[...] a Califórnia optava por valores da classe média. E se estabelecia
numa dicotomia antagônica. Se por um lado se erguia contra os
estrangeirismo da massificação dos meios de comunicação ―em
massa‖, por outro se opunha ao que de mais popular havia. Mas esse
popular, contra qual se levantava, representava o aviltamento urbano
da figura presente no campo, que simbolizava a própria conservação
das insígnias do passado histórico e mítico. (LOPES, 1987 apud,
DUARTE, 2009 p. 14).
A anterior associação entre a música regionalista e o grosseiro precisava
ser banida, pois era visível a necessidade de qualificar a música que se vinha
cantando para atrair a atenção da classe média. Nesse sentido, podemos considerar
70
que o movimento da Califórnia da Canção inaugurou um novo período, uma nova
estética para a música regionalista. Conforme o jornalista Fonseca comenta,
Em pouco tempo, o palco do Cine Pampa, de Uruguaiana, assistiu à
saída dos esconderijos de dezenas de compositores e intérpretes que
ninguém imaginava existirem. O sucesso do festival significou (e
significa) uma fortíssima marca de antes e depois na música típica do
Rio Grande do Sul. Detonou um novo movimento que tomaria de
assalto o Estado, mudando costumes, revitalizando velhos hábitos,
forjando a participação maciça da juventude e registrando tudo em
discos. (FONSECA, 1998, p. 184)
A cada ano, o evento da canção nativa se consolidava mais e, aos poucos,
reformulava-se e passava a abranger novas temáticas. Um exemplo foi o que
aconteceu a partir do ano de 1975, momento em que a Califórnia divide-se em
categorias pré-estabelecidas através de três linhas temáticas. A linha campeira
compreende a identificação com o homem, o meio, usos e costumes do campo do
estado do Rio Grande do Sul. A linha de manifestação rio-grandense, sem se
limitar ao espaço campeiro, abrange outros aspectos sociais, culturais e
geográficos do Rio Grande do Sul. Por último, a linha de projeção folclórica
estabelecida a partir das linhas já mencionadas, projeta-se no sentido da
universalidade artística com relação ao tratamento poético-musical. Essa divisão
resultou em novos rumos para a música feita em solo gaúcho, os quais, segundo
Fonseca, vão além do novo repertório:
O movimento dos festivais nativistas não apenas renovou e
multiplicou o repertório do regionalismo através de uma série de
canções que hoje já são quase tão clássicas quanto aquelas do
tradicionalismo original (Negro da gaita, Romance na tafona,
Esquilador, Era uma vez, Desgarrados, Canto Alegretense, etc. etc.),
como abriu um mercado de trabalho que não tem paralelo anterior na
história de nossa música regional, seja em número de gravações, seja
em espaço de shows. (FONSECA, 1998, p. 186)
Assiste-se, a partir daí, a consolidação dos festivais. Somente a Califórnia
da Canção Nativa viu surgir mais de 250 novas músicas que visavam a
valorização dos elementos constitutivos da identidade gaúcha. Entre as canções
mais conhecidas, que foram consideradas obras primas e imortalizadas pelo
gaúcho, estão: Ave-Maria Pampiana (IV Califórnia); Desgarrados (XI Califórnia);
Esquilador (XI Califórnia); Pássaro Perdido (VIII Califórnia); Grito dos Livres
(XIV Califórnia); Guri (XIII Califórnia). Resumidamente, pode-se afirmar que,
71
desde 1971, foram registrados aproximadamente 160 festivais, alguns com quase
quarenta edições.
Antes da Califórnia, a música gaúcha de raiz regionalista limitava-se ao
sucesso de artistas populares, de tendência quase caipira ou sertaneja. Fonseca
(1998, p. 184) assegura que ―A Califórnia da canção acendeu primeiro uma vela,
depois uma lâmpada e por fim um holofote sobre a música regional e inventou o
termo ‗nativismo‘‖. Este período é considerado como o do renascimento do
gauchismo, algo que já estava desacreditado. Oliven aponta uma consideração
importante com relação ao renascimento do gauchismo através dos festivais,
ressaltando a força e a busca pela afirmação da identidade regional do Rio Grande
do Sul,
Se o gauchismo reedita a tradição e a vida rural, ele o faz num estado
urbanizado que se quer moderno. Pode parecer curioso que esse
movimento lance mão de valores rurais e do passado quando o Rio
Grande do Sul é predominantemente urbano e bastante
industrializado. Isso leva a alguns a considerar o fenômeno como um
mero modismo passageiro ou como uma ideologia anacrônica, mas
curiosamente eficaz. Entretanto, pela extensão e duração do fenômeno
é difícil rotulá-lo como modismo ou como ideologia ultrapassada.
(OLIVEN, 1992, p. 79).
Toda a década de 80 viu surgir aproximadamente mil centros de tradições,
mais de quarenta festivais de música nativista, e vários rodeios. Os anos 80
marcam também um momento de produção acadêmica e sistematização histórica
envolvendo a temática da canção. Fonseca (1998) entende que a passagem para os
anos 80 evidencia duas mudanças principais que partiram do grande aumento de
número de gravações: amadurecimento dos trabalhos e linguagens e abertura de
possibilidades diferenciadas com relação a estilo e tendência. O início da década
assiste, ainda, o surgimento da dupla Kleiton & Kledir, com repercussão nacional.
Ainda Fonseca (1998, p. 187) comenta que: ―ninguém, nos anos 60, com a melhor
bola de cristal que tivesse, poderia imaginar que a música gaúcha aglutinaria
multidões de 10, 15, 20 mil pessoas‖.
O auge da produção musical foi, talvez, os anos 84 e 85, que presenciaram
festivais menos fechados. Surgem, nesse período, nomes como o da intérprete
Glória Oliveira e Renato Borghetti, nome inconfundível que marcou, e ainda
marca, gerações; surge, ainda, a explosão do rock.
72
Conforme Fonseca (1998) no momento em que os festivais passaram a ser
reconhecidos como instituições culturais e fonográficas, a relação entre
tradicionalistas e nativistas foi abalada. Isto porque, de um lado, os CTGs estavam
fervorosos, expandindo-se rapidamente e, de outro, o movimento nativista
adquiria forma e consistência através do aparecimento de uma geração de letristas
e compositores de excelente nível. Ainda que os nativistas buscassem diferenciar-
se dos tradicionalistas, é fundamental perceber que ambos eram fruto das mesmas
condições históricas.
Oliven (1992) percebe a identidade gaúcha, na década de 80, como sendo
um duelo de disputas entre Tradicionalistas e Nativistas. O autor diferencia os
tradicionalistas dos nativistas a partir da influência do Movimento Tradicionalista
Gaúcho. Nesse sentido, os tradicionalistas são reconhecidos por exercer o controle
e, da mesma forma, a orientação sobre os bens simbólicos do Rio Grande do Sul,
por meio do MTG. Segundo Oliven (1992, p. 78) ―para eles é fundamental
demarcar quais são os ‗verdadeiros‘ valores gaúchos‖, para, assim, manter a
distinção entre o estado do Rio Grande e os demais. O outro grupo, denominado
de nativistas, formado, principalmente, por músicos e jornalistas, não aceita o
controle do Movimento Tradicionalista Gaúcho, ao qual acusam de ―patronagem
cultural‖ e de ―patrulhamento folclórico‖ (OLIVEN, 1992, p. 78).
O nativismo fundamenta-se em uma perspectiva contrária ao
tradicionalismo, ao tentar atualizar a cultura gaúcha, propondo uma temática mais
voltada para as questões emergentes da população rural, como a propriedade da
terra, o êxodo rural, a marginalização na periferia da capital e das grandes cidades.
No âmbito da linguagem, propôs, também, uma renovação estética que
correspondesse a uma temática mais urbana e contemporânea, significando um
rompimento com os padrões que vinham sendo defendidos desde o final da
década de 1940 pelos tradicionalistas, ainda como herança do Partenon Literário e
do Regionalismo Literário. No entanto, Cougo (2012) salienta que:
Em termos de popularidade, o nativismo não conseguiu ofuscar o
regionalismo. Como movimento cultural, ele jamais se tornou
independente do tradicionalismo, sobretudo por estar subjugado ao
potencial financeiro e organizacional dos Centros de Tradições.
Apesar disso, a ―era dos festivais‖ desencadeou a tão decantada ―febre
de gauchismo‖, uma onda de supervalorização da cultura gaúcha que
foi cooptada pelos jovens, sobretudo em Porto Alegre. Até os anos
1980, o mercado nativista proporcionou o surgimento de uma série de
artistas que se consagraram localmente, sobretudo porque a mídia e a
73
indústria fonográfica do centro do país perderam o interesse pelo
gênero, proporcionando um mercado interno auto-sustentável
(COUGO, 2012, p. 10-11).
A expressão destes dois pólos da identidade gaúcha, Tradicionalistas e
Nativistas, observa-se pela fundamentação que os sustenta. O primeiro constrói
uma identidade baseada no mito do monarca das coxilhas e o segundo, mais
aberto, busca desmitificar a abordagem tradicionalista. Barbosa Lessa (1998)
caracteriza os nativistas como urbanos que se voltam para o culto da natureza na
busca de uma sociedade igualitária; conforme o autor, essas virtudes já eram
demonstradas pelos tradicionalistas. Entre nativismo e tradicionalismo existem
divergências, no sentido de o primeiro ser considerado pelo tradicionalismo como
deturpador da tradição, e o tradicionalismo ser denominado de conservador pelo
segundo.
Muito embora haja diferenciação na abordagem de ambos, tradicionalistas
e nativistas estão envoltos, como reflete Oliven (1992, p. 77), pelo mesmo campo
semântico: ―a figura do gaúcho, o modo de construí-la, os critérios para definir
sua autenticidade, as instâncias de sua legitimidade e consagração‖. Tau Golin
(1989, p. 46) aborda os dois fenômenos, tradicionalismo e nativismo, sem fazer
distinção a partir de sua terminologia Tradinativismo: ―Considero como
tradinativistas aqueles que militam no Tradicionalismo e/ou Nativismo, como
cultuadores e/ou criadores, sem terem inquietações reais que os levem a uma
ruptura com a cultura tradicional ontologicamente hegemônica no Rio Grande do
Sul‖.
2.3.3 De 1980 em diante: Memórias, produção acadêmica e revisionismo
A terceira e, última fase da música regionalista, denominada por Cougo
(2012) de ―Memórias, produção acadêmica e revisionismo‖, compreende os anos
1980 em diante. O primeiro trabalho acadêmico acerca da música gauchesca foi
publicado em 1980, por Antonio Corte Real, e foi o estudo responsável pelo
direcionamento de outros, ainda poucos, trabalhos universitários sobre o tema. No
que diz respeito à produção intelectual sobre a música gauchesca nos anos 1980-
1990, Cougo registra o surgimento de revistas especializadas, dentre as quais cita
três nomes: Nativismo (1982-1984), Tarca (1984-1986) e Nativa (1987-1990).
74
Essas revistas abordavam diversos temas que vão desde questões
corriqueiras até os tabus. Um exemplo de tabu foi a abordagem da revista Tarca
sobre o conflito, já sinalizado neste trabalho, entre tradicionalistas e nativistas,
que gerou a edição de uma carta, denominada Carta de Uruguaiana, reconhecida
como um manifesto estético que questionou e demonstrou preocupação de cunho
metodológico e teórico com relação ao gênero e, mais propriamente, a música
gauchesca produzida nos festivais.
A década de 80, segundo Cougo (2012), é responsável pela presença de
uma bibliografia muito rica, fundamentada em relatos de memórias sobre os
personagens históricos da música do Rio Grande do Sul. A coleção Esses
Gaúchos, da Tchê/ RBS foi a primeira a desenvolver esta produção memorialista,
a qual apresenta, entre outros memoriais, a trajetória de vida do acordeonista e
cantor Pedro Raymundo e do trovador dos pampas Gildo de Freitas, ambos
símbolos do regionalismo. O terceiro músico a ser biografado seria Teixeirinha, se
não fosse sua morte inesperada em 1985; somente em 2007, Israel Lopes publica
Teixeirinha- o gaúcho coração do Rio Grande, primeira biografia sobre o maior
símbolo gaúcho.
Neste contexto, Cougo (2012) sinaliza que a academia também passou a
investir em pesquisas sobre a cultura regional enquanto fenômeno social, um
caminho que foi aberto com os debates entre os nativistas e tradicionalistas. A
esse respeito, os primeiros registros envolvendo pesquisas acadêmicas e a música
regionalista gaúcha, são de 1987, ambos se constituem em dissertação de
mestrado desenvolvidas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul com o
título: Sob o signo da canção: uma análise de festivais nativistas, de autoria de
Rosângela Araújo e Festivais da canção nativa do RS: a música e o mito do
gaúcho, de Sérgio Ivan Gil Braga. Outras pesquisas, livros de memórias e outras
obras nem sempre chegam às estantes das livrarias, mas tem desenhado um
panorama crítico em relação à historiografia da música gaúcha (COUGO, 2012, p.
15).
A partir dos anos 80, a música gaúcha de vertente regionalista vê surgir
músicos que têm vivência da campanha e dominam os sons do violão.
Verificamos a persistência da vertente regional nas canções de Luiz Marenco,
Mano Lima e Jayme Caetano Braun, cujas carreiras profissionais foram
75
impulsionadas pelo motivo regionalista de idealização romântica do gaúcho herói
registrado anteriormente pelo cancioneiro oral e, depois pelo conto sul-rio-
grandense.
Luiz Marenco é hoje um dos artistas nativistas mais requisitados do sul do
Brasil; tem a consciência de que seu canto está ligado a terra, valores, hábitos e
costumes de seu povo. As primeiras composições de Luiz Marenco têm, em suas
temáticas mais recorrentes, o gaúcho em suas atividades de doma, pecuária,
acompanhando, de certo modo, o romântico monarca das coxilhas dos tempos de
outrora; apontam, também, contudo, para a situação vivida, questões sociais,
políticas através da narração de um galpão vazio, da solidão atrelada ao
afastamento da família e ao êxodo rural.
Mano Lima aborda, em suas canções, a força do homem gaúcho – do herói
que deu seu sangue e a vida para defender a sua terra e as suas fronteiras; atrelado
a isso, o músico recupera a cultura e tradição de um povo, ambas localizadas no
espaço campesino.
Jayme Caetano Braun trouxe para suas composições a questão da terra,
cantando, principalmente no início de sua carreira, a indumentária e a cozinha
tradicionais do gaúcho – o mate, a faca, o lenço, o arroz de carreteiro. Foi
intérprete dos anseios de seu povo, denunciando o uso indevido dos símbolos
gaúchos por opressores. Entre outras características de Jayme estão as referências
históricas, as quais, devido ao seu conhecimento de história e geografia, são
constantemente recuperadas nas suas payadas, e acabam por denunciar a opressão
a que o gaúcho foi submetido.
Os compositores que mencionamos, além de representar, nos anos 80, a
continuidade da vertente regionalista tradicional, de culto aos valores e costumes
gaúchos, também apresentam um movimento de reação contra ―modismos‖
evidenciados através de duas novas linhas de produção musical que surgiram
nesse mesmo período, as quais traremos em nosso trabalho para demonstrarmos
outras vertentes que correm paralelas à canção regionalsita de Luiz Marenco,
Mano Lima e Jayme Caetano Braun.
A primeira linha ou corrente de produção se convencionou chamar de
Música Popular Gaúcha (MPG), composta por músicos que não se identificavam
nem com nativistas, nem com tradicionalistas, os quais produziram músicas de
temática urbanas e, a segunda, conhecida como Tchê Music, proveniente da
76
mistura de ritmos musicais utilizados no Rio Grande do Sul com outros ritmos de
origem nordestina. Ambas as correntes defendiam caminhos diferentes para a
composição, que fugissem do antigo molde já explorado pelos festivais. Na
Música Popular Gaúcha, por exemplo, o campo dá lugar ao urbano e os feitos
heroicos são permeados pela dúvida; a mulher ingênua do campo é substituída por
uma mulher da cidade, sedutora. Assim, não é evidenciado o mito do gaúcho herói
nas composições da MPG, emergindo um homem urbano desmitificado. Nelson
Coelho de Castro, Bebeto Alves e Gélson Oliveira são considerados os principais
protagonistas da MPG.
Tanto o músico Nelson, quanto Bebeto e Gélson participaram, em 1992, de
uma entrevista mediada por Luís Augusto Fischer (1998). Nesse encontro os
quatro falaram sobre a denominação de Música Popular Gaúcha – MPG, também
se posicionaram acerca da carreira de músico, abordando temas como mercado e
imprensa. O músico Bebeto Alves afirma não aceitar o rótulo de MPG, isto
porque para ele não há diferenciação entre a sua produção e a produção da MPB-
Música Popular Brasileira ―por mais regional que ela seja MPG é um conceito que
não corresponde à realidade‖. Quando questionado sobre o motivo da existência
de tal ―rótulo‖, Bebeto apresenta uma relação com a questão identitária gaúcha:
Acho que isso faz parte de um sentimento arraigado do homem que
vive aqui, do espírito gaúcho, que é o de se diferenciar por pequenas
coisas. Há uma falta de abrangência no pensamento, de se sentir
fazendo parte do mundo, que é algo muito maior. Nós podemos
guardar nossas características, ser fieis à nossa origem, sem deixar de
perceber o mundo. (FISHER, 1998, p. 189).
Com relação ao mercado e à imprensa, tanto Nélson quanto Bebeto partem
do fator diferencial da música e cultura do Rio Grande do Sul para explicar a
dificuldade de fazer sucesso num período inicial. Nelson afirma que, no estado do
Rio Grande do Sul, existe uma cultura de autor, o que não gera um
―megassucesso‖ na mídia; ainda o mesmo músico exemplifica o processo que,
segundo ele, é de fundamental importância para o reconhecimento e, posterior
sucesso: ―Na década de 70, tinha o Júlio Furst na Rádio Continental, que dizia:
‗Na Porto Alegre de Fernando Ribeiro, 14 homem‘. Ele vendia isso.‖ (FISHER,
1998, p. 190). O que o cantor e compositor quer dizer é que todo movimento
precisa que um integrante da mídia se encante com a proposta para divulgá-la.
Para Nélson, falta ainda uma indústria do disco que vá além do que o CTG se
77
propõe, pois o Centro de Tradições Gaúchas representa apenas uma parte com
relação ao todo, e essa é a parte mais popular, por isso o músico argumenta que:
Eu acho que ela tem alguns problemas, porque não consegue absorver
nada externo, é muito radical, muito conservadora. Digo isso porque
houve um momento em que tentamos fazer uma ponte, absorver essas
coisas, mas fomos enxotados. Era o ―bum‖ do nativismo, início dos
80, quando estávamos resgatando isso e projetando para um universo
que achávamos mais real, mais lúcido. (FISHER, 1998, p. 192)
Ainda no que tange à produção gauchesca, o compositor Nelson ressalta a
riqueza das composições musicais sulinas ao representar esteticamente o seu tipo
humano e o seu espaço. Contudo, ele acrescenta que a produção é rica, mas não é
popular, o que Bebeto complementa argumentando: ―Ela poderia ter-se tornado
popular no limiar dos anos 80, quando estávamos fazendo a transposição do
regional‖ (FISHER, 1998, p. 192) Ambos queixam-se do fato de serem os
pioneiros, pois assim sendo, são eles os que produzem, divulgam e contam as suas
histórias, atuando desde como compositores até antropólogos.
Se, no circuito nacional, essa identidade gaúcha mediada pela canção
apareceu esporadicamente, com exemplos esparsos antes dos anos 70, de lá pra cá
o circulo da música gaúcha segue conquistando novos ouvintes. Fonseca (1998, p.
187) afirma que: ―de norte a sul do país, o circuito antenado sabe de Bebeto
Alves, Vitor Ramíl, Nei Lisboa, Cheiro de Vida [...] e o circuito de massa tem
como estrelas Kleiton & Kledir (ainda), Gaúcho da Fronteira, Renato Borghetti
[...]‖.
As bandas que são classificadas como Tchê eram, originalmente,
pertencentes ao segmento tradicionalista, atuando junto a CTGs. No entanto, na
busca pela ampliação de seu público, abandonaram alguns elementos como a
vestimenta típica e o ritmo musical e incorporaram outros relacionadas a
vestimenta e a linguagem que tornaram inviável a identificação da Tchê Music
com o MTG. No entanto, alguns músicos que integravam a Tchê Music e, que,
por muito tempo desafiaram patrões de CTGs, renderam-se novamente ao
tradicionalismo. Essa notícia foi extraída do Diário Gaúcho através do escrito de
José Augusto Barros, intitulado ―Será que é o início do fim da tchê music?‖,
segundo o qual os filhos da tradição estariam retornando para sua casa.
78
Entre os nomes da tchê music que retonam estão Luiz Cláudio e o grupo
Quero-Quero; já outros, como o Tchê Barbaridade, estariam tentando o meio-
termo. Sobre esse fato, o presidente do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore
(IGTF), Manoelito Savaris afirma que: ―não será tão simples assim. Se voltarem a
fazer música gaúcha tradicional, tendo a postura adequada, serão contratados. Mas
poderão ter dificuldade, pois haverá desconfiança‖.
Paixão Côrtes, crítico de todo e qualquer tipo de radicalismo com que
tradicionalistas tratam a questão da Tchê Music, ressalta: ―Sou contra qualquer
medida proibitiva, mas sou a favor de conceituação, da diferenciação dos estilos
claramente‖. Depois ainda acrescenta que os integrantes da tchê music ―não
guardam raiz com nada!‖ Para finalizar sua opinião sobre esse ―movimento
musical‖ Côrtes menciona que: ―Todo modismo tem tempo limitado, é
circunstancial, consumista.‖... Luiz Claudio justifica o seu retorno argumentando
que ―O nosso público começou a nos cobrar músicas tradicionais. Nunca cuspi no
prato que comi, apenas segui um caminho que achei conveniente na época. Voltei
para ficar‖ (DIÁRIO GAÚCHO, 17/10/ 2009).
Trazemos para a nossa discussão esse fato acerca da Tchê Music por
entendermos que, através dele, continuamos a nossa abordagem sobre
permanência e persistência da vertente regional na canção gaúcha, pois ele revela
que o percurso da música regionalista continua encontrando refúgio nos ecos da
antiga tradição e cultura. Mano Lima – compositor que continua nos anos 80 o
cultivo da vertente regionalista, manifestou sua preocupação sobre esses
modismos, principalmente, com receio de que as raízes da cultura e tradição sejam
ofuscadas. No entanto, esse mesmo compositor argumenta que é responsabilidade
do Movimento Tradicionalista Gaúcho estabelecer os parâmetros de produção da
música que se diz regionalista gaúcha, para saber diferenciar as linhas e vertentes
defendidas por cada um em suas composições e manifestações.
Sem sombra de dúvida, a canção típica rio-grandense auxiliou a própria
consolidação da imagem do gaúcho enquanto um tipo distinto dentro do universo
mais amplo do população brasileira. Neste trabalho, atemo-nos à análise da
vertente regionalista tradicional, pois como diz Nilda Jacks (2003), a compreensão
da MPG demandaria um estudo específico.
A canção ajuda na construção do ―tipo gaúcho‖ no imaginário nacional,
também desempenha um forte papel nos processos de reprodução, permanência e
79
reinvenção dos valores iniciais constituintes do regionalismo: o sentimento de
orgulho pelo chão, a exaltação do gaúcho, a valorização do pampa, dos hábitos e
costumes, conferindo uma identificação coletiva para a gente gaúcha na
contemporaneidade, as quais podem ser reveladas mediante as regravações e
também mediante ao surgimento de músicos engajados com a proposta
regionalista tradicional que norteiam nosso trabalho.
Diante disso, no próximo capítulo, analítico, partiremos do pressuposto de
que a letra que compõe a canção revivifica os laços identitários, possibilitando
cantar o passado da glória, batalhas e heroísmo, dando continuidade à inscrição da
vertente regionalista verificada no conto gaúcho.
80
3 A VERTENTE REGIONALISTA EM CONTO E CANTO
3.1 O conto regionalista
Neste capítulo buscaremos demonstrar, através de um estudo analítico, os
temas e motivos que movem o regionalismo na contística gaúcha desde os tempos
iniciais até sua renovação, a partir dos anos 1970. Para registrarmos a presença da
vertente regionalista, pautaremos nossa análise nas diferentes nuances de
regionalismos sinalizados por Bittencourt na contística sulina, ocupando-nos da
mesma terminologia utilizada pela pesquisadora para definir os quatro
regionalismos: o primeiro regionalismo - o romântico que evidencia o herói
gaúcho e seu passado guerreiro através do conto ―Monarca das coxilhas‖, de
Apolinário Porto Alegre; o segundo regionalismo, que narra o desaparecimento do
antigo gaúcho a partir de uma influência real-naturalista, através do conto ―Velhos
tempos‖, de Darcy Azambuja; o terceiro, que revela o influxo do modernismo
baseando-se no modelo de Simões Lopes Neto, através do conto ―Trezentas
onças‖, de Lopes Neto e o quarto, e último, um regionalismo chamado de crítico
ou social a partir do conto ―Tempo de seca‖, de Cyro Martins. Depois desses, a
fase de transição será observada a partir do conto ―O boi das aspas de ouro‖,
Barbosa Lessa e, por último, a renovação no conto sulino da temática regionalista
a partir do conto ―Cavalo cego‖, de Josué Guimarães.
3.1.1 A idealização do herói gaúcho: Apolinário Porto Alegre
Antes de iniciarmos a análise propriamente dita do conto ―O monarca das
coxilhas‖, faz-se necessário evidenciar o contexto histórico que permeia os
escritos de Apolinário Porto Alegre e o início da literatura sulina em prosa. Os
anos de 1860 e 70 foram, para o Rio Grande literário, o começo da circulação em
escala apreciável das letras, em revistas e jornais, no teatro e nos encontros do
Partenon Literário.
Nesse sentido, o início de uma literatura sul-rio-grandense voltada para as
questões locais foi possível devido ao projeto liderado pela Sociedade Partenon
Literário, a qual evidenciou a necessidade de propostas originais que
demonstrassem, segundo Glodomiro Paredes (1869, apud Zilberman, 1985, p.
81
21), amor à terra natal, resultando daí a valorização e descrição do modo de vida e
costumes gaúchos. Mais detalhista, Taveira Júnior é quem vai indicar os temas e
motivos a serem desenvolvidos pelos escritores rio-grandenses:
O aspecto de suas serranias elevadas, de seus bosques enflorescidos,
de suas campinas verdejantes, de seus rios e cachoeiras; o cântico de
suas aves multicores, a majestade de suas florestas, a par de um céu
esplêndido – basta para inspirar-vos a verdadeira poesia do belo. Em
nossas lendas, em nossas tradições, em nossos costumes, no valor de
nossos bravos, encontrareis uma fonte inexaurível para o romance,
para o drama, para a história, para a epopeia (TAVEIRA JÚNIOR,
1886, apud Zilberman, 1985, p. 22).
Esses estudos revelam a busca da geração dos românticos pelo
estabelecimento de uma temática regionalista singular, a qual garantiria o
fortalecimento das condições de produção e circulação da literatura sulina. Regina
Zilberman ressalta que cabe à literatura estabelecer a identidade com o meio
através de elementos retirados da história e dos hábitos locais, com função
educativa e moral, levantar o público e fortificar as instituições civilizatórias; a
autora ressalta o papel de Apolinário Porto Alegre nesse sentido:
Compete a Paisagens, de Apolinário Porto Alegre, concretizar estas
metas: dar vazão ao anseio de representação literária das sugestões
locais; fundar uma literatura autônoma; propor um outro tipo de
relação com o leitor [...] e, até mesmo, dar corpo e consistência ao
público que precisava crescer ou, ao menos, amadurecer (REGINA
ZILBERMAN, 1985, p. 22)
Apolinário Porto Alegre em seus ―rápidos esboços de cenas campestres‖
vai se destacar por evidenciar um tipo sul-rio-grandense, o gaúcho, apresentado
em seus escritos (poesias, contos e romance) como livre, altivo, leal, amigo de seu
cavalo, vigia da fronteira. O livro de contos Paisagens é assinado com o
pseudônimo Iriema, abrindo uma série que o torna pioneiro na exploração do
regionalismo. João Pinto da Silva, em sua História literária do Rio Grande do
Sul, elogia Paisagens, justamente por seus tipos regionais: ―Nas Paisagens
aparece pela primeira vez, sob forma viável, como fator estético, o nosso homem
do campo, desdobrando-se numa série pitoresca de personagens saturadas do
Romantismo, a exemplo, aliás, dos mais famosos livros da época‖ (2013, p. 145).
82
Paisagens é composto por seis histórias: ―Mandinga‖ (1867), ―Pilungo‖
(1874), ―Os butiazeiros da tia Anastácia‖ (1870), ―O valeiro‖ (1869), ―A tapera‖
(1869), ―O monarca das coxilhas‖ (1869). Pelas datas indicadas em cada conto,
evidenciamos que o período em que foram escritos se estende de 1835 – início da
Revolução Farroupilha – até 1850, época em que já estavam extintos os efeitos
mais imediatos do conflito. O conto que selecionamos para nossa análise ―O
monarca das coxilhas‖, além de ocupar-se do cotidiano campeiro e da personagem
típica sul-rio-grandense aborda, de modo singular, a dicotomia campo e cidade.
Assim, a narrativa introduz os hábitos, os costumes e os sentimentos que estão
arraigados à figura representada pelo monarca e que se estende no viver dos rio-
grandenses. No entanto, o monarca das coxilhas aparece no texto como objeto, e
não sujeito da percepção do mundo, pois o leitor vai conhecendo a realidade do
campo a partir da percepção de Oliveira, o homem da cidade de Rio Grande que
se desloca para a região das Missões em uma jornada de 59 dias.
O conto inicia com a descrição dos motivos que levaram o Sr. Oliveira a se
direcionar para as Missões. Seu propósito era encontrar os herdeiros (um irmão e
duas irmãs) do falecido Sr. Abílio Escafuza, seu sócio na casa Oliveira & Cia, que
tinha vindo, ainda moço, da campanha para seguir carreira do comércio. Logo no
início, o leitor se depara com a expectativa do Sr. Oliveira para conhecer as
Missões, as quais ele idealizava, relacionando-as às narrativas que escutava
quando criança: ―Além de um passeio higiênico e onde podia apreciar os
costumes de camponeses, cujas proezas assemelhavam-nos aos heróis dos contos
de cavalerias que ouvira em criança [...]‖ (PORTO ALEGRE, 1987, p. 106).
Em seu trajeto da viagem, depois de esgotado o trajeto fluvial, Oliveira
precisou montar a cavalo, algo que não estava habilitado para fazer, pela sua
condição sedentária de vida; assim, arranjou um carretão e lá se foi em direção às
Missões. No entanto, no segundo dia de viagem o carro tombou, e lhe restou a
―Cila e Caribdes‖ entre as duas opções: ―o carro prometia um novo baque e o
cavalo dores no espinhaço‖. Ele preferiu o cavalo:
Não encontrou todavia cavagaldura que se quadrasse com seu corpo,
apesar de algumas serem excelentes e cômodas, que podia ir-se com
um copo d‘água sem derramar-se uma gota. Caminhou uma hora no
primeiro dia e não pode mais. Sentiu dores nas costas, nas pernas, nos
intestinos e parecia ter os braços deslocados. Um vaqueano e um peão
que iam em sua companhia achavam estranheza no caso, mas não
83
tugiam: ganhavam o salário mais comodamente ( PORTO ALEGRE,
1987, p. 107).
Nesse trote em cinco dias, o Sr. Oliveira fez tanto caminho quanto
qualquer campeiro, porém para ele: ―O trote vascoleja-me as tripas, como o mar
sacode uma barcaça; o galope dá-me tonturas, parece que vou caindo duma torre
de cabeça para baixo‖ (1987, p. 107). Diante de tanto sofrimento e inadaptação,
durante as horas de pouso, a filosofia lhe fazia companhia, fazendo-lhe pensar em
―Quantas saudades não tinha do Rio Grande!‖; resume seu desconforto ao
imaginar que, se fosse poeta, a viagem lhe inspiraria a expressão de dissabores:
―Uma viagem, despedida, saudades, desalento, infortúnio e outras de tal jaez‖
(1987, p. 107). Essas primeiras percepções do Sr. Oliveira com relação ao meio de
condução e ao hábito de cavalgar vão conduzindo o leitor para a dicotomia campo
e cidade: ―- Quem mandou meter-me na esparrela, sem tomar pulso às posses? Eu
por estes sertões! Que loucura! Qual! Todo o homem tem lá um dia em que o
miolo desconserta‖ (1987, p. 108).
Quando Oliveira entrou nas Missões, procurou pelo irmão de Abílio, o
Sancho Escafusa, e, para sua surpresa, este era conhecido em sua terra por
―monarca das coxilhas‖. Oliveira, contudo, ainda não havia chegado ao destino
final, pois teria que percorrer mais um trajeto que, segundo o vaqueano, era
próximo: ―- Meu amo, estamos perto, por isso era melhor que subisse em minha
garupa. Não se arreceie, num pulo estamos lá‖ (1987, p. 109). No caminho até o
rincão de Sancho, Oliveira vai imaginando o motivo pelo qual Sancho era assim
denominado e já concluía, de antemão, a ascendência da figura: ―Monarca das
coxilhas! Repetia de si para si... Um monarca?! Deve ser personagem de alta
posição, para ser tratado assim. E eu que vinha apresentar-me com ares de
importância?‖ (p. 109).
O conto revela, durante o difícil deslocamento de Oliveira, o trabalho do
vaqueano e do peão, sua coragem e a vida perigosa (aos olhos de Oliveira) que
esses levam: ―O negociante julgava estar num mundo como o dos Liliputs no
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Gulliver de Smith1 ou no planeta dos homens-árvores no Niel-Klim de Holberg.
Coisas tão estranhas nunca vira. – É o país dos absurdos, resmoneava entre os
dentes, preparando-se para dormir à borda dum capão‖ (p. 110).
A condição do espaço e os costumes dos camponeses quanto à medição do
espaço também são descritos durante o percurso: ―Alguns tiros de laço daqui. Está
vendo aquele rincão? Na costa de lá há um arroio. Passe adiante, caminhe um
bocadinho e encontra uma sanga que tem uma pinguela; acima da pinguela.‖.. (p.
110).
Ao definir o sentido da monarquia, o narrador o faz relacionando
monarquia à montaria, busca pela liberdade, prontidão para a peleia, na defesa do
solo:
Os rio-grandenses têm em nenhuma monta os tronos e cetros. Para
eles uma boa equitação vale uma monarquia; um bom cavaleiro é um
grande monarca. Parece uma irrisão, quer fosse fortuitamente dada
esta acepção à palavra, quer de firme propósito. Quem não conhecer
os costumes de nossas vastíssimas campanhas, há de estranhar que
uma só família às vezes seja o troco duma série de monarquias. E por
Deus! Valem mais que os testas coroadas os valentes campeiros do
Rio Grande. Ao menos sob cada poncho palpita um coração onde a
liberdade entronizou-se; em cada pulso lampeia uma espada ou uma
lança que fará tremer a tirania. (PORTO ALEGRE, 1987, p. 111).
Definidos os rio-grandenses, e o sentido de monarquia, o narrador resgata
a ideologia do movimento farroupilha, recuperada no conto em forma de
desabafo: ―Se quiserem a prova, abram seus anais, e aí encontrarão uma década
gloriosa, dez anos que procuram fazer esquecer, que tentam eliminar de sua
história, porque não consentem que a escrevam... Inútil e frustrânea tentativa!‖. O
narrador empolga-se e continua sua menção ao fato histórico, dando ar de protesto
pelo esquecimento do passado glorioso vivido pelos gaúchos rio-grandenses:
1 O autor, equivocadamente, atribui a autoria de Gulliver a Smith, quando o correto é Jonathan
Swift. Lilliput é uma ilha fictícia do romance As Viagens de Gulliver, parte de um arquipélago
situado em algum lugar do Oceano Índico. A população de Lilliput constitui-se de pessoas
minúsculas (com menos de seis polegadas de altura, cerca de 15 centímetros), para as quais
Gulliver é um gigante. Niel-Klim- uma sátira fina, esclarecida, mordente, que, sob a capa da
alegoria, faz forte crítica. Com vistas a ridicularizar os erros do seu país e de seu tempo, Holberg
cria a personagem Niel Klim, um estudante honrado que vai descobrir uma gruta, a qual chama de
planeta, em que os homens são árvores. Andam e falam, e a nobreza se expressa pelo número de
galhos. Fonte: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb000001.pdf
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―Tradições tão brilhantes, grandiosas e sublimes não se extirpam, morrem com o
povo em que nasceram, são a arca santa, o tabernáculo de miríadas de gerações‖
(PORTO ALEGRE, 1987, p. 112).
Depois de aberto esse parêntese na narração da história do Sr. Oliveira,
para contar sobre as tradições gloriosas e, ainda esclarecer sobre a revolução
farroupilha e o monarca das coxilhas, o leitor é conduzido para conhecer Sancho,
o ―monarca das coxilhas‖, cujo caráter exemplar é garantido pelo narrador:
Sancho Escafusa era um verdadeiro monarca. Ninguém montava
como ele. E demais monarca das coxilhas, o que significa não só o
perfeito e garboso cavaleiro, mas o janota do pampa, que traça o pala
de vicunha com inimitável faceirice sobre os ombros e traz o pingo
coberto de pratas e fina lonca (PORTO ALEGRE, 1987, p. 112).
Evidenciamos, no conto, que a monarquia está associada ao fato de ser
bom cavaleiro, ao gosto pelo bem vestir, e o cavalo belamente encilhado. Em
meio à expectativa do Sr. Oliveira para conhecer o monarca, o conto desloca-se
para descrever a atividade de Sancho, o qual está com as duas irmãs e um escravo
trabalhando na safra da erva mate: ―Escafuza está junto a uns jiraus, sobre os
quais a erva sapecada de véspera passava pelo processo da torrefação a fogo
lento‖ (1987, p. 112). Na descrição da atividade que estava sendo realizada pelo
monarca notamos o traço regionalista da ―democracia rural‖, sinalizado por
Zilberman (1980, p. 36), pois estancieiros, campeiros, escravos ou peões
aparecem juntos nas lidas, como podemos observar na seguinte passagem do
conto:
Numa vasta eira que havia dentro do mato, área que servia para passar
ligeiramente pelas chamas os ramos tenros da congonha apenas
colhidos, e donde iam em seguida aos jiraus, duas moças, senão belas
ao menos lindas, separavam nas joeiras o pó fino do grosso, levando
este aos pilões, onde devia ser pisado para a continuação do fabrico.
Com tal trabalho os ervateiros estavam verdes, e não se podia
distinguir a face do senhor da do escravo (PORTO ALEGRE, 1987, p.
112).
O fato de o narrador não distinguir a face do senhor da do escravo, remete-
nos para a organização da sociedade primitiva rural, constituída por dois
segmentos principais: os fazendeiros e os peões; há expressão de solidariedade
compartilhada por ambos, através de suas virtudes e de sua relação com a
86
estância. O texto regionalista narra a divisão social, mas não a desigualdade, pois
a atividade comum entre os segmentos sociais justificaria a ―democracia‖.
Depois de muito cavalgar, avistaram um pequeno rancho. O senhor
Oliveira começou a se arrumar para, então, conhecer o monarca das coxilhas. Ao
se aproximarem, quem abre a porta do rancho é uma velha africana. O primeiro
contato com o rancho é descrito sem muitos detalhes, mas revela a percepção de
Oliveira: ―A primeira peça, em que se achou o nosso herói, era uma sala de forro
de telha vã, chão de argila e paredes de taipa‖. Mais tarde resolveu examinar a
habitação e então relatou o seguinte:
Dos exames feitos, resultou o seguinte inventário: Três mochos em
mau estado, a um dos quais faltando uma perna. Duas mesas
toscamente trabalhadas. Três catres usados. Uma arca de guajuvira.
Tristes utensílios de cozinha. Sete pratos de louça branca, algumas
quengas. Dois alguidares, um dos quais rachado. Cinco gamelas de
timbaúva. Dezessete cuias e oito bombas. Dois sapicoás. Abundância
de surrões de couro. Dois carros de bois sob um telheiro. Cinco laços
e três pares de bolas. Vinte ajoujos, dez brochas, dez tiradeiras, duas
rijeiras e um feixe de ligais. Ferramenta e um banco de carapina
(PORTO ALEGRE, 1987, p. 114).
Notadamente, as posses do monarca estão todas relacionadas à sua
atividade e vida no campo; em seu inventário, seus objetos referem-se ao
exercício da monarquia. Aquilo tudo era estranho para o citadino, diante do
contato com Sancho e sua família – os quais descreve como ―verdes de erva‖, em
função de sua atividade no campo. Para Oliveira, parece se tratar de novos seres,
ou, ainda, seres de uma ―nova raça‖; também os julga diferentes por não
derramarem nenhuma lágrima pela morte do irmão.
Mais fortemente, o contraste entre o campo e cidade vai, a partir de agora,
nortear as caracterizações, as impressões, por vezes em tom humorístico, com
relação à inadaptação de Oliveira para com aquele cenário campestre. O senhor
Oliveira tinha medo daquele lugar, dos insetos, sentia-se inseguro. Embora o
primeiro contato tenha sido de constrangimento, a família Escafuza logo se
acostuma com a presença de um estranho. O conto aborda, também, a diferença
entre o homem do campo e da cidade, demonstrando a superioridade do primeiro,
que era caracterizado como franco e hospitaleiro, em detrimento do segundo,
calcinado pelo positivismo mercantil:
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O monarca e suas irmãs ao princípio estiveram constrangidos com a
presença dum estranho, mas decorridos alguns dias a familiaridade
estabeleceu-se entre todos. O negociante, bom coração em fundo,
embora filho duma época de positivismo mercantil capaz de calcinar
todas as fibras do coração humano, em vista da franqueza e
hospitalidade já proverbiais dos rio-grandenses, começou a estima-los
sinceramente [...](PORTO ALEGRE, 1987, p. 117).
Oliveira também se aproxima de uma das irmãs de Sancho, a Amália, que
é descrita com infinda pureza e ingenuidade, diferente da descrição de Niquinha,
que vive nas redondezas:
Esta moça era duma beleza correta e magistral. Sua fronte podia
firmar-se num busto de Fídias sem ter que recear retoques do cinzel do
artista; o contorno de suas formas, a carnação fina e transparente de
sua cútis podiam substituir o corpo das banhistas Ingress, e talvez a
obra da natureza fosse menos censurável do que os frutos do pincel e
da palheta (PORTO ALEGRE, 1987, p. 116).
Niquinha e Sancho eram namorados; na história do início do
relacionamento, existe a afirmação da ―china‖ e do cavalo como elementos
essenciais da vida do gaúcho, pelos quais ele sofre, e vive. Sancho conhece a
moça, porém ficaram dois meses sem se ver. Ele sofre tanto que chegaram a
considerar o amor igual ao feitiço. No entanto, o reencontro foi típico de um herói,
pois Niquinha e sua mãe estavam em situação de perigo. Um novilho investia
contra as duas. Sem demora, Sancho primeiro deixa as moças fora de perigo e
depois luta bravamente com o novilho.
Apesar da superioridade representada pelo espaço campestre, Oliveira não
consegue se adaptar à vida rural. Assim, com o passar do tempo, consegue fazer
com que o monarca torne-se sócio do comércio no Rio Grande e, ainda, obtém a
mão de Amália. A promessa de Sancho é de, em um ano, voltar para casar-se com
Niquinha:
Afinal lá vou por essas cidades... Bastantes desejos tinha eu de Vê-las,
há muito. Deixo os pagos, deixo a querência. Que querem? Nem
sempre há de estar-se enfronhado nos ervais. Saudades vou ter... ó que
sim! E então da minha querida Niquinha?! Vou, mas num ano estou
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aqui rente com ela, e caso-me, por Deus! (PORTO ALEGRE, 1987, p.
119).
O duelo campo e cidade é narrado, no conto, em ambos os percursos:
primeiro, na viagem de Oliveira para a campanha e, depois, na viagem de Sancho
para a cidade. Para Sancho, a saída do campo representou o seu martírio. A
primeira dificuldade foi abandonar o cavalo, deixar seus hábitos já no início da
viagem, para usar carruagem e, mais tarde, um barco. O incômodo provocado
pelos novos meios de transporte causava-lhe enjoo:
O Sr. Oliveira veio trazer-lhe uma xícara de café. – Tome, mano.
Deve fazer-lhe bem. – Ai! Ai... Eu lá tomo essa cousa?! Nem um
chimarrão aqui!... Ah! Meus pagos! Quem mandou-me deixar-vos!?
Que dores nas fontes, mano! Que aflições! ... Eu morro...Ai! Ai! E
agarrava-se à amurada com ambas as mãos. (PORTO ALEGRE, 1987,
p. 120).
Já na cidade, os transeuntes diferenciavam Sancho dos demais e
chamavam-no de guasca, isso devido a sua forma diferente de pisar, pela sua
inadequação àquele espaço. Ressaltamos, nessa identificação e diferenciação, a
questão geográfica em sua definição dos traços biológicos das personagens: ―O
hábito da gineteação faziam-no também pisar contrafeito, o que por si só chamava
a atenção‖ (PORTO ALEGRE, 1987, p. 121). Na realidade urbana, duas coisas o
incomodaram seriamente: ―o andar todo vestido à urbana, e as areias‖, porém o
espetáculo da cidade lhe agradava. Sancho sentia falta da nostalgia do viver no
rancho, do cavalo baio, dos belos campos, essa saudade era infinda.
Para melhor adaptá-lo, Oliveira ofereceu-lhe uma ―chacra‖ e um cavalo:
―Houve melhoras sensíveis. Sancho apenas jantava seu churrasco sem sal
gotejando sangue e bebia o seu clássico chimarrão, o que preparavam meramente
para ele, porque seu mecanismo digestivo não se dava com iguarias da cidade, ia a
pé até a rua do Castro, donde saía montado‖ (PORTO ALEGRE, 1987, p. 121).
Sancho queria ―monarquear‖ na cidade e, nesse ímpeto, chegou a imaginar
que estava no campo, o que lhe causou preocupação e envolvimento com a justiça.
Depois disso: ―O infeliz monarca das coxilhas abandonou para sempre a
equitação, numa terra em que esta arte colhia só espinhos e dissabores‖ (p. 122).
Não podendo mais montar, seu trabalho foi lidar com a horticultura, para, assim,
lembrar-se dos tempos nas Missões. A ―chacrinha‖ se desenvolveu pelo trabalho
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do monarca, e em pouco tempo árvores frutíferas podiam ser vistas na antiga terra
de solo inculto e endurecido. A promessa seria maior se não fosse um novo
envolvimento de Sancho com a justiça e a polícia.
Desta vez, ele havia se envolvido em uma briga no momento em que, sem
intenção, na volta de seu trabalho, resolveu tirar as botas, que lhe incomodavam, e
enterrar o pé na areia. Ao retirar o pé, o faz de modo brusco, e acaba acertando a
face de um sujeito, que o chama de ―bêbado insolente‖. Assim, o motivo da briga
estava formado; o sujeito utilizava uma bengala de pau ferro e Sancho, que não
saía sem seu facão trazido da campanha, lutou em defesa. Tal briga o levou
injustamente à prisão, pelas acusações proferidas pela população.
Preso, o monarca revoltou-se contra a sociedade, e foi humilhado: ―O
cárcere para ele era o maior desdouro, a maior afronta a um homem de brios.
Quase enlouqueceu nas vigílias da prisão‖ (PORTO ALEGRE, 1987, p. 124).
Depois desse fato, Sancho concluiu, definitivamente, que a cidade não era seu
lugar e, como havia prometido para Niquinha, voltou para o aconchego do campo,
deixando para trás as duas irmãs, mas ainda mantendo a sociedade com Oliveira.
Neste conto, podemos identificar a recuperação da figura do herói já
inscrito no imaginário coletivo através do cancioneiro, principalmente a partir de
dois elementos: as cenas campestres e o vocabulário regional, com vistas a
representar o tipo humano campeiro, suas tradições e hábitos e torná-lo assim
conhecido. Cenário e linguagem correlacionam-se em sua narrativa; ao primeiro,
o autor dedica o seu olhar atento e manifesta em uma escrita detalhista daquilo
que visualizou, ao mesmo tempo em que revela sua origem. Ainda, através da
relação campo e cidade, conseguimos apreender a importância do local para a
configuração da personagem na narrativa, assumindo, inclusive, um conjunto de
valores. A valorização do passado, na saída de Sancho do campo e sua
inadaptação ao novo, revelam a integração da personagem a uma ordem natural –
o pampa, o cavalo, a simplicidade do rancho atentando para o fato de que o
estranho será sempre o homem que vem de outro espaço.
3.1.2. Influências real-naturalistas, desaparecimento do herói: Darcy
Azambuja
90
Embora os escritos de Darcy Azambuja preconizem uma ideologia
conservadora de idealização do gaúcho herói, preservando seus valores e
qualidades, o apego à terra, o trabalho campeiro, as descrições das paisagens e
tipos humanos são transcritas de modo realista, sem exaltações e ornamentos
típicos do primeiro regionalismo de influência romântica. O regionalismo da
literatura sul-rio-grandense, através de Azambuja, foi atualizado, e seu livro No
galpão acaba por introduzir uma nova visão literária.
Zilberman considera que No galpão traz consigo duas fases do
regionalismo gaúcho: o saudosismo atrelado ao passado gaúcho e a própria
alteração dessa vertente, afetada pela modernização e pelas modificações na
economia agrícola:
No galpão dá as pistas para um eventual percurso da prosa
regionalista: cabia-lhe explorar estes veios relativos à condição
marginal e alienada do trabalhador do campo e as transformações por
que passou a economia gaúcha, a fim de poder sobreviver enquanto
assunto literário, ou manter-se nesta valorização de um passado cada
vez mais mumificado devido ao desaparecimento das circunstâncias
que marcaram o seu nascimento (ZILBERMAN, 1980, p. 65)
A obra No galpão foi configurada como a criação mais importante do
autor, justamente porque Azambuja consegue entrelaçar o passado regionalista e o
futuro da própria vertente regionalista, ou seja, ao mesmo tempo em que Darcy
Azambuja ajudou a legitimar um imaginário voltado para a campanha, procurou,
ainda, atualizar e preservar aspectos e valores inscritos na memória coletiva.
O espaço a ser representado no modelo regionalista de Azambuja, assim
como na maioria das obras de cunho regionalista produzidas no Rio Grande do
Sul, é a campanha, lugar privilegiado que se destaca diante das demais regiões,
inclusive do meio urbano, configurando-se, portanto, como o espaço natural do
monarca, do guasca livre. Especialmente na obra de Azambuja, o leitor vai
identificar essa relação com a campanha em um plano memorável, pela
rememoração do passado em virtude da rejeição atribuída à modernização.
No galpão, publicado em 1925, é composto por dezesseis contos: ―Fogão
gaúcho‖, ―Contrabando‖, ―Carreteiros‖, ―Brinquedo pesado‖, ―Juca da
91
Conceição‖, ―Por pena‖, ―Velhos tempos‖, ―Querência‖, ―Charla‖, ―Dia de
chuva‖, ―Andarengo‖, ―Lagoa morta‖, ―Fazendo aramado‖, ―Beira de estrada‖,
―Emboscada‖ e ―Passo brabo‖. Em cada um dos contos são representados
personagens típicas tanto da cidade como do campo, através de uma linguagem
poética, sensível, em que a paisagem e a campanha fornecem os predicados que
caracterizam o gaúcho e o período de modernização sofrido por esse.
O conto selecionado, ―Velhos tempos‖, aborda os sentimentos de
despertencimento, estranhamento, causados pela invasão da tecnologia no espaço
campeiro; nesse sentido, vamos identificar o rural e o moderno em confronto e,
ainda, o passado exposto pelo viés da saudade com a qual a personagem recorda
seus bons e velhos tempos, tempos de guerras e glórias, os quais o protagonista,
Severo, vivenciara outrora.
O início do conto narra o olhar do velho gaúcho Severo para a estância,
quando já estava fora de suas divisas, no alto de coxilha. Seu último olhar já é
permeado pela diferença, pelo desânimo e pela saudade, pois ele nem reconhece o
antigo campo natal e, por isso, estava abandonando-o:
Não parecia o mesmo. E ele, que nascera ali, e vivera e envelhecera
entre aquelas dobras verdes da terra, já quase não conhecia mais o
pago. Retalhara-o em pedaços um emaranhamento constritor de
aramados inumeráveis. Aproveitando-o melhor, tinham-no deformado
e morto, matando-lhe a alma imensa, que era a vertigem de extensão
desmarcada (AZAMBUJA, 1960, p. 81).
Agora ele não via mais os campos abertos em que o gado corria solto; tudo
o que os seus olhos alcançavam eram os pedaços de terra, envoltos por aramados,
que haviam sido feitos para um melhor aproveitamento econômico:
Já não se corria o gado, não se laçava mais campo fora. O brete
monotonizara as agitadas marcações, e os animais de raça não exigiam
o trabalho rude mas alegre dos crioulos. De raro em raro, um rodeio,
sem correrias, sem imprevistos. O movimento desenvolto, sem peias,
a agitação primitiva e rude da gauchada, constringira-se, afeiçoara-se
forçadamente às normas novas, regulares, calculadas
(AZAMBUJA,1960, p. 82).
Podemos observar que o abandono do campo por Severo se explica devido
à mudança bruta nos costumes e tradições relativas à vida antiga na estância: ―E
tudo mais era assim, estranho e incomum. Parecia um sonho tão profunda
92
mudança nas cousas e nos costumes de outrora‖ (1960, p. 82). Azambuja tipifica o
peão-guerreiro, acostumado com a lida campeira, habituado, ainda, a pelear tanto
em guerras como no trabalho na campanha. Para o velho gaúcho as mudanças
eram desconcertantes, ele se sentia invadido. Essa ―invasão‖ é justamente a
ocupação do espaço e do serviço pelas máquinas:
Aquela invasão de máquinas, sobretudo, doía-lhe profundamente. À
beira do arroio, dia e noite chiavam os locomóveis, captando água
para os arrozais. E a água límpida, sugada pelos tubos negros e
premida violentamente para as calhas, espirrava pelas fissuras,
querendo libertar-se, e parecia chorar (AZAMBUJA, 1960, p. 83).
Porém, a chegada da modernidade, além de modificar a paisagem na qual a
personagem está inserida, modificou também as pessoas e as relações entre elas,
causando enorme estranhamento. Seu olhar corre para o campo e, também fixa-se
no lugar em que antes se encontrava o velho casarão, agora todo reformulado:
―sobre os seus alicerces erguera-se a Granja Nova. Via-lhe de longe as telhas
francesas, as cúpulas, as torrezinhas pontiagudas, tudo tão leve, tão diferente da
antiga‖ (p. 83). Notamos que a personagem não aceita nem a invasão de
máquinas, muito menos a ―gente esquisita‖:
A gente também não era mais a mesma. Os patrões do outro tempo,
rudes e lhanos como ele, filhos dos pagos, gaúchos de lei, tinham
morrido ou se afastado. E não pudera habituar-se à gente nova,
esquisita, de costumes estranhos, que passeava de automóvel pelo
campo e vivia mais na cidade. Até as moças... Louras, claras, que
andavam a cavalo, vestidas de homem, rindo e falando alto – não
podia acreditar que fossem patrícias, tão diferentes das morenas
recatadas dos outros tempos (AZAMBUJA, 1960, p. 84).
Para Severo, tais mudanças representavam a morte do pago. Só sentia-se
alegre quando se aproximava dos mateadores no galpão e contava-lhes a história
de ―outro tempo‖, o velho tempo que, em sua acepção, humilhava-os. Sua alegria
está arraigada ao passado; na possibilidade de contar, reviver e reconstruir, ainda
que imaginativamente, os velhos tempos, estavam seu motivo para reanimar-se e
seguir vivendo. São episódios que relembram, além da vida no campo, episódios
guerreiros, como quando rememora episódio ocorrido durante a Guerra da
Tríplice Aliança, quando sob o comando do general gaúcho Osório, atravessa o
rio Paraná no Passo da Pátria, entrando no território inimigo. Assim, movido por
93
uma linguagem breve e enérgica Severo revive através da lembrança a guerra
grande:
Foi logo depois do Passo da Pátria. Estávamos acampados assim numa
recosta, na beira dum mato ralo. Quase toda a cavalaria meio cansada,
mas como aspa de novilho, de afiada. O seu general Osório tinha
mandado um reconhecimento, e esperava-se a toda hora o toque de
encilhar. A paraguaiada... (AZAMBUJA, 1960, p. 85).
Evidenciamos que o fato de relembrar o período da guerra fortalece um
traço histórico que acentua, de um lado, a violência gratuita e, de outro, a
violência em nome da honra. Ainda, a prontidão para lutar mesmo em meio ao
cansaço é motivo para vanglória diante dos demais. Depois de contar suas
histórias, Severo novamente voltava ao seu isolamento, cada vez mais infindo,
pois sentia que precisava deixar para sempre a Granja Nova.
Indiferente à maneia como vivia aquela ―gente nova‖, ele partiu
carregando junto a si o desprezo a todos, inclusive ao lugar em que trabalhara
setenta anos: ―Parece mentira! Quem diria que aquilo tudo mudasse do dia para a
noite... A casa velha derrubada‖ (1960, p. 86). Notamos que a alusão à campanha,
como matriz de uma identidade cultural, sustentadora de todo um imaginário, não
se dá apenas pela descrição física e da paisagem, mas, sim, pela apresentação
desta última como espaço de um passado heroico: ―O velho pôde, então, naquela
derradeira vista de conjunto, ver quanto estava mudado o seu campo natal‖ (p.
87).
A substituição de valores é pouco apreciada pela velha geração, a qual
representa na narrativa o mundo gauchesco autêntico. Nesse sentido, a decadência
apontada associa-se, de um lado, ao abandono da tradição e, de outro, atrela-se ao
fato da modernização. Ainda assim, observamos que, ao condenar o moderno, as
circunstâncias que motivaram tal modernização são omitidas, dentre as quais
Zilberman (1985, p. 30) enfatiza a associação com o capital estrangeiro e a
manutenção da política de exportação dos produtos primários, como a carne, o
couro, acentuando a vocação de dependência da economia regional.
No conto, a vida nova, representada pelo presente, repele a personagem;
seu olhar durante a saída e afastamento do campo, parecia querer gravar, ou até
mesmo buscar, a antiga paisagem, para carregá-la consigo. O sentimento de
abandono era predominante; contudo, o olhar para o horizonte lhe acalmava, pois:
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―surgiam recordações, trechos do passado, fragmentos de outras vidas, outros
tempos povoando o mesmo cenário. A animação crescia, cercava-o [...]‖ (1960, p.
87).
Severo vive no passado e se recusa a aceitar as modificações do presente;
apenas se reencontra quando um dos aspectos mais marcantes do seu passado
retorna ao presente, a guerra. Um ano se passou; após esse corte temporal, inicia-
se um segundo momento, em que a paz anterior se opõe à atividade guerreira. Era
setembro, de novo, ―uma primavera de sangue‖ (p. 88), e a revolução de 1923
devolve à personagem sua antiga vida: ―O pampa convulsionava-se em mais uma
guerra civil‖ (p. 88). Severo está de volta, lutando, mas feliz, porque o seu pago
havia revivido:
A comoção empolgou, repetindo fielmente as fases de desdobramento
das lutas anteriores. Mobilizavam-se os homens, mudavam-se os
gados, sítios eram abandonados, grupos cruzavam-se, reuniam-se,
engrossando; piquetes autônomos, corpos defluindo às agregações
prefixadas; brigadas volantes, divisões efêmeras. A fronteira animava-
se como no tempo das invasões; tropas de gado emigrando para
invernadas seguras, grupos de guerrilheiros indo e vindo,
contrabandos de equipamento às forças improvisadas – a osmose
secular de três povos em contato (AZAMBUJA, 1960, p. 88).
A guerra une o passado e o presente, permitindo a consagração do tipo
humano sulino e de seus valores: a coragem, a bravura e a entrega da própria vida
em benefício de sua terra: ―O combate foi bem defronte à Granja Nova. Desde o
começo da revolução, aquela região povoada e fértil, a cavaleiro de rumos
propícios para incursões e retiradas, vinha sendo constantemente batida pelas
forças em luta‖ (1960, p. 90).
A força de sua memória realizava-se, proporcionando-lhe a alegria de
reviver seus momentos de glória, suas velhas saudades, os velhos tempos que
sempre viveram para ele:
E a pouco e pouco consumou-se a destruição do labor de tantos anos.
Os aramados por terra, as taipas arrombadas, queimado como lenha o
madeiramento das calhas, o arrozal amassado na lama endurecida, as
máquinas enferrujando às intempéries, abatidos os rebanhos, as
invernadas feito campo raso, logradouro de quem quisesse [...] Todo o
campo talada e aberto. Fizera-se arena, onde sempre tremulava alguma
flâmula de guerra (AZAMBUJA, 1960, p. 91).
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Inclusive, parece que a guerra ia devolvendo à campanha a sua antiga
condição, pois durante a guerra é narrada a desconstrução de tudo aquilo que
modificara o espaço campestre e que não permitia a identificação de Severo no
início da narrativa:
A pouco e pouco o assalto ganhava terreno. As telhas da Granja
voavam em estilhas e na copa enfolhada dos plátanos os projéteis
esfuziavam, derrubando chuvas de ramos e folhas. O ar vibrava de
zunidos, ruflos, assobios, e estralejar das metralhadoras. De quando
em quando, através da cerca que servia de trincheira, braços erguiam-
se, convulsos, e tombavam (AZAMBUJA, 1960, p. 92).
O inimigo não é revelado; o que importa é que a bravura, uma vez mais, se
faz necessária na defesa da terra: ―Lances de louca bravura entremeavam os de
ódio e desespero. De lado a lado os combatentes resguardavam, e morriam, uns
sorrindo, outros gemendo fracamente, alguns praguejando‖ (1960, p. 93).
Severo, ―remoçado‖, estava entre os da ―testa‖: ―Remoçara, de fato, com a
vida guerreira. Sentia-se novo, e aguentava alegre, como ―da outra‖, a existência
vibrante e dura de marchas forçadas, de acampamentos, sempre no lombo do
pingo, combatendo sempre, comendo quando Deus queria‖ (1960, p. 93). No
entanto, dessa última guerra, já no final, uma lança em riste acertou Severo, que
ficou ouvindo os fortes ruídos e, ainda morrendo, em uma última visão, levou
consigo os pagos de antigamente:
tudo aberto, escampo, e o solar feito baluarte estrondejante de
descargas em meio a campanha em guerra... E o duro lutador ainda
murmurou: - Agora sim... Agora sim, os seus pagos tinham revivido.
E, pendeu a cabeça, os olhos já vidrados, consolado em morrer pela
vida que voltava (AZAMBUJA, 1960, p. 94).
Observamos que, em ―Velhos tempos‖, a memória da personagem é que
evidencia os principais aspectos que revelam o passado e, ao mesmo tempo,
diferenciam-no do presente. Além disso, a memória de Severo interfere no
processo de significação das mudanças relativas à chegada da modernidade; são as
recordações do passado que o fazem rejeitar as modificações do presente, uma vez
que o passado interfere diretamente nas relações estabelecidas com o presente.
Em sua narrativa, Azambuja expressa aspectos muito significativos do
regionalismo gaúcho, mesclando a temática da saudade com o viés da
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modernidade e dos costumes gaúchos. O autor apresenta a guerra, elemento do
passado, de modo bem vivo, no presente. Os velhos tempos da personagem
ganham sentido junto às recordações, porque enfrentam o presente, contrastando
com a modernidade. Ainda acrescentamos que o regionalismo assumido por
Azambuja decorre, principalmente, devido a influencia de três fatores: o espaço, o
tempo e a história em que, em vez da denúncia que observaremos mais tarde em
Cyro Martins, está presente a nostalgia que contradiz a tendência da idealização
dos primeiros regionalistas.
3.1.3 Tradição e inovação sob o influxo do modernismo: João Simões Lopes Neto
Nascido em 1865, Simões Lopes Neto faleceu em 1916, antes de conhecer
a glória. Até esse período havia publicado três obras: Cancioneiro Guasca
(1910), Contos Gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913). Contos gauchescos
teve sua origem no Cancioneiro Guasca, livro que contribui, de modo muito
especial, para a história cultural e foi organizado por Simões.
Contos Gauchescos obteve seu reconhecimento apenas na sua segunda
edição, publicada pela Editora Globo, em 1926. Tal reconhecimento fez com que
o conto regionalista rio-grandense atingisse a sua maioridade: Bittencourt (1999,
p. 24) afirma que as narrativas de Lopes Neto serviram de modelo a toda uma
corrente da gauchesca que se desenvolveu no Rio Grande do Sul ao longo dos
anos 20 e início dos 30. Sob a influência modernista, a releitura da obra de Simões
pode evidenciar a conservação dos traços tradicionais do regionalismo, os quais
reforçaram ainda mais o gosto pelos temas locais, o culto pelas raízes culturais e
também pelo patrimônio histórico; por outro lado, evidenciamos, na obra de
Simões uma heterogeneidade de influências, dentre as quais heranças
alencarianas, cancioneiras, e do real-naturalismo. Contudo, Blau Nunes, seu
inimitável narrador, também se distingue dos padrões do realismo, pelo uso de
uma voz narrativa interior ao mundo representado, narrando a realidade com
subjetividade.
No prefácio da obra, o vaqueiro Blau (e também narrador) é apresentado
ao leitor por um narrador anônimo a quem os patrícios gaúchos (os leitores)
devem escutar. Patrício escuta-o:
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Genuíno tipo – o crioulo – rio-grandense (hoje tão modificado), era
Blau o guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria
e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado
de uma memória de rara nitidez brilhando através de imaginosa e
encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco
dialeto gauchesco ( NETO, 1912, p. 3).
Percebemos, nessa imagem, uma representação do povo gaúcho e, ainda
uma aproximação/identificação do leitor com o contador de história de qualidades
extremadas. São suas características, suas qualidades e, principalmente a sua
identificação com o homem de outros tempos que permitem que ele seja tomado
para tipificar o homem gaúcho. Simões Lopes Neto faz largo uso do léxico e
sintaxe próprios da linguagem da campanha. Assim, mantém a ―cor local‖, própria
do regionalismo, sem romper com a tradição literária, fazendo, porém, universal
também a sua linguagem. O espírito heroico do gaúcho está relacionado,
especialmente nas narrativas de guerra, à defesa das fronteiras e, na maioria das
vezes, à Revolução Farroupilha.
Com relação às personagens de suas narrativas, Zilberman resenha, com
muita propriedade, os seres que desfilam nos Contos Gauchescos:
Desfila, assim, uma galeria de seres que apresentam características
semelhantes às do narrador ou que pertencem ao mesmo eixo.
Independentemente de sua classe social ou, sobretudo, de seu posto na
hierarquia militar, todos os agentes das narrativas são acima de tudo
homens corajosos, desconhecendo os limites legais (podendo até ser
um fora-da-lei, como Jango Jorge), morais, como o negro Bonifácio,
ou sociais, como na maioria dos contos (ZILBERMAN, 1980, p. 41).
O meio social em que ocorrem as narrativas é instável e, isso é proveniente
da ausência de uma autoridade instituída, pois nos Contos Gauchescos não existe
classe política; cada estância é um mundo à parte, os campos são abertos,
ilimitados. Essa realidade demanda a necessidade da coragem pessoal para a
defesa individual de cada personagem. O mundo retratado é o passado, é a
reprodução das relações entre homem e o espaço, inerentes ao regionalismo.
O livro é composto por dezenove contos, dentre os quais selecionamos
―Trezentas Onças‖, o qual evidencia a marca regionalista por meio da tríade
homem, o espaço e tempo. É o primeiro conto do livro, narrado em primeira
pessoa. Blau Nunes atua como narrador-personagem, contando uma história da
época em que era um vaqueano: ―Eu tropeava, nesse tempo. Duma feita que
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viajava de escoteiro, com a guaiaca empanzinada de onças de ouro, vim varar aqui
neste mesmo passo, por me ficar mais perto da estância da Coronilha, onde devia
pousar‖ (2003, p. 13).
Logo no início do conto, Blau Nunes localiza o leitor com relação à
marcação temporal: ―Parece que foi ontem!... Era fevereiro; eu vinha abombado
da troteada‖ (2003, p. 13). Ao contar seu causo, evidenciamos que o conto
configura a imagem do próprio Blau, e, através desse, as características do homem
do campo. A paisagem é significativa para estabelecer e ao mesmo tempo
revelar a harmonia existente entre o vaqueiro e a natureza:
— Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma reboleira de mato
que está nos vendo, na beira do passo, desencilhei; e estendido nos
pelegos, a cabeça no lombilho, com o chapéu sobre os olhos, fiz uma
sesteada morruda. Despertando, ouvindo o ruído manso da água tão
limpa e tão fresca rolando sobre o pedregulho, tive ganas de me
banhar; até para quebrar a lombeira... e fui-me à água que nem
capincho! Debaixo da barranca havia um fundão onde mergulhei umas
quantas vezes; e sempre puxei umas braçadas, poucas, porque não
tinha cancha para um bom nado (NETO, 2003, p. 13).
Da mesma forma, Blau deixa claro, em seu causo, o lugar ocupado pelos
animais, o cavalo e o cachorro, os quais, além da natureza, são sua única
companhia: ―E solito e no silêncio, tornei a vestir-me, encilhei o zaino e montei
[...] — Ah! ... esqueci de dizer-lhe que andava comigo um cachorro brasino, um
cusco mui esperto e bom vigia‖ (p. 13).
Depois do descanso embaixo na sombra da árvore, o vaqueano seguiu em
seu trote, porém logo observou a agitação do cachorro, o qual, segundo Blau,
parecia que o chamava: ―Durante a troteada bem reparei que volta e meia o cusco
parava-se na estrada e latia e corria pra trás, e olhava-me, olhava-me e latia de
novo e troteava um pouco sobre o rastro‖ (p. 14).
A angústia toma a figura do gaúcho, no momento em que este, ao chegar à
estância, dá-se conta de que havia perdido grande quantia em dinheiro, trezentas
onças de ouro, que estavam em sua guaiaca: ―Quando botei o pé em terra na
ramada da estância, ao tempo que dava as – boas tardes! – ao dono da casa,
aguentei um tirão seco no coração... não senti na cintura o peso da guaiaca!‖
(2003, p. 14).
Os animais ocupam na narrativa um lugar significativo, a ponto de o
vaqueano estabelecer com eles uma comunicação muito particular. Simões dá à
99
natureza uma linguagem própria, que permite ao campeiro interpretá-la, pois no
momento de desespero é o cachorro quem dá demonstrações de que sabia o local
onde estava a guaiaca, dando sinais de que teriam que retornar:
Nisto o cusco brasino deu uns pulos ao focinho do cavalo, como
querendo lambê-lo, e logo correu para a estrada, aos latidos. E olhava-
me, e vinha e ia, e tomava a latir...Ah!... E num repente lembrei-me
bem de tudo. Parecia que estava vendo o lugar da sesteada, o banho, a
arrumação da roupa nuns galhos de Sarandi, e, em cima de uma pedra
a guaiaca e por cima dela o cinto das armas, e até uma ponta de
cigarro de que tirei uma última tragada [...] (NETO, 2003, p. 15).
Observamos que a afinidade entre homem e os animais o fazem recordar
do seu trajeto e lhe dão a esperança de encontrar a guaiaca; além disso o cachorro,
ao conseguir ajudar o vaqueano, também parece efetivamente estabelecer
comunicação com ele: ―Num vu estava a cavalo; e mal isto, o cachorrinho pegou a
retouçar, numa alegria, ganindo – Deus me perdoe! – que até parecia fala!‖ (p.
15).
No caminho de volta, para encontrar a guaiaca o vaqueano se depara com
uma comitiva de tropeiros que aos seus olhos estavam indo em direção à estância
para passar a noite. Porém, a busca pela guaiaca, o fato de ser honesto com seu
patrão estava em primeiro plano.
Zilberman (1980, p. 40), ao demonstrar a importância do cenário para o
gaúcho, afirma que, em Simões, além de a paisagem comunicar-se com o
protagonista, ela, ainda, representa imageticamente a temática do conto, pois, para
a autora ―se Blau apresenta os lugares por onde passou à procura de sua guaiaca, a
descrição nunca visa à identificação do pitoresco na paisagem sulina, mas a
denunciar a solidão e o abandono do herói, quando de sua busca alucinada do
objeto perdido‖. Isso fica patente, por exemplo, quando os campos abertos são
descritos em sua serena vastidão e silêncio, que contrastam com a alma aflita e
amargurada do herói à procura das moedas perdidas:
A estrada estendia-se deserta; à esquerda, os campos desdobravam-se
a perder de vista, serenos, verdes, clareados pela luz macia do sol
morrente, manchados de pontas de gado que iam se arrolhando nos
paradouros da noite; à direita, o sol; muito baixo, vermelho-dourado,
entrando em massa de nuvens de beiradas luminosas. Nos atoleiros,
secos, nem um quero-quero: uma que outra perdiz, sorrateira, piava de
manso por entre os pastos maduros; e longe, entre o resto da luz que
100
fugia de um lado e a noite que vinha, peneirada, do outro, alvejava a
brancura de um joão-grande, voando, sereno, quase sem mover as
asas, como uma despedida triste, em que a gente também não sacode
os braços... (NETO, 2003, p. 15).
O conto revela um gaúcho que é ao mesmo tempo destemido e sensível,
como podemos observar nos trechos: ―Há que tempos eu não chorava!... Pois me
vieram lágrimas... devagarinho, como gateando, subiam... tremiam sobre as
pestanas, luziam um tempinho.‖ (2003, p. 16).
Ao chegar ao local onde havia deixado a guaiaca, verificam que a guaiaca
não estava mais lá: ―Desci, dei com o lugar onde havia estado; tenteei os galhos
do sarandi; achei a pedra onde tinha posto a guaiaca e as armas; corri as mãos por
todos os lados, mais pra lá, mais pra cá...; nada! nada!.‖..(p. 16-17). O susto leva
Blau ao desespero, a ponto de desejar morrer antes de ser visto como ladrão:
―Então, senti frio dentro da alma... o meu patrão ia dizer que eu o havia
roubado!... roubado!... Pois então eu ia lá perder as onças!... Qual! Ladrão, ladrão,
é que era!.‖.. (2003, p. 17).
O peso vinha contra o sossego de homem, de palavra, de fidelidade e
confiança: ―Tirei a pistola do cinto; amartilhei o gatilho... benzi-me, e encostei no
ouvido o cano, grosso e frio, carregado de bala...— Ah! patrício! Deus existe!‖.
(p. 17). E, assim, muito próximo de tirar sua própria vida, Blau encontrou
primeiramente na natureza, e, especialmente, na companhia amiga do cavalo e do
cusco, os motivos para desistir de se matar. Toma-os como enviados por Deus,
seres que lhe transmitem a mensagem da preservação da vida:
- Ah! Patrício! Deus existe!...No refilão daquele tormento, olhei para
diante e vi... as Três-Marias luzindo na água... o cusco encarapitado na
pedra, ao meu lado, estava me lambendo a mão... e logo, logo, o zaino
relinchou lá em cima, na barranca do riacho, ao mesmíssimo tempo
que a cantoria alegre de um grilo retinia ali perto, num oco de pau!...
— Patrício! não me avexo duma heresia; mas era Deus que estava no
luzimento daquelas estrelas, era Ele que mandava aqueles bichos
brutos arredarem de mim a má tenção...(NETO, 2003, p. 17)
Os animais, nesse momento de decisão, também recuperam, no vaqueano,
a importância da família e dos valores que norteiam o gaúcho, como podemos ver
no trecho que segue: ―O cachorrinho tão fiel lembrou-me a amizade de minha
gente; o meu cavalo lembrou-me a liberdade, o trabalho, e aquele grilo cantador
trouxe a esperança‖ (NETO, 2003, p. 17). Pela família, pela liberdade, pelo
101
trabalho e esperança, Blau desistiu de tirar sua própria vida: ―matar-se um
homem, assim no mais... e chefe de família... isso, não!‖ (p. 17).
Blau decide voltar, assumir sua culpa e vender os seus bens para pagar a
dívida: ―Agora... era vender o campito, a ponta de gado manso – tirando umas
leiteiras para as crianças e a junta dos jaguanés lavradores – vender a tropilha dos
colorados... e pronto!‖ (p. 17). Novamente os animais – seus companheiros de
viagem – compartilham de sua decisão e de seus sentimentos, pois ambos, a seu
modo, demonstram tal contentamento: ―E despacito vim subindo a barranca;
assim que me sentiu, o zaino escarceou, mastigando o freio. Desmaneei-o,
apresilhei (o cabresto; o pingo agarrou a volta e eu montei, aliviado. O cusco
escaramuçou contente‖. (p. 17)
Para a alegria e alívio de Blau, quando ele chega à casa de seu patrão sua
guaiaca com as trezentas onças havia sido trazida pela comitiva de tropeiros: ―Em
cima da mesa a chaleira, e ao lado dela, enroscada, como uma jararaca na
ressolana, estava a minha guaiaca, barriguda, por certo com as trezentas onças
dentro‖ (2003, p. 18). O fato de Blau Nunes, ao chegar à estância, encontrar a
guaiaca perdida, retoma a questão da lealdade, da honestidade dos peões, que
assim como Blau, homens simples e honestos, devolveram a guaiaca ao dono. De
modo geral, o conto narra trajetória de homens em que a lealdade figura, pois
temos essa qualidade associada tanto a Blau quanto para os tropeiros, bem como
ao patrão, ―sujeito de contas mui limpas‖ (2003, p. 14).
Ao contrário do que pode-se supor em uma primeira leitura, esse conto
fala da vida e não da morte, pois nele prevalecem os valores evidenciados no
próprio apego ao viver, expressos através de manifestações positivas, que se dão
através da natureza, do retorno à casa do patrão, da esperança na volta para casa e
da recepção festiva e bem humorada de gente de bem, os tropeiros, que, assim
como ele, praticam a honestidade.
Por meio de uma linguagem coloquial, do uso de expressões espanholas e
muitas interjeições o conto, não somente revela os elementos que definem a cor
local, os quais são vislumbrados a partir da personagem – tropeiro, cavalgando,
que viaja com seu cusco, a partir também da caracterização – uso da guaiaca e, de
todo o contexto que envolve a narrativa: todos são tropeiros, charqueadores, que
usam linguajar típico. Por outro lado, o conto reafirma as qualidades de Blau
anunciadas no prefácio da obra: homem leal, ingênuo, impulsivo na alegria e na
102
temeridade, ainda ―precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado de uma
memória de rara nitidez brilhando através de imaginosa e encantadora
loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco‖ (1912, p.
3 ).
No contexto em que se desenvolve a narrativa, podemos observar que
embora existam ―os que têm‖ e ―os que não têm‖, há uma constância no autor
Lopes Neto de posicionar-se ao lado ―dos que não tem‖ e, talvez por isso, a
narrativa desenvolva-se a partir do temor do homem honesto de ser considerado
ladrão. Além da divisão, notamos a manifestação da religiosidade nos momentos
de solidão e incerteza, apresentando, quem sabe, o único temor do gaúcho, o
temor, ou reverência, para com Deus: ―Deus me perdoe‖, ―Deus conserve‖, ―Deus
existe‖. Observamos que a universalidade da escrita simoniana se instala,
justamente, no fato de que mesmo sendo o gaúcho Blau, essa caracterização da
personagem pode ser aplicada a qualquer outro ―Blau‖, humilde, honesto e fiel.
3.1.4. O regionalismo crítico ou social: Cyro Martins
Campo fora é o primeiro livro de Cyro Martins, composto por quatorze
contos, publicado em 1934, pela Editora Globo. Nele o escritor recupera, através
da linguagem e nos próprios relatos, o viço da infância e adolescência, a
paisagem, as vivências da campanha, cujo foco principal, segundo Bittencourt
(1999, p. 31), é o gaúcho apegado a terra, seu telurismo, seus valores, embora já
se possam visualizar alguns traços de transição. Dentre esses, a autora menciona o
desaparecimento do confronto campo/ cidade e a abordagem da marginalização e
da pobreza do homem do campo. Na apresentação do livro Campo fora,
Guilhermino Cesar afirma que:
Cyro Martins, em sua estréia em 1934, com os contos regionais de
'Campo fora', trouxe ao gênero uma perspectiva social que todos os
críticos têm valorizado; e sob este ângulo é que, no futuro, será ainda
lembrado, quando todas as 'modas' de hoje estiverem esquecidas. Mas
a meu ver, há nele um traço que o singulariza entre seus
companheiros, tão importante, afinal, como sua temática: o modo de
narrar (CESAR, 1971, p. 5).
103
Para Guilhermino Cesar, esse livro de contos se tornou representativo da
gauchesca, de um modo "mágico e sutil, porque omite o espalhafatoso, o teatral"
[...] ―Fugindo a qualquer demasia, o admirável escritor rio-grandense recria a vida
sem pressa. É, portanto, um artesão consciente‖ (1971, p. 5). O conto selecionado
para análise é ―Tempo de seca‖, no qual vamos identificar uma prosa
comprometida com a denúncia das condições sociais da campanha, em que a
recuperação dos aspectos característicos do regionalismo são sinalizados sem
apresentar, porém, o ufanismo e a índole festiva.
A narrativa inicia contando a rotina diária de José Maria em seu ato de
resgatar as antigas e longas troteadas. Desde o início do conto, o leitor é
conduzido a ambientar-se em sua atmosfera, primeiramente através da linguagem,
depois pelo cenário típico sulino e, ainda pela descrição da personagem, que
recorda o fiel gaúcho centauro dos pampas:
José Maria madrugara grande, muito mais que de costume. E quem
visse o alarme da véspera – movimentos com cavalhada, da invernada
para o potreiro, daí para a mangueira, e logo cinco ou seis pingos
agarrados, e deixados no gancho até meia-noite para alevianar –
pensava em seguida: D. José ‗stá de tropeada... (MARTINS, 1978, p.
57).
No entanto, tal movimentação praticada pelo gaúcho, centauro dos
pampas, nada mais é do que como sinaliza o narrador, ―mania de velho‖, ou seja,
o velho gaúcho recorda o antigo viver através da repetição das atividades de
outrora, desde o despertar cedo ―no primeiro canto do galo‖ até a vontade de sair
em longa viajada. Essa ―mania‖, ou melhor, costume, é respeitado por todos:
―Ficava só o rebuliço normais. Todos achavam graça daquela mania de velho.
Mas toda gente respeitava D. José, que fazia aquilo tudo mui a sério‖ (1978, p.
57).
Depois disso, José Maria seguiu como de costume, mateando ―até o
apontar das primeiras barras do dia‖, para depois se deslocar ―a trotezito‖ em
direção à Estância da Figueira. “Tempo de seca”, revela a permanência da
temática regionalista através da personagem do campo na constística sul-rio-
grandense, porém observamos que o enfoque com que o mundo rural é analisado é
alterado, levando a uma tendência para a desmitificação, pois o interesse recai
104
sobre o peão, encarado agora na sua condição de trabalhador rural, assalariado,
sem posses nem visto como herói.
No entanto, é possível aproximar o conto de Cyro Martins à narração de
Blau Nunes em ―Trezentas onças‖, pois em “Tempo de seca‖, a natureza e o
velho campeiro comunicam-se mutuamente, fornecendo subsídios para a
compreensão da realidade que está sendo narrada. O homem do campo, o herói
agora velho mas ainda em seu cavalo, entende os sinais da natureza:
Quando ponteou a Serrinha, nascia o sol, dilatado e vermelho, fogo
vivo montando a aba do Cerro Grande. Sinal certo de que a seca havia
de prolongar-se ainda por mais dois ou três meses, mastigava,
concentrado e amargo, o velho campeiro experiente que era – sessenta
anos! Do campo e do tempo (MARTINS, 1978, p. 57).
Depois de observar o céu para tentar encontrar nele alguma nuvem que
pudesse simbolizar o término da seca, seu olhar se direciona para os animais:
―Tão descaídos! Também, água por ali, só a mais de légua. A animalada vivia
transitando inquieta, com sede e com fome‖ (1978, p. 58). E ainda seu olhar
recupera o chão ―aberto em largas brechas‖ nas quais o cavalo pouco a pouco
tropeçava: ―Culpado daquilo não era o pobre animal, era o tempo que não chovia‖
(p. 58).
A manhã já estava alta, quando o campeiro parou sob a sombra da ramada
e ouviu o grito de Pedrinho, filho mais novo do seu Joca: ―Vovô taí, e traz fruta
pra nós‖ (1978, p. 58); depois disso, José Maria se viu rodeado pela gurizada. As
crianças indagavam ao velho sob a falta de algumas frutas, sem saberem ao certo
o motivo por não haver mais pêssego, jabuticaba: ―- Me dá pesco, vovô, me dá? –
Quedele aquelas frutinhas manchada de encarnado? – E daquelas redondas bem
pretinha que o vovô trazia, não tem mais?‖ (p. 58). O velho viu nas crianças a
alegria tornar-se tristeza, mas em sua acepção, o fato vivido por elas (da seca
acabar com as frutas e com todo o verde, prejudicando a vida dos animais)
representava apenas: ―os primeiros invites da vida‖ (p. 58).
Diante do olhar do velho para as crianças evidenciamos a tristeza, a
miséria retratada no conto, que se diferencia da idealização, tanto do espaço
quanto do herói, uma vez que o antes centauro dos pampas encontra-se agora
sozinho, em um pobre rancho, diante de uma terra ―torrada‖ pela seca, sem
105
perspectivas, vivenciando no campo a desigualdade social, diante da relação
estabelecida entre patrão e peão.
A seca era forte demais, os animais estavam sofrendo muito com aquela
situação, era preciso fazer alguma coisa. Assim, na conversa com o patrão, José
Maria considerou que seria importante levar o gado para costa do Ibicuí, porque o
campo onde estava não dava mais sustento: ―Tá torrando. É uma miséria‖. Mais
uma vez, a voz da experiência do velho campeiro, com relação à natureza,
sinalizou a possibilidade de chover: ―Ontem foi nova. E eu tenho fé nesta lua!‖
(MARTINS, 1978, p. 58).
Durante a conversa que se estendeu até às onze horas, os dois foram
surpreendidos pelo ronco de um trovão. Ao olharem para o céu viram uma
movimentação muito rápida de nuvens formando ―um paredão azul escuro‖ que
anunciava um temporal (p. 59). A esperança os moveu, e através dela, podemos
observar a reciprocidade existente entre patrão e peão, uma vez que o olhar bastou
para expressar o alívio e a alegria:
Entreolharam-se e quedaram fitando o chão. Mas quanta coisa se
disseram naquele olhar! Entre os dois, dum para o outro, passou a
galopito uma bruta esperança. Subia do chão um bafo de brasa,
fazendo espichar e estalar como pipoca os zincos da coberta e as
cordas dos aramados. As manchas escuras de sombra e as claras das
olheiras de sol, maleavam os campos de oveiro (MARTINS, 1978, p.
59).
A descrição do olhar entre ambos e do olhar deles para a natureza é feita a
partir do viver típico sulino, pois a esperança galopeia, o chão tem ―bafo de
brasa‖. Da mesma forma, a felicidade, que, para eles, significava a vinda da
chuva, foi pressentida também pelo galo, pois, para o velho campeiro, quando um
galo canta fora de hora virado para uma pessoa está adivinhando felicidade.
Assim, às duas da tarde, eles foram agraciados por uma forte chuva:
Às duas da tarde vinha perto a tormenta, que era uma tormenta aquilo.
A zoada do vento no arvoredo e nas frinchas, e o estrondo da chuva de
pedra guasqueando os campos, ensurdeciam. E erguiam-se paredões
pardos da terra solta dos corredores, enormes, marcando os caminhos.
A água rolou de todos os declives, e correu pelos valados velhos de
encher nas crescentes, pelos novos que o seu ímpeto abria e espraiada
nos plainos duros, ásperos, que a sua força não podia abrir
(MARTINS, 1978, p. 59).
106
A chuva não demorou muito; José Maria, agora alegre, ia voltando para o
seu rancho, acompanhado pelo ar fresco da aragem que o rejuvenesceu. Durante o
percurso, resolveu experimentar o trote do zaino, pois queria chegar cedo para ver
se o cercado havia molhado bem, pois tinha planos de lavrar e plantar alguma
coisa: ―Se não desse e não viesse outra boa em seguida, que ia ser do pobrerio no
inverno? Morrer de fome? Roubar? Mas que o comissário para que é que existe?
Roube um pobre um cordeiro dum rico, e conhecerá maneador, estaca, barra e
folha de espada‖ (1978, p. 60).
Notamos que a alegria não durou mais que o tempo da chuva, pois, na
realidade o gaúcho precisava de mais do que de uma simples chuva para encontrar
sua felicidade, porque a chuva não resolveria os problemas da fome, da miséria
vivida por eles e pelo restante do ―pobrerio‖. Para além desses problemas,
evidenciamos a falta de esperança e novamente a desigualdade social, pois, para o
patrão, a chuva lhe bastava.
Percorridas mais umas léguas, o campeiro estende o olhar para encontrar o
rancho e, não conseguindo enxergá-lo, reclama da velhice: ―Puxa! Que a gente
depois de ficá véio inté as vista arruiná‖ (p. 60). Seguindo em seu rumo, José
Maria observou que havia algo de estranho: ―Logo adiante encontrou as vacas
mansas. Estranhou que ainda estivessem ali. E foi repontando. Vendo para um
lado um bando grande de caranchos e outros tantos rondando no ar em espirais de
ameaça, pendeu para lá‖ (p. 60). Nesse momento, diante do animal morto, o
campeiro ficou sentido por Joaquina, a qual, relembra, teve muito trabalho para
criar esta ―guaxa‖. Observamos que nem mesmo a chuva trouxe alegria, pois o
cenário era de tristeza, de desalento.
Quando estava perto do rancho, identificamos a proximidade na relação
entre o homem e o cavalo, pois o primeiro a demonstrar estranheza foi o próprio
cavalo, que levantou as orelhas; depois ele, o campeiro ergueu os olhos. Os planos
com que sonhara no caminho agora se transformam em cinzas:
Planos de velho, é certo, mas ainda planos de vida. Barrear e guinchar
o rancho na entrada do inverno. Feito isso, pegar algumas tropeadas. E
comprar tanta coisa que faltava em casa! José Maria chegava. O
silêncio que havia em redor pesava mais que a desgraça. O seu rancho,
um montão de cinzas. (MARTINS, 1978, p. 60).
107
A paisagem, assim como o animal, era tão pesada quanto a desgraça. Seu
rancho transformara-se em um monte de cinzas. A chuva, que devia ter trazido
somente alegrias para o pobre e velho campeiro, simbolizou desalento, tristeza,
miséria, solidão: ―O zaino espichou o pescoço, hirto, e olfateou a cinza morna. O
velho não apeou. Apear pra quê? As sombras vindas de todos os baixos subiram
no ar, aglomeradas, feitas uma só, e refugiaram, na sua quietude, o vulto curvo de
José Maria‖ (MARTINS, 1978, p. 61).
Ao finalizarmos a leitura do conto, é possível identificarmos que o tema
principal abordado pelo autor é a vida do homem do campo; podemos perceber a
linguagem regionalista na narrativa, por meio da cuidadosa descrição da
paisagem, da natureza, a qual é também, tipicamente regionalista, como o é,
também, a caracterização da personagem, que repete todas as manhãs a rotina
antiga de preparar-se para a longa troteada. A narrativa deixa explícito, ainda, o
momento histórico, através da sinalização da diferença entre o passado e o
presente, da vida como era e de como é em plena seca: ―Ah! Que diferença das
outras vezes! A seca transformara tudo‖ (1978, p. 58).
Cyro Martins, através de uma linguagem dialetal revela, de modo muito
particular e sem idealização, a representação social da vida no campo, no
momento em que predomina a miséria, a pobreza e a decadência do herói gaúcho.
Evidenciamos em ―Tempo de seca‖, uma nova visão do herói tradicional dos
pampas, que, agora, vive em condições desumanas – homem simples do interior
que vive em crise, mas que, ainda assim, insiste nos afazeres campestres,
buscando cultivar os motivos anteriores de seu fazer campeiro: montar a cavalo,
organizar-se para o trote, cuidar dos animais e viver no rancho.
3.1.5. A fase de transição: Luiz Carlos Barbosa Lessa
Luiz Carlos Barbosa Lessa foi o autor selecionado para representar, com o
conto que dá nome à obra O boi das aspas de ouro (1958), a fase de transição,
período em que a vertente regionalista de culto ao passado relacionava-se com a
narração das transformações da sociedade rio-grandense. Muito embora Lessa
aborde, de um modo geral, as mudanças da sociedade campeira, destacando a
presença do colono, da tecnologia nos afazeres campais e o consequente
108
empobrecimento do gaúcho, o conjunto da obra reproduz o mesmo modelo de
antes, através do culto aos valores de uma sociedade fechada.
O conto narra a história de um boi misterioso, chamado Boi-Eleição que se
escondia nas furnas de Caaporã – localizado num fim de mundo onde não havia
chegado a mão do branco. Com suas aspas de ouro, o boi era cobiçado, inclusive
porque, segundo os índios, quem laçasse o tal bicho seria dono da felicidade, mas
por muito tempo nenhum campeiro conseguiu laçá-lo.
Logo ao início da narrativa, evidenciamos a retomada da história da
povoação do Rio Grande e a localização temporal do causo para o leitor:
Amigo: eu lhe conto agora um causo que meus avós já contavam: Era
no tempo em que este Rio Grande Velho não tinha fronteiras, não
tinha começo nem fim, não tinha dono também. Dono era quem
plantasse um ranchito num topo de coxilha e ficasse de cavalo
encilhado e lança pronta, defendendo o pedaço de terra que entendia
seu (LESSA, 2000, p. 5).
A partir dessa introdução, percebemos que a descrição caracteriza o
cenário como intocado, no tempo mítico dos inícios, e que, depois disso, vai
mostrar a história de uma terra que foi devastada por forças, que não tinha dono,
nem fronteiras. Da mesma forma, o narrador, ao se dirigir ao leitor, pelo
chamamento de ―amigo‖ confere, à obra, proximidade e, ao leitor, intimidade com
o causo.
Muitos dos chirus, índios e brancos que seguiram em direção ao boi não
voltaram e, os que voltavam narravam estórias espantosas:
Houve mesmo quem chegasse a laçá-lo, mas o boi tinha forças que
ninguém conhecia, nem sovéu de charqueada lhe resistia ao tirão.
Houve mesmo quem chegasse a formar pandilha grande pra botar
cerco ao tal boi: mas por encanto ele sumia nos peraus de Caaporã. E
assim os homens não tiveram volta senão desistir da campeação,
abichornados, e sem mais esperanças de caçar o boi das aspas de ouro
que os índios diziam ser o boi da felicidade (LESSA, 2000, p. 6).
Notamos, em evidência, a diferença social descrita no conto, através da
descrição do estancieiro, homem de muitas posses que ficou sabendo da história
do boi. Mesmo sendo muito rico, vivia infeliz e insatisfeito com os bens que
possuía, pois suas recordações do passado (perda da mulher e da filha ainda muito
jovens) vividas num rincão distante eram bastante tristes: ―Vida maleva a sua –
109
cuê-puxa! – que lhe assinalara de miséria a mocidade e lhe marcara a alma pela
solidão‖ (2000, p. 7). Depois da descrição do estancieiro ―mui rico‖, novamente o
conto retoma a história das posses das terras gaúchas nos tempos de colonização:
Naquele tempo, os campos do Rio Grande, tapados de gado selvagem,
eram uma tentação cuja fama se alastrava províncias afora.
Constantemente desciam comitivas em demanda das gadarias fartas e
numa dessas comparsas ele se alistou. Não que o tentasse o brilho das
riquezas – mas porque, no perigo dos rodeios, sonhava encontrar o
lenitivo final para as mágoas que o afligiam (LESSA, 2000, p. 7).
Agora, já velho, o estancieiro, depois de muitas peleias contra índios,
castelhanos e as próprias feras e o gado bravio, possuía uma grande estância, tão
grande que seus olhos não alcançavam vê-la; no rodeio do seu coração, porém,
―cargosa, se aninhava ainda a tropilha de mágoas e desenganos com que o Destino
o presenteara pelo tempo afora‖ (p. 7). Evidenciamos, na descrição da vida e da
riqueza do estancieiro, o vazio, e a chegada da velhice, repleta apenas de solidão.
Observamos que o estancieiro tem bens - gado, estância, poder, mas não é feliz.
A história do Boi-Eleição animou esse velho estancieiro, pois a
possibilidade de aprisionar o animal significava para ele a garantia de sua
felicidade. No entanto, essa alegria durou pouco, pois a realidade lhe assomou
quando se inteirou da história das muitas tentativas fracassadas de outros
campeiros: ―se homens puavas, na flor da idade, haviam tentado em vão
aprisionar o boi de Caaporã, como poderia ele, já fraco, sem forças, iludir-se com
um busca de antemão extraviada? E seus olhos cansados choraram mais uma vez.‖
(2000, p. 7).
Embora sozinho não tivesse a força suficiente para aprisionar o boi, o
estancieiro tinha inteligência para planejar alguma forma de laçar e dominar o
animal. Nesse momento do conto, percebemos, claramente, a nova dimensão do
herói gaúcho na história, uma vez que a força não é mais a única estratégia
possível de conduzir o homem do campo à glória e sim a capacidade de ter ideias,
de ser criativo:
Amigo: hai quem pense que o poder do homem está só nos braços que
ele tem, e que mais forte é o qüera que sem esforço derruba o touro
nas lides do rodeio, vence o bagual no entrechoque da doma ou o
inimigo na fúria da peleia. Não! Mais forte é aquele que melhor sabe
usar da inteligência que o Senhor lhe concedeu para distinguir dos
110
brutos. Com as luzes de Deus, pode o homem andarenguear confiante:
nem a noite mais escura há de lhe dar extravio (LESSA, 2000, p. 7).
Assim foi que o estancieiro se desfez de sua estância, de sua gadaria,
juntou campeiros de lei, comprou escravos e, em comitiva, saiu em direção aos
campos de Caaporã. O momento da compra dos escravos revela a presença das
classes sociais diferentes, da desigualdade e da miséria com que viviam muitos em
solo rio-grandense. Da mesma forma, é possível perceber a posição ocupada pelo
antes peão, que agora é representado a partir do trabalhador rural.
Não demorou muito, e o boi apareceu num alto do perau; para os
campeiros era hora de ―avançar, cerrar rodeio, e muito gaúcho disposto
desapresilhou o laço preparando pealos‖ (p. 8), mas o estancieiro que coordenava
os campeiros e os escravos ordenou que apeassem e ficassem apenas de olho para
que ele não fugisse. Disse isso e voltou para a senzala.
À espera de uma segunda ordem do estancieiro, os dias que se seguiram
foram de calmaria, toda a gauchada mateava e contava causo, típico cenário dos
costumes sulinos. Interessante é a descrição dada ao animal enquanto este
pastoreava: ―lá no alto do perau permanecia o animal pastoreando – monarca e
sestroso – às vezes se afastando pra pastar mas sem demora voltando à sua postura
de espera – paciente e tranquilo, embora desconfiado da incompreensível
quietude‖ (2000, p. 8-9); dizemos interessante, porque é dada ao animal a
definição de monarca e também é a ele que é dado o poder para conduzir a
narrativa, uma vez que sua atitude nortearia o rumo que os fatos tomariam.
Depois de algum tempo, quando o estancieiro voltou, foi recebido com a
notícia de que o trabalho estava feito, o dever de pastoreio tinha sido cumprido;
foi então que o estancieiro começou a pagar cada um dos peões e libertou muito
dos escravos. Estes ficaram sem entender sua atitude; foi então que o estancieiro
começou a explicar:
No lugar onde antes estava a senzala, hoje se ergue a casa-grande de
minha nova estância. E por toda a volta, rodeando estes peraus, ergui
uma cerca de pedra alta e encorpada – que boi nenhum vai cruzar.
Agora tudo isso aqui me pertence: o chão, o pasto, o arvoredo, as
sangas... E, enquanto não me fugir, meu será também o boi da
felicidade... (LESSA, 2000, p. 10-11)
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De pago em pago a notícia do boi encurralado, do boi das aspas de ouro se
estendeu, fazendo com que muitas pessoas viessem de outras estâncias para
conhecer o boi encantado. Quando chegavam, viam o boi no alto do perau e, ao
partirem, manifestavam inveja para com o estancieiro, que agora era o dono da
felicidade. Antes de contar isso, novamente o chamamento ―amigo‖ é utilizado,
agora para clarear o sentido da felicidade atribuída ao domínio do boi:
Amigo: a gente sempre é aquilo que os outros querem que a gente
seja. Ninguém nasce ruim neste mundo, mas hai que se torne mau,
porque, desde cedo, foi encontrando a maldade que outros botaram em
sua senda. Do mesmo jeito, tem de ser bueno aquele que, desde cedo,
rodeado de afeição, aprende a ter um coração buenacho. Quando todos
nos olham como se a gente fosse mau, nós somos maus. Quando todos
nos olham como se a gente fosse bueno, nós somos buenos. Quando
todos nos olham com piedade, como se nossa vida fosse um descuido
de Nosso Senhor, somos tão infelizes. E quando todos, todos, nos
olham como se a gente fosse dono da felicidade, isto nos faz ser
felizes (LESSA, 2000, p. 11).
A felicidade plena do estancieiro se resumia na cobiça alheia pela posse do
boi. Assim, instigados pelo motivo de ver o boi, pela curiosidade, muitos
campeiros, além de se deslocarem até Caaporã, decidiam ficar por lá, iniciando
assim, o povoamento: ―Foram-se fundando estâncias, abriram-se veredas,
surgiram bolichos nas encruzilhadas‖ (2000, p. 11). Tamanha felicidade também
vinha acompanhada pelo medo, pois o estancieiro temia que alguém, por inveja ou
pura maldade, matasse o boi. Como não tinha familiares, precisou selecionar um
campeiro que, depois de zelar o animal, herdaria sua estância e suas riquezas.
Para realizar a empreitada, o estancieiro fez seleção mediante a realização
de três provas que muitos tentaram e não conseguiram vencer: a primeira
dependia de ―que o índio fosse valente – jogando o primeiro-sangue com três
qüeras, sem receber arranhão‖; a segunda prova era ―... que o índio fosse campeiro
– domando três aporreados no prazo de uma semana‖;... e a terceira vinculava-se
ao caráter do índio ―que não soubesse mentir‖ (p. 12). Para o estancieiro, se algum
moço vencesse essas três provas, ele poderia descansar, pois a valentia garantiria a
proteção física do Boi- Eleição, o fato de ser campeiro garantiria os cuidados
dispensados ao animal e não saber mentir garantiria que ele, o estancieiro, não
fosse enganado pelo peão. Através das provas estabelecidas pelo estancieiro,
112
podemos perceber que esse buscava no peão as características do gaúcho monarca
das coxilhas.
Foi então que apareceu um dia um gaúcho novo, ―meio gurizote‖, vestido
―mui pobre‖. Quando este se apresentou para realizar as três provas, ninguém deu
muita atenção, isto porque ―seu cavalo era feio e, ainda por cima, aperado com
preparos sem valor‖ (p. 12); só depois de muito insistir o estancieiro permitiu que
ele realizasse as provas. Durante a primeira prova, a da valentia, mesmo estando
em desvantagem, o indiozito, gaúcho novo, demonstrou sua agilidade:
Quando o patrão deu ordem pra começar o jogo, foi coisa de admirar!
O indiozito pulou que nem gato, num upa cruzou o ferro com o negro
do facão e ali no mais lo talhou, dando um novo pulo pra trás e vindo
postar-se no mesmo jeito quieto de antes. O bugre e o castelhano,
maneados pelo espanto – nunca tinham visto tanta ligeireza assim! –
não tiveram tempo nem sequer de quadrar o corpo, e só agora é que
pensavam se mover (LESSA, 2000, p. 12).
Eis que, em pouco tempo, o bugre estava machucado e o sangue corria em
seu rosto; ao final da primeira prova, o gaúcho novo saiu ileso e vencedor e foi
saudado até mesmo pelo patrão velho, que abriu um largo sorriso. A segunda
prova, a qual exigia que o peão demonstrasse a agilidade na lida campeira foi,
novamente realizada com louvor pelo indiozito, pois ele conseguiu montar nas
feras mais xucras da estância, coisa que o patrão ainda não tinha visto. Na mesma
noite, o estancieiro comunicou a decisão, antes mesmo da última prova, falando
para o indiozito:
Tu já mostrou que é peleador como poucos e ginete como ninguém.
Eu devia fazer tu passar ainda pela terceira prova, que é a mais difícil
de todas. Mas vou confiar na tua palavra e quero apenas perguntar se
tu é capaz de mentir? Eu lhe juro, meu patrão – foi a resposta do
qüera. – Eu lhe juro por esta luz que me alumia que nunca em minha
vida fiz falsidade pra os outros. Eu nunca pude mentir (LESSA, 2000,
p. 14).
Dito isso, o gaúcho foi aceito para cuidar da felicidade do patrão, ou seja,
zelar pelo boi das aspas de ouro. Passou a ser chamado de ―posteiro da Invernada
do Fundo‖; entre os tratos a cumprir, o gaúcho poderia construir seu rancho em
qualquer parte do campo e carnear qualquer uma das reses; ao final de cada dia ele
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deveria vir trazer noticias do boi ao seu patrão. Desse modo, todos os dias, na hora
do pôr do sol, o indiozito aparecia na frente do galpão e dizia:
Lá se vai o sol entrando
E eu vos faço a saudação:
Nada de novo em meu Posto,
Vai lindo o Boi-Eleição!
(LESSA, 2000, p. 15)
A felicidade do estancieiro estava assim garantida, no entanto o peso de
sua idade cada vez mais o vergava. Ele se sentia velho, mas seus dias eram
conservados em plena paz e suavidade. Porém, uma surpresa, motivo de maior
alegria, pois ele, que sempre viveu sozinho, sem família, acabou recebendo um
dia a visita de quatro sobrinhos, dos quais nem se lembrava:
Um rapagão de bons modos – gente fina de cidade, pelo visto – e mais
as irmãs. Três moças com jeito de encantar a gente que só vendo pra
tirar-se um tento. Ele haviam viajado de longe – lá daquela mesma
terra de onde, há muitos anos, partira um moço tangido pela dor – e de
bom grado haviam enfrentado as agruras do sertão para reverem o tio
que, eles sabiam, sozinho vivia no meio das campanhas (LESSA,
2000, p. 15-16).
O estancieiro ficou realizado com a boa notícia e implorou para que os
jovens ficassem morando com ele e, assim ―adoçassem de carinho os últimos dias
do seu viver‖ (p. 16). Novamente, temos a interrupção da narrativa para a
sinalização do narrador, que desta vez tratava dos jovens da cidade, dos sobrinhos
comparando-os aos urubus em torno de um animal:
Amigo: você nunca viu os urubus quando rodeiam um animal
moribundo? Um deles pula impaciente ali por perto, até que – não
mais contendo os impulsos malevas – avança e fura os olhos da presa
fraca e indefesa, comandando assim a avançada cruel. Pois, pra o
causo, o moço da cidade aquele era o urubu impaciente em torno do
estancieiro, fazendo mais agrados do que china candongueira no colo
de tropeiro bem pilchado. Moço de má cabeça – já com uma ponchada
de estórias brabas negrejando na alma – ele faria tudo no mundo pra
ficar herdeiro das léguas de terra e dos miles de gado da estância do
Boi-Eleição (LESSA, 2000, p. 16).
Três dos sobrinhos mantinham com o estancieiro uma relação de interesse:
o jovem, já mencionado, a moça mais velha ―nada mais fácil que agradar o tio.
Nunca lhe fora difícil, em verdade, oferecer carinho pela ambição do dinheiro‖. A
114
moça do meio, sensual, ―feiticeira de corpo‖, ainda que sem maldade, estava
agora diante do tio, botando feitiço em tudo, com ―mãos de pecado, seios de
desatino‖ (LESSA, 2000, p. 17); somente a mais nova oferecia carinhos sinceros
ao tio, pois ela tinha: ―tudo o que de bueno existe na alma de um cristão‖, trazia
carinhos sinceros ao tio semelhantes a de uma filha ―terna e inocente‖ (p. 17). De
agora em diante, a estória segue com a presença dos quatro irmãos.
Uma tarde, o posteiro cuidador do boi chegou para dar notícias do animal e
o sobrinho aproveitou para saber da herança prometida ao indiozito: ―É verdade,
meu tio, é verdade que vosmecê prometeu deixar de seu herdeiro esse posteiro de
Fundo?‖ (p. 18). O velho estancieiro contou os motivos da escolha do peão,
esclarecendo que primeiro ele foi escolhido pelo desconhecimento de que tinha
família (os sobrinhos), depois pela valentia inimitável e, por último pela
incapacidade do índio mentir. Indignado, o sobrinho demonstra saber que não foi
realizada a última prova e assim argumenta:
Acredito que ele não saiba mentir! – riu, com deboche o maleva. –
Ora, meu tio! Não hai homem neste mundo que não seja mentiroso...
O velhito parece que entendeu até onde ele queria chegar, pois o fitou
com firmeza num jeito de indagação. E o moço continou: - Eu sei,
direitinho, que esse qüera não passou pela prova da verdade, que é a
mais difícil das três. Vosmecê apenas confiou na palavra dele... e pode
ser tão falsa como a de um homem qualquer (LESSA, 2000, p. 18).
Depois da desconfiança plantada pelo sobrinho, o estancieiro ficou a
indagar-se sobre o indiozito, sobre a herança e, também sobre a injustiça de deixar
todos seus bens a um desconhecido. Passa alguns minutos em silêncio, o sobrinho
encorajou-se e pediu: ―E... se ele mentir...? Entendendo logo a coisa, o velhito
completou: -... a herança é tua!‖ (p. 19). Era o que o sobrinho sem caráter
precisava ouvir, pois sabia como fazer o indiozito mentir usando a irmã mais
velha, aquela que tudo faz por dinheiro:
- Monta a cavalo e parte ao Posto do Fundo. Põe no teu corpo todas as
manhas do mundo e vai tentar o campeiro que guarda o Boi-Eleição.
Diz-lhe que, em troca de teus beijos e tua carne, antes mate o boi
encantado e te entregue as aspas de ouro da Felicidade. Ele sabe que o
patrão, velho demais, nunca irá até o fundo do campo pra ver com os
próprios olhos o boi das aspas de ouro. Por isso, a tentação vencerá, e
amanhã, como foi sempre, ele dirá que vive o Boi-Eleição. Com essa
mentira perderá a herança e nós seremos ricos! (LESSA, 2000, p. 19).
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Para a surpresa do irmão, a moça foi ao encontro do índio e ele não se
interessou: ―Encontrei o indiozito junto do Boi-Eleição. Todas as manhas do
mundo botei no corpo, nos olhos, mas pra nada ele atentou‖ (p. 19). Foi então que
o moço resolveu partir para a segunda irmã, a qual ―ferida pela peçonha da
ambição‖ partiu disposta: ―Não lhe seria sacrifício a perdição, porém, se em troca
recebesse as aspas de ouro da Felicidade‖ (p. 19). Novamente o indiozito teve a
mesma reação. Foi assim que o moço chamou a irmã de mais pureza, a qual,
chorando, implorou-lhe para não sacrificar, mas com um relho ele bateu nela até
fazê-la sangrar: ―Sangue por sangue, já estás agora sangrando. Vai, então, pra com
mais sangue trazer riqueza pra mim‖ (p. 20).
Quando o sol nasceu, a irmã voltou com as aspas de ouro da Felicidade,
pois o posteiro sacrificou o boi para evitar o sofrimento da moça diante de seu
irmão. Confiante e alegre, o sobrinho aguardava junto do tio a vinda do guardião
do boi, que, em sua acepção, iria mentir e, assim também haveria de garantir a
herança. Porém, o estancieiro e o moço maleva foram surpreendidos com a
verdade proclamada pelo posteiro:
Lá se vai o sol entrando
E eu vos faço a saudação:
Peço perdão, Senhor meu:
Matei o Boi-Eleição
(LESSA, 2000, p. 20)
No dia seguinte, o moço e duas irmãs retornaram para sua terra; apenas a
irmã mais jovem ficou com o velho tio. A ilusão da felicidade, que antes cercava a
vida do estancieiro, foi tomada por tristeza desde a morte do Boi; no entanto, a
felicidade da consciência limpa lhe acompanhou, pois ao seu lado estavam dois
entes que o estimaram: ―a mão suave da piguanchinha morena – aquela que era
turna de pureza no pedregal do pecado... a mão calejada do indiozito do Posto‖ (p.
21). Antes de morrer, o velho estancieiro ainda viu as aspas de ouro que, por força
do encantamento, fazia os homens se sentirem donos da Felicidade.
Ao encerrarmos a leitura do conto de Barbosa Lessa, evidenciamos que
esse autor desenhou um novo gaúcho a cavalo que, nos anos 1950, em meio a uma
geração realista, revive a história da formação social do Rio Grande do Sul, dando
voz aos grupos marginalizados, representados, no conto, pelos escravos e pelos
trabalhadores rurais. Esse é, sem dúvida, um tema que distingue o autor dos
116
demais contistas; ademais, há a abordagem das pessoas sendo utilizadas como
objetos e, ainda definidas como ignorantes diante dos estancieiros, como ficou
explicitado no momento em que ser forte não era o mais importante, mas sim ser
inteligente. Figueiredo, ao estudar a trajetória intelectual e a obra de Barbosa
Lessa, evidenciou que esse autor incorpora outros sujeitos em sua narrativa sobre
a formação social do Rio Grande do Sul. Segundo ela,
[...] em sua visada ao Rio Grande do Sul, estão presentes o índio, o
negro e a mulher como fundadores dessa pequena pátria, tanto quanto
o elemento açoriano, o jesuíta, o espanhol, o tropeiro e todo o tipo de
figura masculina privilegiada por uma leitura mais tradicional do que
seja a formação social sul-rio-grandense (FIGUEIREDO, 2006, p. 38).
Assim, ainda que o gaúcho pampiano seja, nesse conto, o centro de seu
enfoque, notamos certo distanciamento das narrativas do regionalismo inicial, pois
evidenciamos a reconfiguração através dos elementos culturais e sociais que estão
envolvidos. Observamos a falta de uniformidade na caracterização das
personagens que constituem essa narrativa regionalista, pois diferentemente do
que apreciamos no conto ―Trezentas onças‖, em que havia valores comungados
por todos os envolvidos na narrativa, em ―O boi das aspas de ouro‖ encontramos a
narração da felicidade atrelada aos bens, ao ter, os sentimentos da inveja, ambição
na relação entre personagens e, ainda à mentira e à desonestidade, ambientadas no
cenário campesino.
Barbosa Lessa conseguiu reproduzir, em seu conto, a cor local a partir da
linguagem, que lembra muitas vezes Simões, permeada de metáforas e de
comparações com o meio circundante, expressando, ainda, a concepção de uma
sociedade fechada, com valores próprios, que vê com diferença o indivíduo de
fora, o qual no conto foi representado pelo índio que se tornou o posteiro, homem
leal. Da mesma forma, a narrativa ―O boi das aspas de ouro‖ ocupa-se de um
elemento sobrenatural, ―o Boi-Eleição‖, no momento em que demonstra a
transformação da sociedade campeira, em que, de um lado, evidenciamos a
solidão do gaúcho ao chegar à velhice e, de outro, o empobrecimento, a
escravidão.
3.1.6. A nova vertente regionalista dos anos 70: Josué Guimarães
117
Embora, a partir de meados do século XX, com a introdução da narrativa
urbana, a vertente regionalista tenha deixado de predominar na prosa gaúcha,
existem, ainda que em menor número, autores que trabalham na linha regionalista,
a partir de uma ótica renovada. Josué Guimarães é um dos autores em que
encontramos narrativas regionalistas, ainda que envoltas por uma vertente social
aplicada ao conto gaúcho. Esse autor que mencionamos e trazemos para análise
em nosso trabalho teve, segundo Bittencourt (1999, p. 75) dois livros publicados
nos anos 70, o primeiro Ladrões (1970), que inclui três contos premiados no II
Concurso de Contos do Estado do Paraná – Fundepar – 1969; o outro, Cavalo
cego, publicado no ano de 1979. Segundo Bittencourt:
Nos dois livros, Josué opta, na sua maior parte, pela ficção realista
tradicional, mas envereda, por vezes, pelo campo do insólito e do
fantástico. Os contos identificam-se com um modelo de construção
oitocentista, com desenvolvimento cronológico e causal das ações,
personagens definidas com traços individuais e localização espacial
particularizada (BITTENCOURT, 1999, p. 75).
O conto selecionado para análise é ―Cavalo cego‖, que dá nome à obra.
Nesse conto, encontramos o narrador, que é também testemunha, o velho
caudilho, antigo coronel e a filha mais velha que cuida do pai. O que o leitor vai
acompanhar é um longo diálogo sobre política, eleição, regime militar, em que o
narrador observa atentamente o velho, emitindo pequenos comentários.
Logo no primeiro parágrafo, encontramos a definição temporal, através da
primeira frase: ―Conheci o caudilho precisamente no dia 14 de agosto de 1945,
quando Getúlio dizia (e mandava dizer para todo mundo) que o Estado Novo
estava no fim e que as eleições seriam mesmo realizadas no dia 2 de dezembro
daquele ano‖ (2003, p. 143). Dito isso, o narrador volta-se para a definição do
coronel, o senhor Clarimundo Vasconcelos, um homem já velho que, solitário,
vive de suas lembranças:
O caudilho era homem de idade indefinida e não se importava muito
com as coisas que estavam acontecendo naquele ano, pois vivia
mergulhado num passado distante, no qual o próprio Getúlio devia ter
os seus quinze anos, alistado como soldado raso no final dos
entreveros entre brasileiros e platinos. Clarimundo Vasconcelos, agora
ao pé do fogão, tentando aquecer as mãos ancilosadas, falava
embevecido nos chimangos e maragatos, republicanos e federalistas,
até nos pica-paus (GUIMARÃES, 2003, p. 143).
118
A partir da definição do antigo coronel, evidenciamos o percurso em que
se dará à narrativa, pois estamos, novamente, diante de um contador de histórias;
ainda mais, Clarimundo é testemunha viva da história do Rio Grande do Sul.
Dando continuidade à caracterização do personagem: ―Cuia na mão, palheiro
entre os dedos, cuspia encorpado nas lajes do chão. Voltava sempre ao passado
entre o roncar da bomba no fundo da cuia sem água e a espuma verde de um novo
mate‖ (p. 143).
As primeiras narrações dos atos de guerra são contadas por Clarimundo
para justificar a escolha de seu nome pelo seu pai. Segundo ele, o nome foi
escolhido, primeiramente porque combinava muito com Vasconcelos e ainda pela
crença do pai de que ele seguiria a tradição de caudilho da família. Depois, outro
motivo da escolha era o fato de ele ser bem comprido e assim dificultar e atrasar
os inimigos na guerra:
Era para quando a gente topasse com um inimigo sem perdão. Já
imaginou a gente assim, frente a frente, na obrigação de prevenir com
honra o ato de vingança? O outro tinha que dizer: Vais morrer,
Clarimundo Vasconcelos... Riu com as gengivas murchas. Disse que
quando o outro chegasse no mun de Clarimundo, a capangada atenta já
teria perfurado o atrevido que virava peneira na hora (GUIMARÃES,
2003, p. 144).
Na narrativa, passado e presente estão entrelaçados pela voz do narrador,
que dialoga com o coronel; do diálogo, emerge um antigo herói, abastado, agora
envelhecido: ―Agora ele estava ali, aproveitando o calor das brasas e tratando de
aquecer a mão escalavrada, segurando a cuia de porongo bordado a ouro e prata‖
(p. 144). Essa imagem de debilidade é mais forte na descrição da vida atual e da
saúde do velho coronel, que é cuidado pela filha mais velha, sobrevivente e viúva
desde a Revolução de 30: ―lidava com o pai como quem cuida uma criança de
peito, trocando mijados e sacando os grãos das espigas de milho verde. Então ele
ficava chupando o caldinho que escorria pela barba rala‖ (p. 144).
A conversa entre os dois, narrador e coronel, vai se desenrolar a partir da
abordagem política, na qual discutem sobre a permanência de Getúlio no poder;
depois falam da Constituinte, momento em que os dois têm a mesma opinião: não
119
acreditam nela. Novamente passado e presente são utilizados para diferenciar os
tempos, pois o velho quis saber se o narrador tinha tropas. Nesses novos tempos,
outros são os elementos de combate: ―Operário na rua, estudante com faixas,
donas-de-casa a protestar e a gritar: queremos Getúlio, queremos Getúlio! E
levamos tudo de roldão, fique sabendo‖ (p. 145).
Depois da descrição da atualidade, o narrador pede o auxílio do velho
caudilho para ajudar a manter Getúlio no poder. Na resposta do velho,
evidenciamos a contrariedade do antigo coronel para com as atitudes atuais, pois
ele prefere ficar com suas ―santas recordações‖.
O narrador, ao observar a impossibilidade de tornar o velho um dos seus
aliados, e também julgar ser uma perda de tempo continuar a insistir, vai se
despedindo. Promete voltar para ouvir novas histórias e causos, ao que o coronel
garante que, de sua boca, somente serão ouvidas verdades. O narrador-
testemunha insiste ainda na participação do coronel, solicitando que ele ditasse
uma proclamação, ou que assinasse uma. Novamente a comparação com o
passado é feita pelo coronel, a qual, além de revelar seu posicionamento atual,
remonta a seu passado, e o tempo em que não era ―bem educado‖:
Se o senhor viesse aqui na minha casa dizer isso que acaba de dizer,
naquele tempo em que eu ainda não era tido como um homem bem-
educado, fique sabendo que a gente ia logo lá para fora tirar a
diferença a bala, ou de qualquer outra maneira que o senhor
escolhesse (GUIMARÃES, 2003, p. 146).
Depois disso, o homem tenta se retirar enquanto o velho tomava o mate,
porém o coronel quer conversar mais. Diante da obrigação de ficar escutando,
notamos o direcionamento para a filha, que estava com quase setenta anos: ―Era
magra e tinha berrugas pelo rosto descarnado e pelas costas das mãos, de veias
esticadas como cordas. Fungava sempre, nunca recorrendo ao lenço, pois era um
fungar seco de cacoete‖ (p. 147). A descrição da filha fornece a idade aproximada
do coronel, que já havia passado dos noventa.
Observamos, no narrador, o distanciamento em relação ao modo de viver
do coronel e de sua filha. Diante do convite (na verdade intimação) para jantar, ele
pensa em tudo o que precisa fazer:
120
Eu ainda precisava telegrafar para Alegrete, Passo Fundo, Bagé e
outros lugares. Não era segredo nenhum que os militares estavam
preparando um golpe contra Getúlio e lá se ia o queremismo por águas
abaixo. E sabe Deus o que viria depois. Mas não descobria um jeito
(GUIMARÃES, 2003, p. 147).
Os dois tomam uma cachaça ainda antes do jantar e o coronel promete
contar uma história de ―deixar os cabelos em pé‖. Inicia-se, assim, a contação de
causos do velho caudilho, coronel e antigo herói. Mas, antes do causo, ainda
percebemos o distanciamento do narrador com relação à vida no campo, no
rancho, uma vez que as descrições que envolvem a espacialização ou até mesmo o
jeito do coronel são feitas a partir de um olhar de fora, mais precisamente da
cidade para o campo:
Eu já estava conformado em ficar na casa dele até altas horas. Não via
maneira de imaginar outras desculpas. Meu carro ficara do lado de
fora da porteira, distante uns quarenta metros da casa colonial que
tinha um pátio espanhol, com parreiras e limoeiros. Assim era comer
devagar e ouvir (GUIMARÃES, 2003, p. 148).
Voltando para o causo, o coronel diz ser amigo de Getúlio desde 1909,
quando ocorreu a sua eleição para a Assembleia dos Representantes, com vinte e
seis anos e, com menos de quarenta e três, Getúlio era ministro do Washington
Luís, e logo veio a Revolução de 30. Segundo o velho, mesmo com a amizade
entre os dois, ele nunca havia aceito nenhuma promoção a não ser que fosse por
merecimento. Mas, nesse percurso, o coronel foi ferido, pegou uma pneumonia
(doença grave na época) e só saiu da cama quando a Revolução já tinha acabado.
O jantar é servido; evidenciamos, tanto no prato principal como na
sobremesa, o cultivo da tradição dos antigos costumes, comidas que ainda se
caracterizam como tipicamente sulinas: mandioca bem macia, molho de torresmo,
carne de costela assada na brasa, feijão e de sobremesa doce de abóbora. Depois
disso, notamos a inquietação novamente no narrador, que pensa em inúmeras
estratégias para sair e ir embora e deixar de ouvir: ―histórias de guerras,
escaramuças, degolas, vinganças, valentias e terrores‖ (p. 149).
O coronel, ainda, após o jantar, continua sua história, lembrando o período
em que Borges adoeceu, em 1915 e assumiu o vice o senhor Salvador Pinheiro
Machado. O velho disse ter ido com um regimento da Brigada Militar até a
121
fronteira sul, pois: ―havia boatos de rebelião, o homem forte na cama e logo
quando chegava aqui a notícia do assassinato do Senador Pinheiro Machado.‖
Momento muito difícil, pois o ―Estado parecia entrar numa convulsão
revolucionária‖ (p. 150).
No momento em que o narrador diz saber das histórias, o velho demonstra
a visão crítica, adquirida por experiência direta. Valorizando sua experiência com
a história vivida, despreza o saber advindo de segunda mão, a partir de leituras.
Por outro lado, revolta-se com o que lhe parece ser um certo desprezo, por parte
de seu interlocutor, de sua sabedoria vital: ―O senhor fica aí lendo livros de
História, querendo saber as coisas nas bibliotecas e saiba que é lá justamente que
nada acontece. Eu vivi todo esse tempo, meu prezado amigo‖ (p. 150).
A inquietação e o deslocamento com relação ao espaço do campo
demonstrado pelo narrador continuam: ―a noite estava gelada, e se chovesse o
meu carro não conseguiria sair daquelas grotas, nem com correntes nas quatro
rodas‖ (p. 151). Diante da possível dificuldade em sair com o carro o coronel
apresenta duas argumentações: a primeira, a de que ele sabia que não iria chover
nos próximos quatro ou cinco dias e, a segunda, foi comparando a facilidade de
andar de carro frente ao andar a cavalo. Diferentemente do gaúcho dos contos das
nuances iniciais da prosa regionalista, este velho caudilho, se bem que reconheça
um bom cavalo quando o vê, já não necessita tê-lo como meio de transporte
insubstituível. Não mais centauro, sabe que o carro, ―fechado,[com] vidro em
todas as janelas, poltronas estofadas‖ é muito mais confortável que um cavalo em
uma noite gelada.
O coronel, em suas histórias, evidencia as injustiças e maldades das elites
dirigentes contra os menos afortunados. Em suas palavras é possível perceber as
desigualdades reinantes, inclusive no seio das tropas revolucionárias. Quando a
filha vai deitar, pede que ela reze pelos mortos e, confessa ao narrador que só reza
pelos seus próprios mortos, coisa que aprendeu com Honório Lemes e Zeca Neto:
Gente de outra estirpe, meu caro, fique sabendo. Honório Lemes, o
Leão do Caverá, morreu nos meus braços e foi enterrado em Rosário,
com banda de música tocando a marcha fúnebre, velado no salão
nobre da Prefeitura, respeitado até mesmo por seus mais ferrenhos
inimigos (GUIMARÃES, 2003, p. 152).
122
O narrador interrompe-o, indagando se este é o tempo de Flores da Cunha
e de Osvaldo Aranha, ao que o coronel responde afirmando que esses eram do
outro lado e se tornaram heróis só porque ganharam e, continuou: ―É sempre
assim, quem ganha uma revolução é quem fica de dono da razão‖ (p. 152). O
coronel faz uma pausa para relatar sua dificuldade para enxergar, pois está com
sério problema de visão e revela que seu medo é não saber se é dia ou noite, de
não saber distinguir entre um pau de lenha e um carvão e, também de não saber de
que ―banda‖ está o inimigo. O outro que ouvia, pensando em alegrar o coronel,
afirma que ele não tem mais inimigo. Ao que o velho responde: ―Se diz isso para
me agradar, saiba que está me ofendendo. Quando um homem não tem mais
inimigos é porque está chegando ao fim‖ (p. 152).
O coronel ainda desmitifica a falácia da democracia rural, apontando para
as diferenças entre ricos e pobres, desde as coisas mais simples até as maiores
dificuldades enfrentadas:
E veja bem, em todas essas revoluções em que gastei quase a minha
vida inteira, os que tinham divisa nos braços e galões nos ombros
comiam a parte melhor das vacas carneadas e o que sobrava era
atirado aos soldados como quem dá polenta com osso para a
cachorrada. E assim mesmo, anote aí, quando sobrava alguma coisa. E
nem sempre sobrava (GUIMARÃES, 2003, p. 153)
O narrador afirma se tratar de destino e o velho complementa: ―Destino
coisa nenhuma, é maldade dos homens, é egoísmo, meu filho. Eu tenho pelo
menos duas vezes a sua idade e sei das coisas‖ (p. 153).
Durante a conversa, os dois ouviram o relincho de um cavalo, para o qual
evidenciamos, no conto, o mesmo tratamento dispensado desde o cancioneiro na
literatura oral, quando o coronel explicou os motivos de deixar os cavalos soltos:
―Cavalo é como gente, quer liberdade‖ (p. 154).
Depois do relincho do cavalo, o velho permaneceu um tanto calado e até
distante, aos olhos do narrador. Ao retomar a conversação, começou a falar de um
cavalo, já muito velho e que por vezes desaparece pelos campos. O animal deve
ter perto de 30 anos, pois ele está junto do coronel desde os anos 1914, não que
fosse seu ou que o tivesse ganhado: antes, o cavalo o seguiu por mais de cinco
léguas. Sobre o cavalo o velho coronel afirma:
123
Desaparecia de dia, surgia de noite. E para falar a verdade, se o senhor
me perguntar não sei dizer a cor do pelo dele, se tem uma, duas ou
três, se é baio ou rato, se é negro, alazão ou branco. Só posso garantir
que foi um temível garanhão, pastor para um potreiro de éguas. E
ainda hoje, vem e vai, ouço a voz dele muito raramente e se não morro
logo, talvez esse animal desapareça para sempre (GUIMARÃES,
2003, p. 154).
A preocupação e a atenção do coronel estavam voltadas para o campo, até
que ele, dirigindo-se para o homem que lhe ouvia, confessou que contaria agora,
algo que jamais contou a ninguém, nem para sua mulher, nem para sua filha.
Inicia-se o relato do caso do cavalo cego. O fato que foi ocultado pelo coronel se
refere à chacina da família de um coronel, seu compadre, na qual cachorros foram
estripados, e seu compadre, comadre e filhos degolados. O coronel encontra-os,
―sangrando igual a porcos e ovelhas‖; atribui a tragédia à vingança,
provavelmente causada pelo ódio entre maragatos e chimangos, e rapidamente
organiza o sepultamento. Jura para si mesmo encontrar os bandidos e dedicar a
eles uma morte bem violenta: ―Eu remoía coisa distinta, mortes com requintes do
demo, primeiro uma orelha, depois outra, a ponta do nariz, metade da língua para
que o desgraçado não falasse nada‖ (p. 158).
No entanto, nem ele nem sua tropa encontravam os bandidos; deparam-se
porém, com um estranho cavalo de longas crinas, extraordinariamente forte e
majestoso. Seu pescoço era semelhante a ―tábuas [...] como se tivessem sido
talhadas na pedra, [tinha] narinas que resfolegavam como uma locomotiva, enfim,
um animal de não ser posto fora em qualquer parte do mundo‖ (p. 160). Com
receio do cavalo, eles o prenderam para conhecer melhor e, assim poder analisá-lo
mais cautelosamente, ainda que apenas pelo tato, uma vez que estavam em plena
escuridão da noite:
-Era uma cruz de pontas viradas, marca que não havia pelas
redondezas. Depois, passei a mão pelo lombo todo, pelas ancas
fornidas, nas entrepernas, pelas crinas e tudo me parecia de um
tamanho descomunal, de uma força de furacão. Desci pelas pernas
fortes até os cascos que me pareceram feitos de ferro, e confesso que
ainda hoje sinto nas palmas das mãos o frio gélido daquele animal,
nenhum indício de calor ou de vida, como se ele fosse de mármore ou
de bronze, muito embora ele estivesse ali nas nossas mãos, cheio de
vida e indócil de pôr um homem a perigo (GUIMARÃES, 2003, p.
161).
124
Segundo o coronel, esse cavalo misterioso foi o responsável,
aparentemente, pela morte dos assassinos, cujos corpos estavam pisoteados.
Depois de contar a história, o velho silencia. O narrador resolve sair sem se
despedir; novamente há a sugestão e distanciamento daquela realidade, pois ele
desejava apenas ir embora, se afastar do velho, e a impressão de que história fora
um tanto fantasiosa.
No entanto, seguindo em direção à porteira, eis que ele se depara com um
extraordinário cavalo, o qual parecia ser o da história do velho caudilho:
Aproximei-me cauteloso, levei a mão vagarosamente para bater na
tábua do pescoço, senti o cheiro acre e gostoso do seu suor e de
repente vi-me aterrorizado por uma descoberta inesperada: o animal
não tinha olhos. Com um incontrolável tremor nas mãos, caminhei
com os dedos até a anca vigorosa e examinei a marca de fogo: uma
cruz de pontas viradas, perna inferior com sinal de excesso de fogo
(GUIMARÃES, 2003, p. 164).
Através do velho caudilho e de sua forma de relatar as experiências
vividas, assegurando a veracidade das mesmas, recordamos da narração de Blau
Nunes, de Simões Lopes Neto. No entanto, o coronel distingue-se de Blau,
primeiro por representar na história a classe dominante; mesmo aí evidenciamos
elementos de tradição e ruptura, uma vez que ao lembrar-se das guerras, dos
momentos de valentia o faz pelo viés consciente do desaparecimento do Rio
Grande de outrora. Em segundo lugar, o narrador não faz parte do universo
campesino representado, figurando, assim, apenas na condição de observador e
interlocutor.
Depois de lermos o conto, observamos que Josué Guimarães, embora
mantenha as linhas tradicionais do modelo real-naturalista que norteou os escritos
da ficção regionalista inicial, acaba por introduzir elementos que alteram o
modelo reproduzido nos primeiros contos sulinos, como é o caso da linguagem,
pois ainda que haja a ênfase no coloquialismo, os termos locais não são
privilegiados; além disso, como em Barbosa Lessa, há a intromissão de um
elemento que parece fugir às leis da natureza, o misterioso e longevo cavalo cego.
Também a temática do conto crítica as oligarquias rurais, demonstrando que a sua
decadência e seu gradativo desaparecimento está diretamente relacionado com a
desagregação moral e a própria degeneração dos costumes dos antigos dirigentes,
os caudilhos.
125
3.2 A persistência da vertente regional na canção gaúcha
Nesta seção, propomo-nos a evidenciar, através de estudo analítico
comparativo, como os discursos iniciais da literatura oral e, mais tarde, do conto
são recuperados, na contemporaneidade, nas letras das canções regionalistas
gaúchas, as quais continuam conduzindo os indivíduos a recordar, reviver e
demonstrar a singularidade de sua tradição cultural regional. Para demonstrarmos
a persistência da vertente regionalista na canção gaúcha, selecionamos onze
compositores cujas canções continuam inscrevendo elementos da cultura regional,
os quais são introduzidos de acordo com a tipologia do percurso histórico da
canção do estado do Rio Grande do Sul, proposta por Cougo (2012) para se referir
aos sucessivos períodos da evolução da canção gaúcha, os quais, como já
registrado no capítulo anterior, são: Inventando as tradições; Ebulição nativista e
Memórias, Produção acadêmica e Revisionismo dos anos 1980 em diante.
A fim de melhor situar cada um dos compositores, apresentamos seus
dados biográficos, ainda que de forma sucinta, com a finalidade de relacionar sua
produção com a origem social e formação, ou seja, ressaltar a perspectiva a partir
da qual escreve: se a partir de uma inspiração e vivência rural ou citadina. Além
disso, procuramos situar as canções de cunho regionalista dentro do contexto
maior da obra de cada artista, com vistas a registrar a dimensão que a temática
regionalista assume para cada um destes.
3.2.1. Inventando as tradições
A música é um componente variável na alma dos povos. Reflete o
espírito coletivo, seus dramas, suas conquistas, seus traços
característicos de modelo social e psicológico. Sendo ainda, matéria -
prima, componente e tempero que dá gosto, vida e substância às ditas
ciências, tais como: História, sociologia, enfim, a tantas
outras. Entretanto, para nós, gaúchos campeiros - espécie em evidente
extinção, com o perdão do lugar comum - para nós, música é a própria
fisionomia da terra. É Alma, é coração, é sangue plasmado numa
vibração interior e uniforme, abrindo rotas, apontando diretrizes,
atraindo e repelindo sinais perdidos do núcleo central da
espiritualidade. José João Sampaio da Silva (2011)
126
Durante esse período, que envolve os anos 40 e se estende até 1971, o qual
para Cougo é considerado como o início das tradições, muitos nomes da música
gaúcha foram alcançando destaque, tanto artistas solistas como grupos musicais.
Nessa fase, vivia-se a era do rádio, meio difusor e propagador da vertente
regionalista, especialmente a partir do programa Campereadas, da Rádio
Farroupilha. Dentre os artistas cuja carreira profissional foi impulsionada pelo
rádio, destacamos Pedro Raymundo, Vitor Matheus Teixeirinha e Leovegildo José
de Freitas, por considerarmos que esses compositores foram os precursores da
canção regionalista gaúcha que é cantada até nossos dias.
3.2.1.1 Pedro Raymundo
Pedro Raymundo, catarinense, natural de Imaruí, nasceu em 29 de junho
de 1906. Foi o primeiro cantor do sul de êxito nacional que fez uso do traje típico
gaúcho. Mudou para a capital gaúcha em 1929, onde trabalhou como motorneiro
de bonde, na Cia. Carris Porto Alegrense e nas horas vagas, além de participar do
grupo de jazz da empresa, mostrava seu talento com sua gaita nos cafés do
Mercado Público. Em 1939, criou o Quarteto dos Tauras, adaptando canções do
folclore gaúcho, como Prenda Minha (1945) e Boi barroso (1951).
Quatro anos depois, foi tentar a sorte no centro do país, onde frequentou
programas de calouros no Rio de Janeiro, sempre com sua gaita e vestimenta
típica gaúcha. Pedro Raymundo foi o grande pioneiro da música regionalista do
Rio Grande do Sul. Barbosa Lessa e Paixão Côrtes, no livro Danças e andanças
da tradição gaúcha (1975, p. 35) registraram: ―Nos cafés e bares ‗da volta do
Mercado‘, concorridíssimos, ganha aplausos um cantador de nome Pedro
Raymundo – natural de Santa Catarina, mas bem representativo do Rio Grande na
sua maneira ‗largada‘ de interpretar, à gaita-piano, animados xotes e polquinhas‖.
Em 1944, Raymundo ficou reconhecido nacionalmente com a
composição ―Adeus Mariana‖, tornando-se uma estrela do rádio com o apelido de
Gaúcho Alegre do Rádio. Apresentou-se na emissora Mayrink Veiga, depois na
Tupi, Tamoio, Guanabara, Globo e Nacional. Em 1950, a consagração de Pedro
Raymundo chegou às bancas de revista, pois lá estava ele, na capa da Revista do
127
rádio, uma espécie de Revista Caras dos anos 40 e 50. Em 1959, Pedro
Raymundo tinha 60 discos em 78 RPM, e projeção nacional.
Vieira no Jornal Folha da Cidade ao refletir sobre a música regionalista
gaúcha recupera uma frase mencionada por Luiz Gonzaga no ano de 1971,
durante uma entrevista, que demonstra o quanto a figura de Pedro Raymundo
inspirou o trabalho de músicos sulinos e, principalmente inspirou a composição de
novos personagens característicos de regiões distintas: ―Quando Pedro Raymundo
veio para cá vestido de gaúcho, eu me senti nu. Eu disse: por que é que o Nordeste
não tem sua característica? (...) Vou imitar esse senhor. (...) Ele é gaúcho, vou ser
cangaceiro‖ (2014).
Em 1986, foi publicado um livro sobre a vida de Pedro Raymundo, de
autoria de Israel Lopes e Vitor Minas, pela Editora Tchê, de Porto Alegre. Em
2003, o selo Revivendo lançou o disco Saudade de Laguna com composições do
artista, entre as quais, "Tico-tico no terreiro", "De galho em galho", "Manhoso",
"Lamentos", "Contigo no pensamento", "O carreteiro", "Flor brasileira", "Se Deus
quiser", "Meu cavalo parelheiro", "Morena faceira", "Gauchinha", "Gaúcho
largado", "Adeus moçada", além da clássica "Adeus Mariana".
Quarenta e um anos depois da morte de Pedro Raymundo, músicos
catarinenses regravam suas canções, como parte de projeto de estímulo à cultura
liderado pelo violonista e produtor Luiz Sebastião Juttel, de Florianópolis,
segundo informação veiculada pela jornalista Caroline Macário no Diário
Catarinense no dia 18 de junho de 2014. Segundo Macário, o violonista Juttel
aposta no repertório instrumental de clássicos de Raymundo, tais como ―Adeus,
Mariana‖. O produtor, juntamente com Bruno Moritz (acordeon) e Rafael Borges
(guitarra semiacústica) deixará intactas as melodias, pois a intenção é fazer apenas
algumas adaptações de harmonia. A ideia, segundo Juttel (2014), é simples:
―arranjos feitos na hora e intuitivos, para não descaracterizar Pedro Raymundo
e ressaltar sua musicalidade. O único toque de contemporaneidade é a guitarra‖.
Conhecido como ―Gaúcho alegre‖, o catarinense Pedro Raymundo
misturou a temática sulina à de outros estados: interpretava polcas, valsas,
marchinhas e até mesmo baião. Nisto, como na linguagem simples, apelo ao
imaginário popular, identificação com o homem do povo, e o emprego de um
humor baseado na banalização da violência, Raymundo parecia buscar uma
128
fórmula que lhe garantisse empatia com seu público; reivindicou para si a
identidade de ―gaúcho adotivo‖.
Na canção ―Adeus Mariana‖ o eu poético coloca-se na posição de alguém
que se desloca da cidade para o campo e, para quem, portanto, o ambiente
regionalista não fazia parte das vivências primeiras: ―Nasci lá na cidade, me casei
na serra/ Com a minha Mariana: moça lá de fora‖ (RAYMUNDO, 1944). A
temática que envolve a canção é o romance com a Mariana, o casamento e a
infidelidade.
Nessa composição, evidenciamos a inscrição dos elementos campeiros a
partir de uma identificação externa, pela indumentária. A amada é caracterizada
como ―gaúcha de verdade dos quatro costados‖, opinião que é justificada pelo fato
de que a mulher ―usa chapéu grande, bombacha e esporas‖. A descrição, que se
aproxima do imaginário do gaúcho monarca das coxilhas, é ainda composta a
partir de elementos que integram a vivência campeira, como o hábito de levantar
cedo, o trabalho do campo, o andar a cavalo: ―Nem bem rompeu o dia/ me tirou
da cama/ encilhou o tordilho e saiu campo afora‖.
Evidencia-se, porém, uma inversão nos papéis sociais, já que a mulher
passa a assumir comportamentos que eram associados ao homem. Ademais, há
uma inversão, ainda, no comportamento masculino, que passa a ser objeto de
agressão por parte da mulher. Se na tradição da monarquia o homem exercia a
violência na defesa do território, a mulher agride o homem na defesa do objeto
amado, que se rende a sua força (e violência):
Ela não disse nada, mas ficou sismando
Que era dessa vez que eu daria o fora
Pegou uma açoiteira e veio contra mim
Eu disse larga, Mariana, que eu não vou embora
Podemos perceber que Pedro Raymundo retoma a temática antiga,
remontando ao cenário campeiro através de imagens e figuras que já estão
inscritos no imaginário regionalista: como tordilho, campo fora e açoiteira, mas o
faz em um contexto diferente, que contrasta com o da tradição regionalista inscrita
no conto, pois na canção o contexto é o desentendimento com a mulher, a traição.
Além de reinscrição do tradicional cenário regionalista, linguagem simples e o
tom humorístico com que se refere à violência praticada contra o gaúcho, sugere a
129
busca pelo apelo popular. Ao que parece, foi bem sucedido: ―Adeus, Mariana‖
segue sendo gravada e continua fazendo sucesso nas interpretações de artistas
como Gaúcho da Fronteira, Sérgio Reis, Tonico e Tinoco, Neto Fagundes e
Ernesto Fagundes e Osvaldir e Carlos Magrão.
Outra composição de Pedro Raymundo, ―Gaúcho Largado‖, gravada no
ano de 1944, retrata a imagem do gaúcho festeiro, cobiçado, briguento,
tipicamente pilchado e acompanhado do ―pingo‖, o seu cavalo. Evidenciamos a
natureza identitária do gaúcho, expressa, novamente, por meio de elementos
externos, através da vestimenta: ―botas, bombacha e lenço encarnado‖: ―Quando
eu ponho minhas botas, bombacha e lenço encarnado/ Todo mundo logo grita: -
Eta gaúcho largado;/‖.
Como em ―Adeus Mariana‖, a caracterização do tipo humano se dá
através do resgate de elementos que compunham a vida do gaúcho: a companhia
do cavalo e a peleia, inscritos agora em uma perspectiva diferente daquela
referendada pela tradição do conto regionalista, uma vez que o cavalo é utilizado
como meio de deslocamento para a ida ao baile e a peleia não é mais atrelada à
guerra, não mais é sinônimo de valentia, mas é, antes, elemento provocador de
cobiça entre as mulheres:
Se monto no meu cavalo, no meu pingo pangaré
Por Deus que sou cobiçado por mais de trinta mulheres!/
E quando eu chego num baile sapateio na entrada
Se alguém me chama atenção a peleia está formada
Atiro no candeeiro e vou brigar no escuro.
Identificamos o deslocamento da matéria campeira para um contexto
diferente, em que a vestimenta confere ao gaúcho a sua caracterização, e a
valentia confunde-se com a briga sem motivos. Em contraste, por exemplo, com a
importância dada ao ser em Simões Lopes Neto, nesta canção avulta a importância
atrelada das posses, do ter, mais do que ao ser. Assim, ―ser gaúcho‖ define-se por
ter as vestimentas típicas, que são usadas para a conquista amorosa. Da mesma
forma, a questão maior inscrita na composição é a da valentia, que não se
manifesta na peleia heroica, nem mesmo na defesa da honra, mas simplesmente é
uma resposta compulsiva a qualquer briga. Assim, preserva-se a valentia em um
contexto degradado, à medida que a canção faz apologia à violência gratuita.
130
A canção desnuda a prontidão do gaúcho para a luta e pelo morrer por sua
honra, mas de modo diferente, pois não evidenciamos os motivos que antigamente
levavam o gaúcho à peleia, como por exemplo, a defesa pelo território e à
posterior heroicização:
Se morrer pouco me importa, mas desaforo eu não aturo!
Encosto numa parede e mando vir quem quiser,
venha velho, venha novo, só não me venha mulher;
Arranco do meu facão, manejo sem atrapalho,
Nos magros eu dou de prancha e nos gordos dou de talho!‖.
Ainda na canção ―Gaúcho Peleador‖, evidenciamos a recuperação da
temática antiga, pela inscrição de traços que compõem a identidade gaúcha:
―peleador‖, ―rei‖, ―cavalo‖, porém, novamente, em um contexto diferente daquele
apresentado no conto. Tipo comunicativo e fanfarrão, o gaúcho assim se
apresenta:
Buena moçada linda, com vocês aqui estou/
quem esqueceu do meu nome, desculpa faça o favor,
me chamo Pedro Raymundo, gaúcho peleador
Dizem por aí afora,que eu sou o rei da furada,
em toda parte que eu chego,a bagunça tá formada
entro um no baile a cavalo,e não me acontece nada.
Observamos a peleia relacionada a um comportamento inadequado e não
mais a um sentido heroico, de glória, pois o gaúcho representado é o ―rei da
furada‖. Ademais, a defesa pela honra, o lutar e não ter medo de morrer por
aquilo que acredita, evidenciados no conto, bem como o amor pela aventura, a
exaltação da coragem pessoal, contrastam com a representação desse novo gaúcho
peleador, igualmente individualista. Notamos, desse modo, um deslocamento da
imaginação, pois brigão e valente não são sinônimos. A personificação do amigo,
o fiel cavalo, é celebrada ainda nesse contexto que, se por um lado, preserva a
violência que perpassa a narrativa do gaúcho monarca e centauro dos pampas, é,
por outro lado, reduzida ao cenário de um entrevero banal de uma violência
gratuita:
e não se corre do bicho sem ver o pelo, camarada
Amigo só tenho um, meu baio buêno flete,
com ele eu enfrento a morte, brigo com cinco, e com sete,
131
no entreveiro de bala, brigo até de canavete
-e dou talho que não é qualquer doutor que costura, amigo, eiaa...
Em ambas as canções: ―Gaúcho peleador‖ ou ―Gaúcho largado‖, é
somente para a mulher que o gaúcho se entrega, pois não é avesso ao amor, e a
figura feminina associa-se à concepção de sua masculinidade:
e dou talho que não é qualquer doutor que costura amigo eiaa
Quando eu entro no bochincho, acredite quem quiser
não me deixo levar preso por um cidadão qualquer
me entrego de corpo e alma pra uma linda mulher‖.
Como exemplificadas, as composições de Raymundo cantam a terra
gaúcha a partir de elementos externos, ao invés de vivências propriamente ditas, a
partir da indumentária, do cavalo, da valentia transformada em briga, os quais
funcionam como elos identitários. Tais elos, aliados a uma linguagem simples,
que reflete a fala do povo, garantem uma comunicação fácil com o público a que
se destina, aparentemente o gaúcho menos cultivado, das classes populares.
Ressaltamos, ainda, o deslocamento do cenário da valentia, e do próprio sentido
da mesma, que passa a se atrelar à defesa não mais do território, mas da
masculinidade, o que é alcançado através da violência, da briga. As armas antes
usadas na lida campeira e na peleia guerreira agora são empregadas para a defesa
pessoal, e como instrumento de afirmação da masculinidade. Assim, podemos
dizer que o gaúcho adotivo desloca as figuras cristalizadas pelo imaginário,
recuperando através delas os elementos do cancioneiro oral e da prosa regionalista
em um contexto diferente.
3.2.1.2 Vitor Matheus Teixeira- o Teixeirinha
O final da década de 50 reservou para a história da música gaúcha uma
grande surpresa. Isso se deve ao aparecimento de um personagem de nome Vitor
Matheus Teixeirinha, o Teixeirinha o qual, segundo Cougo (2012), foi,
ironicamente, minimizado, durante muitos anos, pela historiografia.
Teixeirinha nasceu em Rolante/RS em 03 de março de 1927. Inicialmente
conhecido apenas nas rádios interioranas do chamado Planalto Médio sul-rio-
grandense, registrou suas primeiras gravações em 1959, pela incipiente gravadora
132
Chantecler. No entanto, seus três primeiros discos não fizeram sucesso, mas o
quarto – um 78rpm contendo o xote ―Gaúcho de Passo Fundo‖ e a toada-milonga
―Coração de luto‖ – tornou-se um marco da fonografia brasileira. Segundo Cougo:
Em pouco tempo, Teixeirinha vendeu dois milhões de cópias, tornou-
se um dos artistas mais bem pagos do Brasil e passou a figurar como o
grande representante da música sulina – imagem consolidada durante
25 anos de carreira, sobretudo depois da parceria com a acordeonista
Mary Terezinha. O sucesso do ―Gaúcho Coração do Rio Grande‖ foi
tanto que vários outros artistas resolveram seguir seus passos.
(COUGO, 2012, p. 8)
O sucesso de Teixeirinha surpreendeu tanto a ele quanto ao meio
empresarial que assistia o fenômeno deste músico. Desde então, em sua carreira,
até o ano de 1983, gravou mais de 700 canções, teve 69 LPs editados e compôs
um acervo de 1.200 obras. Durante vinte anos, apresentou programas de rádio
diariamente com duas edições: ―Teixeirinha amanhece cantando‖ (pela manhã) e
―Teixeirinha comanda o espetáculo‖ (à noite); ainda, aos domingos pela manhã,
tinha o programa ―Teixeirinha canta para o Brasil‖, esse com transmissão da
capital gaúcha para o interior e, também, para outros estados brasileiros.
Sobre a aceitação do público pelo trabalho de Teixeirinha, a fundação
Vitor Matheus Teixeirinha registrou em seu site que se deve à simplicidade com
que eram escritas suas músicas. Nas palavras do próprio músico, pode-se
observar: "Eu canto para o povo" e "Onde o povo for eu vou". Assim, ele
consolidou sua carreira e levou sua música por todo o Brasil, América do Sul,
Estados Unidos e Canadá, tendo recebido de Portugal o troféu Elefante de Ouro.
No dia 4 de dezembro de 1985, Teixeirinha faleceu, vítima de câncer.
Reconhecido pelo forte timbre de voz, vinha acompanhado pelo conjunto
regional composto pelo som de acordeom, violão e flauta. Ainda que tímidas e
introspectivas, as primeiras gravações de Teixeirinha lembram o gênero
estabelecido por Pedro Raymundo -- temas regionais, baseados na simplicidade e
na fácil compreensão. Depois de conquistado o mercado musical, Teixeirinha
reproduziu livremente em suas composições as influências recebidas,
apresentando um repertório cada vez mais diversificado. Cantou a morte da mãe,
o amor, a mulher gaúcha, a honra, o gaúcho herói, a fronteira.
133
Com relação ao tema, algumas de suas composições lembram sua história
de vida, como na canção de sucesso ―Coração de luto‖, em que o músico canta a
tristeza pela perda trágica da mãe: ―O maior golpe do mundo/ Que eu tive na
minha vida/Foi quando com nove anos/ Perdi minha mãe querida/ Morreu
queimada no fogo/ Morte triste, dolorida/ Que fez a minha mãezinha/ Dar o adeus
da despedida‖.
O apelo à orfandade em tenra idade fala aos sentimentos dos ouvintes, em
uma busca de identificação que é magnificada pela valorização da figura materna
e do amor por ela, expressos em ―mãe querida‖ e no diminutivo carinhoso ―minha
mãezinha‖. Há, ainda, como elemento garantidor de empatia, o cenário trágico em
que a morte ocorreu, e a proclamação da intensidade da dor sofrida.
A exploração da dor continua na parte final da composição, a qual relata a
chegada ao cemitério, a comoção dos momentos finais de despedida, e a condição
desvalida do órfão que não tem ninguém por si:
Ao chegar no campo santo
Foi maior a exclamação
Cobriram com terra fria
Minha mãe do coração
Dali eu saí chorando
Por mãos de estranhos levado
Mas não levou nem dois meses
No mundo fui atirado
Por fim, a canção apela à tradição da honradez gaúcha, ainda no cenário
―sagrado‖ do cumprimento de promessa feita à falecida mãe: ―Quando mamãe era
viva/ Me disse: filho querido/ Pra não roubar, não matar/ Não ferir, não ser ferido/
Descanse em paz, minha mãe/ Eu cumprirei seu pedido‖.
Mesmo no contar e cantar o luto ambientado no pampa, e a infância triste e
pobre do menino que teve sua vida desorientada pela perda da mãe, podemos
acompanhar a descrição do espaço através da recuperação de elementos da
vivência campeira gaúcha: o rancho da família, a simplicidade do campo, o carro
de boi:
Vinha vindo da escola
Quando de longe avistei
O rancho que nós morava
Cheio de gente encontrei.
134
Seguiu num carro de boi
Aquele preto caixão
Ao lado eu ia chorando
A triste separação.
Devido ao sucesso da música "Coração de luto", Teixeirinha foi convidado
pela Leopoldis Som (1967) a encenar a história da música e, desde então, o
cinema também passou a fazer parte de suas conquistas, pois produziu em torno
de dez filmes. Sua última participação em filmografia ocorreu no ano de 1981.
A canção ―Gaúcho de Passo Fundo‖, gravada no ano de 1960, no disco O
gaúcho coração do Rio Grande, e regravada pelo grupo Os Fagundes, no ano de
2005 no Cd Os Fagundes: ao vivo, inscreve os elementos da vertente regional a
partir de um contexto diferente. A identificação do gaúcho se dá, de um lado,
através da recuperação dos valores preconizados na vida no campo, como a
hospitalidade; por outro lado, a própria aparência, e a indumentária, simbolizada
pelo pala, são suficientes para o eu lírico caracterizar a identidade gaúcha: ―Me
perguntaram se eu sou gaúcho/ Está na cara repare o meu jeito/ Eu sou gaúcho lá
de Passo Fundo/ Trato todo mundo com muito respeito/Mas se alguém me pisar
no pala/ Meu revolver fala e o bochincho está feito‖. Novamente, o que se
inscreve é a imagem do gaúcho brigão, vingativo e peleador, porém não mais
heróico, o que sugere o fortalecimento de um traço associado ao gaúcho: a
violência gratuita.
A formação desta identidade cantada se dá pelo viés da diferença – da
singularidade de um povo que sempre vence, de uma terra que é produtiva, e de
um povo que é amigo: ―Me perguntaram qual era razão/ Eu ter orgulho e ser
passo-fundense/ Eu respondi sou da terra do trigo/ Tem um povo amigo e quando
luta vence/ É um pedaço do Rio Grande amado/ Orgulha o estado e o povo rio-
grandense‖.
Os elementos regionalistas evidenciados no conto -- a mulher, o cavalo, o
campo fora --, são recuperados na canção no contexto do orgulho pelo chão
nativo. A presença da prenda sinaliza os motivos para voltar à terra natal, ao
mesmo tempo em que retoma a imagem do monarca que cruza fronteiras. Este é
um gaúcho que atravessou as fronteiras de seu estado, conheceu diferentes
realidades, e, portanto, está habilitado a formular com conhecimento de causa a
identidade gaúcha naquilo que a caracteriza em contraste com as demais: sabe
135
bem o que é o não-gaúcho, e, conhece as moças de outros estados, e, portanto,
pode bem contrastar a bondade de sua terra, e a beleza de sua gente com as
demais. Isso o estimula a retornar:
Já respondi a pergunta seu moço
Me dá licença vou encilhar o cavalo
Brasil a fora atravessei os estados
Troteando apressado eu vim tirando o talo
Pra ver as prendas mais lindas do mundo
Cheguei em passo fundo no cantar do galo.
Igualmente, “Querência amada”, gravada no ano 1975, exalta as virtudes
do povo gaúcho, as belezas do estado do Rio Grande do Sul e da mulher gaúcha, a
produtividade da terra: ―Querência amada dos parreirais/Da uva vem o vinho/ Do
povo vem o carinho/ Bondade nunca é demais‖. Esta é, talvez, uma das músicas
gaúchas mais regravadas por cantores nativistas; notamos que esta canção convida
o povo gaúcho para exaltar sua cultura, seu estado, seu povo, levando à empatia
através da exploração do amor à terra.
O lenço, que compõe a identidade do gaúcho através da vestimenta,
também diferencia o gaúcho dos demais, caracterizando a conotação política
evidenciada pela sua cor: nos anos 1835, 1893, 1923 o lenço vermelho distinguia
os maragatos, como eram chamados os adeptos do Partido Federalista. Na
atualidade, representa a preservação de uma tradição que cultua a valentia e
heroísmo gaúcho. Por outro lado, esse gaúcho é caracterizado também com
relação à natureza bela de sua terra. Dizem os versos: ―Quem quiser saber quem
sou/ Olha para o céu azul/ E grita junto comigo/ Viva o Rio Grande do Sul/ O
lenço me identifica/ Qual a minha procedência/ Da província de São Pedro/
Padroeiro da querência‖.
A canção relembra, ainda, os nomes de três importantes representantes
políticos do Rio Grande do Sul. São eles: Flores da Cunha, que recebeu o título de
general, pela bravura com que lutou como chefe militar legalista na revolução de
1930, que conflagrou o Rio Grande do Sul; Borges Medeiros, representante da
primeira geração republicana, e que foi presidente do estado do Rio Grande do
Sul, um dos maiores representantes e fiel executor do positivismo e Getúlio
Vargas, advogado e político brasileiro, líder civil da Revolução de 1930, que pôs
136
fim à República Velha, atuando como presidente do Brasil em dois períodos. Diz
a canção:
Berço de Flores da Cunha
E de Borges de Medeiros
Terra de Getúlio Vargas
Presidente brasileiro
Eu sou da mesma vertente
Que Deus saúde me mande
Que eu possa ver muitos anos
O céu azul do Rio Grande
A composição também recupera a temática da morte heroica, morrer pela
defesa do território, assim como a mulher como símbolo de beleza: ―Te quero
tanto/Torrão gaúcho/Morrer por ti me dou o luxo/Querência amada/ Planície e
serra/Dos braços que me puxa/Da linda mulher gaúcha/Beleza da minha terra‖.
Além disso, persiste a identificação com o heroísmo farroupilha: apesar de
se dizer pertencente a uma nova geração, nesta ainda ―escorre o sangue herói de
farrapo‖; nesse sentido, evidenciamos uma geração que cultua ainda, no presente,
o seu passado: ―Sou da geração mais nova/Poeta bem macho e guapo/Nas minhas
veias escorre/O sangue herói de farrapo‖.
Ao reverenciar a cultura gaúcha, a canção ainda extremiza a caracterização
do gaúcho ao colocar no mesmo plano o gaúcho e Deus, além de relacioná-lo à
imagem da violência, da guerra e à beleza e grandeza da Terra gigante do Rio
Grande do Sul. Deus é grande, a Terra também:
Deus é gaúcho
Da espora e mango
Foi maragato ou foi chimango
Querência amada
Meu céu de anil
Este Rio Grande gigante
Mais uma estrela brilhante
Na bandeira do Brasil.
Teixeirinha, em seu disco Rio Grande de outrora, no ano de 1981, na
música homônima, compara o gaúcho de outrora ao de hoje, iniciando com a
caracterização do gaúcho de outrora. Nessa canção é possível acompanhar uma
retomada da história, da caracterização do herói farrapo a partir de sua
indumentária: bombacha, espora, chapéu grande, lenço vermelho, camisa branca.
137
Isso nos é contado pelo olhar de outra geração, do neto que lembra a figura do avô
ao observar um velho gaúcho que se desloca a cavalo para ir ao baile. O ―velho
gaúcho‖ representa o gaúcho autêntico que segue acompanhado do ―pingo‖, seu
cavalo, levando consigo seu lenço vermelho, considerado pelo músico como ―fiel
herança de um herói farrapo‖:
Velho gaúcho de bombacha e espora
de chapéu grande tapeado na testa
bigode branco e um sorriso aberto
montando um pingo nos dias de festa
acariciando a crista do seu pingo
batendo o relho de leve na anca
lenço vermelho esvoaçando ao vento
guasqueando as pontas na camisa branca
eu me encontrava na beira da estrada
quando passava um gaúcho guapo
me fez lembrar de meu avô e outros
fiel herança de um herói farrapo
Esse velho gaúcho remonta às gerações e às tradições por portar consigo a
história do Rio Grande do Sul; o eu lírico refere-se, mais adiante, ao velho
gaúcho, que defendeu o seu estado na guerra, como ―Deus na terra‖. A festa, o
momento do baile é o lugar de reflexão de pensar o estado e a tradição, local em
que ocorre a comparação entre o gaúcho de outrora e o do presente pelo contraste
entre o ―velho gaúcho‖ e o ―magrinho‖. Tal distinção inicia pela língua, pelo ―ok‖
proferido pelo magrinho e que simboliza, na canção, aquele que é ―de fora‖, assim
como evidenciamos a supervalorização do gaúcho tradicional:
velho gaúcho chegou na tal festa
logo mais tarde eu cheguei também
cantei uns versos saudei os presentes
quando um magrinho me falou ―ok‖
corri os olhos no velho gaúcho
e no magrinho olhei de cima a baixo
pensei comigo e vou dizer agora
a diferença que nos dois eu acho
Na descrição de um e do outro vai ser revelada a superioridade do velho
gaúcho, pois a imagem do ―magrinho‖, o ―gaúcho de agora‖ representa a geração
atual, que não está engajada ao tradicionalismo: ―no tal magrinho eu vi o presente/
e no gaúcho velho vi o passado/ a diferença é do dia prá noite/ como mudou o
meu Rio Grande amado‖. Depois de diferenciar os dois gaúchos, o eu lírico
138
coloca-se na posição de quem vai ensinar o outro a reverenciar a história, a
tradição e o respeito pelo gaúcho de outrora:
Eu não sou contra o gaúcho de agora
só não me diga ―ok‖, me aperte a mão
leia a história do velho Rio Grande
como é linda nossa tradição
veja o gaúcho como eu vi aquele
respeite ele como Deus na terra
se o Rio Grande hoje é paz e amor
É por que ele defendeu na guerra.
Percebemos a cisão parcial entre o universo regionalista e o presente,
manifesto pelo anseio de uma geração que retoma os feitos gaúchos e sente o
compromisso de manter viva a história do ―velho Rio Grande‖, cultuando o mito e
transformando em símbolo o passado vivido. Ao final da canção acontece a
reafirmação de que o velho gaúcho representa o gaúcho autêntico, pelo seu modo
de viver, enfim, pela ambientação, pois o gaúcho de outrora continua vivendo em
seu rancho: ―velho gaúcho bebeu festejou/ montou no pingo partiu foi
embora/direto ao rancho e eu fiquei dizendo/lá vai o velho Rio Grande de
outrora‖.
Notamos que essa canção recupera a imagem do gaúcho sem fazer
apologias à violência, à valentia e à briga sem motivos, uma vez que a
caracterização se dá pelo viés da busca do eu lírico pela tradição, pelo culto ao
herói do passado, enfim, pelo reconhecimento da história e grandeza do Rio
Grande.
Outra composição de Teixeirinha que compõe o seu último Lp Amor aos
passarinhos, gravado no ano de 1985, é ―Querência e cidade‖, a qual foi
considerada como a última produção do compositor alinhada ao gauchismo. Nessa
canção, os espaços campo e cidade significam, de um lado, a idealização e, de
outro, a realidade.
No campo, a paisagem campeira denota a imagem de um mundo positivo,
sem males, tranquilo, em que o indivíduo é livre. A relação harmônica entre
homem e o seu território é que impera sobre a formação do gaúcho no campo,
diferentemente do que acontece com o mesmo na cidade: ―Lá na querência
quando amanhece/ A gente esquece todos dissabores /Cá na cidade quando
amanhece/ É um inferno o ronco dos motores.‖
139
A superioridade da vida passada no campo, com relação à descrição da
vida na cidade, desenha a imagem de que a beleza do campo se perde no cinza da
cidade. A cidade desumaniza, pois o homem ―é fera‖; a querência, ―jardim de
flores‖, lembra a inocência. Nesse sentido, podemos depreender que o homem, ao
se afastar do campo, torna-se um indivíduo degradado: ―Cidade é selva de
cimento armado/ O homem é fera embora estudado/Lá na querência é um jardim
de flores/ E querência amada‖.
Depois da discussão acerca da natureza e o seu efeito sobre o homem do
campo e o da cidade, a canção opõe cidade e campo pela honradez, uma vez que,
no campo, o homem é de palavra: ―Lá na querência um fio de bigode/ Fecha um
negócio vale um documento‖ e na cidade a palavra e o bigode é ―coisa à toa‖.
Diante desse paralelo, podemos também atentar para o fato de que campo lembra
a violência, a banalidade injustificada, movida pela herança de valentia; a cidade,
por sua vez, lembra a diplomacia: ―Cá na cidade o advogado fala/ Lá na querência
se resolve à bala/ Finda pra sempre um aborrecimento‖. Evidenciamos, nesta,
canção a herança da valentia e do heroísmo, porém associada a uma violência
injustificada.
A distinção entre campo e cidade continua, agora, com relação à beleza e à
força da mulher: à mulher do campo é atribuída a condição de superioridade,
manifestada pela sua íntima associação à natureza e a sua simplicidade, uma
simplicidade que se opõe ao esnobismo da mulher da cidade, e se manifesta,
também pela ausência de maquilagem, e à simplicidade alimentar, que lhe dá
força:
Lá na querência a mulher é simples
E tem o cheiro das flores da mata
Cá na cidade a mulher é isnobi
E a maioria delas é ingrata
A diferença de uma e da outra
Perdoe-me senhores de gravata
Lá na querência a mulher não se pinta
Cá na cidade é na base da tinta
Come pão doce, lá come batata.
E a batata dá mais força mesmo.
O campo é, ainda, descrito como superior pela evidência sonora: no campo
há o canto dos passarinhos e a beleza do nascer do sol; na cidade, a buzina dos
carros e ruído dos pneus no asfalto. Ao final da canção, o eu-lírico reafirma a
140
beleza da vida e convivência social no campo, bem como da lida na lavoura, ainda
que ―grosso‖, o homem do campo goza de uma vida superior:
Lá na querência canta os passarinhos
Como é bonito quando o sol levanta
Cá na cidade a buzina é música
E no asfalto o pneu é que canta
A diferença de uma coisa e outra
Peço senhores em nome de santa
Lá na querência nós fazer visita
Pra ver que a vida lá é mais bonita
Do homem grosso que lavra e planta.
A roupagem regional evidenciada nas canções de Teixeirinha se inscreve
em contextos diferentes, uma vez que, o antigo herói dos pampas configura-se
como o atual brigão, através de uma valentia sem motivos. No contato com as
composições estabelecemos basicamente, três aspectos que as delineiam. O
primeiro relaciona-se ao tema das canções - sua exploração do espaço campeiro,
dos costumes gaúchos, da indumentária, da mulher, e da dicotomia campo e
cidade. O segundo atém-se à relação entre o passado e a vivência no presente; é
possível perceber a trajetória da canção atrelada aos aspectos vividos, como a
perda da mãe, a revolução, a saída do campo, Finalmente, o terceiro associa-se à
origem social do público e do próprio cantor, evidenciados a partir de uma
linguagem simples, de um olhar singular para a terra gaúcha, para a vida no
campo.
3.2.1.3 Leovegildo de Freitas – Gildo de Freitas
Ao lado de Teixeirinha, destacamos Leovegildo de Freitas, conhecido
como Gildo de Freitas, que nasceu em Porto Alegre, a 19 de junho de 1919. Poeta
popular, cantou a sua época, o seu povo. No ano de 1949, era considerado
trovador com fama ascendente, ―Rei dos Trovadores‖ em todo o Rio Grande do
Sul. A sua fama como trovador nos programas de rádio ao vivo em Porto Alegre
acontece por volta dos anos 1953-54, momento em que os programas
organizavam disputas entre os participantes.
141
O jornalista Juarez Fonseca, no programa Galpão Crioulo veiculado no
mês de abril do ano de 2014, foi entrevistado por Shana Müller para falar sobre a
trajetória desse trovador dos pampas. Segundo Fonseca (2014), Gildo de Freitas
era imbatível como trovador, em uma época em que a trova teve seu auge no Rio
Grande do Sul. Da mesma forma, Shana Müller afirma, no mesmo programa, que
Gildo criou um estilo próprio de trova gaúcha.
O ano de 1955 registra o encontro e, também identificação com o músico
Teixeirinha; nesse período realizaram muitas viagens. No período que envolve os
anos 1956 – 1960, Gildo torna-se a maior atração do programa Grande Rodeio
Coringa, nos domingos à noite. Entretanto, a passagem dos anos 1961 e 1962
demonstra um relativo declínio dos programas de rádio ao vivo, isso em função da
chegada da televisão.
A gravação do primeiro disco acontece no ano de 1963, em São Paulo, e o
lançamento ocorreu em 1964. Em se tratando de provocações em disco, o
primeiro alvo de Gildo de Freitas não foi Teixeirinha. Gildo de , em seu primeiro
Lp em 1964 provocou Pedro Raymundo, respondendo à música ―Adeus Mariana‖
com a canção ―Que jeito tem a Mariana‖.
A disputa entre Gildo de Freitas e Teixeirinha através dos discos inicia em
1965, quando é lançado o segundo Lp, O trovador dos pampas- vida de
camponês‖. Entre suas músicas estava ―Baile de respeito‖, que foi a primeira
música gravada em provocação a Teixeirinha. No seu quarto Lp, gravado em
1968, Gildo de Freitas e sua caravana,seguem as provocações e respostas a
Teixeirinha. Em 1969, é lançado o quinto Lp, De estância em estância, com a
canção ―Resposta da Milonga‖, mais uma provocação ao sucesso de Teixeirinha
com a ―Milonga da Fronteira‖.
Nas citações abaixo, os primeiros versos são da ―Milonga da Fronteira‖, de
Teixeirinha, gravada no ano de 1964, no Lp Gaúcho autêntico; a seguir citamos a
resposta de Gildo de Freitas, gravada no ano de 1969. Em meio à disputa,
podemos observar a inscrição dos elementos regionalistas em Teixeirinha e sua
(re)inscrição, depois, em Gildo de Freitas. A milonga de ambos recupera o ato de
atravessar fronteiras e a conquista do amor da linda fronteirista:
142
Atravessei a fronteira por eu ser bom violeiro conhecer mais um pedaço do meu torrão brasileiro na costa do Uruguai fiz milonga no terrero e uma fronteirista linda me chamou de milongueiro Respondi pra fronteirista -não sou milongueiro, não eu só toco essa milonga que eu fiz de prevenção só pra ver se eu conquisto o seu meigo coração Ela foi me respondendo - mesmo assim és cantador eu também sou milongueira no violão tenho valor vamos fazer um desafio ganhando és merecedor e se tocar mais do que eu será teu o meu amor [...] (TEIXEIRINHA, 1964)
Ô Teixeirinha um dia destes
Eu andei lá na fronteira
Lá aonde tu perdestes
Pra gaúcha milongueira
Um lugar muito bonito
A china bonita e bela
Só achei muito esquisito
Tu ter pedido pra ela
E eu cantei lá, um pouquinho
E ela também cantou
Depois nós os dois sozinhos
Está história me contou
Quando o Teixeirinha veio
Cantei com ele e venci
Contigo dei um floreio
Me entreguei, me convenci
( FREITAS,1969 )
Entre 1970 e 1980 Gildo de Freitas grava mais oitos Lps, entre ele
sucessos como o ―Ídolo‖ e ―Rei do Improviso‖, porém problemas de saúde
começam a se agravar. Em 1981, grava o Lp Rei dos trovadores; a disputa com
Teixeirinha é amenizada um pouco, mas não impede a ―Resposta da Adaga de S‖.
No ano de 1982 é realizada a ultima gravação; trata-se do Lp Figueira amiga,
pela Continental, com a última provocação ao Teixeirinha com a música ―Que
negrinha boa‖ e, claro, com a música ―Figueira amiga‖. A composição ―Que
negrinha boa‖ retrata a história de um homem apaixonado pela ―negrinha‖, a
Gabriela, a qual o eu lírico tem receio de que outro artista na composição, o
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Teixeirinha, a roube. Assim, com a intenção de cuidar da mulher, observamos um
homem disposto a cumprir com os afazeres da casa e tratar com carinho a mulher
para não perdê-la. Nessa composição observamos a inscrição dos elementos da
vertente regionalista, ainda que de forma diferenciada, e até invertida, com relação
à tradição: há a inscrição do amor do homem por uma ―prenda‖, que é referida
como ―minha negra‖; é o homem que a serve, e não o contrário, como costuma
acontecer na prosa da vertente regionalista:
Eu cuido da minha negra
Dou sopinha na tigela
Dou café, almoço e janta
Mingauzinho com canela
Tiro o pó todo da casa
Lavo os pratos e a panela
Não precisa trabalhar
Eu faço tudo por ela
Vou bater no Teixeirinha
Por andar de olho nela
De modo diferente, a canção ―Figueira amiga‖ recupera a vida do passado,
da saudade da antiga imagem do campo aberto, através da modificação do espaço
e do modo de viver. O eu lírico manifesta sua ―raiva‖ ao buscar o local que sua
memória retoma através da imagem da figueira, pois ele não consegue mais ver o
que antes via, nem com o que se refere ao ambiente, nem com as pessoas ―as
criatura‖ que ali se abrigavam, junto com seus cavalos:
Figueira faz tanto tempo
Que eu estava retirado
Aqui deixei meu passado
E hoje venho a procura
Só não vejo as criatura
Que eu vi e sou testemunha
Pegando cavalo a unha
Para porem a ferradura.
Figueira como é que pode
Estares modificada
E vejo assim tão cercada
De casas de moradia
Onde estão as ferrarias
Do Carlo e do Zeca Paiva
Francamente eu tenho raiva
De não ver mais quem eu via.
A saudade surge da perda dos elementos de identificação: o andar a
cavalo, as tropas, a própria violência, os hábitos do churrasco, de ouvir sanfona
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que agora se perderam, visto que o local onde se insere a figueira passou a fazer
parte de um cenário urbano:
Passavam tropas e tropas pelo Passo da Mangueira
E na Estrada da Pedreira pouco adiante do boeirinho
O matador assassino e as facas carneadeiras
Parece até brincadeira que o tempo modificou
Que fim será que levou teus velhos dono figueira
Eu tenho até que teus donos à anos já faleceram
E os herdantes venderam para outros seus direito
Ficaste assim desse jeito cercada de vizinhança
Que fim levou as crianças e aquelas moça tão lindas
Recordo de tudo ainda e não me sai da lembrança.
Quem tu eras, quem tu és, oh figueira bonitona.
Zeca Paiva era o teu dono, a dona Alzira tua dona
Quantas vezes em tua sombra churrasquiei, toquei sanfona
E a evolução por vaidade transformou tudo em cidade, passou a ser
cidadona.
Ao final da canção, é recuperada também a insatisfação com o espaço, a
impossibilidade de viver feliz longe do campo, fato que se aproxima da dicotomia
referendada por Teixeirinha entre querência e cidade. A canção também recorda a
saída do gaúcho, o deslocamento vivenciado e a inadaptação no ambiente
citadino, evidenciado como ―estranho ambiente‖:
Se eu pudesse eu te mudava
Pra um lugar de campo aberto
Para sentires de perto
As coisas de antigamente
Tu com toda essa beleza
I esse estranho ambiente
Não podes viver contente
Distante da natureza.
A última aparição pública de Gildo de Freitas é registrada na RBS em um
Galpão Crioulo em novembro de 1982, pois no mês de dezembro, no dia 4 ele
veio a falecer; justamente no mesmo dia, três anos mais tarde Teixeirinha faleceu.
Diante disso, em 1989, através do projeto do deputado Joaquim Moncks foi
aprovada a Lei Estadual 8814, que fixou o dia 4 de dezembro como o Dia do
poeta repentista gaúcho e do Artista regional gaúcho.
Fonseca (2014) registra a importância desse trovador, ressaltando que,
mesmo que ele tenha morrido há mais de 30 anos, as gerações de hoje conhecem e
reconhecem o seu papel para a sociedade sul-rio-grandense; da mesma forma, o
145
jornalista comenta sobre a continuidade de suas músicas através das inúmeras
regravações. Gildo ficou na memória dos gaúchos pela genialidade que ele teve
como trovador, cantador e cantor. Shana Müller ressalta o fato de que deixou um
legado, não somente para a música regionalista gaúcha, mas para a música
brasileira, pois suas composições têm histórias e, de certa forma, Freitas construiu
a história do Rio Grande do Sul e de uma época.
Uma das evidências da repercussão de Gildo de Freitas no meio musical
até a atualidade pode ser demonstrada a partir do músico Omair Trindade, o qual,
no ano de 2012, passou a chamar a atenção da crítica, que lhe concedeu o título de
Embaixador e herdeiro musical da obra de Gildo de Freitas pela sua regravação de
quatro grandes sucessos do Rei dos Trovadores e, ainda pela sua homenagem a
Gildo com a composição ―Ao Rei do Improviso‖: ―Mas o povo pede bis e eu
canto feliz ao nosso Rei do Improviso‖.
As composições de Gildo de Freitas trazem consigo a bagagem cultural da
terra gaúcha. Em seu cantar, Gildo retoma o viver no rancho, o amor vivido e
desfeito, a figura feminina, a saída do Rio Grande e, portanto, a saudade dos
tempos de outrora. ―Sistema dos pagos‖, gravada no álbum de 1965, O trovador
dos pampas – vida de camponês faz uma leitura da vida do gaúcho e,
principalmente, revela sua singularidade. Os versos são construídos a partir do
pedido de alguém para que seja definido o gaúcho: ―Muito bem, Gildo de Freitas,
mostra bem como os gaúchos é, compadre!‖.
A caracterização do ―sistema dos pagos‖ inicia pela indumentária, a qual
lembra o centauro dos pampas através da vestimenta, própria para montaria, e a
história do Rio Grande do Sul que ela evoca: ―Eu vou contar pra vocês o minha
gente/ Qual é o traje que o Rio Grande se usa / Uma bombacha umas bota um par
de espora / um chapéu grande um lenço um pala uma brusa/‖.
Depois da caracterização pela indumentária na primeira estrofe, a segunda
vai ser construída a partir do sinônimo de gaúcho como valente: ―[...] um cinturão
boleadera e tirador/ e um revolver carregado na cintura/ um litro mango e uma
faca prateada /e uma cordeona pr‘alegrar as criaturas‖. Na terceira estrofe
evidenciamos a caracterização que rememora a figura do centauro dos pampas, o
homem no cavalo: ―cavalo gordo e um areio preparado/ dois pelegão, peiteira,
freio e barbela/ um ramaneia um laço mala de poncho/e na garupa uma china
formosa e bela‖.
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O gaúcho, nesta composição, é macho e machista, pois a inscrição da
mulher ( a ―china‖) se dá unicamente pela função desta (tal como a filha do
coronel no conto de Josué Guimarães) de servir ao homem e ser-lhe carinhosa: ―e
esta china que me faz o chimarrão/ me lava a roupa faz almoço e faz café/ é bem
assim que se traja o rio grandense/ é o meu chão que le pertence os carinho da
mulhe‖. Por outro lado, o território local, os fazeres campeiros, são recuperados,
ao mesmo tempo em que são conservados os anseios de luta, pela retomada na
composição em que o próprio cachorro peleia com o inimigo:
Também percisa ter dois cachorro bueno
mas escolher da raça dinamarquês
para ajudar o seu dono a pelear
se pur acaso for perciso alguma vez
cada cachorro peleia com o inimigo
e o dono é guapo peleia com dois ou trêis
e foi assim que eu resolvi todo o problema
di contar todo o sistema do Rio Grande pra voceis.
Para além da definição do gaúcho, encontramos também a caracterização
do espaço, da china, enfim, do ―Sistema do Rio Grande‖, termo utilizado pelo
compositor para resumir o sentido da canção ―Sistema dos Pagos‖. Gildo de
Freitas empreende, nessa canção, uma descrição essencialista, sem comparações
ou construções, diferente da que apresentou Teixeirinha ao comparar claramente o
cenário, o indivíduo e os costumes campesinos aos da cidade; a intenção de
Freitas é demonstrar, simplesmente, como se comporta o gaúcho.
A composição gravada no ano de 1966, ―Despedida do Rio Grande‖ é
construída para justificar a saída de Gildo de Freitas do estado do Rio Grande do
Sul. Em sua retórica, o compositor recorre à intertextualidade, citando a marcha
que se tornou símbolo do Rio de Janeiro, para onde se dirige em busca de sucesso:
―Cidade maravilhosa, cheia de encantos mil‖, marchinha composta por André
Filho e arranjada por Silva Sobreira para o Carnaval de 1935 que homenageia as
belezas naturais do Rio de Janeiro. Nesse sentido, o Rio Grande do Sul também é
belo, possui encantos mil e, por esse motivo ele precisa mostrar as belezas que
Deus fez:
Até a volta gauchada amiga
Deste Rio Grande com encantos mil
Eu vou sair e levar as belezas
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Destas canções por todo o Brasil
Eu vou sair em direção ao norte
E boa sorte pra o meu céu de anil
A construção da despedida/ justificativa é alegre e se dá pela busca para
conhecer novos lugares e poder ver outras belezas, pois o compositor afirma nessa
estrofe que não é por dinheiro, mas a amizade ―vale milhões‖: ―Tenho certeza que
num outro Estado/ Quando ouvirem a nossas canções/ O que é tristeza vai ficar de
lado/ Vai alegrar vários corações/ Fazendo uso da simplicidade/ Por que a
amizade me vale milhões‖. Evidenciamos nessa composição a construção de uma
justificativa para a saída do Rio Grande do Sul através de uma retórica de
desculpa, firmada no fortalecimento das belezas do seu espaço e da liberdade
advinda do ―Pai Verdadeiro‖, o qual, além de fazer tantas belezas, deu também ao
homem liberdade de admirá-las:
Viver andando no Brasil inteiro
Eu sou gaúcho eu tenho vontade
Pra ver os feitos que o Pai verdadeiro
Deixou no mundo e deu liberdade
De admirar todas essas belezas
Que a natureza deu pra humanidade
No final, o compositor repete a imagem de Deus criador que fez a terra tão
linda, tirando o foco do seu próprio querer, praticamente responsabilizando Deus
pelas belezas naturais, afirmando ainda que não é por dinheiro que ele sai do Rio
Grande do Sul, pois a força, amizade e saúde e o contato com a natureza lhe são o
bastante:
Eu vou levando a vida de Aragano
Pelo Brasil eu só levo alegria
Pra ver a serra e a água do oceano
E as beleza que esse mundo cria
Todos da Terra não fazem em cem ano
O que o Pai soberano fez em sete dia
Por isso eu peço que Deus me ajude
Para eu cantar por este mundo além
Que eu tendo força amizade e saúde
Não me interessa eu ter um vintém
Basta o contato com a natureza
E ver as beleza que esse mundo tem
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A composição ―Gaúcho bom é assim‖, que faz parte do disco Rei do
improviso, gravado no ano de 1970, recupera a imagem do gaúcho ―valente‖ e
―destemido‖ evidenciada nos contos regionalistas, de um modo diferente, pois a
abordagem se dá pelo viés da violência, uma vez que esse é o seu valor diante dos
demais: ―O Gaúcho Rio-grandense /Já é muito conhecido/É valente é
destemido/Mas não ofende a ninguém/Mas porém sendo ofendido/O Gaúcho
perde a linha/Mostro logo em seguidinha/ O grande valor que têm‖.
No entanto, essa valentia que descamba para a violência é justificada, não
sendo mais apresentada como nas canções de Pedro Raymundo e Teixeirinha, em
que observamos o gaúcho brigão: ―O gaúcho desconfiado/ É um tremendo perigo/
Reconhece o seus amigos/Mas não briga sem razão‖. Novamente a mulher,
através da qual é recuperada a imagem da chinoca, é o único motivo pelo qual o
gaúcho deixa de pelear: ―Mas se enxergando mulher/ Lhe cai as armas da mão/ Aí
não dá mais pra brigar/ Primeiro se atende a chinoca!‖.
A presença do inimigo nessa canção é sugerida a partir da palavra
―contrário‖; nessa situação, evidenciamos a superioridade do gaúcho diante do
outro que estava armado. Há uma demonstração da força e também da valentia do
gaúcho sobre o ―contrário‖, que se consuma na perpetração de violência, o
assassinato do oponente: ―Numa certa ocasião/ Um contrário me ofendeu/Puxou
do revorve seu/ Mas não chegou dar um tiro/ Até parece mentira/ Dei-lhe um
tamanho sopapo/ Caiu virado num trapo/ Morreu sem dar um suspiro/ Este não
incomoda mais!‖ E novamente será a mulher, a prenda ―de rara beleza‖, quem vai
fasciná-lo e fazê-lo não fugir do crime cometido:
Nisto chegou uma prenda
Mulher de rara beleza
Que me olhou com firmeza
E o meu corpo estremeceu
Deu-me tamanho pialo
Aquele olhar fascinante
Eu não fugi do flagrante
E a policia me prendeu
-Depois que eu sai da cadeia
eu fui preso de novo nos braços dela!
Assim como evidenciamos na literatura oral no Cancioneiro, a temática
dessa canção gira em torno do fato de o gaúcho contar suas cenas de valentia e sua
atração pela mulher, temas que se configuram como prediletos do troveiro
149
primitivo. Nessa composição, não evidenciamos a valentia atrelada à defesa de um
território, nem mesmo o cavalo ou a espacialização do rancho, mas podemos
observar o deslocamento da imagem do centauro dos pampas para as cenas
cotidianas em que prevalece, no gaúcho, sua herança de ―valente‖ e ―destemido‖,
e sua afirmação de masculinidade diante da prenda. A mulher, nesta composição,
é elemento de redenção, pois é por causa dela, de seu olhar, que o gaúcho cumpre
a lei:
Se não fosse aquele olhar
Eu garanto que fugia
Eu brigava mas não ia
Parar lá naquela prisão
Mas um olhar como aquele
Em qualquer parte do mundo
Em menos de dois segundos
Prende qualquer valentão
Ao encerrarmos essa fase de invenção das tradições evidenciamos que a
música produzida era muito popular. Os artistas que trouxemos para análise em
nossa pesquisa viveram a época de crescente popularização do rádio, foram muito
cultuados no meio rural. Embora tenha sido considerada de pouca qualidade ou,
ainda, rotulada de ―grosseira‖, foram esses os poetas que fizeram nascer o estilo
regionalista na canção gaúcha e, pela simplicidade e por cantar o Rio Grande, são
ainda fonte de inspiração para novas gerações de músicos sulinos.
Estes compositores cantaram o gaúcho através de uma caracterização
externa – pela indumentária típica, reverenciaram a cultura rio-grandense, o
pampa como cenário, a fronteira, a tradição. Observamos ainda, que as
composições que fazem parte da fase ―Inventando as tradições‖ recuperaram, em
sua grande maioria, a temática da violência, apontando para um gaúcho brigão e
não valente, como podemos evidenciar no conto regionalista. Envoltos pela
tradição, evidenciamos, em menor parcela, o amor pela terra, mas em maior
profundidade encontramos a herança da valentia, porém sem heroísmo, através de
um deslocamento vazio do eu lírico.
3.2.2. A era dos festivais
150
A era dos festivais tem início quando uma emissora de rádio da cidade de
Uruguaina promove o I Festival da Canção Popular da Fronteira em 1970.
Naquela época, a movimentação em torno dos festivais de música popular se
espalhava por todo o território brasileiro, pois os Festivais Internacionais da
Canção eram transmitidos do estado do Rio de Janeiro para todo o país através da
televisão. Para Cougo (2012, p. 9), a década de 1970 sinaliza a ebulição nativista,
e tem como proposta reciclar a produção regionalista anterior, que padecia do
estigma da grossura, difundindo uma imagem distorcida da cultura gaúcha. Desde
a primeira edição, o festival pretendeu rebuscar esteticamente o músico gaúcho,
estabelecendo ―uma poética, rítmica e afluência de gêneros compromissados com
uma estética mais refinada‖ (COUGO, 2012, p. 9).
Assim, no ano de 1971, a música regionalista viveu o momento maior de
sua propagação, isso em virtude da realização, neste ano, do primeiro Festival da
Canção Nativa no Rio Grande do Sul. Surgidos no interior do tradicionalismo, os
festivais aos poucos foram ganhando independência, e representam um momento
de renovação para a produção musical sulina. Em pouco tempo, o palco dos
festivais viu saírem dos ―esconderijos‖ muitos compositores e intérpretes, a maioria
desconhecidos, sendo considerado ―um divisor de águas‖ na produção musical do Rio
Grande do Sul. Iniciava um movimento mudaria os costumes, revitalizaria velhos
hábitos, buscando a participação da juventude e veiculando tudo em discos, a chamada
―febre do gauchismo‖, momento de supervalorização da cultura gaúcha, sinalizada por
Lessa (2008, p. 104).
Diante dessa invasão nativista, Paixão Côrtes e Barbosa Lessa classificam
a música gauchesca praticada em três linhas de produção musical, uma das quais
seria a dos festivais. A primeira linha, tradicionalista, é envolta pelos preceitos do
Movimento Tradicionalista Gaúcho, com ênfase no folclore defendido pelo
Centro de Tradições Gaúcha; a regionalista liga-se à cultura popular, e vincula-se
ao estilo de Teixeirinha, e a linha nativista, considerada como a renovadora,
destaca os cantores e compositores surgidos nos festivais. Com relação à
popularidade, o nativismo não ofuscou o regionalismo; da mesma forma,
enquanto movimento cultural, por muito tempo dependeu do tradicionalismo, nos
âmbitos organizacionais e financeiros dos Centros de Tradições.
Mesmo assim, a aceitação das três linhas foi possível por pouco tempo,
pois os festivais se consagraram enquanto instituições culturais, o que abalou a
151
relação entre tradicionalistas e nativistas. Assim, evidenciamos que essa proposta,
aparentemente pacífica, de divisão da música gaúcha, é ainda motivo de
polêmicas e reflexões no meio da música. Em nosso trabalho, como já nos
posicionamos em outro momento, não levaremos em conta as divergências entre
tradicionalistas e nativistas para darmos ênfase à temática levantada por ambos e
identificar os elementos regionais que se mantêm no passar dos anos.
Dessa fase, buscamos em nosso trabalho destacar justamente compositores
que surgiram em meio ao período dos festivais e que continuam, na
contemporaneidade cantando a cultura gaúcha: Sérgio Napp, Cesar Escoto e José
Claudio Machado.
3.2.2.1 Sérgio Napp
Sérgio Napp nasceu em 03 de julho de 1939 na cidade de Giruá/RS.
Formou-se em engenharia, tornou-se professor universitário e continuou
procurando caminhos, tanto através da literatura, escrevendo de tudo e sobre tudo,
tendo publicações em jornais de Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, como
também através da música, participando e sendo premiado em diversos festivais.
Sua trajetória começa em 1959, quando recebeu o primeiro prêmio em
poesia. Depois, em 1964, teve grandes nomes da música brasileira gravando suas
composições: Elis Regina com ―Meus olhos‖, Tito Madi com ―Pra que mentir‖,
Marisa Barroso com ―Vou ficar com você‖. Desde esse tempo, Napp seguiu
conquistando títulos, ora pela escrita literária, em crônicas, ora pela música. Em
1981, recebeu o grande prêmio Calhandra de Ouro no Festival Califórnia da
Canção Nativa de Uruguaiana/RS, com a música ―Desgarrados‖. Essa composição
foi resultado de uma parceria com Mario Barbará, e obteve, até hoje, mais de 40
gravações; foi. ainda, lançada em 1993, na Alemanha.
Napp participou da criação do Grupo Canto Livre que, em pouco tempo, se
transformou no principal grupo vocal gaúcho, tendo o seu primeiro Lp gravado
ainda no ano de 81. Em 1982, foi considerado o melhor letrista do estado pelo
jornalista e crítico Juarez Fonseca. Entre 1987-1991, Napp foi diretor da Casa de
Cultura Mario Quintana, publicou seu livro de contos Para voar na boca da
noite e ainda teve participações em antologias da poesia, incluindo até
participação na antologia bilíngüe de contos Marcosul/sur, com lançamento
152
simultâneo no Brasil e Argentina, pela editora Tchê. Nos anos de 1992 e 93,
Sérgio Napp escreve novelas, além de poesias, crônicas e contos.
No ano de 1999, lança Claridade, um cd com a sua trajetória urbana, em
que descreve Porto Alegre, canta o amor não correspondido. Lança mais tarde, em
2001, o cd Nos palcos da vida, com a interpretação do Grupo Canto Livre, tendo
apoio do Funproarte, através da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre.
As composições que compõem esses CDs demonstram a renovação da música
regionalista com relação à apresentação e ao arranjo musical, mas a letra conserva
ainda elementos da vertente regional, desde o cavalo, o espaço cantado e o sonho
– tempo bom marcado pelo passado.
Podemos afirmar que Sérgio Napp é um dos mais profícuos autores do Rio
Grande do Sul, tendo publicado, em mais de 40 anos de carreira, literatura infantil,
juvenil, adulta, crônica e poesia, reunidos em mais de 15 livros. É letrista
premiado e tem mais de cem trabalhos gravados por artistas locais, nacionais e
internacionais.
Em suas composições, principalmente na canção ―Desgarrados‖,
evidenciamos que o espaço ocupa um lugar de destaque, não apenas pela
geografia ou ainda pela caracterização da cultura à que está associado, mas pela
influência que essa ambientação tem na formação e, porque não, na ação do
elemento humano. Ainda percebemos o perfil do gaúcho, compreendido não como
o indivíduo nascido no Rio Grande do Sul, mas como elemento oriundo do
campo, habitante originalmente ligado à vida rural típica do pampa.
Para exemplificar a importância do espaço organizaremos nossa análise, de
modo a contemplar como são abordados na canção os elementos que lembram o
campo e os elementos que lembram cidade. Inicialmente, percebemos o gaúcho
vislumbrado por um olhar de fora, que lastima a atual decadência do gaúcho
proletarizado. O título ―Desgarrados‖ sugere esse distanciamento do eu lírico, que
esse assume o papel de expectador, pois os desviados do seu rumo, ou ainda
extraviados são ―eles‖, portanto, os outros. A letra da canção propõe a
comparação dos ex-trabalhadores do campo aos animais desgarrados da cidade,
tudo isso sem deixar claros os reais motivos pelos quais esses gaúchos vieram
para a cidade.
Os elementos que descrevem a cidade demonstram o motivo pelo qual eles
estão desgarrados. Evidenciamos, no início da canção, a localização de um
153
ambiente citadino, a perda da referência ao campo, ao verde, ao céu azul, pois
―eles‖ estão ―nas calçadas‖, ―nas esquinas‖, sem função gloriosa, ou mesmo
humanizadora: agora ―são pingentes das avenidas‖, ou seja, são insignificantes e
por isso são colocadas à margem da sociedade. Depois, seguem-se os elementos
que lembram o trabalho: ―fazem biscates‖, ―carregam lixo‖, ―juntam baganas‖
demonstram que os novos afazeres, o trabalho na cidade, os degradam. Assim,
podemos afirmar que nessa primeira estrofe não há marca identitária que revele o
gaúcho tradicionalmente glorificado na vertente regional:
Eles se encontram no cais do porto pelas calçadas
Fazem biscates pelos mercados, pelas esquinas,
Carregam lixo, vendem revistas, juntam baganas
E são pingentes das avenidas da capital
Eles se escondem pelos botecos entre cortiços
E pra esquecerem contam bravatas, velhas histórias
E então são tragos, muitos estragos, por toda a noite
Olhos abertos, o longe é perto, o que vale é o sonho
Observamos que a fuga da realidade vivida, nessa nova espacialização, se
dá no ato de contar as ―bravatas‖, ―das velhas histórias‖; aqui podemos identificar
a relação da canção com o gaúcho e seu hábito de contar suas bravuras, suas
glórias. Ainda com relação ao contar o passado para se aproximar desse antigo
viver, recordamos o conto ―Velhos tempos‖, de Darcy Azambuja, em que Severo,
o protagonista, só se reanimava diante da nova situação vivida, imposta pela
industrialização do campo, mediante a possibilidade de contar suas histórias na
roda do galpão, as histórias ―de outro tempo‖. Depois, o último verso da primeira
estrofe: ―Olhos abertos, o longe é perto, o que vale é o sonho‖ demonstra a
resistência do sujeito, pois mesmo de ―olhos abertos‖ ele continua sua tentativa de
esquecimento da realidade. Essa resistência se dá através do sonho e da
rememoração.
No espaço citadino, através de um jogo de vocabulário, o próprio vento,
assim como as pessoas, encontra-se ―desgarrado‖ e, nesse sentido, podemos
aproximar o vento e o sujeito afirmando que ambos estão ―sem rumo‖,
―extraviados‖ nessa nova espacialização. Ainda, vento e o gaúcho não podem
voltar no tempo: ―Sopram ventos desgarrados, carregados de saudade/Viram
copos viram mundos, mas o que foi nunca mais será‖.
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Depois, os elementos relacionados ao campo revelam a identidade peculiar
do sujeito gaúcho, uma vez que são recuperados os arsenais que compõem a
imagem do habitante do pampa, no qual evidenciamos a fixação às coisas da terra
e à socialização. Tais elementos não expressam melancolia, tudo é tranquilo, de
forma que é possível repensar a ―harmonia‖ e também a ―democracia rural‖
evidenciada por Zilberman (1980) no texto regionalista, com referência à partilha
de atividades por estancieiros e vaqueanos. Em ―Desgarrados‖, essa harmonia é
identificada pelo companheirismo entre os homens que, junto ao palheiro aceso,
comiam, contavam causos, e preparavam o cavalo para as lides do dia. Além
disso, observamos, que diferentemente do trabalho na cidade, percebido como
degradante, as lidas campestres humanizam o homem, que a elas se entregar está
em comunhão com seu semelhante:
Cevavam mate, sorriso franco, palheiro aceso
Viraram brasas, contavam causos, polindo esporas,
Geada fria, café bem quente, muito alvoroço,
Arreios firmes e nos pescoços lenços vermelhos
O lenço vermelho aponta categoricamente para a figura do gaúcho mítico,
construído nas interações sociais e guerreiras, da mesma forma que, é construído
um imaginário de como era a vida no campo antes de o gaúcho deslocar-se para a
cidade. O passado é, ainda, lembrado pelos costumes atrelados ao divertimento,
como o ―jogo de osso‖, muito praticado na fronteira, e que consiste em arremessar
um osso; pela ―cancha reta‖: lugar preparado para corrida de cavalos e pela fartura
de comida: ―Jogo do osso, cana de espera e o pão de forno/O milho assado, a
carne gorda, a cancha reta‖.
É nessa época de fartura e divertimento que os gaúchos: ―Faziam planos e
nem sabiam que eram felizes‖, mas agora, desgarrado, o gaúcho longe do campo,
distante de sua cultura e de sua gente rememora esses momentos. Desse modo,
evidenciamos que esse desgarrar-se culturalmente é marcado na letra da canção, a
qual acaba denunciando o êxodo rural, ao mesmo tempo em que, revela um
saudosismo em relação ao passado, à vida no campo, aos costumes gaúchos
A composição ―Retirante‖, de autoria de Sérgio Napp, interpretada por
Mario Barbará, mostra um gaúcho que, no seu habitat campeiro, ao invés de se
sentir livre e identificado com os elementos do espaço, julga-se quase um escravo
155
que tem ―as mãos calejadas‖. Vendo-se como um ―burro de carga‖, ele relembra
que, mesmo existindo um espaço de amplidão, nenhuma parte deste espaço lhe
pertence, recordando ainda a dicotomia: ele tem, mas não possui. O seu fascínio
não está associado ao espaço citadino, às luzes da cidade; anseia por vida, por
liberdade e demais valores que lhes são significativos e, que o campo não mais lhe
oferece:
Eu tenho as mãos calejadas
Algumas rugas no rosto
Aqui sou burro de carga
E nem sou dono de mim
Eu tenho todo o espaço
Que os olhos podem tomar
Mas não consigo um pedaço
Que seja meu pra plantar
Não me fascina o luzeiro
Que eu possa achar na cidade
Eu busco um prato de vida
E um gosto de liberdade
Observamos que o deslocamento do campo para a cidade torna palpáveis
algumas dicotomias que se relacionam às estruturas sócio-econômicas: liberdade
versus escravo, ser versus não ser, as quais são trazidas na composição pelas
marcações ―aqui‖ e ―lá‖: ―aqui‖, no campo, ―sou mero instrumento‖, portanto,
escravo, denotando, ainda, um indivíduo que não se sente adaptado ao seu meio
de origem, a ponto de não se sentir ―como igual‖; ―lá‖, na cidade, o trabalho
poderá lhe humanizar, diferentemente do que observamos nas demais canções
analisadas em que a degradação estava sempre relacionada à cidade. Nessa
composição, a lida campestre baseada na exploração econômica é que degrada o
homem:
O que me leva é o desejo
De me enxergar como igual
Aqui sou mero instrumento
Usado por serventia
Nas safras eu me alimento
Do gado sou dependente
Lá fora, por meu trabalho
Talvez eu venha a ser gente.
Notamos um gaúcho despido dos ornamentos românticos e da aura mítica,
pois esse não leva ―sonhos na mala‖ nem os costumeiros ―vícios de valentia‖,
156
como se ele pudesse se despir das influências de seu espaço, de seus costumes
―De corpo e de coração‖ quer abrir-se a uma nova possibilidade de vida, na qual
ele deseja deixar de ser peão, para ser operário. Notamos, ainda, que a cidade é o
ambiente que poderá vir a lhe conferir um status identitário mais digno ―No
espelho das avenidas‖:
Não levo sonhos na mala
Nem vícios de valentia
Eu sei, me espera uma adaga
Que pode matar-me um dia
Me jogo inteiro assim mesmo
De corpo e de coração
No espelho das avenidas
Operario, e não peão
Novo disco com músicas regionais é gravado no ano de 2002- Mala de
garupa, momento em que seus sucessos são regravados e outras canções são
lançadas. A música que dá nome ao álbum narra a saída do homem do campo, o
gaúcho, o qual se desloca para a cidade. Em sua jornada rumo ao cenário citadino,
o gaúcho traz consigo uma mala de garupa, a qual nos remete à imagem dos
antigos tropeiros, do centauro dos pampas em suas campereadas, nas quais
portava a mala de garupa para poder levar seus utensílios, enfim, seus pertences,
como é narrado na primeira estrofe. Nesse primeiro momento, ele carrega junto
aos seus apetrechos, ―um bilhete pra cidade‖:
Nesta mala de garupa fumo em rama e um baralho
Uma faca na bainha com a qual eu dou meus talhos
Vai num canto escondida uma ponta de saudade
Rapadura e erva mate e um bilhete pra cidade
No entanto, na segunda estrofe, os pertences carregados pelo gaúcho não
são somente os para uso no seu cotidiano, os quais apontam para uma nova leitura
da ―mala de garupa‖, a qual nos permite associar à ―bagagem‖ do homem do Sul
com a sua cultura, tradição e costumes, os quais são trazidos para a cidade e os
identificam. Mesmo que o gaúcho não tenha o fracasso como motivo de sua
mudança, ele já carrega ―uma ponta de saudade‖, ―sonhos guardados‖, ―um
pedaço de esperança‖ e ―mais um tanto de alegria‖.
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Novamente, evidenciamos a identificação com os antigos tropeiros, não
somente pelo uso da ―mala de garupa‖, mas também pelo fato do gaúcho recordar
―um punhado de caminhos‖ e ―outras tantas geografias‖:
Lá no fundo guardo um sonho desses que jamais vingou
Uma funda e uma isca da pandorga o que sobrou
Um punhado de caminhos e outras tantas geografias
Um pedaço de esperança mais um tanto de alegria
No final da canção, essa associação da ―mala de garupa‖ com a bagagem
da vida do gaúcho fica mais evidente, pois ele traz em suas lembranças os
―estragos‖e ―feridas‖. O gaúcho inclui também, em sua ―mala‖ os seus ―retalhos‖,
os seus amores vividos e as lidas praticadas:
Vai um sol já meio gasto e uma rosa esquecida
Um lugar onde refaço meus estragos e feridas
Dentro dela meus retalhos meus amores minhas lidas
Nesta mala de garupa vai a vida, vai a vida
Sérgio Napp continua lançando novos discos e regravando suas antigas
canções das raízes gaúchas, o último foi gravado no ano de 2010 com a
interpretação de Mário Barbará. Esse disco, denominado Vivências, traz canções
como ―Mala de garupa‖, ―Retirante‖ e uma, em especial, ―Portas do sonho‖, que
retoma, pelo viés da saudade e do sonho, o ―camperear pelas coxilhas‖ o ―abrir
trilhas‖ e, ainda traz a liberdade associada aos elementos do campo.
Notamos nessa composição um retorno onírico às raízes, ao seio de origem
para a retomada de uma cultura, associada à liberdade e à alegria de camperear
pelas coxilhas, as quais remetem à imagem do monarca: ―quando abro as portas
do sonho/ sinto o gosto de liberdade/ pés descalços, camisa aberta/ mesas postas
pelas varandas e uma dor roendo meu peito/ se fazendo sem ter razão/ deve ser a
dona alegria/ campereando pelas coxilhas‖.
Durante o sonho, são narrados também os lugares que lembram a vida no
campo, entre a natureza e onde a alegria ―redomava‖ o coração do gaúcho: entre
avencas e samambaias/ pelas sangas, abrindo trilhas/ maneirosa dona alegria/
redomando meu coração. Para o eu-lírico, o ato de abrir as portas do sonho é se
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permitir ousar e retomar do passado a magia dos ―ventos de rebeldia‖. A vida se
aproxima a um galope e a saudade é tão forte que fere ―é punhal que se crava
lento‖. A composição recupera os elementos característicos que compõem a vida
do gaúcho: o fato de galopear, a música através da gaita e da viola, a liberdade
através do voo livre do coração do gaúcho pela sua própria história:
É a vida em seu galope
me envolvendo redemoinho
É punhal que se crava lento
e abre em festa meu coração
geme gaita, chora, a viola
corta firme punhal de prata
espanta o medo, abre asas
e voa livre o meu coração
um grande abraço.
Ao lermos as poesias de Sérgio Napp, evidenciamos o cantar das coisas do
pago, que se dá em meio ao deslocamento do campo. Em todas as composições
analisadas, ―Desgarrados‖, ―Retirante‖, ―Mala de garupa‖ e ―Portas do sonho‖,
encontramos a saudade do passado, o canto dos costumes campeiros, a vida no
campo, narrados por meio de uma linguagem mais rebuscada e poética do que
aquela evidenciada na Era do Rádio.
Além da linguagem diferente, também observamos uma mudança na
temática, a temática do êxodo rural, evidenciada pela imagem do gaúcho à
margem na sociedade no ambiente citadino, que remonta o passado, recuperando
seu antigo viver e seus afazeres, ou até mesmo do gaúcho que não carrega ―vícios
de valentia‖, que busca novo sentido para a vida na cidade. Notamos o
distanciamento em Sérgio Napp do narrar da violência banal, sem justificativa que
norteou as canções da primeira fase, pois, nas composições analisadas, a violência
que se delineia é a que o gaúcho está disposto a enfrentar para encontrar a
liberdade, como a miséria e o risco de vida nas cidades.
3.2.2.2 César Escoto: César Passarinho
César Escoto, mais conhecido no meio artístico por César Passarinho,
nasceu em Uruguaiana, no ano de 1949 e faleceu no ano 1998. O apelido
Passarinho é uma referência ao pai, que tinha a alcunha de gurrião (pardal): o filho
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do pássaro se transformou em passarinho. Foi também denominado de Músico da
Pilcha, pois era conhecido por usar uma boina e um colete branco, lenço, em cima
do ombro, e um pala. Nos pés, uma alpargata ou um par de botas.
Passarinho se destacou, entre outros, no Conjunto Hi-Fi. O mais inusitado
de tudo era o seu instrumento, pois além de cantor, Passarinho era baterista. Foi
com a 3ª Califórnia, em 1973, que ele descobriu a música regionalista com a
interpretação da canção ―Último Grito‖; podemos afirmar que o festival Califórnia
e o músico começaram juntos. O artista uruguaianense acabou se transformando
na marca registrada do festival de música nativista: premiado com quatro
Calhandras de Ouro, sete prêmios de melhor intérprete, Passarinho foi o mais
destacado dos vencedores do festival. Em sua temática, vamos encontrar o canto
às coisas do campo através da exaltação da tradição do estado sulino.
O primeiro disco de Cesar Passarinho, Fundamento, foi gravado no ano
de 1983 e tem entre suas músicas e regravações a canção ―Causo sério‖, a qual
retrata o fim da vida de um peão campeiro, do qual só sabemos que é chamado
José, José de Tal, que, depois de muito servir, agora encontra-se em meio ao
abandono e à solidão. Talvez essa não identificação visa à universalização, pois
José representa outros tantos peões que no fim da vida encontram-se em meio ao
descaso:
Nome: José de Tal...
Profissão: Peão Campeiro...
Idade: Uns setenta e pico...
-A la pucha, que o tempo, passou ligeiro!
E o velho peão, afinal
Terá sua compensação:
-No fim do mês, Funrural,
No fim da vida, abandono e solidão...
Observamos que a canção, ao narrar a velhice do peão, também narra o fim
de um período em que o fato de ser peão garantia sua vida e seu reconhecimento.
Notamos que o fato de o eu lírico despir-se da possibilidade de atuar como peão
representa o distanciamento de uma tradição e, ainda mais de uma identidade. Sua
relação com os costumes que envolvem o ambiente campeiro não se dá de modo
externo, mas sim, por meio de suas vivências à medida que sua vida se resume aos
―arreios‖, ―ao meio‖, ao ―enrrodilhar‖: ―Agora é guardar os arreios,/ Caseriar
recordações,/ Apartar-se do seu meio,/ Enrrodilhar ilusões.‖...
160
Nesse momento de vida, resta ao peão desgarrar-se do campo, viver de
recordações:
Lhe resta soltar pra o campo
Velhas lembranças sogueiras
Que o amargo exílio campeiro,
De mansas, fez caborteiras.
Agora é esperar sua hora
Que sem demora há de vir...
- A velhice é um causo sério
Que o tempo nos conta sem rir!
A composição ―Solito‖, que compõe o disco de mesmo nome, gravado no
ano de 1985, revela, assim como a canção ―Causo sério‖, um olhar interior para
as vivências das campereadas que refletem agora um vazio no fim da vida, pois
toda a busca, os motivos que moviam o ato de avançar campo fora, sem rumo, e
até mesmo o fato de ser um bom peão agora desencadearam tristeza e solidão.
Para narrar sua trajetória, o peão retoma sua vida, aproximando-a a uma
cavalgada, mas agora uma cavalgada percorrida pelo seu interior, na qual ele
encontrou a desilusão e o desamparo:
Me campereando
alma dentro
proseando com a solidão
passei a vida alolargo
sem deixar rastros no chão
que me adiantou ser bom peão
onde o bom peão é um ser comum
e entre tantos sou mais um
solito, solito rumo a extinção‖.
O antigo cantar do gaúcho mulherengo, conquistador de muitas prendas
que não firmava raízes, contrasta com o sentimento de abandono, de carência. Não
encontramos nessa composição o gaúcho destemido, valente, que idealiza a
liberdade e que vive de amores. A mulher, nesse contexto, também é diferente,
pois ela não aparece à espera do homem para formar sua família, nem mesmo está
disponível para servi-lo: ―pro amor me faltou tempo/ e sem tempo o amor é curto/
se algum durou foi oculto/ em meio a lida e cachaça/ mulher não é assim no mais/
e assim no mais não se acha/ que nos dê amor, filhos e paz/ e ainda nos lave as
bombachas‖.
161
Essa canção recupera toda a vivência do gaúcho que tem como vida a
estância, a lida na campeira, a cavalgada, a sua relação com o meio, que por muito
tempo lhe supriu, lhe preencheu os vazios. Agora, contudo, sente a falta de ter
deixado rastros, de ter constituído família e filhos homens para ―repisarem‖ seu
caminho. Nessa ―campereada‖ interior, ele remonta a história, a tradição e os
costumes rio-grandenses, empregando linguagem campeira, como em ―mate‖,
―pelegos‖, ―tordilhar‖, ―macanudo‖:
piás, quem me dera tê-los
pra encherem minha vida e meu mate
mijarem os pelegos no catre
tordilharem meus cabelos
me darem afeto e o carinho
a troco de caramelo
seria macanudo vê-los
mesma raça, sangue e pelo
repisarem meu caminho.
Do mesmo modo, a composição ―Galope dos sonhos‖ evidencia a saudade
do gaúcho em viver no campo aberto, de galopear e viver em liberdade. Nessa
canção, o eu lírico revisita a antiga morada através do sonho, reverencia os antigos
costumes e fazeres campestres e, nesse ato de revisitar, ele encontra aconchego
para sua alma galponeira: ―Liberdade é campo aberto/ rédeas soltas, galopar/ o
longe está mais perto/para quem pode sonhar./ Alma a dentro campo a fora/ no
atropelo da razão/ campereada não tem hora/na fronteira da ilusão‖. A
composição denota um tempo em que é impossível refazer esse caminho do
passado e, por esse motivo é que ―o longe‖ é buscado no plano da ilusão e no
―atropelo da razão‖.
O mesmo galope que se associa à festividade, à liberdade, também narra a
partida, os sonhos, as saudades, os tombos: ―mas na raia desta vida/ é preciso
conciliar/ achegada tão festiva/ e a partida sem chegar/ A galope vão os sonhos/
do tropel do coração/deixam marcas de saudades/que jamais se apagarão‖. Ainda,
podemos observar que nesse sonho também existe a percepção da resistência de
cair, mas sempre levantar: ―mas no lombo do destino/ em galopes desiguais/
muitos sonhos de meninos/lembram tombos nada mais‖.
É ainda a cavalo, no galope que os sonhos vão se concretizar, através da
recuperação do monarca das coxilhas, aumentando ainda mais a saudade de um
tempo que não poderão apagar. Registramos a retomada da tradição, através da
162
exaltação das coisas da querência, da idealização de um espaço, de que tudo o que
simboliza positivo está preso ao passado, aos sonhos de menino, ao viver no
campo:
A galope vão os sonhos
do tropel do coração
deixam marcas de saudades
que jamais se apagarão.
A composição ―Que homens são esses‖ ecoa como um grito para com as
raízes, os antigos costumes e os momentos de glória e história do passado. Mostra
um gaúcho que olha para os homens de agora e não enxerga aquilo que foi a base
de sua formação; tal olhar torna possível aproximarmos essa composição à ―Rio
Grande de outrora‖, de Teixeirinha. A recuperação do antigo viver, assim como na
canção de Teixeirinha, acontece por meio da retomada dos valores que os
antepassados representam; no entanto, não há, nesta canção, menção a dicotomia
campo e cidade como evidenciamos em ―Rio Grande de Outrora‖, pois em ―Que
homens são esses‖ é no próprio pago que não existe a continuidade do cultivo da
tradição.
O vocabulário que remete aos homens de hoje, habitantes do campo, como
o atestam as referências a ―freio‖, ―cabresto‖, ―rédea‖ e ―buçal‖. Percebe-se a
inquietude da voz que canta, ao observar o desconhecimento da nova geração da
história de glória de sua terra, pois agora os homens fogem à luta, silenciam
acerca de fatos relevantes, reprimem afetos:
Que homens são esses
Que fogem à luta
Será que não sabem as glórias do pago?
Que homens são esses que nada respondem,
que calam verdades, que reprimem afagos?
Aproximando, da mesma forma, a canção de Passarinho ao conto ―Velhos
tempos‖, de Darcy Azambuja, podemos observar que o olhar disposto ao campo
busca a vida de outrora; no conto, além da mudança das pessoas, como
evidenciamos na canção, as coisas também mudaram. Outra semelhança entre a
canção e o conto está na rememoração do passado pelo viés geracional, pela
necessidade dos antigos demonstrarem a importância da história para a
163
persistência de valores que evidenciem um novo viver, que se distancie das
mágoas e das cicatrizes deixadas para espalhar a bondade e a irmandade:
Que homens são esses que tem o dever de fazer o bem, mas só fazem
o mal?
Eu quero ser gente igual aos avós
Eu quero ser gente igual aos meus pais
Eu quero ser homem sem mágoas no peito
Eu quero respeito e direitos iguais
Eu quero este pampa semeando bondade
Eu quero sonhar com homens irmãos
A canção, ao convidar o povo a se refazer, recupera ainda uma imagem
consolidada no conto regionalista, em que a irmandade e a bondade eram valores
vivenciados, pois além da necessidade de rever a história, ―as glórias do pago‖ o
eu lírico busca viver sem mágoas, em um ambiente de respeito e igualdade.
Assim, a composição mistura passado e presente, na intenção de buscar um futuro
ainda melhor do que o próprio passado do avô e de seu pai: ―Eu quero meu filho
sem ódio nem guerra/Eu quero esta terra ao alcance das mãos/ Que sejam mais
justos os homens de agora/ Que cantem cantigas, antigas e puras/ Relembrem
figuras sem nada temer‖.
A canção representa, ainda, a busca por um novo caminho e também
sugere uma revisão da imagem do gaúcho: ―Desperta, meu povo, do ventre de
outrora/Onde marcas presentes não são cicatrizes/Desperta, meu povo, liberta teu
grito/Num brado mais forte que as próprias raízes‖.
Observamos que as temáticas das composições analisadas de César
Passarinho ocupam-se das fronteiras existentes entre o passado e o presente, para
denunciar o gaúcho de hoje que está contido em velhas lembranças. O presente é
definido pelo abandono e solidão na chegada da velhice, como evidenciamos na
canção ―Causo sério‖. A volta ao passado aparece muito claramente, por exemplo,
na canção ―Galope dos sonhos‖, em que o eu lírico rememora seu galopear, a
liberdade, e o contato com a natureza. Notamos, sim, o distanciamento da imagem
do gaúcho farroupilha- do cantar da violência, das guerras e da exaltação da
coragem pessoal, ao mesmo tempo em que percebemos a aproximação das
canções com uma imagem do gaúcho que, marginalizado na cidade, pode voltar à
campanha em seus sonhos.
164
3.2.2.3 José Cláudio Machado
Nasceu em Tapes, no ano de 1948; faleceu no mês de dezembro do ano de
2011. Intérprete de música nativa do Rio Grande do Sul, venceu a Califórnia da
Canção Nativa em 1972, com a música ―Pedro Guará‖. Na mesma década,
integrou o grupo Os Teatinos e, mais tarde, na última década de 1980, participou
do grupo também nativista Os Serranos.
A composição ―Pedro Guará‖ compõe o disco Recordando a querência,
lançado no ano de 1983, e narra a relação entre o homem e a natureza. Ao homem
e à natureza podemos vincular os sentimentos de pertencimento a um espaço e,
também de troca, pois ambos se complementam e, juntos, originam costumes e a
própria cultura. Na primeira e segunda estrofes, evidenciamos a identificação com
a natureza e com o ciclo vital, uma vez que aquela associa-se, por exemplo, o fim
da vida de Pedro Guará, simbolizado na composição pelo ―último inverno‖. É o
momento em que o vento lamenta, o orvalho chora e o céu se enluta, mas a terra –
como elemento fixo – o enraíza mais:
Num lamento chegou o minuano
Anunciando o último inverno
O orvalho chorou nas campinas
E o céu enlutou as estrelas
Pedro Guará sentia mais forte
Cheiro da terra o vento do sul
Entrava no rancho o calor do braseiro
Mateava na espera do tempo chegar.
Assim o lugar, expresso pelo rancho, e pela a natureza – pela manifestação
do cheiro da terra e pelo vento – é significativo para Pedro Guará, da mesma
forma que os costumes, como o hábito de matear. Durante a espera ―do tempo
chegar‖, a composição retoma a vida que levou Pedro Guará e, nessa recordação,
evidenciamos a imagem do centauro dos pampas, de viver ―aragano‖. Este remete
à imagem do gaúcho associado ao galope, ao trotear livre pelos campos afora, pois
aragano é o nome utilizado pelo gaúcho para definir o cavalo difícil de ser
domado: ―Pedro Guará viveu aragano/ Camperiando manhãs distantes/‖.
165
No entanto, em suas andanças, Pedro Guará ―plantou alegria‖ e ―o riso
ficava quando partia‖, inclusive no momento em que é cantada a sua morte. Ao
final da canção, a morte de Pedro Guará associa-se novamente à natureza no seu
partir ―sem rastro‖ e ― na volta pra terra‖, deixando ainda ―um riso seu último
gesto‖. Assim, Pedro Guará ―sumiu da serra não vai mais cantar‖.
A canção ―São as armas que conheço‖ é a primeira faixa do disco Entre
amigos, lançado no ano de 1995. Diferentemente das canções da fase Inventando
as tradições, nas quais o gaúcho portava revólver, facas, facões e demonstrava sua
valentia e coragem, inclusive associada, muitas vezes, às brigas sem motivo e,
portanto, a uma valentia vazia, nessa canção podemos recuperar o gaúcho envolto
pelas questões do campo, portando ―armas‖ de natureza e função diversas. Agora,
suas ―armas‖ são os instrumentos indispensáveis para sanar suas necessidades
diárias, os quais são necessários para a doma do cavalo, o plantio e a construção
do rancho; mesmo o facão, quando usado, o é no contexto de trabalhar a terra
bruta, para que lhe dê o pão.
Na primeira estrofe são recuperados os instrumentos, denominados de
―armas‖, que são utilizados para amansar um ―cavalo bagual‖, além de ser
reconstituída a imagem do centauro e sua agilidade no trato com os cavalos:
um lombilho, um baixeiro, cincha, peiteira e rabicho
buçal, cabresto e maneia e uma espora garroneira
mango, rédea e bocal são as armas que conheço
pra fazer um cavalo manso quando me entregam um bagual.
Na segunda estrofe, novos elementos do campo são trazidos para sinalizar
o trabalho realizado na lida do campo a fim de tornar uma terra produtiva:
uma junta de boi mansos, um arado, pula-toco
cangas, brochas, tamoeiros, uma regeira um cambão
machado, enxada e facão são as armas que conheço
pra fazer a terra bruta me dar o trigo pro pão.
Para além de domar cavalos baguais e produzir em ―terra bruta‖, o gaúcho
também demonstra sua destreza na construção do próprio rancho, para deixar de
viver só: ―esteios, rimas, baldrames, travessas e cachorretes/caibros e pontaletes,
gaipa, taquara e cipó/cupim, leiva em santa fé são as armas que conheço/pra fazer
meu próprio rancho e deixar de viver só‖.
166
Ao final, o eu lírico recupera seus feitos conquistados no plantio, como
domador e como construtor: ―as plantas estão maduras, os meus cavalos domados/
o meu rancho está plantado‖, e depois destes elementos só falta a mulher para ser
feliz junto dele: ―mas só meu catre está vazio/ quem sabe numa volteada eu
encontre por aí/ alguém que junto comigo seja feliz por aqui‖. A composição ―São
as armas que conheço‖ acrescenta, em cada estrofe, os elementos que compõem a
vida no campo e a do seu habitante, o gaúcho: a doma, o cultivo da terra, a
moradia e a busca da mulher amada. Esses são também os motivos que
predominaram no cantar do cancioneiro oral, no qual são recorrentes os temas do
cavalo, do trabalho no campo, o cantar das coisas do pago e da mulher.
A composição ―Sistema antigo‖ que compõe o disco Arranchado,
gravado no ano de 2005, remonta o viver do passado e, portanto, o ―sistema
antigo‖, tanto da criação e dos costumes, como dos valores vivenciados na vida do
campo. Novamente é o passado o motivo de alegria e de afirmação da identidade,
pois nesse recordar são recuperados o rincão, o carinho recebido da mulher
gaúcha, a música da acordeona, o chimarrão, e o ―quera pacholento‖,
denominação popular que define o indivíduo valente, mas também orgulhoso que
habitava o pampa: ―Um pouco de saudade lá do meu rincão/ um gesto de carinho
da gaúcha amada/ um toque de cordeona e um bom chimarrão/ um quera
pacholento pra contar cueradas‖.
A lida do campo, o cuidado com os animais revela a passagem de um
tempo feliz que agora está distante, pois o rancho e o pai já envelheceram: ―(eira,
eira, boi, tempo feliz que muito longe vai/ eira, eira, boi, no velho rancho do meu
velho pai)‖. A saudade se manifesta pela perda dos valores recordados e que são
somente vislumbrados na descrição da vida no campo: a harmonia, a união e a
alegria, sentimentos que embalam a simplicidade de uma comemoração ao som de
violão e gaita:
antigamente se carneava um boi
se convidava toda a vizinhança
era uma festa de violão e gaita
lá pelas tantas começava a dança
e a gauchada pela noite afora
faziam farra ate romper a aurora.
Assim como no conto regionalista, a composição narra o mito da
democracia rural, prevalecendo sobre a temática da valorização do passado. Essa
167
composição aborda ainda a dicotomia entre campo e cidade, que foi também
cantada por Teixeirinha. Nesta composição, podemos observar a diferença entre o
passado e o presente a partir de uma identificação manifestada pela vivência e,
não somente pela caracterização exterior: ―quem se criou pelo sistema antigo/ cá
na cidade vive inconformado/ e quando encontra algum gaúcho amigo/ fala de
tudo que lembra o passado/ canta saudade do gorjeio triste/lembra do tempo que já
não existe‖.
Ao analisarmos as composições de José Claudio Machado, identificamos a
nostalgia da vida no campo, o cantar da relação entre o homem habitante da
campanha e a natureza. Encontramos mais fortemente o distanciamento da
temática heroica atribuída aos valores preconizados pela guerra, pela violência. O
gaúcho, em suas canções, é o amante do seu chão, inconformado com a vida na
cidade, e que demonstra a distância entre o passado e o presente, entre os
momentos puros, de simplicidade e amizade campeira, recordados ante o vazio
deixado pela saudade.
Ao encerrarmos a era dos festivais evidenciamos que esta fase se
consolidou como marco da música sulina, registrando na vertente regionalista um
posicionamento contrário ao regionalismo inicial, observado nas canções da era
do rádio, dos tempos de ―grossura‖ da fonografia sul-rio-grandense. Notamos um
distanciamento no que tange às canções que evocam os fatos históricos, as
revoluções, isso pela intenção do festival em promover a renovação da canção que
era produzida.
No entanto, podemos perceber que os temas caros ao regionalismo – como
o trabalho campeiro, a vida no campo, os costumes, a saudade do pago, a oposição
campo e cidade – foram conservados em muitas canções da Califórnia, mas
receberam um tratamento poético mais elaborado. Evidenciamos, ainda, a
persistência de uma tendência à idealização que aproxima a Era dos festivais às
temáticas que predominaram na literatura oral no Cancioneiro e depois no conto,
como é o caso da idealização do herói e do próprio cenário campesino, como o
narrado no conto ―Monarca das coxilhas‖ de Apolinário Porto Alegre, e a
dicotomia campo/cidade narrada no conto ―Velhos tempos‖, Darcy Azambuja.
168
3.2.3 A canção regionalista dos anos 1980 em diante
Dos anos 1980 em diante, a música regionalista gaúcha vai acompanhar o
surgimento de músicos também caracterizados por possuir experiência com o
campo, sabedores do que se passa na campanha, que conhecem e sabem de
cavalos e dominam os sons do violão. Esta fase é reconhecida por apresentar um
número significativo de cantores e compositores, músicos profissionais que se
tornaram conhecidos em festivais nativistas, apresentando, inclusive, um
movimento de reação contra determinadas alterações efetuadas em relação à
música gaúcha.
Dessa fase, buscamos exemplificar a persistência da vertente regional nas
canções de Luiz Marenco, Mano Lima e Jayme Caetano Braun, cujas carreiras
profissionais foram impulsionadas pelo motivo regionalista de idealização
romântica do gaúcho herói registrado anteriormente pelo cancioneiro oral e,
depois, pelo conto sul-rio-grandense.
3.2.3.1 Luiz Marenco
Luiz Marenco apresenta atualmente uma discografia de 20 obras, dezoito
CDs e dois DVDs; é considerado hoje um dos grandes artistas nativistas, tendo a
consciência de que seu canto está ligado à terra, valores, hábitos e costumes de
seu povo. Natural de Porto Alegre/RS, nasceu no dia 22 de dezembro de 1964 e
começou a se interessar pela música aos 08 anos de idade, quando ganhou seu
primeiro violão. Sua carreira profissional iniciou em 1988, data em que começou
a participar de festivais, os quais lhe renderam grandes conquistas em âmbito
regional.
Marenco gravou em 1990 o seu primeiro disco, ao lado de seu parceiro e
amigo Jayme Caetano Braun - ―Luiz Marenco canta Jayme Caetano Braun‖.
No ano de 1991, esse disco leva ao prêmio Sharp (na época, hoje conhecido como
Prêmio Tim). Outro reconhecimento foi o troféu de melhor intérprete do ano em
1997 e melhor música – ―Quando o Verso Vem Pras Casa‖ – também no mesmo
ano. Sua carreira de grande sucesso, lançada em meio aos festivais, foi
169
reconhecida inclusive pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho, o qual em 2002
concedeu o selo de ―Qualidade, Autenticidade e Tradicionalidade‖ previsto pelo
Projeto ISO TCHÊ para o seu Cd. Ainda nesse mesmo ano, recebeu disco de ouro
por De bota e bombacha, com José Claudio Machado. Na televisão, Marenco
participou também da mini-série da TV Globo ―A Casa Das Sete Mulheres‖. Os
anos 2007 e 2008 são motivos de comemoração, pois recebe DVD de ouro e o
troféu Guri da Radio Gaúcha e Rádio Gaúcha Sati.
Dentre as muitas premiações recebidas, podem-se destacar: ―Forasteiro‖ -
vencedora da Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana; ―Milongão Pra
Assobiar Desencilhando‖ - vencedora do Um canto para Martin Fierro, de Santana
do Livramento; ―Charla de domador‖ - vencedora do Chamamento do pampa de
Passo Fundo; ―Sovando um pelego‖ - vencedora do Reponte da canção de São
Lourenço do Sul; ―Quando o verso vem pra casa‖ - vencedora da Tafona da
canção nativa de Osório.
No site do cantor Luiz Marenco, encontramos depoimentos importantes,
que nos auxiliam na construção da imagem e do papel do músico para a vertente
regionalista. O poeta e escritor José João Sampaio da Silva argumenta que
Marenco, desde seu primeiro trabalho, preocupou-se em exaltar o homem, os
costumes, os hábitos, o trabalho, enfim, a legítima cultura do povo
gaúcho. Yamandu Costa, violonista e compositor, afirma que Marenco dignificou
a música do Rio Grande do Sul. Renato Borghetti, músico e instrumentista,
menciona acerca da excelente qualidade do canto, do conteúdo das letras e
também dos músicos que acompanham Marenco.
As primeiras composições de Luiz Marenco têm, em suas temáticas mais
recorrentes, o gaúcho em suas atividades de doma, pecuária, acompanhando, de
certo modo, o romântico monarca das coxilhas em tempos de outrora; apontam,
também, contudo, para a situação vivida, questões sociais, políticas através da
narração de um galpão vazio, da solidão atrelada ao afastamento da família e ao
êxodo rural.
Mesmo tendo nascido em meio aos festivais nativistas que lembravam a
renovação da música regionalista sulina, podemos encontrar em suas composições
a consagração do herói, dos feitos gaúchos que se aconchega no viés
tradicionalista. Embora Marenco retrate musicalmente as paisagens campeiras, ele
demonstra também a preocupação com o gaúcho excluído socialmente.
170
A canção ―Meu rancho‖, que compõe o cd Luiz Marenco canta Jayme
Caetano Braun, gravado no ano de 1991, constrói o cenário em que vive o
gaúcho, apresentando o sentimento de apego ao ambiente campesino: ―Que alma
tem o meu rancho/ Por isso deixá-lo como/ Pedaço de céu com terra/ Folheado de
cinamomos/Silêncio rodeado a berro/ Solidão sem viver só‖. Podemos observar
através da palavra ―céu‖, a qual remete a uma espécie de ―paraíso‖, pois assim é
considerado o campo para o gaúcho. Mais: é realidade híbrida, formada de dois
lugares almejados: não só céu, ou céu na terra, mas céu com terra, com o torrão
natal.
Os hábitos locais e as paixões do gaúcho – a mulher, o cavalo e o
cachorro – são recuperados pelo eu lírico, por meio de uma linguagem simples,
que se dá não pela identificação externa, mas pela vivência: ―Coqueiral e caturrita/
Galpão de fogo paxorro/ E uma xirua bonita/ Cavalo bom e cachorro.‖ Há uma
diferenciação que revela a singularidade desse espaço diante dos outros, espaço
onde o tempo psicológico difere do de outras regiões, e pelo modo com que,
mesmo ante as intempéries, o gaúcho se entrega de corpo e alma a suas atividades:
―Com chuva acorde e milonga/ Consola o campo cedinho/ Por aqui a noite é
longa/ E o dia devagarzinho‖.
Assim como encontramos a personificação do amigo fiel, o cavalo, em
outras canções, e também nos contos regionalistas, nessa composição quem é ―um
ser vivente‖ é o rancho, do qual o eu lírico sente saudade, uma saudade que é
recíproca, e por isso recebe o gaúcho com alegria: ―Quando eu saio mais que um
dia/ Este rancho é um ser vivente/Me recebe com alegria/Tem saudade como a
gente‖. Para além dessa caracterização associada ao rancho, evidenciamos em
Marenco uma recorrência da abordagem do cenário campesino, dos afazeres dos
campeiros. Nessa composição, identificamos o sujeito sulino como alguém que
tem apego ao campo, que possui sentimentos internalizados com relação a essa
ambientação.
Ainda com o mesmo olhar para a ambientação campeira, a composição ―O
forasteiro‖, que compõe o disco Estância da Fronteira, gravado no ano de 1999,
narra o sentimento de desesperança em que se encontram os gaúchos que moram
em lugares isolados:
Na sombra de um bolicho à beira estrada,
171
Daqueles que do mundo se perdeu
Encontra-se uma gente reunida,
À espera de um chamado de seu Deus
Perfumes de bom fumo amarelido,
Paredes com suas almas penduradas
Paciências de um lugar envelhecido,
E uma coragem de quem não tem nada
Nesse desamparo, só o que resta é o ―chamado de seu Deus‖. Na segunda
estrofe a presença de um forasteiro e de sua pergunta ―o que é da vida?‖ faz com
que seja narrada a história de vida e a desilusão do gaúcho frente à ―terra
prometida‖, frente ao trabalho realizado e a recompensa que ele não visualiza;
parece-lhe que o sul anda esquecido, desprovido de perspectivas tanto para a
geração mais antiga como para a que lhe sucederá:
Apeia um forasteiro: ―O que é da vida?‖
Responde o bolicheiro: ―Está cansada‖
A gente de bombacha anda esquecida
Desiludida nos beirões da estrada
Buscamos nossa terra prometida
Um mundo pras crianças e pros velhos
O sul que nós sonhamos onde a vida
Devolva o que branqueou nossos cabelos
A natureza, que sempre foi evidenciada como aliada do gaúcho, agora é
motivo de tristeza: ―Mas cada ano a seca de janeiro, precede um novo inverno de
asperezas/ Parece que o destino do campeiro não pode pedir mais que pão na
mesa‖. Aos poucos, ao falar do bolicheiro se juntam outras vozes, em um coro de
desesperança. No entanto, é o forasteiro quem vai demonstrar que cabe a cada
povo construir seu destino: ―Um povo sonha Deus a sua imagem,/ e Deus devolve
a terra a cada povo/ Moldada no trabalho e na coragem/ que o povo usou pra
levantar o sonho‖, trazendo, assim, para a composição a noção de que essa mesma
terra, agora inferno, poderá ser, mediante o trabalho de todos, o paraíso sonhado, a
terra pela qual ―Há que morrer por ela se preciso,/ o sul somente o sul pode
salvar‖.
A imagem do forasteiro na canção recupera a imagem de Deus, à medida
que essa voz remete a uma bênção, como podemos observar no trecho em que o
forasteiro monta em seu cavalo e é envolvido por um clarão. Ao mesmo tempo, a
bênção é identificada com o amor aos pagos da própria gente, e nasce de seus
sentimentos mais íntimos:
172
Assim falou pro povo o forasteiro,
Depois montou e envolto num clarão
Sumiu emoldurado pela tarde,
Bem como o sol dissipa a serração
Uns dizem que mais altos que os cerros
Ele segue abençoando este rincão
Mas muitos acreditam que essa gente
Ouviu a voz do próprio coração.
Ao final da canção, os gaúchos voltam para suas casas e se entregam à
antiga lida do plantio e do arar a terra, sabendo-se individualmente responsáveis
pela construção do Rio Grande sonhado:
O certo é que um a um se foi às casas,
Porque havia uma planta por cuidar
Arar a terra a cada madrugada,
Para a semente que há de germinar
O homem faz seu Deus que faz o sonho
Um sonho azul maior que este lugar
Na luz que vem dos olhos dessa gente,
O sul um dia se iluminará
De outro modo, a canção ―Milongão pra assobiar desencilhando‖ que faz
parte do disco gravado no ano de 2001, O melhor de Luiz Marenco, aborda a
vida no campo. A temática destacada na canção expõe o apego do sujeito sulino
ao campo, a tudo aquilo que faz parte do pampa e que está relacionado à lida
campeira. Trata-se de uma identificação com o meio onde transita e pratica suas
atividades, um ambiente natural, campestre, descrito de forma a ressaltar com
detalhes aquilo que o compõe: o rancho, a sombra das árvores, o fogão de lenha:
Silhueta de um fim de tarde, prenunciando a mesma sombra
Do tarumã bem copado contra o lado do galpão
Que larga fumaça branca no mais alto se desenha
De certo é cambona e lenha na porfia do fogão.
A composição recupera os motivos predominantes nas temáticas do
cancioneiro e do conto regionalista, pois evidenciamos o cavalo, o cachorro,
descritos a partir de uma linguagem típica do gaúcho – ―gateada‖ e ―cuscada‖ –;
da mesma forma, a indumentária recuperada a partir do som das esporas, denuncia
a chegada do gaúcho autêntico dos pampas:
173
A gateada apura passo no acoo da cuscada
Que faz festa com o retorno dos campeiros na mangueira
Silêncio se vai aos poucos pelas esporas nas pedras
E os tinidos da barbela nos escarceios da oveira
Essa composição remete, ainda, ao ―rancho vivente‖ da canção de Luiz
Marenco, o qual recebe o gaúcho em seu retorno; entre campo e alma existe uma
reciprocidade: ―Aos poucos, ouvem-se coplas num assobio compassado/ Que
entram galpão à dentro, depois voltam mais sonoras/ Se vão tirando a carona, o
xergão e entram mais calmas/ Parecem que campo e alma se mesclam bem nessa
hora‖.
O dia de lida do campeiro é narrado mediante o uso de uma linguagem
regional costumeiramente utilizada pelo habitante do campo: ―Água nos lombos
suados, mais águas pras cambonas/E o galpão se para quieto pra escutar um
campeiro/Depois do dia de lida, de invernada e rodeio/ Sobra tempo pra um
floreio e um assobio milongueiro‖. Observamos o costume do gaúcho do ―mate
recém cevado‖ e a ambientação do galpão e, ainda a relação de que o trabalho no
campo engrandece o homem, faz-lhe bem, deixa-o de ―alma lavada‖ e permite-lhe
terminar o dia cantando uma milonga enquanto desencilha o cavalo:
Um mate recém cevado, silencia o galpão grande
Reverenciando quietudes nas sombras que aquerenciei
E quem refaz o seu dia de bem com a vida no campo
Um pelego sobre um banco é mais que um trono de rei
Ficou um resto de pasto agarradito no freio
Esporas ,mangos e laços e um silêncio esperando
Alguém de alma lavada aá debruçar-se no violão
E tocar um milongão pra assobiar desencilhando
Ao analisarmos as canções de Marenco, evidenciamos que as temáticas mais
recorrentes giram em torno do gaúcho; tratam justamente da questão da atividade da
doma, da pecuária e do hábito de matear, através das quais é possível aproximá-lo
tanto do modelo romântico do monarca das coxilhas, como da denúncia das questões
sociais vivenciadas pelo gaúcho como, por exemplo, a solidão do campo, o
afastamento da família e o êxodo rural. Diante disso, embora Marenco tenha surgido
em festivais nativistas, suas composições se aproximam tanto dos princípios do
nativismo, por cantar as dificuldades que o gaúcho enfrenta para se manter no campo,
a partir de um enfoque denunciativo recorrente desse movimento da música nativa,
174
quanto do tradicionalismo, por reverenciar os feitos do gaúcho e de suas atividades
campeiras.
3.2.3.2 Mário Rubens Batanolli: Mano Lima
Mário Rubens Batanolli, mais conhecido como Mano Lima, nasceu em
M‘Bororé, atualmente município de Massarambá, porém seu berço artístico é a
cidade de São Borja. Caracteriza-se pela irreverência e pelo uso de um linguajar
rústico, próprio do gaúcho nascido e criado no interior. Suas músicas têm como
instrumento principal uma gaita de botão, que ele mesmo toca.
Fonseca (2014) apresenta em seu texto sobre a música regional gaúcha o
posicionamento do compositor Mano Lima sobre as novas correntes musicais,
inicialmente afirmou: ―o sol nasceu para todos‖, e, ainda diz que não serão os
músicos que irão opinar a respeito da tchê music, maxixe, enfim, outras formas
que se misturam ao tradicionalismo; no entanto, o músico reforça o compromisso
com relação à ―bandeira‖ que cada compositor carrega, a qual, para Mano Lima,
faz com que a música gaúcha se diferencie de outras manifestações. Nesse
sentido, ele argumenta que, como músico, prefere não opinar, mas enquanto
cidadão gaúcho apresenta o seguinte raciocínio:
Surgiu uma música moderna, muito bonita por sinal, com grandes
músicos, grandes talentos, mas levando uma bandeira errada. ―Quando
se carrega uma bandeira, se tem com ela uma responsabilidade"
disse. E continuou: "se fossem me perguntar o que eles deveriam
fazer, eu diria: 'não carreguem a bandeira do tradicionalismo, não
carreguem a bandeira dizendo que a música que vocês tocam é
gaúcha‖. Carreguem a bandeira de vocês, porque cada pessoa tem uma
personalidade. Aliás, a palavra pessoa já significa personalidade.
Sejam vocês mesmos. Levem a bandeira que vocês não ajudaram a
construir e que estão destruindo. (FONSECA, 2014, p. 3)
Ao mesmo tempo em que evidenciamos um cuidado muito especial do
músico com relação às influências ou surgimento de novas correntes na música do
Rio Grande do Sul, podemos perceber que existe, para o cantor, uma
diferenciação muito clara entre os estilos, a qual pode ser explicada pela
―bandeira‖, termo utilizado para sinalizar o estilo musical escolhido por cada
compositor. Esse cuidado de Mano Lima, ao se intitular como cantor e compositor
de música regionalista gaúcha, pode ser percebido em suas canções, pois elas
175
carregam consigo a força do homem gaúcho – do herói que deu seu sangue e a
vida para defender a sua terra e as suas fronteiras; atrelado a isso, o músico
recupera a cultura e tradição de um povo, ambas localizadas no espaço campesino.
A canção ―Clarim farrapo‖, que integra o cd Troveiro do Mbororé,
gravado no ano de 1989, soa como um grito farroupilha que permanece sempre
vivo no coração que canta. Clarim é um instrumento de sopro, espécie de
trombeta, que tem som agudo e estridente, o qual Mano Lima utiliza para, em um
primeiro momento, expressar a força de seu canto farrapo e, em outro, para
mostrar a força de um tempo que passou. O último verso dessa primeira estrofe
traz a mistura de força que lembra o passado e da solidão que resume o presente:
Meu canto é mais de que um canto
É um clarim farroupilha que tenho no coração,
De vez em quando se solta
Do corredor da garganta em noites de solidão.
A liberdade também é cantada arraigada ao individualismo e ao ato de
avançar e dominar novos campos, exaltando, ainda, a coragem pessoal e o amor à
aventura, bem como a liberdade, retratada como associada ao vento, figura que já
se encontra registrada na literatura oral do cancioneiro, como registrado no
segundo capítulo. No dizer de Mano Lima: ―Corto aramados de rumo/ Na direção
que mais quero/Eu sou mais livre que o vento/ E que o cantar do quero-quero/ Dos
pelego faço a cama/ Pois sou igual à sariama/ Onde anoitece me podero‖.
Outro tema predileto do gaúcho também está sinalizado na canção: a
mulher, a qual lhe confere afirmação de masculinidade:
Hei de vagar a vida inteira
Enquanto houver no meu peito vontade e voz pra cantar
E um sorriso encabulado
De algum beiço pintado que surgiu quando eu cruzava.
Sou gaudério, sim senhor
Vivo nos corredores tomando café em cambona
Namorando às madrugadas
Desafogando minhas mágoas no focote da cordeona.
Junto à condição de vida nômade, de liberdade, a mulher e o namoro
também representam passagem; sentimos, na canção, o gosto pelo vagar sem
rumo pelo tempo e pelo espaço. A linguagem bem regionalista, em um
176
vocabulário que aproxima o ouvinte da marca iniludível dos pagos, por meio da
qual também é possível demonstrar a diversidade da língua – falada e escrita.
No álbum Tô de volta, gravado no ano de 1991, Mano Lima aborda o
gaúcho de fé, de alma, também domador, cantando as coisas do pampa, do rancho
e da infância. A canção ―Teteias de minha infância‖ volta o olhar com nostalgia
para o passado, relembrado como o melhor tempo. Retoma um espaço, dando-lhe
vida e som, ao passo que registra a afeição de menino às lidas do campo e ao
conhecimento da natureza que o rodeia:
Espora, estribo, bocal é rédea larga
Foram teteias que marcaram minha infância
Quando um potro saísse dando volta
Empurrando o lombo em frente da velha estância.
A canção descreve a aproximação do gaúcho desde cedo, na infância, a
lida campeira, demonstrando a ligação íntima entre a terra e o homem que a
povoa; junto a isso, evidenciamos o orgulho de homem ao contar como domava os
bois quando ainda era menino.
Minha esporas de sete dentes cravadas Que eu usava pra matungo que aporreava Uma feria e a outra vinha cortando E no caminho geralmente se encontrava,
De madrugada quando aponta a estrela d‘alva De muito longe se ouvia um potro berrando E um piazito que no seu lombo ia firme Espora e mano de atrofia iam cantando.
Podemos aproximar a essa canção outra gravada no ano de 1996, intitulada
―Minha pátria‖, incluída no disco Estouro de tropa. Da mesma forma que na
canção ―Teteias de minha infância”, essa última evidencia a formação do gaúcho
e, através desta, relembra o passado guerreiro do Rio Grande, a força e coragem
do gaúcho em forte ligação com os elementos da terra: ―Eu sou gaúcho e brotei do
vento e da pampa/ cresci peleando abraçadito num fuzil/ de bombacha e de chapéu
de aba larga/ por muitas vezes já defendi meu Brasil‖.
Sempre positivo e viril, a defesa da pátria está em primeiro plano, mesmo
quando se trata de pelear com o próprio irmão, ou seja, pelear com os outros
estados da federação. Da mesma forma, evidenciamos a sincronia que existe entre
177
o ser, o gaúcho, o estado Rio Grande do Sul e nação – o Brasil, no sentido de
existir uma força que sobrepõe o próprio ser quando o assunto é a defesa de sua
terra:
Por igualdade já peleei com meus irmão
tive meu corpo todo coberto de chaga
mas injetei ajuda de outras nação
pra não ferir a pátria que eu tanto amava
E o que mais me deixa triste meus amigos
é que meu nome a história não escreveu
pra quem não sabe, eu sou o Rio Grande do Sul
e não existe mais brasileiro que eu.
Mano Lima segue cantando a alma o Rio Grande do Sul, sua paisagem,
seu povo, sua singularidade, fazendo sempre menção à liberdade campeira,
desfrutando do ânimo guerreiro para realçar o modo de viver do gaúcho através de
sua arte. A canção ―Um homem fora do seu tempo‖ que dá nome ao disco gravado
no ano de 2004 distancia-se do cantar da infância para sinalizar o afastamento do
campo através de um gaúcho que carrega mais forte ainda a bagagem cultural
adquirida nos tempos de outrora: ―Um homem o mundo não leva/ Quando tem
sangue nas veia/ Eu venho vindo da terra/ Onde o touro berra e o tauro peleia‖.
No entanto, não existe generalização nesta definição do gaúcho que o
mundo não corrompe, pois Mano Lima deixa claro, principalmente, em duas
estrofes: ―Tem gaúcho da boca pra fora/ Mas também tem o que é do coração pra
dentro/ Se tem o cerne na garganta, é de pau ferro/ Por isso berro e, quando canto,
me sustento‖. E, na última estrofe: ―Amigo, bote otro trago/ E saiba porque peleei/
Foi porque os home mudaram/E se acadelaram e eu não acompanhei‖.
No entanto, ao mesmo tempo em que a canção permite a aproximação com
o presente, ela também se envolve e dialoga com os versos do cancioneiro, à
medida que recupera os elementos regionais, demonstrando o apego à terra, a
caracterização do tipo e sua relação com a campanha. Podemos observar
semelhança entre os versos de Mano Lima, e os do Cancioneiro, coletados por
Augusto Meyer. Em ambos, é possível observar o nomadismo, a exaltação da
coragem pessoal, da valentia, da liberdade atrelada ao ato de pelear, o culto da
monarquia que entoam o canto da vida semibárbara do gaúcho primitivo:
178
Quando ato a cola do pingo
E ponho o chapéu de lado,
E boto o laço nos tentos,
Por Deus que sou respeitado
Desde guri eu já era
Um monarca abarbarado,
Ninguém me pisou no poncho
Que não ficasse pisado
( MEYER, 1959, p. 72)
Um homem o mundo não leva
Quando tem sangue nas veia
Eu venho vindo da terra
Onde o touro berra e o taura peleia
Que me valeria a vida
Se do perigo eu fosse disparar?
O que vale a liberdade
Pra quem é covarde e não sabe pelear?
(LIMA, 2004)
Mano Lima segue lançando discos: Homem da terra, gravado no ano de
2007, Destino da gente, do ano de 2008; em 2012 temos regravações no disco As
mais tocadas e, no ano de 2013, Batendo estribo, do qual analisaremos duas
canções: ―Rancho de vidraça‖ e ―No rancho do coração”.
A primeira canção, ―Rancho de Vidraça‖, narra o início de um namoro e,
novamente Mano Lima prima pela caracterização do gaúcho atrelado ao espaço
recordando, em síntese, os dois fatores que fundam o regionalismo: o tipo humano
e o meio espacial. Nessa composição, a diferença geográfica do ―Rio Grande
velho‖ reflete-se em traços biológicos e psicológicos na figura do gaúcho que vai
ser cantada, a partir do tema do namoro entre o gaúcho e sua prenda: ―‗A gente
somos cada um no universo‘/ Disse uma prenda no princípio de namoro /Eu disse
a ela ‗venho do Rio Grande velho/ Da tropa-alçada e dos índio marca-touro‘‖. Na
definição de si mesmo, o gaúcho já demonstra seu orgulho a partir da força, da
valentia, e da história de sua terra.
O gaúcho meio grosso representado nessa composição lembra um pouco a
fase inicial, pois evidenciamos na descrição deste tipo humano o canto da
violência, o machismo, o ser ―cuiudo‖, como podemos observar no trecho:
O meu bigode ta branco não é do tempo
Bombeia bem que isso é farinha de mandioca
Eu me criei só com tutano de chibo
179
E galopeando cuiudo com massarote.
Na segunda estrofe quem fala é a mulher, a qual lembra os momentos de
―circunstância‖, que para ela era o tempo em que prevalecia a cultura gauchesca, a
qual agora deve ser mantida para não serem pisados. Notamos um culto pelas
tradições, pelos costumes antigos, o desejo de não deixar para trás aquilo com que
se identificam:
Ela me disse "Há momentos maior aquele,
de circunstância e de principalmente...
A gente tem que mantê o nível e a cultura,
pras criatura não pisá em riba da gente.‖..
Observamos, ainda, o desrespeito para com a mulher e a exaltação da
valentia, pois por cima dele não ―cruza‖ ninguém a não ser alguma égua.
Observamos nessa composição um gaúcho que se impõe pela força e violência,
caracterizando um indivíduo machista:
Eu disse a ela: "Só o que me cruza por riba,
é alguma égua, quando as vez plancha comigo.
Sai corcoveando, se quexando campo a fora,
igual muié quando apanha do marido.
Ao final da canção, a voz do gaúcho persiste sobre a voz da mulher e,
novamente é possível observar a descrição de um indivíduo machista tanto na
relação com a mulher, a qual ele estava conquistando, quanto com a égua. Através
do animal e da mulher ele demonstra sua índole violenta, e a desvalorização da
mulher, a qual, por contiguidade, e pelo tratamento recebido, é equiparada à égua.
Por outro lado, a impetuosidade do animal vem a ressaltar a valentia do homem,
pois, mesmo ―aporreada‖, ou seja, mesmo sendo difícil de montar, é dominada por
ele, como o é a mulher, que anda ―nos conforme‖, ou seja, prevalece sua voz, sua
opinião. Ao mesmo tempo em que evidenciamos o machismo no gaúcho,
evidenciamos, na mulher, a submissão:
E assim se fomo naquela séca baguala,
de "laranjóide" e de "pessigueróides"...
Eu dando pau tipo bicho em égua aporreada
E o namoro se arrumô bem nos conforme...
180
Por sua vez, a canção ―No Rancho do coração‖, existe uma aproximação
de Deus ao povo gaúcho, através do ato de matear e a recuperação do cenário
campal. Inclusive, a canção soa como uma prece, com uma certeza da grandiosa
fé de novos tempos, da possibilidade de viver em um mundo mais igual. Outra
leitura interessante se revela pelo significado da palavra rancho nessa letra, pois
ele simboliza aconchego, simboliza coração, local em que Deus passou a morar
depois da criação do mundo: ―Deus após criar o mundo ficou pensando ao matear/
Em que rincão escolher um ranchito pra morar/ Depois de muito pensar solito na
madrugada/ Em cada coração humano se arranchou e fez morada‖.
Depois de demonstrar que Deus ―se arranchou‖ quer dizer está presente
nos corações e no rincão gaúcho, a canção revela a importância de manter a fé, de
agradecer e não somente buscar a Deus nos momentos difíceis, lembrando ainda,
que Deus não está nas coisas, mas sim no coração de cada um. Dessa forma, não é
preciso buscá-lo através de outros que o distanciam e alienam do homem, os quais
na canção são chamados de ―falsos profetas‖:
Não deixa tua pessoa campear Deus só quando chora
Visite ele diariamente, não somente nesta hora.
Não siga falsos profetas que vendem ele aqui fora
No rancho do coração, dentro de ti que ele mora.
Sem se desvencilhar dos motivos regionalistas e da linguagem típica
sulina, do ―camperear Deus‖, ―do rancho do coração‖, ―sinuelo do bem‖, o
compositor aborda, ainda, a questão da desigualdade a partir de duas principais
classes: o rico e o pobre, fazendo um chamamento para caminhar em direção ao
bem e espalhar o bem e, assim tentar, através da oração, buscar um mundo mais
igual.
Siga o sinuelo do bem, derrame onde for seu unto
Para que o homem e poder um dia ainda vivam junto
Lute por um mundo justo sem ganância ou mexerico
Onde o pobre deixe de ser dominado pelo rico.
Por isso eu falo com deus diariamente lado a lado
Num mundo já carcomido pelo cupim do pecado
Ao final, novamente o eu lírico demonstra sua crença apenas em Deus, em
algo maior que qualquer outra ―lorota‖, sinalizando que o pecado existe mesmo
181
que tenha outros nomes e, ainda que as desigualdades evidenciadas no mundo
sejam contas a serem resolvidas entre homens e não com Deus. Observamos que a
canção elege a fé como força, para assim poder acreditar em mundo de igualdade;
para isso existe uma crítica ao fato de buscar a Deus apenas nas horas ruins:
Não me venha com lorota de bruxa e de lobisomem
O pecado é sempre o mesmo embora tenha vários nomes;
Como dizia um paisano que por teres sede e fome
Que viu as desigualdades de cascatas e sobrenomes
Não tenho conta com deus, minhas contas são com os homens.
As composições selecionadas do músico Mano Lima revelam a sua
irreverência através do uso de um linguajar simples, rústico, próprio do gaúcho
nascido e criado no interior. Em suas composições evidenciamos, basicamente, o
canto da valentia do homem gaúcho, da ―grossura‖, do machismo, que se
manifestam nas peleias, na montaria, no trato com a mulher e com os animais. O
Rio Grande, em suas canções, recebe a definição de pátria dos gaúchos e o
habitante, mesmo quando o tema é o namoro, a fé, a infância, é definido como
taura, o valente. A valentia para o eu lírico de suas composições, associa-se,
facilmente, com a possibilidade de lutar, como é o caso das canções ―Clarim
farrapo‖ e ―Minha pátria‖. Ao mesmo tempo, a imagem idealizada do herói dos
pampas, defensor de sua terra se perde em meio à banalidade de guerrear, a ponto
de não conseguirmos, por exemplo, evidenciar a imagem do monarca nem do
centauro dos pampas.
3.2.3.3 Jayme Caetano Braun
Jayme Caetano Braun nasceu em 30 de janeiro de 1924, na Timbaúva,
distrito de São Luiz Gonzaga (RS), hoje pertencente ao município de Bossoroca.
Destacou-se como um artista que fez de sua terra o seu mundo. Foi alambrador,
tropeiro e curandeiro, formou-se em jornalismo. Escreveu poemas que versavam
sobre a temática campeira, quase sempre em homenagem ao homem da campanha
e seus costumes. Costumava, enquanto poeta regionalista, usar os pseudônimos de
Piraju, Martín Fierro e Andarengo. Muito carismático, tornou-se popularmente
conhecido não só no Brasil, mas também em países como Uruguai e
182
Argentina. Entre seus poemas mais declamados pelos poetas regionalistas do país
inteiro, destacam-se "Tio Anastácio", "Bochincho" e "Galo de Rinha".
Trabalhou como radialista na década de 1970, na Rádio Guaíba, onde
apresentava o programa "Brasil Grande do Sul". Reconhecido como o maior
pajador do Rio Grande do Sul, ou seja, poeta do improviso, foi membro e co-
fundador da academia nativista Estância da Poesia Crioula, em Porto Alegre.
Vários CTGs renderam-lhe homenagem, inclusive em vida, adotando o nome de
"Jayme Caetano Braun", em várias cidades brasileiras, inclusive na Capital
Federal.
A questão da terra perpassa toda a sua obra. Jayme cantou, principalmente
no início de sua carreira, a indumentária e a cozinha tradicionais do gaúcho – o
mate, a faca, o lenço, o arroz de carreteiro. Foi intérprete dos anseios de seu povo,
sempre denunciando o uso indevido dos símbolos gaúchos por opressores. Outra
característica são as referências históricas, as quais, devido ao seu conhecimento
de história e geografia, são constantemente recuperadas nas suas payadas, e
acabam por denunciar a opressão a que o gaúcho foi submetido.
A canção ―Meu Rancho‖, que integra o disco nativista Payador, Pampa,
Guitarra (1976), tem como compositor Jayme Caetano Braun e Noel Guarany;
apresenta a singularização do espaço gaúcho, através do rancho – simples,
humilde, com ―frinchas na porta‖, lembrando o herói guerreiro, que agora, velho,
retoma o antigo viver, recuperando os motivos de orgulho pelo fato de ser
missioneiro:
É a sina dos tapejaras
Essa de beber mensagens
Que o vento traz nas aragens
Do fundo da noites claras
Bordoneando nas taquaras
Ou pelas frinchas da porta
Porque reanima e conforta
O velho sangue guerreiro
E se eu nasci missioneiro
O demais pouco me importa.
A canção narra a ambientação campeira, os costumes e a cultura atrelada
ao viver no campo através do resgate da infância do eu lírico, na qual vivenciou a
miséria e pobreza, as quais retomam o significado de ser missioneiro guerreiro:
183
Nasci no meio do campo
Na costa do banhadal
Dentro dum rancho barreado
De chão duro e desigual
Meu berço foi um pelego
Sobre um couro de bagual.
Bebi leite na mangueira
Numa guampa remachada
E acavalo num tição
Me aquentei de madrugada
Enquanto o vento assobiava
Nos campos brancos de geada.
No entanto, mesmo que o viver tenha sido marcado pela simplicidade, pela
dificuldade, o eu lírico cresceu orgulhoso pelo fato de ser um chiru e, por esse
motivo, a composição denota a imagem de um gaúcho que preza pela vida, pela
natureza, manifestando afinidade com o viver no campo. Da mesma forma, existe
a recuperação dos hábitos, desde o matear um amargo até o churrasco gaúcho:
Brinquei com gado de osso
Na sombra do velho umbu
E assim volteando um amargo
E o churrasco meio cru
Fui crescendo e me orgulhando
De ter nascido um chiru.
A composição é escrita a partir da sinalização marcada pelo passado e
presente, uma vez que é possível identificar a transição entre antigo e atual, antes
e agora. Existe a recuperação do passado através da criação, da infância e da
caracterização de ser um missioneiro e também da chegada da velhice e da volta
no viver humilde da campanha. Também evidenciamos o registro do centauro dos
pampas, do gauderear por muitos campos, e retorno na velhice ao espaço de
origem, na companhia da mulher e do cachorro: ―Depois de andar
gauderiando/Por muita querência estranha/ Hoje vivo no meu rancho/Na
humildade da campanha/ Junto à chinoca querida/ E um cusco que me
acompanha‖.
O amor à vida, à natureza, às coisas do pago simboliza o ideal mais forte
na canção, pois esses sentimentos e identificações do gaúcho com seu meio o
fortalecem. Há, também, a exploração de um dos temas prediletos do gaúcho: a
184
celebração da mulher; nessa composição, esta é companheira fiel, que divide com
o gaúcho todos os momentos, recebendo, na composição, a definição de ―guasca;
mulher e cavalo são valorizados igualmente, como fonte de riqueza para o índio
pobre:
É meu vizinho de porta
Um casal de quero-quero
Por isso embora índio pobre
Bem rico me considero.
Tendo china, pingo e cusco
No mundo nada mais quero.
Na estaca em frente do rancho
Dorme o pingo, meu amigo
Companheiro que eu adoro,
Prenda guasca que bendigo
Pois alegrias e penas
Sempre reparte comigo.
Mesmo diante da percepção de que, pelos costumes que mantém, pela
companhia da mulher e dos seus animais ele é feliz e rico, podemos perceber que
existe o canto da solidão dos pagos, das mágoas que revivem na chegada da noite,
e que se manifestam através do canto:
E quando de noite, a lua
Vem destapando meu rancho
Agarro na gaita velha
Que guardo erguida no rancho
E dando rédeas ao peito
Num vanerão me desmancho.
E ali pela solidão
Onde meu canto escramuça
Parece que a noite velha
Cheia de mágoas soluça
E a própria lua pampiana
No santa fé se debruça.
Notamos, ainda, bem vivas, as pegadas no heroísmo farrapo, das guerras,
da presença das tropas, presentes no cancioneiro gaúcho, e que continuam a ser
constantemente registradas e glorificadas, nessa composição, através da gaita. É o
momento em que o gaúcho recupera o antigo viver, assim como observamos no
conto ―Velhos tempos‖, em que a lembrança do passado permitia aceitar o
presente:
185
É mesmo que bombeador
Dos piquetes de vanguarda
Que vem abrindo caminho
Pelas tropas da retaguarda.
Enquanto a cordeona chora
Meu cusco fica de guarda.
Ao final da canção, o eu lírico demonstra que a luta pela defesa do Rio
Grande está acima de tudo e, portanto, é o único motivo que faz o gaúcho sair do
sossego de sua vida na querência, mas mesmo assim a china e o cusco o
acompanharão. Evidenciamos uma valorização na representação da mulher
diferente das demais canções analisadas, pois ela faz parte de tudo o que move o
gaúcho e não é simples objeto de desejo ou manifestação de masculinidade:
Mas pra deixar o sossego
Do meu rancho macanudo
Basta só a voz de um clarim
Com china e cusco me mudo
Pra defesa do rio grande
Que adoro acima de tudo.
A canção ―Bochincho‖ está incluída no Lp Payador, gravada no ano de
1983. Lembra os cantores da primeira fase – inventando as tradições, ao contar a
história de um gaúcho que vivia na costa do Uruguai e chegou em um baile ―num
rancho de santa-fé‖ conquistando uma ―china lindaça, morena e de toda a crina‖
que levou a pelear com o dono do bochincho, pois a peleia, a valentia é usada a
serviço pessoal, diferente daquela associada ao herói farroupilha ou mesmo da
valentia que defendeu o Rio Grande. Essa canção remonta aos tempos do
cancioneiro, através da imagem da mulher, a partir de um olhar erotizado e
também da exuberância animal do amor, que confere ao gaúcho a afirmação de
masculinidade. Nota-se que a beleza física vale mais que qualquer outra afeição.
Ao contar a peleia, o gaúcho briga sozinho com todos do baile; corre muito
sangue, demonstra muita força e, mesmo lutando sozinho, eis que o gaúcho sai
pela porta da frente – nesse caso, uma estratégia covarde, já que era aguardado na
porta dos fundos:
E a coisa ia indo assim,
Balanceei a situação,
- Já quase sem munição,
Todos atirando em mim.
186
Qual ia ser o meu fim,
Me dei conta - de repente,
Não vou ficar pra semente,
Mas gosto de andar no mundo,
Me esperavam na do fundo,
Saí na porta da frente...
No disco A volta do Payador, gravado no ano de 1985, Jayme Caetano
Braun canta a lembrança da querência, na canção ―Chimarrão do sem destino‖,
apresentando uma leitura do antigo gaúcho – o herói, para o gaúcho de agora ―um
paria ao relento‖, que mesmo na indigência, conserva sua altivez. Em sua letra, o
compositor faz um chamamento para a tradição, atentando para a nova condição
do gaúcho.
No desenvolvimento da canção, o gaúcho será lembrado a partir dos
sinônimos: desgarrado e retirante, os quais nos remetem às canções de Sergio
Napp, anteriormente analisadas, pois passado e presente, campo e cidade, êxodo
rural serão abordados para demonstrar o período da modernização, da saída do
campo. Nessa composição, as palavras lembrança e incerteza são as que
caracterizam o momento. Lembranças do passado, da vida na querência, da tapera
que não tem mais e, incerteza ao olhar para o futuro, de esperar agora novo
sentido:
Atrás o tempo - a lembrança
do "não tem mais" da tapera
na frente - a incerteza - a espera
mas ninguém come a esperança
o choro de uma criança
o leite - o pão que não há
salário - se tem - não dá,
teu viver não vale um real‖.
O chimarrão, bebida típica do estado do Rio Grande do Sul, na tradição é
representativo do pago, constitui-se ainda no símbolo de hospitalidade e da
amizade do gaúcho. Na canção, a bebida representa o que restou do passado na
querência e, ainda a possibilidade de ser reconhecido em outra estância pela
bagagem cultural que representa por meio da tradição uma forma de garantir a
permanência da tradição:
Meu amigo - meu irmão,
de campo - serra e fronteira,
187
alma da terra e tronqueira,
da gaúcha tradição,
prepara o teu chimarrão
pra que o mundo inteiro tome.
Mate amargo! santo nome
na religião dos andejos,
os que beberam teus beijos,
não podem morrer de fome!
Poder não deve - mas pode,
não há quem dome o destino,
o índio do campo fino,
como o da barba de bode
que fez dum fio de bigode
seu código e documento,
agora é um paria ao relento,
sobra de tempo e de guerra,
porque os que domam a terra
não constam do testamento!
O herói é retomado, em meio à tristeza do sentimento de
despertencimento, pois a canção os nomeia de ―epopeias de dantes‖ que são
sobras tanto do tempo, como da guerra e, ainda podemos perceber uma mudança
de paradigma em que tudo aquilo que os heroicizava, a relação com a natureza, a
peleia pela fronteira, agora não tem mais valor:
Essa altivez que te resta
pode durar muito mais,
pois te sobram credenciais,
além do ser que protesta,
a preocupação na testa
e os olhos queimando luz,
talvez pensando em gurus,
estranhos aos teus terreiros,
ou - talvez - nos entreveros
dos nazarenos sem cruz!
A lembrança do campo aberto, da fronteira que imperava as disputas é
recuperada no disco Payadas, gravado no ano de 1993. A canção ―Sangue
Farrapo” recorda os tempos de luta, dez anos de guerra, tempo de sofrimento que
foi escrita por Jayme para denunciar o descaso do império diante da guerra. Ainda
assim, a canção explicita que embora a situação tenha mudado e a cidade seja o
novo paradeiro do gaúcho, se for preciso escolher ele prefere a peleia. A canção
relê o passado da guerra, sem idealização ou glória, porém os motivos da terra, da
conquista do solo gaúcho e defesa tem valor maior do que a vida de hoje na
cidade: ―Hoje quer seja funcionário, ou operário, ou da cidade, ou da lavoura, ou
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do rodeio ante os que aviltam o trabalho e o salário sem me obrigarem a escolher
volto e peleio‖.
De modo diferente, o cd Êxitos, gravado no ano de 1999, principalmente
com a canção ―Querência, tempo e ausência‖, demonstra a relação do gaúcho
dividido entre passado e presente. Nesse sentido, tudo o que retoma o passado é
gratificante e motivo de glória e o olhar para o presente se resume em falta, em
ausência. A distância da querência na canção se resume a perda, a uma busca que
nunca se supre, pois está atrelada a um espaço incomum, singular.
A canção revisita os espaços campestres para discutir os efeitos da
ausência do passado no presente: ―E nesse andejar em frente,/Sem procurar
recompensa,/ Fui vendo - na diferença,/ Entre passado e presente,/ Que a
lembrança de um ausente,/ Tem mais força que a presença!‖. Ainda podemos
mencionar, nessa canção que a paisagem, o ambiente simbolizado pela querência
é uma extensão da identidade do gaúcho.
Diante da análise realizada, consideramos que persiste na canção
regionalista gaúcha no Rio Grande do Sul a vertente regional, a qual contribui
para a permanência do mito (gaúcho–herói) pelo viés histórico e social. Sendo
assim, ressaltamos o papel da canção na (re) construção mítica do gaúcho,
considerando as questões sociais, culturais e ideológicas. Acreditamos, desse
modo, que o ato de revisitar os espaços e rememorar o passado através da música
regionalista evidencia, de um lado, o sentimento de pertença para o gaúcho à
identidade deste Estado e, de outro, a manifestação de uma tradição, de uma
continuidade cultural na contemporaneidade.
O passado do gaúcho – seu motivo de heroísmo e identidade está presente
desde as origens das composições musicais regionalistas. A canção gaúcha
oferece um espaço significativo e provocativo de vozes que convidam a gente
gaúcha a reforçar ou sustentar a identidade e, portanto, a sua unidade. As letras
das canções revelam um espaço de discursos diferenciados e plurais que conferem
ao individuo gaúcho o seu pertencimento em uma coletividade.
189
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essa pesquisa teve como objetivo investigar a persistência da vertente
regionalista na literatura gaúcha, evidenciando, para isso, a mitificação do gaúcho
e de sua terra em dois gêneros literários: o conto e a canção. Em nossa análise,
demonstramos, em um primeiro momento, a construção ideológica do gaúcho e
sua representação na vertente regionalista, objetivo para cuja compreensão tornou-
se necessário lembrar, ainda, o gaúcho histórico, e suas lutas e vivências na defesa
da fronteira e do território sul-rio-grandense, já que o conhecimento dos fatos
históricos permitiria melhor dimensionar a construção imaginativa desse tipo
humano.
Ao dedicarmo-nos ao estudo da representação do gaúcho e da sua terra,
verificamos que a configuração do gaúcho mítico é evidenciada desde a literatura
oral, através do Cancioneiro popular, no momento em que o homem rural é
enobrecido a partir do elogio das qualidades como trabalhador, amante e soldado.
No cancioneiro, o gaúcho apresenta as seguintes características: a revolta; a
solidariedade; a simplicidade; a força; o cavalo como companheiro inseparável, o
gosto pela liberdade, a obstinação à sua sina, a coragem, a valentia, a aversão a
estrangeiros, a honra, a dignidade e a solidão.
Entendemos que a configuração da imagem mítica do gaúcho como
representativo do Rio Grande do Sul se deu a partir de duas principais esferas, as
quais puderam ser observadas no percurso em que traçamos – literatura oral, conto
e, novamente oral, através das canções. A primeira esfera é de procedência
popular, e levava em consideração a indumentária, os hábitos e modos de falar; a
segunda, de natureza erudita, que se vincula, inicialmente, à associação do gaúcho
à figura mítica e aos fatores históricos integrados a sua personalidade, a sua índole
guerreira e livre constituída em virtude da formação de sociedade pastoril. Essas
duas esferas revelam os dois símbolos também predominantes nas representações:
o centauro dos pampas e o monarca das coxilhas. O centauro, reconhecido pela
sua bravura, considerado o gigante destemido, indomável; o monarca, por sua vez,
deixa de lado a visão obscura de homem bárbaro, conotando a imagem de um
mundo positivo, sem males, plenamente livre.
190
Contudo, cabe mencionar a presença de outra esfera, que diferentemente
da imagem mítica, evidenciou o processo de desmitificação, expresso por meio de
um revisionismo crítico e de denúncia social que se ocupou em registrar o gaúcho
a partir de um novo olhar. Sob essa perspectiva, o gaúcho é representado despido
de sua áurea mítica, encontrando-se à margem da sociedade no espaço citadino
ou, ainda, mesmo vivendo no campo, sente-se deslocado, pela impossibilidade de
viver como nos tempos de outrora.
Para demonstrar a persistência da vertente regionalista, partimos de sua
inscrição no conto, analisando, depois, o modo como os motivos e temas caros ao
regionalismo foram retomados na canção, para, no final, aproximarmos as
unanimidades e as dissonâncias evidenciadas nessas representações.
A temática da representação do gaúcho mitificado no conto foi
demonstrada em nosso trabalho a partir da análise de nossa seleção do corpus
analítico, uma vez que, através dela, conseguimos demonstrar o modo como se
deu a representação do gaúcho e de sua terra. A identificação dos quatro
regionalismos na literatura gaúcha, de acordo com o nível de regionalismo
empregado, possibilitou-nos verificar o tratamento diferenciado que cada autor
conferiu ao mesmo tema, propiciando, ainda, um trabalho peculiar no que tange
ao processo interpretativo obtido a partir de uma leitura que se firmou no
envolvimento do conteúdo de cada narrativa ao seu momento histórico. Além do
emprego de um determinado tempo histórico, ocupamo-nos, em nosso percurso
analítico, de outros dois fatores que também caracterizam o regionalismo em uma
obra literária: o tipo humano escolhido e o meio espacial.
Em Apolinário Porto Alegre, no conto ―Monarca das coxilhas‖
evidenciamos a cor local, principalmente a partir de dois elementos: as cenas
campestres e o vocabulário regional, com vistas a representar o tipo humano
campeiro, suas tradições e hábitos, dentro de um espaço restrito. As relações na
sociedade campeira, embora sejam narradas a partir da presença de segmentos
sociais distintos, por exemplo, patrões e subordinados, são representadas como
sendo fraternas e igualitárias. O cenário e a linguagem correlacionam-se com
relação ao primeiro; o autor dedica o seu olhar atento, manifestando uma escrita
detalhista daquilo que visualizou, ao mesmo tempo em que revela sua origem,
pois observamos uma narração que se dá através do olhar da cidade para o campo;
191
Em ―Velhos tempos‖, de Darcy Azambuja, os motivos idealizadores,
oriundos do passado regionalista, são demonstrados a partir de um ângulo
negativo, tanto com relação às paisagens quanto com relação ao tipo humano. Na
representação do tipo humano, coube ao autor demonstrar a marginalidade, a
solidão, a perda da identidade; já na representação da paisagem evidenciamos a
modificação da economia gaúcha e, com isso, novas condições de trabalho,
fazendo com o saudosismo se associasse à rememoração. Diferente do conto de
Apolinário Porto Alegre, em que os motivos regionalistas foram mantidos desde a
caracterização do tipo até a caracterização do espaço, em Azambuja verificamos,
sim, a presença do tipo, mas na leitura da campanha persiste o mesmo motivo
literário, contudo a partir de um espaço modificado, que revela os sentimentos de
despertencimento, estranhamento causado pela invasão da tecnologia no espaço
campeiro e, ainda a violência, os motivos da guerra que caracterizam o herói
gaúcho.
João Simões Lopes Neto ocupa-se da tríade regionalista: o homem, o
espaço e o tempo para representar o universo campeiro através do narrador-
personagem Blau Nunes. A localização dos seus casos remete a um passado
distante, mas pleno de honradez, como é o caso do conto ―Trezentas onças‖, no
qual percebemos a presença simultânea da nostalgia e da idealização com relação
ao tipo humano e o espaço representado. A sociedade campeira, assim como em
―Monarca das coxilhas‖ apresenta a divisão social a partir da caracterização do
estancieiro e do vaqueano, o peão, mas os valores como a solidariedade e a
honestidade imperam sobre qualquer diferença existente entre ambos. A paisagem
é idealizada e, além disso, reflete os sentimentos do herói.
Diferentemente, no conto ―Tempo de seca‖, de Cyro Martins, visualizamos
o gaúcho decadente, que lembra o passado guerreiro e as longas troteadas, mas
que agora está diante da seca. Notamos, no conto, a repetição da abordagem da
divisão social, mas sob um novo prisma, em que são realmente distintivas as
relações entre ambas, o que é demonstrado a partir da própria personagem,
durante o percurso para o seu rancho. O conto já nos encaminha para a saída do
campo, uma vez que a personagem perde seu rancho.
A aproximação deste conto de Martins com os anteriores, vinculados
primeiramente à idealização e, depois ao desaparecimento do herói e do antigo
cenário é possível pelo viés do contraste com relação ao conto ―Trezentas onças‖
192
e aproximação com o conto ―Velhos tempos‖. Contraste com o primeiro em
virtude da idealização do campo, da paisagem, pois em Martins evidenciamos, a
partir da temática da seca, a narração da impossibilidade de continuar vivendo no
campo pelo antigo herói, mas ainda é possível aproximar pela figura do contador
de histórias, que é relativizado nesse conto através da presença do velho rodeado
pela ―gurizada‖. A aproximação com o segundo se dá pela mudança na paisagem
e pela rememoração, em ambos, dos personagens com relação ao passado.
A demonstração da permanência da vertente regionalista no conto rio-
grandense prosseguiu, em nosso trabalho, a partir da leitura da narrativa de
Barbosa Lessa ―O boi das aspas de ouro‖ a qual nos revela a continuidade da
abordagem regionalista nos anos 1958. Novamente vincularemos uma leitura que
abrange contrastes e aproximações. Notadamente evidenciamos no conto a tríade
regionalista, através do culto aos valores de uma sociedade fechada e, ainda por
meio da caracterização do tipo e do cenário. Entretanto, percebemos também as
mudanças da sociedade campeira; o conto traz a presença do escravo e, através
deste, da divisão social sem a ideologia da democracia do campo, e o
empobrecimento do gaúcho, a solidão. O emprego do tempo histórico, assim
como nos demais contos, também é identificado, pois desde o início da narrativa o
leitor é conduzido para um passado distante, tempo em que as terras não tinham
dono, remontando à colonização.
O velho caudilho recuperado no conto ―Cavalo cego‖, de Josué
Guimarães, pela forma de relatar as experiências vividas, assegurando a
veracidade das mesmas, recorda, facilmente, a narração de Blau Nunes, de Simões
Lopes Neto. No entanto, o coronel distingue-se de Blau, primeiro por representar
na história a classe dominante, na qual evidenciamos os elementos de tradição e
ruptura, uma vez que ao lembrar-se das guerras, dos momentos de valentia o faz
pelo viés consciente do desaparecimento do Rio Grande de outrora; e, segundo,
pelo fato de o narrador não fazer parte daquele universo campesino representado,
figurando, assim, apenas na condição de observador ou interlocutor.
Depois de lermos o conto observamos que Josué Guimarães, introduz
elementos que alteram o modelo dos primeiros contos sulinos. Um dos elementos
pode ser observado através da linguagem, pois ainda que haja a ênfase no
coloquialismo, observamos certo distanciamento das expressões, enfim dos
termos locais. Também a temática do conto, de crítica às oligarquias rurais, sugere
193
que a sua decadência e seu gradativo desaparecimento está diretamente
relacionado com a desagregação moral e a própria degeneração dos costumes dos
antigos dirigentes, os caudilhos. Esse conto dialoga facilmente com as canções da
primeira fase, momento em que são recuperadas, de modo mais visível, as
revoluções, as guerras nas quais estiveram envolvidos os heróis gaúchos. Ao
mesmo tempo, existe uma aproximação com os contos críticos, que denunciam a
atual situação do gaúcho, que vive em meio à solidão, ao descaso, mantendo viva
a tradição e os costumes pelo viés da rememoração.
Reconhecido o valor de cada um dos contistas trazidos para análise neste
trabalho, cabe ainda mencionar que esses escritores publicaram suas obras em
momentos fundamentais e também determinantes do regionalismo gaúcho. Neste
momento, buscaremos demonstrar as temáticas predominantes, as quais são para
nós: a caracterização do tipo, a sociedade campeira, a presença do cavalo, a
rusticidade e a simplicidade, a presença do contador de causos. Verificamos, em
todos os contos, o tipo regional, do qual ora se ressaltam as qualidades morais,
comportamento, e hábitos típicos, ora as crises existenciais; nas narrativas
permeadas por revisionismo crítico, evidencia-se a solidão do pago, a chegada da
velhice, o êxodo rural, a crise de desemprego ocasionada pela introdução do
maquinário agrícola, e o viver isolado no espaço citadino,
Através da análise dos contos, comprovamos que houve uma duração
prolongada do regionalismo nesse gênero. Evidenciamos que, em boa parte de sua
história, conto e regionalismo foram indissociáveis, desde as primeiras
manifestações românticas até a fase em que ocorreu uma diminuição, sem perder
seus traços regionalistas, momento em que registramos a presença de elementos
da tradição e de ruptura.
Nesse contexto é que nos ocupamos, em nossa pesquisa, da verificação da
permanência da vertente regionalista na canção, porque levantamos a hipótese,
posteriormente confirmada, de que este gênero literário, de modo singular, vai
retomar na contemporaneidade os valores do regionalismo e da cultura rio-
grandense, através do sentimento de orgulho pelo chão, da exaltação do gaúcho,
da valorização do pampa e dos seus hábitos e costumes, ao mesmo tempo em que
vai denunciar a vida atual do gaúcho na cidade, cantando o êxodo rural, a solidão
dos pagos e o gaúcho a pé, conferindo, assim, uma identificação coletiva para a
gente gaúcha desde os anos 1940 até a atualidade.
194
Por outro lado, evidenciamos, em grande parte das canções gaúchas, a
permanência do mito, através de um ato rememorativo do passado heroico e da
cultura sul-rio-grandense, por meio da atualização e renovação dos laços
identitários que em algumas ocorreu pelo cantar da guerra, da violência, da
caracterização da virilidade do homem do pampa e, em outras, por um tom
idealizante e nostálgico do passado com relação ao antigo herói e também ao
espaço. No entanto, constatamos que, assim como no conto, não existe uma
predominância unânime dos traços regionalistas nas canções gaúchas, o que foi
possível perceber através da divisão do gênero em três principais fases, nas quais
verificamos o tratamento do tema dispensado por cada compositor (autor).
A fase Inventando as tradições é composta por músicos muito populares,
que viveram a época de crescente popularização do rádio, sendo muito cultuados
no meio rural. Esses músicos cantaram o gaúcho através de uma caracterização
externa – pela indumentária típica, reverenciando a cultura gaúcha, o pampa como
cenário, a fronteira, a tradição. Em menor parcela, evidenciamos o amor pela
terra, mas em maior profundidade encontramos a herança da valentia, apontando
para um gaúcho brigão e não valente, através de um deslocamento vazio do eu
lírico, pois a valentia não está atrelada à defesa do território. Observamos, com
frequência, o deslocamento da imagem do centauro dos pampas para as cenas
cotidianas.
Relacionando a temática das composições desta fase com a literatura oral
e, depois com o conto, principalmente ―Velhos tempos‖, constatamos que há
canções que se ocupam da imagem do gaúcho contador de causos, principalmente
de suas cenas de valentia e sua atração pela mulher, temas que se configuram
como prediletos do Cancioneiro primitivo. No entanto, esses foram os poetas que
fizeram nascer o estilo regionalista na canção gaúcha e, pela simplicidade e por
cantar o Rio Grande, continuam sendo fonte de inspiração para novas gerações de
músicos sulinos.
A fase Ebulição nativista ou ainda a Era dos festivais estabeleceu um
posicionamento diferenciado com relação à primeira fase da canção, pois
constatamos um distanciamento no que tange à temática que evoca fatos
históricos, as próprias revoluções. Concluímos que tal distinção se dá pela
intenção do festival de promover a renovação e o refinamento da canção, que era
considerada ―grosseira‖. No entanto, essa mesma fase pode ser facilmente
195
aproximada do regionalismo inicial evidenciado no conto, isso devido à influência
romântica, como é o caso da idealização do herói e do próprio cenário campesino
narrado no conto ―Monarca das coxilhas‖ de Apolinário Porto Alegre, bem como
a visão da dicotomia campo/cidade narrada no conto ―Velhos tempos‖, de Darcy
Azambuja. Percebemos a predominância dos temas caros ao regionalismo – como
o trabalho campeiro, a vida no campo, os costumes, a saudade do pago, a oposição
campo e cidade, que foram conservados em muitas canções da Califórnia, mas
receberam um tratamento poético mais elaborado.
A última fase da canção é muito significativa em nosso trabalho, uma vez
que ela comprova a persistência na canção da vertente regionalista até a
atualidade. É sabido que existem outras correntes musicais em solo gaúcho que,
assim como no conto, buscaram novas articulações vinculadas à renovação, mas
que também retornaram ao viés regionalista, para alcançar a solicitação do público
que cultua a tradição gaúcha, seus costumes e sua história.
Esse cantar, nem sempre está relacionado à valentia, à coragem do homem
gaúcho, mas está sempre voltado a terra gaúcha. A persistência com relação ao
cantar o pampa é evidenciada em todas as fases da canção, uma vez que
observamos a tematização deste, tanto pela nostalgia que envolve o cenário
campesino, em que as relações sociais são igualitárias e, mesmo o trabalho não é
depreciativo, pois ele engrandece o homem, como pelo viés da rememoração, da
lembrança com saudade dos tempos de outrora cantado a partir da cidade e, do
sentimento de despertencimento que o ambiente citadino causa no homem do sul.
Mencionamos, ainda, que consideramos persistência na canção as inúmeras
regravações de discos regionalistas na contemporaneidade, assim como a
continuidade de cada um dos compositores selecionados em nosso corpus
analítico.
Retomando, de um modo geral, a temática que envolve as canções
regionalistas, sem distingui-las de acordo com fases, percebemos os seguintes
aspectos referentes à identidade do gaúcho: o apego à cultura tradicional, o apreço
pelas lidas campeiras, a honra no cumprimento de qualquer desafio, a idealização
do pago, o respeito às gerações mais velhas, o gosto pela música e pela dança, a
idealização do passado e a consequente inconformidade com o presente, com o
espaço citadino e, nesse contexto a solidão, a marginalização, a tendência a não
196
seguir leis, o desprezo diante do ―de fora‖ e, do ―inimigo‖, observa-se ecos
farroupilhas, mais raras, mas ainda aparece a sensibilidade.
Tendo em vista as questões aqui arroladas, constatamos que não só
alcançamos nosso objetivo de investigar a permanência da vertente regionalista na
representação do homem e da terra do Rio Grande do Sul, como, ainda
registramos o modo como se dá essa persistência tanto no conto, quanto na
canção.
Entendemos que esse estudo é uma das possibilidades de leitura que o
conto regionalista e a canção nos possibilitam percorrer e, que, portanto, é uma
discussão que não se esgota. Da mesma forma, ressaltamos a contribuição desta
pesquisa no estudo específico da canção regionalista gaúcha, uma vez que são
encontrados poucos estudos monográficos a respeito da mesma.
197
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______. Que negrinha boa. In:____ Figueira amiga, Chantecler, 1982. K7-2-11-
703-498.
205
ANEXO 1: Letras das canções analisadas.
206
INVENTANDO AS TRADIÇÕES: Pedro Raymundo, Teixeirinha e Gildo de
Freitas
PEDRO RAYMUNDO
Adeus, Mariana
Nasci lá na cidade me casei na serra
Com minha Mariana, moça lá de fora
Um dia eu estranhei os carinhos dela
E disse: Adeus, Mariana, que eu já vou embora.
É gaúcha de verdade dos quatro costados
Que usa chapéu grande, bombacha e esporas
E eu que estava vendo o caso complicado
Disse: Adeus, Mariana, que eu já vou embora.
Nem bem rompeu o dia me tirou da cama
Encilhou o tordilho e saiu campo afora
e eu aproveitei e saí dizendo:
Adeus, Mariana, que eu já vou embora.
Ela não disse nada, mas ficou cismando
Que era dessa vez que eu daria o fora
Pegou uma soiteira e veio contra mim
Eu disse: Larga, Mariana, que eu não vou embora.
Gaúcho largado
Quando eu ponho minhas botas, bombacha e lenço encarnado
Todo mundo logo grita: - Eta gaúcho largado;
Se monto no meu cavalo, no meu pingo pangaré
Por Deus que sou cobiçado por mais de trinta mulheres!
E quando eu chego num baile sapateio na entrada
Se alguém em chama atenção a peleia está formada
Atiro no candeeiro e vou brigar no escuro,
Se morrer pouco me importa, mas desaforo eu não aturo!
Encosto numa parede e mando vir quem quiser,
venha velho, venha novo, só não me venha mulher;
Arranco do meu facão, manejo sem atrapalho,
Nos magros eu dou de prancha e nos gordos dou de talho!
Gaúcho peleador
Buena, moçada linda,
com vocês aqui estou,
quem esqueceu do meu nome,
desculpa faça o favor,
me chamo Pedro Raymundo,
gaúcho peleador.
Dizem por ai afora,
que eu sou o rei da furada,
em toda parte que eu chego,
a bagunça tá formada,
207
entro um no baile a cavalo,
e não me acontece nada.
(Falado) E não se corre do bicho sem ver o pelo, camarada.
Amigo só tenho um,
meu baio bueno flete,
com ele eu enfrento a morte,
brigo com cinco,e com sete,
no entreveiro de bala,
brigo até de canavete.
(Falado) E dou talho que não é qualquer doutor que costura, amigo, eiaa...
Quando eu entro no bochincho,
acredite quem quiser,
não me deixo levar preso
por um cidadão qualquer,
me entrego de corpo e alma
pra uma linda mulher.
(Falado) Mulher e cachaça em qualquer lugar se acha,sô bobo, não, eiaa...
Boena, moçada linda,
me despedindo estou
quem esqueceu do meu nome
desculpe faça o favor
me chamo pedro Raymundo,
gaúcho peleador.
VITOR MATEUS TEIXEIRA- TEIXEIRINHA
Coração de luto
O maior golpe do mundo
Que eu tive na minha vida
Foi quando com nove anos
Perdi minha mãe querida.
Morreu queimada no fogo
Morte triste, dolorida,
Que fez a minha mãezinha
Dar o adeus da despedida.
Vinha vindo da escola
Quando de longe avistei
O rancho que nós morava
Cheio de gente encontrei
Antes que alguém me dissesse
Eu logo imaginei
Que o caso era de morte
Da mãezinha que eu amei.
Seguiu num carro de boi
208
Aquele preto caixão
Ao lado eu ia chorando
A triste separação
Ao chegar no campo santo
Foi maior a exclamação
Cobriram com terra fria
Minha mãe do coração.
Dali eu saí chorando
Por mãos de estranhos levado
Mas não levou nem dois meses
No mundo fui atirado.
Com a morte da minha mãe
Fiquei desorientado
Com nove anos apenas
Por este mundo jogado
Passei fome, passei frio,
Por este mundo perdido.
Quando mamãe era viva
Me disse: filho querido
Pra não roubar, não matar
Não ferir, não ser ferido.
Descanse em paz, minha mãe,
Eu cumprirei seu pedido
O que me resta na mente
Minha mãezinha é teu vulto
Recebas uma oração
Desse filho que é teu fruto,
Que dentro do peito traz
O seu sentimento oculto
Desde nove anos tenho
O meu coração de luto.
Gaúcho de Passo Fundo
Me perguntaram se eu sou gaúcho
Está na cara, repare o meu jeito
Eu sou gaúcho lá de Passo Fundo
Trato todo mundo com muito respeito
Mas se alguém me pisar no pala
Meu revolver fala e o bochincho está feito.
Não sou nervoso e nem carrego medo
Eu me criei sem conhecer remédio
Eu meto os peitos em qualquer fandango
Mas quando eu me zango até derrubo o prédio
Eu sou gaúcho e se me agride eu tundo
Sou de Passo Fundo do Planalto Médio.
Me perguntaram qual era razão
Eu ter orgulho e ser passo-fundense
Eu respondi sou da terra do trigo
Tem um povo amigo e quando luta vence
É um pedaço do Rio Grande amado
209
Orgulha o estado e o povo riograndense.
Já respondi à pergunta, seu moço,
Me dá licença, vou encilhar o cavalo
Brasil afora atravessei os estados
Troteando apressado eu vim tirando o talo
Pra ver as prendas mais lindas do mundo
Cheguei em Passo Fundo no cantar do galo.
Querência amada
Quem quiser saber quem sou
Olha para o céu azul
E grita junto comigo
Viva o Rio Grande do Sul
O lenço me identifica
Qual a minha procedência
Da província de São Pedro
Padroeiro da querência
Oh, meu Rio Grande
De encantos mil
Disposto a tudo
Pelo Brasil.
Querência amada dos parreirais
Da uva vem o vinho
Do povo vem o carinho
Bondade nunca é demais.
Berço de Flores da Cunha
E de Borges de Medeiros
Terra de Getúlio Vargas,
Presidente brasileiro.
Eu sou da mesma vertente
Que Deus saúde me mande
Que eu possa ver muitos anos
O céu azul do Rio Grande.
Te quero tanto,
Torrão gaúcho,
Morrer por ti me dou o luxo
Querência amada
Planície e serra
Dos braços que me puxa
Da linda mulher gaúcha
Beleza da minha terra.
Meu coração é pequeno
Porque Deus me fez assim
O Rio Grande é bem maior
Mas cabe dentro de mim
Sou da geração mais nova
Poeta bem macho e guapo
Nas minhas veias escorre
O sangue herói de farrapo.
210
Deus é gaúcho
Da espora e mango
Foi maragato ou foi chimango
Querência amada,
Meu céu de anil,
Este Rio Grande gigante
Mais uma estrela brilhante
Na bandeira do Brasil.
Rio Grande de outrora
Velho gaúcho de bombacha e espora
de chapéu grande tapeado na testa
bigode branco e um sorriso aberto
montando um pingo nos dias de festa
acariciando a crista do seu pingo
batendo o relho de leve na anca
lenço vermelho esvoaçando ao vento
guasqueando as pontas na camisa branca.
Eu me encontrava na beira da estrada
quando passava um gaúcho guapo
me fez lembrar de meu avô e outros
fiel herança de um herói farrapo.
Velho gaúcho chegou na tal festa
logo mais tarde eu cheguei também
cantei uns versos, saudei os presentes,
quando um magrinho me falou ―ok‖
corri os olhos no velho gaúcho
e no magrinho olhei de cima abaixo
pensei comigo e vou dizer agora
a diferença que nos dois eu acho:
no tal magrinho eu vi o presente
e no gaúcho velho vi o passado
a diferença é do dia prá noite
como mudou o meu Rio Grande amado.
Eu não sou contra o gaúcho de agora
só não me diga ―ok‖, me aperte a mão
leia a história do velho Rio Grande
como é linda nossa tradição
veja o gaúcho como eu vi aquele
respeite ele como Deus na terra
se o Rio Grande hoje é paz e amor
é por que ele defendeu na guerra.
Velho gaúcho bebeu, festejou,
montou no pingo, partiu, foi embora
direto ao rancho e eu fiquei dizendo
Lá vai o velho Rio Grande de outrora.
211
Querência e cidade
Querência e cidade, meus companheiros,
Há uma diferença muito grande.
Lá na querência quando amanhece
Agente esquece todos desabores
Cá na cidade quando amanhece
É um inferno o ronco dos motores.
A diferença de uma coisa e outra
Que me perdoe agora, meus senhores,
Cidade é selva de cimento armado
O homem é fera, embora estudado;
Lá na querência é um jardim de flores
Équerência amada.
Lá na querência um fio de bigode
Fecha um negócio, vale um documento
Cá na cidade um fio de bigode
É coisa à toa que vive ao relento
A diferença de uma coisa e outra
Perdoe-me, senhores, um momento:
Cá na cidade o advogado fala
Lá na querência se resolve à bala,
Finda pra sempre um aborrecimento.
Ah,...ah, o defunto sai mais barato.
Lá na querência a mulher é simples
E tem o cheiro das flores da mata
Cá na cidade a mulher é isnobi
E a maioria delas é engrata
A diferença de uma e da outra
Perdoe-me, senhores de gravata,
Lá na querência a mulher não se pinta
Cá na cidade é na base da tinta
Come pão doce, lá come batata.
E a batata dá mais força mesmo.
Lá na querência canta os passarinhos
Como é bonito quando o sol levanta
Cá na cidade a buzina é música
E no asfalto o pneu é que canta
A diferença de uma coisa e outra
Peço, senhores, em nome de santa.
Lá na querência nós fazer visita
Pra ver que a vida lá é mais bonita
Do homem grosso que lavra e planta.
212
GILDO DE FREITAS
Sistema dos pagos
Eu vou contar pra vocês, ó minha gente,
Qual é o traje que no Rio Grande se usa
Uma bombacha, umas bota, um par de espora,
um chapéu grande, um lenço, um pala, uma brusa,
um cinturão, boleadera e tirador
e um revolver carregado na cintura;
um litro mango e uma faca prateada
e uma cordeona pr‘alegrar as criaturas,
cavalo gordo e um arreio preparado
dois pelegão, peiteira, freio e barbela,
um ramaneia, um laço, mala de poncho,
e na garupa uma china formosa e bela.
É esta china que me faz o chimarrão
me lava a roupa, faz almoço e faz café
é bem assim que se traja o rio-grandense
é o meu chão que le pertence os carinho da mulhé
também percisa ter dois cachorro bueno
mas escolher da raça dinamarquês
para ajudar o seu dono a peliar
se pur acaso for perciso alguma vez
cada cachorro peleia com o inimigo
e o dono é guapo peleia com dois ou trêis
e foi assim que eu resolvi todo o problema
di contar todo o sistema do Rio Grande pra voceis.
Despedida do Rio Grande
Até a volta, gauchada amiga,
Deste Rio Grande com encantos mil
Eu vou sair e levar as belezas
Destas canções por todo o Brasil
Eu vou sair em direção ao norte
E boa sorte pra o meu céu de anil
Tenho certeza que num outro Estado
Quando ouvirem a nossas canções
O que é tristeza vai ficar de lado
Vai alegrar vários corações
Fazendo uso da simplicidade
Porque a amizade me vale milhões.
Viver andando no Brasil inteiro
Eu sou gaúcho, eu tenho vontade
Pra ver os feitos que o Pai verdadeiro
Deixou no mundo e deu liberdade
De admirar todas essas belezas
Que a natureza deu pra humanidade.
Eu vou levando a vida de aragano
Pelo Brasil eu só levo alegria
213
Pra ver a serra e a água do oceano
E as beleza que esse mundo cria.
Todos da Terra não fazem em cem ano
O que o Pai soberano fez em sete dia
Por isso eu peço que Deus me ajude
Para eu cantar por este mundo além.
Que eu tendo força amizade e saúde
Não me interessa eu ter um vintém
Basta o contato com a natureza
E ver as beleza que esse mundo tem.
Gaúcho bom é assim
Gaúcho bom é assim
O gaúcho rio-grandense
Já é muito conhecido
É valente ,é destemido
Mas não ofende a ninguém
Mas porém sendo ofendido
O gaúcho perde a linha
Mostro logo em seguidinha
O grande valor que tem.
-E é bem assim lá no Rio Grande!
-Principalmente em São Borja, não é Dourado?
O gaúcho desconfiado
É um tremendo perigo
Reconhece o seus amigos
Mas não briga sem razão
Mas também se resolvendo
Manda chegar quem quiser
Mas se enxergando mulher
Lhe cai as armas da mão
-Aí não dá mais pra brigar
-Primeiro se atende a chinoca!
Numa certa ocasião
Um contrário me ofendeu
Puxou do revorve seu
Mas não chegou dar um tiro
Até parece mentira
Dei-lhe um tamanho sopapo
Caiu virado num trapo
Morreu sem dar um suspiro
-Este não incomoda mais!
Nisto chegou uma prenda
Mulher de rara beleza
Que me olhou com firmeza
E o meu corpo estremeceu
Deu-me tamanho pialo
214
Aquele olhar fascinante
Eu não fugi do flagrante
E a polícia me prendeu
-Depois que eu saí da cadeia
Eu fui preso de novo nos braços dela!
Se não fosse aquele olhar
Eu garanto que fugia
Eu brigava mas não ia
Parar lá naquela prisão
Mas um olhar como aquele
Em qualquer parte do mundo
Em menos de dois segundos
Prende qualquer valentão.
A ERA DOS FESTIVAIS: SÉRGIO NAPP, CÉSAR PASSARINHO, JOSÉ
CLAUDIO MACHADO
SERGIO NAPP
Desgarrados
Eles se encontram no cais do porto, pelas calçadas
Fazem biscates pelos mercados, pelas esquinas,
Carregam lixo, vendem revistas, juntam baganas
E são pingentes das avenidas da capital.
Eles se escondem pelos botecos entre cortiços
E pra esquecerem contam bravatas, velhas histórias
E então são tragos, muitos estragos, por toda a noite,
Olhos abertos, o longe é perto, o que vale é o sonho.
Sopram ventos desgarrados, carregados de saudade
Viram copos, viram mundos, mas o que foi nunca mais será.
Cevavam mate, sorriso franco, palheiro aceso
Viraram brasas, contavam causos, polindo esporas,
Geada fria, café bem quente, muito alvoroço,
Arreios firmes e nos pescoços lenços vermelhos
Jogo do osso, cana de espera e o pão de forno
O milho assado, a carne gorda, a cancha reta
Faziam planos e nem sabiam que eram felizes.
Olhos abertos, o longe é perto, o que vale é o sonho
Sopram ventos desgarrados, carregados de saudade
Viram copos, viram mundos, mas o que foi nunca mais será
Retirante
Eu tenho as mãos calejadas
Algumas rugas no rosto
Aqui sou burro de carga
E nem sou dono de mim
215
Eu tenho todo o espaço
Que os olhos podem tomar
Mas não consigo um pedaço
Que seja meu pra plantar
Não me fascina o luzeiro
Que eu possa achar na cidade.
Eu busco um prato de vida
E um gosto de liberdade.
O que me leva é o desejo
De me enxergar como igual
Aqui sou mero instrumento
Usado por serventia
Nas safras eu me alimento
Do gado sou dependente
Lá fora, por meu trabalho
Talvez eu venha a ser gente.
Não levo sonhos na mala
Nem vícios de valentia
Eu sei, me espera uma adaga
Que pode matar-me um dia
Me jogo inteiro assim mesmo
De corpo e de coração
No espelho das avenidas
Operário, e não peão.
Mala de garupa
Nesta mala de garupa, fumo em rama e um baralho,
Uma faca na bainha com a qual eu dou meus talhos
Vai num canto escondida uma ponta de saudade
Rapadura e erva mate e um bilhete pra cidade.
Lá no fundo guardo um sonho desses que jamais vingou
Uma funda e uma isca da pandorga, o que sobrou
Um punhado de caminhos e outras tantas geografias
Um pedaço de esperança mais um tanto de alegria
Vai um sol já meio gasto e uma rosa esquecida
Um lugar onde refaço meus estragos e feridas
Dentro dela meus retalhos, meus amores, minhas lidas
Nesta mala de garupa vai a vida, vai a vida.
Portas do sonho
Portas do sonho
quando abro as portas do sonho
sinto o gosto de liberdade
pés descalços, camisa aberta
mesas postas pelas varandas
e uma dor roendo meu peito
se fazendo sem ter razão
deve ser a dona alegria
campereando pelas coxilhas
entre avencas e samambaias
216
pelas sangas, abrindo trilhas
maneirosa, dona alegria
redomando meu coração
geme gaita, chora, a viola corta
firme punhal de prata
espanta o medo, abre asas
e voa livre o meu coração
quando abro as portas do sonho
sopram ventos de rebeldia
trovoadas, raios e medos
ferve o sangue em meio aos receios
e depois em calma e riso
faz-se o canto paz e aconchego.
Me levando feito magia
a lugares que não sei mais.
É a vida em seu galope
me envolvendo redemoinho
É punhal que se crava lento
e abre em festa meu coração
geme gaita, chora, a viola corta
firme punhal de prata
espanta o medo, abre asas
e voa livre o meu coração
um grande abraço.
CÉSAR PASSARINHO
Causo sério
Nome: José de Tal...
Profissão: Peão Campeiro...
Idade: Uns setenta e pico...
-A la pucha, que o tempo, passou ligeiro!
E o velho peão, afinal
Terá sua compensação:
-No fim do mês, Funrural,
No fim da vida, abandono e solidão...
Agora é guardar os arreios,
Caseriar recordações,
Apartar-se do seu meio,
Enrrodilhar ilusões...
Lhe resta soltar pra o campo
Velhas lembranças sogueiras
Que o amargo exílio campeiro
De mansas, fez caborteiras.
Agora é esperar sua hora
Que sem demora há de vir...
- A velhice é um causo sério
Que o tempo nos conta sem rir!
217
Galope dos sonhos
Liberdade é campo aberto
rédeas soltas, galopar
o longe está mais perto
para quem pode sonhar.
Alma adentro, campo afora,
no atropelo da razão
campereada não tem hora
na fronteira da ilusão.
Mas na raia desta vida
é preciso conciliar
a chegada tão festiva
e a partida sem chegar.
A galope vão os sonhos
do tropel do coração
deixam marcas de saudades
que jamais se apagarão.
Gineteando apaixonado
vai o sonho do amor
num flete colorado
que também é sonhador
por lugares encantados
um convite a ser feliz
velhos sonhos renovados
a campear outro matiz.
Mas no lombo do destino
em galopes desiguais
muitos sonhos de meninos
lembram tombos, nada mais.
A galope vão os sonhos
do tropel do coração
deixam marcas de saudades
que jamais se apagarão.
Que homens são esses
Que homens são esses
Que fogem à luta
Será que não sabem as glórias do pago
Que homens são esses que nada respondem,
que calam verdades, que reprimem afagos
Que homens são esses que trazem nas mãos
o freio, o cabresto, a rédea e o bucal?
Que homens são esses que têm o dever de fazer o bem,
mas só fazem o mal?
Eu quero ser gente igual aos avós
Eu quero ser gente igual aos meus pais
Eu quero ser homem sem mágoas no peito
Eu quero respeito e direitos iguais
Eu quero este pampa semeando bondade
218
Eu quero sonhar com homens irmãos
Eu quero meu filho sem ódio nem guerra
Eu quero esta terra ao alcance das mãos
Que sejam mais justos os homens de agora
Que cantem cantigas, antigas e puras
Relembrem figuras sem nada temer
Procurem um mundo de paz na planura
E encontrem na luta, na força e na raça
Um novo caminho no alvorecer.
Desperta, meu povo, do ventre de outrora
Onde marcas presentes não são cicatrizes
Desperta, meu povo, liberta teu grito
Num brado mais forte que as próprias raízes
Eu quero ser gente igual aos avós
Eu quero ser gente igual aos meus pais
Eu quero ser homem sem mágoas no peito
Eu quero respeito e direitos iguais
Eu quero este pampa semeando bondade
Eu quero sonhar com homens irmãos
Eu quero meu filho sem ódio nem guerra
Eu quero esta terra ao alcance das mãos
Eu quero ser gente igual aos avós
Eu quero ser gente igual aos meus pais
Eu quero ser homem sem mágoas no peito
Eu quero respeito e direitos iguais
Eu quero este pampa semeando bondade
Eu quero sonhar com homens irmãos
Eu quero meu filho sem ódio nem guerra
Eu quero esta terra ao alcance das mãos
JOSÉ CLAUDIO MACHADO
Pedro Guará
Num lamento chegou o minuano
Anunciando o último inverno
O orvalho chorou nas campinas
E o céu enlutou as estrelas
Pedro Guará sentia mais forte
Cheiro da terra, o vento do sul.
Entrava no rancho o calor do braseiro
Mateava na espera do tempo chegar
Pedro Guará viveu aragano
Camperiando manhãs distantes
E passando plantava alegria
O riso ficava quando partia.
Pedro Guará partiu sem rastro,
Fruto maduro na volta pra terra
Rasgando um riso seu último gesto
Sumiu da serra não vai mais cantar.
219
São as armas que conheço
Um lombilho, um baixeiro, cincha, peiteira e rabicho
buçal, cabresto e maneia e uma espora garroneira
mango, rédea e bocal são as armas que conheço
pra fazer um cavalo manso quando me entregam um bagual
ou uma junta de boi mansos, um arado, pula-toco.
Cangas, brochas, tamoeiros, uma regeira um cambão
machado, enxada e facão são as armas que conheço
pra fazer a terra bruta me dar o trigo pro pão.
Esteios, rimas, baldrames, travessas e cachorretes
caibros e pontaletes, gaipa, taquara e cipó
cupim, leiva em santa fé são as armas que conheço
pra fazer meu próprio rancho e deixar de viver só.
As plantas estão maduras, os meus cavalos domados
o meu rancho está plantado, só meu catre está vazio
quem sabe numa volteada eu encontre por aí
alguém que junto comigo seja feliz por aqui.
Sistema antigo
Um pouco de saudade lá do meu rincão
um gesto de carinho da gaúcha amada
um toque de cordeona e um bom chimarrão
um quera pacholenta pra contar cueradas
(Eira, eira, boi, tempo feliz que muito longe vai,
eira, eira, boi, no velho rancho do meu velho pai).
Antigamente se carneava um boi
se convidava toda a vizinhança
era uma festa de violão e gaita
lá pelas tantas começava a dança
e gauchada pela noite afora
faziam farra ate romper a aurora
(Eira, eira, boi, tempo feliz que muito longe vai
eira, eira boi tempo feliz que muito longe foi).
Quem se criou pelo sistema antigo
cá na cidade vive inconformado
e quando encontra algum gaúcho amigo
fala de tudo que lembra o passado
canta saudade do gorjeio triste
lembra do tempo que já não existe.
220
ANOS 80 EM DIANTE: LUIZ MARRENCO, MARIO RUBENS BATANOLLI,
JAYME CAETANO BRAUN.
LUIZ MARRENCO
Meu rancho
Que alma tem o meu rancho
Por isso deixá-lo como
Pedaço de céu com terra
Folheado de cinamomos
Silêncio rodeado a berro
Solidão sem viver só
Madeirama de pau ferro
Toda atada com cipó
Mangueira de pedra moura
Que nunca mais ter fim
Um restingal de vassoura
Pôr de sol perto de mim
Coqueiral e caturrita
Galpão de fogo paxorro
E uma xirua bonita
Cavalo bom e cachorro...
Com chuva acorde e milonga
Consola o campo cedinho
Por aqui a noite é longa
E o dia devagarzinho
Quando eu saio mais que um dia
Este rancho é um ser vivente
Me recebe com alegria
Tem saudade como a gente.
O forasteiro
Na sombra de um bolicho à beira estrada,
Daqueles que do mundo se perdeu
Encontra-se uma gente reunida,
À espera de um chamado de seu Deus
Perfumes de bom fumo amarelido,
Paredes com suas almas penduradas
Paciências de um lugar envelhecido,
E uma coragem de quem não tem nada.
Apeia um forasteiro: ―O que é da vida?‖
Responde o bolicheiro: ―Está cansada‖
A gente de bombacha anda esquecida
Desiludida nos beirões da estrada
Buscamos nossa terra prometida
Um mundo pras crianças e pros velhos
O sul que nós sonhamos onde a vida
Devolva o que branqueou nossos cabelos.
Mas cada ano a seca de janeiro,
221
Precede um novo inverno de asperezas
Parece que o destino do campeiro
Não pode pedir mais que pão na mesa
E, aos poucos, o que diz o bolicheiro
Se multiplica em vozes pelo ar
E volta a se calar o forasteiro,
Junta o violão no peito pra cantar:
―Já vi quase de tudo em minha vida,
Há séculos que ando pela estrada
Vi a morte sobre a terra prometida,
E a vida sobre a terra abandonada
Vi um homem pondo fogo na colheita,
Enquanto outro semeava num deserto
Já vi perto o que ontem era um sonho,
E longe vi o que sempre fora certo
Um povo sonha Deus a sua imagem,
E Deus devolve a terra a cada povo
Moldada no trabalho e na coragem
Que o povo usou pra levantar o sonho
Aqui é nosso inferno e paraíso,
A vida é uma planta por cuidar
Há que morrer por ela se preciso,
O sul somente o sul pode salvar‖.
Assim falou pro povo o forasteiro,
Depois montou e envolto num clarão
Sumiu emoldurado pela tarde,
Bem como o sol dissipa a serração
Uns dizem que mais altos que os cerros
Ele segue abençoando este rincão
Mas muitos acreditam que essa gente
Ouviu a voz do próprio coração.
O certo é que um a um se foi às casas,
Porque havia uma planta por cuidar
Arar a terra a cada madrugada,
Para a semente que há de germinar
O homem faz seu Deus, que faz o sonho,
Um sonho azul maior que este lugar
Na luz que vem dos olhos dessa gente,
O sul um dia se iluminará.
Milongão pra assobiar desencilhando
Silhueta de um fim de tarde, prenunciando a mesma sombra
Do tarumã bem copado contra o lado do galpão
Que larga fumaça branca no mais alto se desenha
De certo é cambona e lenha na porfia do fogão
A gateada apura passo no acôo da cuscada
Que faz festa com o retorno dos campeiros na mangueira
222
Silêncio se vai aos poucos pelas esporas nas pedras
E os tinidos da barbela nos escarceios da oveira
Aos poucos, ouvem-se coplas num assobio compassado
Que entram galpão à dentro, depois voltam mais sonoras
Se vão tirando a carona, o xergão e entram mais calmas
Parecem que campo e alma se mesclam bem nessa hora
Água nos lombos suados, mais águas pras cambonas
E o galpão se para quieto pra escutar um campeiro
Depois do dia de lida, de invernada e rodeio
Sobra tempo pra um floreio e um assobio milongueiro
Um mate recém cevado, silencia o galpão grande
Reverenciando quietudes nas sombras que aquerenciei
E quem refaz o seu dia de bem com a vida no campo
Um pelego sobre um banco é mais que um trono de rei
Ficou um resto de pasto agarradito no freio
Esporas, mangos e laços e um silêncio esperando
Alguém de alma lavada a debruçar-se no violão
E tocar um milongão pra assobiar desencilhando.
Clarim farrapo- 1989
Meu canto é mais de que um canto
É um clarim farroupilha que tenho no coração,
De vez em quando se solta
Do corredor da garganta em noites de solidão.
Corto aramados de rumo
Na direção que mais quero
Eu sou mais livre que o vento
E que o cantar do quero-quero
Dos pelego faço a cama
Pois sou igual à sariama
Onde anoitece me apodero.
Hei de vagar a vida inteira
Enquanto houver no meu peito
Vontade e voz pra cantar
E um sorriso encabulado
De algum beiço pintado
Que surgiu quando eu cruzava.
Sou gaudério sim senhor
Vivo nos corredores tomando café em cambona
Namorando às madrugadas
Desafogando minhas mágoas no focote da cordeona.
Meu canto é mais de que um canto
É um clarim farroupilha que tenho no coração,
223
De vez em quando se solta
Do corredor da garganta em noites de solidão.
Tetéias de minha infância
Espora, estribo, bocal e rédea larga
Foram teteias que marcaram minha infância
Quando um potro saísse dando volta
Empurrando o lombo em frente da velha estância
Minha esporas de sete dentes cravadas
Que eu usava pra matungo que aporreava
Uma feria e a outra vinha cortando
E no caminho geralmente se encontrava,
De madrugada quando aponta a estrela d‘alva
De muito longe se ouvia um potro berrando
E um piazito que no seu lombo ia firme
Espora e mano de atrofia iam cantando.
Espora, estribo, bocal e rédea larga
Foram teteias que muito estimei
Hoje rapaz de trinta e poucos anos
Perdi a conta dos bagual que já domei.
MARIO RUBENS BATANOLLI - MANO LIMA
Minha pátria
Eu sou gaúcho e brotei do vento e da pampa
cresci peleando abraçadito num fuzil
de bombacha e de chapéu de aba larga
por muitas vezes já defendi meu Brasil.
Por igualdade já peleei com meus irmão
tive meu corpo todo coberto de chaga
mas enjeitei ajuda de outras nação
pra não ferir a pátria que eu tanto amava
E o que mais me deixa triste meus amigos
é que meu nome a história não escreveu
pra quem não sabe, eu sou o Rio Grande do Sul
e não existe mais brasileiro que eu.
Um homem fora do tempo
É na fumaça que se conhece um taura
É neste mundo que quero mostra quem sou
Se é na guerra que o soldado pega nome
Pois foi na guerra que o gaúcho se criou.
Tem o gaúcho da boca pra fora
Mas também tem o que é do coração pra dentro
Se tem o cerne na garganta, é de pau ferro
224
Por isso berro e, quando canto, me sustento.
O homem foge dos seus princípios
E o mundo corre em direção à perversidade
Se vivo peleando solito é porque sou peão de estância
E trago de herança o respeito e a hombridade.
Quando a moral se entrega,
O homem chega ao seu próprio fim
Mas debaixo da macega
Se esconde o melhor do capim.
Debaixo do meu sombreiro tem um bugre missioneiro
peleando dentro de mim
Já de cavalo aplastado
Venho bem cortado
E não vou me entregar
Só com o cabo da adaga
Meu corpo é uma chaga
De tanto pelear!
Bolicheiro, me dê um trago
Pra me clarear a visão
E um punhadito e bala
Pra arrumar a fala do meu "nagão"
Que me valeria a vida
Se do perigo eu fosse disparar?
O que vale a liberdade
Pra quem é covarde e não sabe pelear?
Um homem o mundo não leva
Quando tem sangue nas veia
Eu venho vindo da terra
Onde o touro berra e o taura peleia,
Amigo, bote otro trago
E saiba porque peleei
Foi porque os home mudaram
E se acadelaram e eu não acompanhei.
Rancho de vidraça "A gente somos cada um universo"
disse uma prenda num princípio de namoro
e eu disse a ela: "Venho do Rio Grande véio,
da tropa alçada e dos índio marca-toro.
O meu bigode tá branco não é do tempo
bombeia bem, que isso é farinha de mandioca.
Eu me criei só com tutano de chibo
e galopeando cuiúdo com massaroca‖.
225
Ela me disse "Há momentos maior aquele,
de circunstância e de principalmente...
A gente tem que mantê o nível e a cultura,
pras criatura não pisá em riba da gente.‖..
Eu disse a ela: "Só o que me cruza por riba,
é alguma égua, quando as vez plancha comigo.
Sai corcoveando, se quexando campo a fora,
igual muié quando apanha do marido.
E assim se fomo naquela seca baguala,
de "laranjóide" e de "pessigueróides"...
Eu dando pau tipo bicho em égua aporreada
E o namoro se arrumô bem nos conforme...
No rancho do coração
Deus após criar o mundo ficou pensando ao matear
Em que rincão escolher um ranchito pra morar
Depois de muito pensar solito na madrugada
Em cada coração humano se arranchou e fez morada.
Não deixa tua pessoa campear Deus só quando chora
Visite ele diariamente, não somente nesta hora.
Não siga falsos profetas que vendem ele aqui fora
No rancho do coração, dentro de ti que ele mora.
Siga o sinuelo do bem, derrame onde for seu unto
Para que o homem e poder um dia ainda vivam junto
Lute por um mundo justo sem ganância ou mexerico
Onde o pobre deixe de ser dominado pelo rico.
Por isso eu falo com Deus diariamente lado a lado
Num mundo já carcomido pelo cupim do pecado
Falado:
Não me venha com lorota de bruxa e de lobisomem
O pecado é sempre o mesmo embora tenha vários nomes;
Como dizia um paisano que por teres sede e fome
Que viu as desigualdades de cascatas e sobrenomes
Não tenho conta com Deus, minhas contas são com os homens.
JAYME CAETANO BRAUN
Meu Rancho
É a sina dos tapejaras
Essa de beber mensagens
Que o vento traz nas aragens
Do fundo da noites claras
Bordoneando nas taquaras
Ou pelas frinchas da porta
Porque reanima e conforta
O velho sangue guerreiro.
226
E se eu nasci missioneiro
O demais pouco me importa.
Nasci no meio do campo
Na costa do banhadal
Dentro dum rancho barreado
De chão duro e desigual
Meu berço foi um pelego
Sobre um couro de bagual.
Bebi leite na mangueira
Numa guampa remachada
E acavalo num tição
Me aquentei de madrugada
Enquanto o vento assobiava
Nos campos brancos de geada.
Brinquei com gado de osso
Na sombra do velho umbu
E assim volteando um amargo
E o churrasco meio cru
Fui crescendo e me orgulhando
De ter nascido um chiru.
Depois de andar gauderiando
Por muita querência estranha
Hoje vivo no meu rancho
Na humildade da campanha
Junto à chinoca querida
E um cusco que me acompanha.
É meu vizinho de porta
Um casal de quero-quero
Por isso embora índio pobre
Bem rico me considero.
Tendo china, pingo e cusco
No mundo nada mais quero.
Na estaca em frente do rancho
Dorme o pingo, meu amigo
Companheiro que eu adoro,
Prenda guasca que bendigo
Pois alegrias e penas
Sempre reparte comigo.
E quando de noite, a lua
Vem destapando meu rancho
Agarro na gaita velha
Que guardo erguida no rancho
E dando rédeas ao peito
Num vanerão me desmancho.
E ali pela solidão
Onde meu canto escramuça
Parece que a noite velha
Cheia de mágoas soluça
E a própria lua pampeana
No santa fé se debruça.
227
E meu verso é como o vento
Que vai dobrando as flexilhas
E floreia compadresco
O hino destas coxilhas
Entre os buracos de bala
Do pavilhão farroupilha.
É mesmo que bombeador
Dos piquetes de vanguarda
Que vem abrindo caminho
Pelas tropas da retaguarda.
Enquanto a cordeona chora
Meu cusco fica de guarda.
Mas pra deixar o sossego
Do meu rancho macanudo
Basta só a voz de um clarim
Com china e cusco me mudo
Pra defesa do Rio Grande
Que adoro acima de tudo.
Bochincho
A um bochincho - certa feita,
Fui chegando - de curioso,
Que o vicio - é que nem sarnoso,
nunca pára - nem se ajeita.
Baile de gente direita
Vi, de pronto, que não era,
Na noite de primavera
Gaguejava a voz dum tango
E eu sou louco por fandango
Que nem pinto por quireral.
Atei meu zaino - longito,
Num galho de guamirim,
Desde guri fui assim,
Não brinco nem facilito.
Em bruxas não acredito
'Pero - que las, las hay',
Sou da costa do Uruguai,
Meu velho pago querido
E por andar desprevenido
Há tanto guri sem pai.
No rancho de santa-fé,
De pau-a-pique barreado,
Num trancão de convidado
Me entreverei no banzé.
Chinaredo à bola-pé,
No ambiente fumacento,
Um candieiro, bem no centro,
Num lusco-fusco de aurora,
Pra quem chegava de fora
Pouco enxergava ali dentro!
228
Dei de mão numa tiangaça
Que me cruzou no costado
E já sai entreverado
Entre a poeira e a fumaça,
Oigalé china lindaça,
Morena de toda a crina,
Dessas da venta brasina,
Com cheiro de lechiguana
Que quando ergue uma pestana
Até a noite se ilumina.
Misto de diaba e de santa,
Com ares de quem é dona
E um gosto de temporona
Que traz água na garganta.
Eu me grudei na percanta
O mesmo que um carrapato
E o gaiteiro era um mulato
Que até dormindo tocava
E a gaita choramingava
Como namoro de gato!
A gaita velha gemia,
Ás vezes quase parava,
De repente se acordava
E num vanerão se perdia
E eu - contra a pele macia
Daquele corpo moreno,
Sentia o mundo pequeno,
Bombeando cheio de enlevo
Dois olhos - flores de trevo
Com respingos de sereno!
Mas o que é bom se termina
- Cumpriu-se o velho ditado,
Eu que dançava, embalado,
Nos braços doces da china
Escutei - de relancina,
Uma espécie de relincho,
Era o dono do bochincho,
Meio oitavado num canto,
Que me olhava - com espanto,
Mais sério do que um capincho!
E foi ele que se veio,
Pois era dele a pinguancha,
Bufando e abrindo cancha
Como dono de rodeio.
Quis me partir pelo meio
Num talonaço de adaga
Que - se me pega - me estraga,
Chegou levantar um cisco,
Mas não é à toa - chomisco!
Que sou de São Luiz Gonzaga!
229
Meio na volta do braço
Consegui tirar o talho
E quase que me atrapalho
Porque havia pouco espaço,
Mas senti o calor do aço
E o calor do aço arde,
Me levantei - sem alarde,
Por causa do desaforo
E soltei meu marca touro
Num medonho buenas-tarde!
Tenho visto coisa feia,
Tenho visto judiaria,
Mas ainda hoje me arrepia
Lembrar aquela peleia,
Talvez quem ouça - não creia,
Mas vi brotar no pescoço,
Do índio do berro grosso
Como uma cinta vermelha
E desde o beiço até a orelha
Ficou relampeando o osso!
O índio era um índio touro,
Mas até touro se ajoelha,
Cortado do beiço a orelha
Amontoou-se como um couro
E aquilo foi um estouro,
Daqueles que dava medo,
Espantou-se o chinaredo
E amigos - foi uma zoada,
Parecia até uma eguada
Disparando num varzedo!
Não há quem pinte o retrato
Dum bochincho - quando estoura,
Tinidos de adaga - espora
E gritos de desacato.
Berros de quarenta e quatro
De cada canto da sala
E a velha gaita baguala
Num vanerão pacholento,
Fazendo acompanhamento
Do turumbamba de bala!
É china que se escabela,
Redemoinhando na porta
E chiru da guampa torta
Que vem direito à janela,
Gritando - de toda guela,
Num berreiro alucinante,
Índio que não se garante,
Vendo sangue - se apavora
E se manda - campo fora,
Levando tudo por diante!
230
Sou crente na divindade,
Morro quando Deus quiser,
Mas amigos - se eu disser,
Até periga a verdade,
Naquela barbaridade,
De chinaredo fugindo,
De grito e bala zunindo,
O gaiteiro - alheio a tudo,
Tocava um xote clinudo,
Já quase meio dormindo!
E a coisa ia indo assim,
Balanceei a situação,
- Já quase sem munição,
Todos atirando em mim.
Qual ia ser o meu fim,
Me dei conta - de repente,
Não vou ficar pra semente,
Mas gosto de andar no mundo,
Me esperavam na do fundo,
Saí na Porta da frente...
E dali ganhei o mato,
Abaixo de tiroteio
E inda escutava o floreio
Da cordeona do mulato
E, pra encurtar o relato,
Me bandeei pra o outro lado,
Cruzei o Uruguai, a nado,
Que o meu zaino era um capincho
E a história desse bochincho
Faz parte do meu passado!
E a china - essa pergunta me é feita
A cada vez que declamo
É uma coisa que reclamo
Porque não acho direita
Considero uma desfeita
Que compreender não consigo,
Eu, no medonho perigo
Duma situação brasina
Todos perguntam da china
E ninguém se importa comigo!
E a china - eu nunca mais vi
No meu gauderiar andejo,
Somente em sonhos a vejo
Em bárbaro frenesi.
Talvez ande - por aí,
No rodeio das alçadas,
Ou - talvez - nas madrugadas,
Seja uma estrela chirua
Dessas - que se banha nua
No espelho das aguadas!
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Chimarrão do sem destino
Meu amigo - meu irmão,
de campo - serra e fronteira,
alma da terra e tronqueira,
da gaúcha tradição,
prepara o teu chimarrão
pra que o mundo inteiro tome.
Mate amargo! santo nome
na religião dos andejos,
os que beberam teus beijos,
não podem morrer de fome!
Poder não deve - mas pode,
não há quem dome o destino,
o índio do campo fino,
como o da barba de bode
que fez dum fio de bigode
seu código e documento,
agora é um paria ao relento,
sobra de tempo e de guerra,
porque os que domam a terra
não constam do testamento!
Tetraneto dos andantes
que domaram a lonjura,
testemunhas da escritura
das epopeias de dantes,
hoje - apenas retirantes,
sem nada - além de ser nada;
a tropilha desgarrada,
sem rumos - analfabetos
que se integram nos decretos
da história desmemoriada!
O mate é teu - desgarrado,
da esperança e da fortuna,
aqui no fogão - tribuna,
de todo o abandonado,
te vejo triste - atirado,
lembrando o pago - talvez,
e o que o destino te fez,
ao te apartar da querência,
sem quebrar - nem na indigência,
essa bárbara altivez!
Essa altivez que te resta
pode durar muito mais,
pois te sobram credenciais,
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além do ser que protesta,
a preocupação na testa
e os olhos queimando luz,
talvez pensando em gurus,
estranhos aos teus terreiros,
ou - talvez - nos entreveros
dos nazarenos sem cruz!
Atrás o tempo - a lembrança
do "não tem mais" da tapera,
na frente - a incerteza - a espera,
mas ninguém come a esperança;
o choro de uma criança,
o leite - o pão que não há,
salário - se tem - não dá,
teu viver não vale um real;
mísero inseto social
em qualquer parte onde vá!
Eu sonho - taura charrua,
te ver pelear - sem violência,
dentro da lei da consciência,
na pátria que é nossa - é tua;
sair como um livre à rua,
não pra matar ou morrer,
mas pra exigir - pra dizer
que tu mereces respeito
e - como tal - tens direito,
como os demais - de escolher!
Acredito nos escoros
que ainda firmam o garrão,
no primitivo padrão
desta querência de touros;
gringos - lusitanos - mouros,
dos quais a gente descende,
como a brasa que reacende,
dentro da cinza dormida:
uma vida - além da vida
que não morre - nem se vende!
Sangue farrapo
Foi sempre assim no campo aberto,
muitos anos guardando as linhas da fronteira
que empurrava os índios, tigres, as peleias,
castelhanos, primeiro sempre quando a pátria me chamava.
mas o descaso do império cresceu tanto
que alcei um grito de que querência e geografia
compondo um hino de legenda no meu canto
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que fez tremer de cima a baixo a tirania.
choraram mães, pelearam pais, irmãos e filhos
porque aos tiranos pouco importa a dor alheia
e andei dez anos no calvário da peleia
na guerra santa dos monarcas dos lombilhos.
até o negrinho das formigas compreendia
no pastoreio meus anseios de índio guapo
em cada nota do meu canto que dizia que eu era pátria, era Rio Grande, era
farrapo.
Levou dez anos para entender a monarquia
essa epopeia que escrevi de lança em punho
que a história presta com respeito o testemunho
que era ser pátria apenas mente o que eu queria.
Hoje quer seja funcionário, ou operário,
ou da cidade, ou da lavoura,
ou do rodeio, ante os que aviltam o trabalho
e o salário, se me obrigarem a escolher volto e peleio.
Querência tempo e ausência
No cartão de procedência,
Pouco importa onde nasci,
Busquei rumo e me perdi,
Querência, minha querência,
Desde então me chamo ausência,
Porque me apartei de ti.
Como cavaleiro andante,
Das léguas que caminhava,
Sempre que me aproximava,
Do sonho correndo adiante,
Mais me sentia distante,
Daquilo que procurava!
Quem vira mundo não para,
Nem tampouco desanima,
Há uma lei que vem de cima,
Na estrada do tapejara:
O tempo que nos separa,
É o que mais nos aproxima,
Quem vira mundo não para,
Nem tampouco desanima...
E nesse andejar em frente,
Sem procurar recompensa,
Fui vendo - na diferença,
Entre passado e presente,
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Que a lembrança de um ausente,
Tem mais força que a presença!
Já no final da existência,
Saudade - tempo e distância,
Pra conservar a fragrância,
Da primitiva inocência,
Me tornei canto de ausência,
Querência da minha infância.