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O SACRIFÍCIO ISLÂMICO NA CONTEMPORANEIDADE 1 Marta Magda Antunes Machado Andrea Lissett Pérez Fonseca “Oh, Senhor meu, agracia -me com o filho que figura entre os virtuosos, e lhe anunciamos o nascimento de uma criança que seria dócil, e quando a criança chegou à adolescência o pai lhe disse: “Oh filho meu sonhei que te degolava, o que opinas?” “Oh meu pai fazes o que te foi ordenado. Encontrar-me-á, se Alá quiser, entre os perseverantes”. E quando ambos aceitaram o desígnio de Alá e Abraão preparava seu filho para o sacrifício, então o chamamos: Oh Abraão já realizas-te a visão, em verdade, assim recompensamos os benfeitores. Certamente que esta foi a verdadeira prova e o resgatamos com outro sacrifício importante e fizemos Abraão passar para a posteridade, que a paz esteja com Abraão. Assim recompensamos os benfeitores, porque foi um dos nossos servos crentes”. (Alcorão, versículos 83-113) Após o ataque a vários pontos estratégicos da potência norte-americana, em 11 de setembro de 2001, o presidente Bush denuncia que um novo “mal” ameaça o mundo: o terrorismo. E não é que isso seja novo, uma vez que diferentes, cruéis e extremas formas de violência têm acompanhado a história da humanidade. No entanto, é radicalmente novo, como afirma Noam CHOMSKY (2001), o fato da mudança que se dá na orientação da política internacional, na direção de onde “apontavam as pistolas”. O novo “foco de maldade” é o mundo islâmico. Nesse sentido, o “terrorismo” adquire rosto, identidade e inclusive pátria. Ainda que seja sinalizado o setor radical dos “fundamentalistas”, e de organizações internacionalmente conhecidas, como é o caso da al-Qaeda, o fantasma do “terrorismo” passou a envolver o mundo muçulmano, criando em torno desses povos um imaginário carregado de valores negativos – “bárbaros”, “fanáticos”, “extremistas”, “adversários da civilização”, entre outros – que acabam por invalidá-los e condená-los diante da opinião internacional. Assim, não se pode esperar que os ataques dos chamados “homens-bomba” 2 sejam analisados de outra forma. Sua lógica responde ao paradigma do “terrorismo” e, junto deste, 1 Ensaio apresentado ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, como requisito parcial à aprovação na disciplina Teoria Antropológica II. Orientadora: Professora Dra. Miriam Pillar Grossi, Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Florianópolis, Agosto de 2004.

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O SACRIFÍCIO ISLÂMICO NA CONTEMPORANEIDADE1

Marta Magda Antunes Machado Andrea Lissett Pérez Fonseca

“Oh, Senhor meu, agracia -me com o filho que figura entre os virtuosos, e lhe anunciamos o nascimento de uma criança que seria dócil, e quando a criança chegou à adolescência o pai lhe disse: “Oh filho meu sonhei que te degolava, o que opinas?” “Oh meu pai fazes o que te foi ordenado. Encontrar-me-á, se Alá quiser, entre os perseverantes”. E quando ambos aceitaram o desígnio de Alá e Abraão preparava seu filho para o sacrifício, então o chamamos: Oh Abraão já realizas-te a visão, em verdade, assim recompensamos os benfeitores. Certamente que esta foi a verdadeira prova e o resgatamos com outro sacrifício importante e fizemos Abraão passar para a posteridade, que a paz esteja com Abraão. Assim recompensamos os benfeitores, porque foi um dos nossos servos crentes”. (Alcorão, versículos 83-113)

Após o ataque a vários pontos estratégicos da potência norte-americana, em 11 de

setembro de 2001, o presidente Bush denuncia que um novo “mal” ameaça o mundo: o

terrorismo. E não é que isso seja novo, uma vez que diferentes, cruéis e extremas formas de

violência têm acompanhado a história da humanidade. No entanto, é radicalmente novo, como

afirma Noam CHOMSKY (2001), o fato da mudança que se dá na orientação da política

internacional, na direção de onde “apontavam as pistolas”. O novo “foco de maldade” é o

mundo islâmico. Nesse sentido, o “terrorismo” adquire rosto, identidade e inclusive pátria.

Ainda que seja sinalizado o setor radical dos “fundamentalistas”, e de organizações

internacionalmente conhecidas, como é o caso da al-Qaeda, o fantasma do “terrorismo”

passou a envolver o mundo muçulmano, criando em torno desses povos um imaginário

carregado de valores negativos – “bárbaros”, “fanáticos”, “extremistas”, “adversários da

civilização”, entre outros – que acabam por invalidá-los e condená-los diante da opinião

internacional.

Assim, não se pode esperar que os ataques dos chamados “homens-bomba”2 sejam

analisados de outra forma. Sua lógica responde ao paradigma do “terrorismo” e, junto deste,

1 Ensaio apresentado ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, como requisito parcial à

aprovação na disciplina Teoria Antropológica II. Orientadora: Professora Dra. Miriam Pillar Grossi,

Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Florianópolis, Agosto de 2004.

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ao conjunto de idéias negativas que se lhe associa. Os meios de comunicação dos países

ocidentais apresentam os “ataques suicidas” ou “terrorismos suicidas” usando de maneira

equivocada muitos conceitos, como por exemplo o do suicídio, que se aplicam a outros tipos

de situação e realidade; ademais, desviam “a atenção do fim dos mesmos [ataques] e do

contexto em que se produzem, para a personalidade do atacante e o truculento de sua ação”

(VELLOSO, 2002, p. 1).

Sem dúvida, um tal discurso é ideologizado, de uso político a favor de uma das partes

do conflito, que, tomando à mão seu poder simbólico – e o conseqüente controle sobre os

meios de comunicação de massa –, desqualifica o outro como “terrorista”, desconhecendo

e/ou mascarando sua própria ação diante desses povos. Nessa perspectiva, parece inteiramente

válido questionar, como o faz Agustín VELLOSO (2002), a natureza das formas de violência

que se manifestam no contexto da confrontação, mostrando os dois lados do conflito, tanto o

das ações chamadas de “terroristas”, em que se tem enquadrado os “homens-bomba”, quanto

o das agressões das potências ocidentais aos povos mulçumanos, sob as ordens de ataques

com aviões e tanques de guerra em nome de “ações militares civilizadas e sujeitas ao controle

democrático”. De fato, revisando as cifras referentes inclusive ao número de vítimas, não

resta dúvida quanto à parte que gera mais danos e mortes de inocentes no mundo hoje.

Oportuno lembrar que o preocupante dessa situação é que não só a mídia transmite a

“imagem preconceituosa” acima apontada. Ela faz parte igualmente de estudos acadêmicos,

que acabam por ratificar esse tipo de raciocínio. Discorrendo sobre o “Mundo muçulmano”,

Peter DEMANT (2004), a despeito de fazer importante contextualização histórica, com uma

abordagem abrangente acerca dos múltiplos fatores que envolvem a civilização muçulmana,

termina sendo defensor, de algum modo, da idéia de que o Islã se mostra impotente e tem

fracassado ante aos desafios dos diferentes períodos da história, em particular da

modernidade. Para o autor, o desenvolvimento de novos meios de coexistência no mundo

deveria se pautar pela democratização das formas de governo e por uma reforma islâmica que

procedesse à interpretação histórica das fontes sagradas. Por outro lado, afirma que ao

Ocidente não resta outra saída, frente ao fundamentalismo islâmico, além da luta, da

confrontação. Sua crítica mostra-se, em parte, interessante; porém, há dois grandes vazios que 2 Ao utilizar o termo “homens-bomba” não se quer esquecer que, dentre o grupo de indivíduos que figuram nessas ações violentas, há também a participação de mulheres. No entanto, conforme a fala de alguns informantes, elas apareceriam em menor número que os homens. De qualquer forma, a expressão neste estudo quer sobretudo lembrar uma referência cunhada por aqueles que dizem “combater o terrorismo” e pela mídia que reproduz essa idéia.

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afloram partindo de um olhar menos “ocidentalizado”. O primeiro, pode-se assinalar, diz

respeito à ausência de questionamento por parte de Demant quanto aos modelos de opressão e

dominação ocidental vigentes no mundo moderno, o que o levaria a considerar, sob outra

ótica, a possibilidade dos islâmicos também enxergarem a luta como única saída. O segundo

limite aponta para a ausência de uma interpretação que parta do ponto de vista islâmico, desde

sua religião, sua cultura, sua identidade religiosa e política etc; o que se percebe, ao contrário,

é uma reflexão mediada pelo “modelo ocidental” como protótipo da verdadeira civilização e

do autêntico desenvolvimento.

Um outro estudo – este de menor pretensão – é o de Peter ANTES (2003), “O Islã e a

política”, que procura mostrar a “multiplicidade” da realidade do Islã, compreendendo o fator

político desde a “auto-imagem islâmica”. Nessa perspectiva, de alguma forma, Antes

privilegia uma “ciência da religião”, tentando resgatar elementos fundamentais da fé islâmica.

Daí sublinhar a permanência de um certo preconceito reducionista, o que chama de

“preconceito islamófobo” agindo na avaliação dos mulçumanos como “ameaça”. Em que pese

o esforço de indicar onde está, de fato, o perigo ameaçador – como o ódio racial e suas

conseqüências nacionais e internacionais – e de denunciar o drama do gigantesco número de

excluídos no mundo moderno, o autor parece cair num outro reducionismo: o da visão

triunfalista ocidental para propor soluções e “aprender a viver juntos”. Nesse sentido, lembra

Antes: “A ‘solução islâmica’ trabalha como uma varinha mágica para a solução de todos os

problemas, mas perde em brilho e clareza quando é chamada a dizer o que precisa ser

concretamente feito” (ANTES, 2003, p. 148). Poderia-se indagar: há alguma solução na

modernidade cujo “brilho” e “clareza” tem logrado “o que precisa ser concretamente feito”?

Parte-se de que visão de desenvolvimento e política para dizer o que precisa ser feito? Talvez

aqui estejam subsumidas, num discurso simplista, outras realidades tão ou mais complexas

que as da sociedade ocidental, como a tradição islâmica enquanto fator de identidade

religiosa, social, cultural etc. Com efeito, o problema que emerge dessas abordagens parece

ser a preexistência de posicionamentos etnocêntricos que ou sub-valorizam, ou reduzem

drasticamente, ou ainda desconhecem o contexto social e cultural do mundo muçulmano e, em

particular, a lógica que preside suas ações.

Por outro lado, não é intenção deste ensaio justificar ingenuamente as práticas de

alguns grupos mulçumanos, nem tão pouco defender suas argumentações a favor delas. Antes,

procura-se compreender esse universo complexo de significações, admitindo, como o acenou

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Peter FRY (2004), que cabe à antropologia permitir um exercício de “iconoplastia”, i.e.,

relativizar, distanciar-se, desrespeitar os ícones dominantes. Cabe, pois, sublinhar igualmente

que não se tem a pretensão de esgotar a análise da cultura islâmica e de sua importante

tradição, até porque esse tema constitui um desafio para as ciências sociais hoje.

Efetivamente, pretende-se interpretar o fenômeno dos “homens-bomba” indagando

sobre a natureza de seus atos no mundo contemporâneo. Em outras palavras, o que faz alguém

se “sacrificar” voluntariamente? Há uma recompensa para esse sacrifício? Qual a lógica que

preside tal ação? Existe uma eficácia simbólica e social que resulte do sacrifício? Essas entre

outras questões estão na base da reflexão aqui proposta. Para pensar esses aspectos, dentre as

possibilidades teóricas consultadas, privilegia-se a perspectiva analítica desenvolvida por

Marcel MAUSS, tanto pela incursão à sua teoria sobre o sacrifício (2001), quanto à sua teoria

sobre a dádiva (2003). Em se tratando de um trabalho fundamental para este estudo,

considera-se a abordagem maussiana como base do debate que será desenvolvido. Além

disso, o diálogo com alguns autores contemporâneos – os quais dão continuidade ao debate

inaugurado por Mauss – parece sugerir novas ênfases ou re-leituras do autor do Essai sur le

don. Assim, procura-se dialogar com Márnio TEIXEIRA PINTO (1993), Pierre BOURDIEU

(1996), Maurice GODELIER (2001) e Alain CAILLÉ (2002).

Interessante observar, aqui, quanto às leituras sobre o islamismo, um grande vazio na

produção intelectual, o que desvela a carência das vozes dos próprios mulçumanos, pois a

bibliografia disponível sobre esse tema, particularmente sobre os “homens-bomba”, é bastante

reduzida, simplista, além dos limites anteriormente acenados.3 Ora, esses elementos

inicialmente inibidores de uma iniciativa para o debate provocaram a decisão de se fazer um

pequeno exercício etnográfico considerando a existência de uma “comunidade islâmica” no

município de Lages, em Santa Catarina, cujo nascimento remonta ao ano de 1978. Assim,

como equipe, realizamos uma saída a campo, conhecendo nessa cidade a primeira mesquita

inaugurada no sul do Brasil; entrevistamos um de seus fundadores, o senhor Dabus Mohamed,

imigrante libanês que chegou ao Brasil em 1953; entrevistamos também o seu filho – Abdel

Nasser –, que tem mãe brasileira. O importante contato feito com esses informantes nos levou

ao xeique da comunidade islâmica de Florianópolis – Amin. Com ele, tivemos três encontros.

3 De modo geral, pensa-se, por exemplo, no número grande de revistas e jornais de circulação nacional que deram ênfase ao tema dos “homens-bomba”, e de outros que se relacionam a ele, à época imediatamente posterior ao 11 de setembro, preocupando-se muito mais com a divulgação de notícias “vendáveis” em torno ao Oriente Médio e aos mulçumanos, do que propriamente com uma análise baseada em estudos científicos.

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Note-se que a experiência etnográfica não apenas resultou valiosa, mas se mostrou decisiva

para o início de uma abordagem mais aprofundada acerca do sentido e da lógica dos

sacrifícios vividos pelos chamados “homens-bomba”. Destarte, é necessário dizer, o

desenvolvimento da nossa reflexão tem por base a interpretação das vozes dos “nativos” à luz

da teoria maussiana. Num momento inicial, uma sucinta contextualização da comunidade

islâmica em Lages nos permitirá situar o “lugar” da nossa interlocução. Daí a possibilidade de

analisar os elementos mais relevantes das suas falas, dos seus discursos. Por fim, fica a tarefa

de tentar unir todas as pistas e suas coerências, para entender a natureza de fenômenos como:

o sentido da dádiva e da entrega total; ou melhor, o significado das oferendas e da submissão

no Islã; a continuidade e/ou a imbricação entre elementos aparentemente dicotômicos –

humano e divino; político e religioso; corpo e alma, entre outros –, assim como a lógica e a

singularidade subjacentes ao sacrifício humano.

A comunidade islâmica em terras catarinenses

Santa Catarina é um dos estados brasileiros apontados pelo historiador Peter Demant

(2004, p. 188) como lugar de concentração dos mulçumanos. Da cidade de Lages, na serra

catarinense, nos veio a possibilidade de conhecer de perto integrantes da comunidade islâmica

brasileira. Nosso primeiro contato foi com Abdel Nasser, que prontamente aceitou o convite

para nos conceder uma entrevista, deixando-nos bastante à vontade quanto às questões que

desejávamos formular; nem mesmo o aborreceu o longo tempo de conversa – cerca de duas

horas –; pelo contrário, parecia feliz de poder falar da sua tradição familiar e religiosa,

inclusive de citar o nome de seu pai como um dos fundadores da mesquita erigida na cidade.

Abdel mostra-se muito orgulhoso da sua origem mulçumana, e não esconde a admiração pela

presença do Islã e da mesquita no Brasil, especialmente no município onde vive com a

família. Essa recepção amistosa nos faz lembrar que o Islã no Brasil está representado por

uma comunidade cujo número de fiéis “supostamente chegaria a um milhão” (Id.).

Significativa representação e, mais, significativo o clima acolhedor sob o qual se deu a nossa

chegada aos locais de pesquisa. Os mulçumanos radicados no Brasil descendem, uma parte,

de escravos negros africanos e, outra parte, de imigrantes árabes, sobretudo de libaneses – que

têm no país a maior comunidade dessa descendência no mundo – e sírios (Id.). Nesse sentido,

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é interessante perceber, na esteira do estudo de Demant, que o fenômeno da “tolerância

intercomunitária” e da “mestiçagem”4 no país empurrou esses imigrantes para uma

assimilação: “(...) aqui a sobrevivência de uma cultura islâmica específica tem que lidar com a

presença de uma cultura receptiva ‘demais’, sendo considerada por alguns ‘leviana’, em

comparação aos preceitos puritanos do islã” (Id.). Com efeito, os últimos anos foram para o

islamismo e sua comunidade brasileira momento de expansão, inclusive com o apoio

financeiro e logístico da Arábia Saudita (DEMANT, 2004, p. 188-189). Daí que nos foi

possível sentir na receptividade da comunidade islâmica essa possibilidade de convivência

pacífica entre alteridades.

Uma pergunta que nos surgiu de imediato diz respeito àquela sobre o porquê de ser o

município de Lages o local escolhido pelos imigrantes mulçumanos para viverem. Talvez

sejam oportunas algumas palavras que remontem à história5 da cidade. Sabe-se que, desde a

primeira metade do século XVI, viajantes europeus, bandeirantes paulistas e religiosos

jesuítas percorreram a serra de Santa Catarina, fazendo dessa região lugar de passagem

(QUEIROZ, 1981, p. 20). Uma nova realidade seria inaugurada com o “ciclo do ouro” –

Minas Gerais, 1700 – e as demandas do comércio daí decorrente – novas mercadorias,

transporte, alimentos etc –, colocando a serra catarinense na rota do comércio entre Rio

Grande do Sul e São Paulo. Assim, é que viriam a se fixar aí moradores de Laguna, São Paulo

e Taubaté, dentre outros, desde o ano de 1730 (COSTA, 1982, p. 34). Como caminho de

comércio, a rota dos campos serranos passaria a ser parada de tropeiros, para o trato dos

animais, ou local de permanência de alguns viajantes, que se tornariam fazendeiros em

grandes propriedades para criação de gado. Nesse contexto nasce a “Vila de Lages” no Brasil

colonial, sob as estratégias de ocupação territorial e de proteção das fronteiras; ou seja,

4 Na perspectiva da pesquisa antropológica, Roberto DA MATTA tem importante contribuição aos estudos sobre cultura brasileira e mestiçagem. A despeito de atentar para a cuidadosa análise que o antropólogo faz acerca da “legitimação ideológica” em torno da “fábula das três raças” – desvelando um “racismo à brasileira” –, parece oportuno lembrar também, no âmbito da reflexão sobre a comunidade islâmica no Brasil, que a assimilação de que fala Demant não impediu um “despertar islâmico” nos últimos anos, apontando para a possibilidade de haver uma convivência razoável das alteridades culturais no país. Para um estudo mais aprofundado dos temas acima referidos, ver DA MATTA, R. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Editorial Rocco, 2001; _____. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979; _____. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Vozes, 1981. 5 Para conhecer outros dados históricos acerca da região serrana catarinense e da cidade de Lages, ver QUEIROZ, M. V. de. Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do Contestado (1912-1916). São Paulo: Ática, 1981; COSTA, L. O continente das Lagens: sua história e influência no sertão da terra firme. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1982 (v. 1, 2, 3 e 4); BLOEMER, N. M. Itinerâncias e migrações: a reprodução social de pequenos produtores e as hidrelétricas. São Paulo: USP, 1996 (tese de doutorado em Antropologia Social).

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tratava-se também de objetivo geopolítico e militar (Ibid., p. 67). O povoado de “Lagens”

seria, então, fundado em 1766 por Antonio Correia Pinto de Macedo, que ergueria uma capela

sob a denominação de “Nossa Senhora dos Prazeres”.

Nessa história que se inscreve nas mudanças ocorridas no Brasil-colônia, outros

segmentos populacionais surgiriam apenas nas primeiras décadas do século XX, trazendo para

a região descendentes de alemães e italianos que migravam do sul do Estado de Santa

Catarina, a fim de desenvolverem atividades de agricultura familiar. Por volta do ano de 1940,

registra-se o início do ciclo de exploração da madeira com italianos oriundos do Rio Grande

do Sul. Assim, teria havido um aumento na população da cidade, que resultaria, por sua vez,

num estímulo ao comércio local. Os primeiros mascates (vendedores ambulantes) aparecem

em tal contexto, sendo reconhecidos pelos habitantes locais como “turcos” – termo carregado

de conotação pejorativa para definir os “negociantes espertos”; ou seja, tornou-se um sinal

diacrítico para marcar a diferença. Os “turcos” eram, na verdade, imigrantes libaneses

especialistas no mercado de tecidos e confecções. Esses estrangeiros deslocaram-se das terras

de origem no pós-guerra (1939-45) em busca de melhores condições de vida no Brasil.

Efetivamente, além da inserção no mercado local, os libaneses trouxeram para Lages a sua

religiosidade e a riqueza da tradição islâmica. Movidos pela fé no Deus único – Alá – e

obedientes à doutrina gravada no Alcorão por obra profética de Maomé, esses mulçumanos

cultivaram a prática religiosa de sua pátria e erigiram na cidade, no final da década de 1970, a

primeira mesquita no sul do país.

Uma visita à mesquita nos foi preparada pela fala entusiasmada de Abdel Nasser: “A

comunidade é pequena, com umas 30 ou 40 famílias. Meu pai foi fundador da mesquita no

ano de 1978, tem a placa de inauguração. Meu pai tentou reunir as famílias e trazer as origens

para cá, porque não tem intenções de voltar [para morar no Líbano]”. Quanto às práticas

religiosas, afirma: “A comunidade tem uma participação ativa. A gente vai, toda sexta-feira,

ao meio-dia, rezar; no final de semana, a gente também reúne as famílias, faz um almoço,

uma confraternização”. E acrescenta: “O nosso país [Líbano] é motivo de conversa, mas não

só isso; a gente vê todos os países árabes que integram o islamismo, porque a comunidade não

é só [a] do teu país de origem, só [a] dos teus parentes (...) o islamismo é o árabe”. Ora, a

entrada no lugar sagrado em que está o Alcorão indica que há uma tradição e uma fé muito

vivas na experiência cotidiana dessas famílias mulçumanas. Nas paredes, palavras escritas em

árabe lembram a profissão de fé no Deus único, fora do qual não existe qualquer outra

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divindade. Como adverte Abdel: “(...) ela [a mesquita] não tem santo nenhum, não tem nada;

simplesmente tem orações (...) orações na parede, que são textos do Alcorão. A gente só reza

a Deus, a gente não tem santos, não tem imagens, não tem absolutamente nada (...)”. De

arquitetura muito bela, construída com alguns cuidados especiais – voltada para Meca;

marcada pelo respeito ao calendário lunar; com um formato que observa as construções nos

países de origem etc –, a mesquita é um símbolo visível da religiosidade islâmica em Lages,

ocupando uma extensa área num ponto importante da cidade.

Interessante assinalar ainda que, ao lado da mesquita, no mesmo terreno desta, há

outras construções para uso da comunidade: uma sala obituária, uma sala de aulas –

desativada desde que o xeique foi transferido para Florianópolis –, uma residência reservada

para a autoridade religiosa, e um outro lugar pequeno, uma espécie de quitinete, onde mora

um zelador da mesquita – patrício da comunidade que recebe dela ajuda para sua

sobrevivência no Brasil. Não o entrevistamos formalmente, mas foi muito curioso o fato de

nos ter acompanhado à entrada na mesquita e nos ter explicado alguns dos seus detalhes,

como as frases extraídas do Alcorão, e algumas das práticas de sua religião. Aliás,

recomendou-nos que não pegássemos o livro sagrado à mão, pois ele é de uso exclusivo

dos/das fiéis nas orações da comunidade. Enfim, talvez se possa ver na cidade de Lages,

quando da chegada dos imigrantes mulçumanos, o que o xeique afirma preferir ainda hoje no

planalto serrano: a tranqüilidade e a prosperidade.

Uma identidade religiosa: a fé islâmica

A tentativa de compreender o fenômeno dos chamados “homens-bomba” aponta para

alguns elementos recorrentes nos discursos dos mulçumanos entrevistados. De forma reiterada

e abrangente, algo que percorre suas falas parece dar o sentido efetivo das ações desses

“homens” – na verdade, conforme os informantes, muitos jovens e também muitas jovens.

Com efeito, observa-se uma clara unicidade de pensamento, de valores e de ação, que se

poderia refletir em termos de uma identidade ou um ethos islâmico. Em que pese o relevante

contato com a comunidade islâmica de Lages, precisamos admitir a ausência de informações

suficientes para desenvolver essa temática de modo mais profundo e com a conseqüente

ênfase que a ela precisaria ser dada. Por outro lado, tendo em conta a pertinência dos dados

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obtidos para pensar essa questão contemporânea, propomos considerar certos elementos que,

a nosso ver, emergem como eixos definidores de uma “identidade islâmica”.6

Inicialmente, é possível afirmar que a base do sistema de pensamento e de ação no Islã

está formulada e gravada no Alcorão. O “livro da palavra divina” guarda a revelação do Deus

único ao profeta Maomé (570-632 d.C.). Este, segundo a tradição islâmica, grava as palavras

de Deus, decorando-as e pregando-as no decurso de sua vida. Daí o anúncio das mensagens a

seu povo e a possibilidade de serem recopiladas – parcialmente escritas – e decoradas por seus

seguidores. No entanto, a organização final do livro só foi realizada após a morte do profeta,

sendo o seu primeiro escriba, denominado Zaid Ibn Tabit, o autor dessa missão (NABHAM,

1996, p. 23). Um primeiro aspecto importante desse processo histórico em que se firma a

tradição corânica, segundo a autoridade religiosa entrevistada, o xeique Amin, diz respeito ao

fato de que o Alcorão se manteve “absolutamente fiel à revelação divina”, o que marcaria

uma profunda diferença em relação à Bíblia cristã. Nesse sentido, esclarece o xeique:

(...) [a Bíblia] não foi escrita com a mesma fidelidade e, portanto, encontrar-se-iam misturadas as palavras divinas e as palavras do profeta, assim como as interpretações dos apóstolos e as de seus seguidores. Nesse sentido, os quatro livros que compõem a Bíblia só foram oficializados no ano 330 d.C. em Roma, o que teria levado a uma distorção muito grande (AMIN, entrevista agosto de 2004).

Nessa perspectiva, nota-se que o Alcorão é concebido como a própria palavra divina –

pura, inalterada, preservada enquanto mensagem de revelação divina e em sua eficácia

salvífica. Em outras palavras, o Alcorão constitui “padrão absoluto” de preceitos e condutas

6 Sem dúvida, seria necessário discutir inclusive o tema da identidade tendo em conta as análises em torno dos conceitos que as ciências sociais têm formulado acerca dessa questão. Não obstante, ocupar-se-á, neste estudo, mais diretamente das implicações religiosas e sociais que um tal conceito sugere. Por outro lado, do ponto de vista da antropologia o conceito de identidade remete ao de etnia que, grosso modo, é assim descrito: “Na linguagem científica corrente, o termo ‘etnia’ designa um conjunto lingüístico, cultural e territorial de um certo tamanho, sendo o termo tribo geralmente reservado a grupos de menor dimensão” (BONTE;IZARD, 1992, p. 242). Para um estudo minucioso do tema, ver, por exemplo, as interessantes reflexões propostas por Richard JENKINS, 1997, p. 9-15. Nesse estudo, o autor chama “the basic social anthropological model of ethnicity” elementos relevantes para a análise do termo etnia. Segundo Jenkins (1997, p. 13-14), “ethnicity” diz respeito 1) às diferenças culturais, o que leva à percepção da identidade social enquanto dialética entre semelhança e diferença; 2) à cultura, dentro da qual ocupa lugar central; 3) à capacidade de mudança que esse “fato” tem na cultura ou nas situações em que é produzido e reproduzido; 4) às dimensões coletiva e individual que caracterizam uma “identidade social”, sendo externalizadas na interação social, e internalizadas na auto-identificação pessoal.

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(ANTES, 2003, p. 137). Por essa razão deve-se total obediência ao livro sagrado. Com efeito,

assim concebido o Alcorão, não existem dúvidas quanto às mensagens a serem guardadas,

gravadas e praticadas; não existem também múltiplas interpretações do texto; portanto, não há

necessidade de mediadores. O que há é somente o encontro direto “entre criador e criatura”

(DEMANT, 2004, p. 35). Daí o papel central da “palavra divina”, que é religiosamente

observada e adorada em todas as suas dimensões, tal como o expressa o xeique Amin: “(...)

quando se lê o Alcorão, sente-se a pureza da palavra divina, inclusive os gestos e a atitude

mudam de maneira especial”. Ademais desse elemento de “pureza” que os/as fiéis apreendem

no Alcorão, a revelação divina que o livro sagrado encerra constitui a última e genuína

mensagem de Deus, pois, a despeito de reconhecer todos os profetas e messias das tradições

judaica e cristã, o islamismo acredita que Maomé é o último “inspirado” a selar a “longa série

de profetas” (ANTES, 2003, p. 38). Efetivamente, seguindo a crença dos mulçumanos, o

islamismo é a “religião autêntica e universal que, a apesar de ter sido revelada em árabe e por

meio do povo árabe, abrange a todos e dirige-se a todos” (AMIN, entrevista agosto de 2004).

Na prática, considerando o fato de ser uma religião configurada em base histórica e

universalista, o Islã tem por fundamento a crença em um só Deus, ao qual se deve submissão

total (DEMANT, 2004, p. 27). Nas palavras do xeique, é possível apreender tal significado do

próprio termo “islã”, cujo sentido profundo e abrangente indica a importância de ser

submisso a Deus. Recorrendo à mensagem corânica, Amin lembra:

“Deus quando criou os céus e a terra disse: ‘venham a mim obedientes ou contra a vontade’. Eles responderam: ‘nós viemos submissos, obedientes ao Senhor’ [...]”. Quando você declara que é submisso à vontade de Deus, você tem que seguir sua vida com todos os seus sentidos, com todos os fatores da sua vida direcionados à Deus, obedecendo a ordem de Deus e a lei de Deus (AMIN, entrevista agosto de 2004).

Na esteira dessa reflexão, é oportuno sublinhar que, para além de uma crença ou de

uma religião no sentido estrito da palavra, o Islã – sob a compreensão da lei divina absoluta e

da submissão total a Deus – acaba por abarcar todas as esferas da vida humana. Isso significa

dizer que, ao longo dos tempos, essa religião e sua crença tornaram-se modelo de vida,

tradição guardada e transmitida de geração a geração, quer dizer, tornaram-se cultura. Assim,

é imprescindível entender a sua autoridade na condução dos diferentes âmbitos da vida dos

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indivíduos – em todas as etapas de desenvolvimento humano e educacional – e da

coletividade; na conformação das relações entre homens e mulheres; na concepção de

família; na condução da economia, do governo, da justiça, enfim, da sociedade em seu sentido

mais general (DEMANT, 2004, p. 35). Depreende-se desse aspecto o fato de que o Islã cria,

então, um sentido de totalidade da vida, na qual as diferentes esferas – a religiosa-moral, a

social, a política, a econômica, a cultural etc – individual e coletiva aparecem entrelaçadas

numa continuidade inclusiva. Ou seja, ainda que se produza uma diferenciação fundamental

entre imanente ou humano e transcendente ou divino – tal como se verifica nas chamadas

religiões universais, i.e., Judaísmo, Cristianismo e Islamismo –, o Islã parece indicar certo

“trânsito” entre tais dimensões, compreendendo uma interação que aproxima essas ordens

distintas de coisas. Em outras palavras, seguindo as intuições de Marcel GAUCHET (1985), o

transcendente se instala também no imanente. Daí que todo movimento – o social e o

individual – é determinado pela continuidade totalizadora, na qual, embora apresentem

diferenças ontológicas, individual e social constituem um todo; ou melhor, não há unidades

dicotômicas e opostas, como no cristianismo por exemplo. Considera-se, a título de ilustração,

os opostos clássicos: céu e terra; Deus e homem [no sentido de humanidade]; corpo e alma;

matéria e espírito; indivíduo e sociedade; homem [varão] e mulher; religião e política, entre

outros. Elementos que aparecem profundamente separados e até contrapostos na sociedade

ocidental de tradição judaico-cristã. Ao contrário disso, o islamismo mantêm certa

continuidade articuladora.

Com efeito, aqui talvez se possa assinalar a importante característica da tradição

islâmica, que, a nosso ver, a torna singular dentre as demais tradições, constituindo um dos

pilares sobre o qual se funda a dinâmica social e cultural dessa religião. Por outro lado, é

preciso dizer, reconhecemos a enorme polêmica que tal afirmação suscita. De fato, é bastante

complexa a tarefa de encontrar uma categoria “clara” para explicar essa discussão. De

qualquer forma, o que se deseja enfatizar é, pois, a idéia de que, embora apresente as

categorias do que chamamos de dualismo clássico, o Islã não as desenvolve como tal.

Interessante observar ainda que, nas leituras feitas sobre o islamismo, são recorrentes as

indicações de um sentido integrador entre as diferentes esferas, sobretudo aquelas concepções

que dizem respeito à continuidade entre política e religião. Ademais, apontam para o caráter

inclusivo e abrangente dessas, por assim dizer, dimensões. Entretanto, é importante frisar, não

há uma resolução, ou uma preocupação nesse sentido, quanto às questões da lógica e do

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funcionamento dos dualismos presentes ao interior desse sistema de pensamento. Isso nos

leva a afirmar, sem medo de leviandade, certa ambigüidade, que teria sido produzida sob o

legado do pensamento grego para o Ocidente, cultura com a qual os povos árabes tiveram

estreito contato. Basta ver que os mulçumanos se reconhecem sucessores dos princípios

religiosos – crenças, dogmas, teologia, moral etc – do judaísmo e do cristianismo. Mas, além

disso, sofrem influência do mundo ocidental e do seu processo de “desenvolvimento” e

“modernização”. Neste caso, verifica-se a noção de oposição dualista entre as mais diversas

dimensões. Ao tentar buscar na fala dos informantes o sentido mais profundo dessa questão,

percebemos os sinais de ambigüidade a que nos referimos acima, haja vista o fato de estar a

lógica do seu pensamento evidentemente sustentada pelo sentido dualista das coisas. O que

parece inequívoco neste depoimento:

(...) A dualidade está no universo, existe o bem e o mau, o homem e a mulher, a energia positiva e negativa, o par de cada espécie, uma completa a outra. Se não fosse assim, como a gente diferenciaria uma montanha de uma terra plana? Porque existe essa forma alta da terra que apresenta a montanha, e, se não fosse por ela, a gente não ia diferenciar um do outro. A gente consegue definir o plano quando a gente tem a montanha, e consegue definir a montanha quando a gente observa o plano” (AMIN, entrevista agosto de 2004).

Certamente, é fundamental perceber que uma coisa é ter a concepção e/ou o princípio

que sustenta essa diferenciação ontológica; e outra coisa bem distinta é que, de fato, as

dimensões “funcionem” de maneira separada e até antagônica. Daí destacar-se a singularidade

do Islã em relação ao que acontece na sociedade ocidental, cuja abismal distância entre as

diferentes esferas – corpo-humano-Estado, por um lado; e espírito-divino-religião por outro –

resulta em discursos e práticas evidentemente dualistas. Ao contrário, no islamismo procura-

se não perder o sentido de unicidade entre essas partes, integrando-as, de certa maneira, em

ordem a uma justaposição. Nesse sentido, chama especial atenção a forma como os

mulçumanos concebem a díade alma-corpo. Existem muitos elementos da tradição corânica,

por exemplo, que denotam um tratamento diferenciado para a questão do dualismo. Tendo em

conta, a título de reflexão, as punições prescritas pelas leis islâmicas, em que as penalidades

recaem sobre o físico-corporal, há um acento a ser destacado quanto à compreensão da

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exigência acerca desse tipo de castigo – oportuno lembrar que o castigo cristão incide

privilegiadamente sobre a alma – que parece se esclarecer nas palavras do xeique:

Na verdade, a dualidade é uma só, não é uma dualidade separável. Entre o corpo e alma, os estágios de relação são variáveis, uns são conscientes e outros inconscientes. Conscientes, somente essa parte aqui, nessa vida. Após a morte, a relação dessa alma com o corpo é uma relação diferente, não como aqui; aqui o corpo mais domina, por isso ele precisa de comida, bebida, disso, daquilo; a alma não precisa de nada disso. Após a morte a alma que domina. Terminada essa fase, entra em outra, que é a fase interna, de ressurreição do corpo e a integração da alma com o corpo, uma integração completa (...). Enquanto punição, vamos dizer, a lei islâmica não separa, é na tese dos dois ao mesmo tempo; no caso, por exemplo, de cortar a mão do ladrão, o que significa? Ela tem um efeito material e um efeito educativo à própria alma espiritual (AMIN, entrevista agosto de 20004).

Nessa perspectiva, sob a mesma lógica da continuidade e/ou articulação das

“dualidades inseparáveis”, estabelece-se uma estreita e, na maioria das vezes, inseparável

relação entre o político e o religioso. Na verdade, essa separação radical nunca existiu dentro

da comunidade islâmica, uma vez que qualquer instância social, incluindo a esfera política, se

deve reger, em princípio absoluto, pela submissão total à “palavra divina” do Alcorão. Do

mesmo modo, os conceitos de moral, ética e justiça dessa tradição estão perpassados pela

lógica religiosa da continuidade. Daí ser possível perguntar: até que ponto se pode falar da

relação entre política e religião quando, de fato, fazem parte de uma mesma realidade e

dinâmica?

Numa outra ponderação, considerando o mesmo elemento acima, pode-se pensar a

dualidade indivíduo e sociedade. Tal reflexão é permitida, na medida em que os princípios

religiosos do Islã apontam inegavelmente para o sentido do social, do coletivo e, portanto, da

solidariedade interna aos membros da comunidade islâmica, valorizando sobremaneira esse

aspecto. Como afirma Peter Antes (2003, p. 109), o ideal da educação do islã ensina os

indivíduos a priorizarem a sociedade e seus interesses. Desse modo, o indivíduo tende a

subtrair-se, sem desaparecer, mas dando lugar a uma noção do ser social, bastante afastada do

protótipo individualista da sociedade ocidental. Esse preceito – do valor social –, como muitos

outros que são considerados no Islã, mostra algo que parece bastante significativo dentro do

processo de construção dessa tradição: a inserção no mundo cultural em que se produz a

revelação – a Arábia, território habitado por tribos nômades, pastores e comerciantes, cujos

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valores estão profundamente ancorados no vínculo familiar e comunitário, e resguardados por

princípios como a honra, ligada, por sua vez, ao controle da sexualidade feminina (DEMANT,

2004, p. ). Há, por conseguinte, uma configuração do mundo islâmico por sobre uma antiga

tradição cultural, que se perpetua através do “livro sagrado” – o Alcorão – que se mantém fiel,

como já foi observado, à revelação de Deus desde suas origens. Por outro lado, seguindo a

intuição de Clifford GEERTZ (2000, p. 107), é importante assinalar, esse conjunto de

princípios e de valores não teria “transcendência” se não estivesse ligado/unido a uma forte

prática ritual, cujos estados anímicos, cujas motivações e concepções gerais da existência se

encontram e se reforçam. Tal aspecto é fortemente confirmado na religiosidade islâmica

(DEMANT, 2004; ANTES, 2003; NABHAM, 1996), haja vista que os pilares dessa tradição

estão cimentados em práticas rituais e por meio delas: a fórmula da confissão, as orações

diárias, o jejum, a esmola e a peregrinação à Meca.

Dentre as práticas rituais, as orações ocupam lugar central na vida religiosa e

quotidiana dos mulçumanos. De acordo com o xeique Amin, elas são “uma manifestação

verbal de adoração a Deus”. E acrescenta: “As cinco orações por dia fazem com que o

muçulmano lembre da presença de Deus na sua vida, no seu trabalho, na sua profissão, em

todas as horas do dia; por isso [os mulçumanos] começam antes do nascer do sol, vão até a

hora de dormir” (AMIN, entrevista agosto de 2004). Além dessa rotina de rezas, faz-se um dia

de reunião comunitária para a oração coletiva, que acontece às sextas-feiras ao meio-dia. Por

sua vez, o mês do jejum é igualmente uma celebração coletiva em que se celebra o

recebimento do Alcorão; os fiéis se abstêm, desde o nascer do sol até o pôr-do-sol, de práticas

como a relação sexual, a ingestão de bebidas e comidas etc (DEMANT, 2004, p. 27). É, pois,

um ritual fundamental para a “disciplina de auto-controle e de purificação interior” (ABDEL

NASSER, entrevista julho de 2004). Ao mesmo tempo que concorre para uma auto-disciplina,

o jejum reforça os laços comunitários, motivando durante esse período os encontros familiares

e as confraternizações, que se realizam a partir do anoitecer até a madrugada.

Com relação à esmola, ela é considerada “um dever de todo muçulmano, de ajudar os

que necessitam, como um ato de caridade”. Conforme as informações do xeique, essas

demonstrações voluntárias de caridade encontram eco também no imposto anual que o

mulçumano oferece à sua comunidade. Trata-se de uma contribuição obrigatória destinada aos

gastos e serviços da mesquita, cuja aplicação é feita de acordo com o tipo de ingressos (?) dos

fiéis (AMIN, entrevista agosto de 2004). Por outro lado, os mulçumanos observam a

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orientação corânica referente à peregrinação ao lugar sagrado, a cidade de Meca. Mesmo que

tal observância guarde um caráter esporádico e/ou eventual, sabe-se que se trata de um ato

muito relevante para a vida religiosa dos/das fiéis. Assim, considerada como prática

obrigatória, ao menos uma vez na vida, a peregrinação é mais um grande testemunho de

submissão a Deus e às leis islâmicas. Os indivíduos que dispõem de recursos financeiros –

não só para hospedar-se na cidade, mas especialmente para deixar sua família amparada no

tempo em que estiverem em peregrinação –, devem cumprir religiosamente esse preceito.

Nesse sentido, por suas dimensões, a peregrinação adquire um inegável tom apologético

constituindo uma “assembléia universal que reúne os muçulmanos do mundo todo, de todas as

raças, de todas as cores, de todas as línguas; de todos os cantos da terra se reúnem

[mulçumanos] em um lugar só, onde adoram um Deus único” (?). Na prática, a peregrinação

revela uma forte carga sentimental e espiritual, convertendo-se numa viajem de resgate e de

reencontro com a “identidade de fé do monoteísmo”, em que se faz demonstração de crença,

de obediência e de entrega a Deus. Segundo Abdel, muitos idosos morrem em peregrinação;

mas, para eles, isso significa “um ganho na loteria”. Quando indagamos o senhor Dabus

Mohamed – pai de Abdel – sobre a sua recente experiência de ir, em peregrinação, à Meca,

prontamente confirmou emocionado o comentário de Abdel:

É outro mundo. A gente pensa que está no céu; aquela multidão de gente, aquele povo todo, aquela mesquita maravilhosa. A gente vai lá, volta com o coração engrandecido, a gente vem diferente de lá (DABUS, entrevista julho de 2004).

Finalmente, pode-se observar, tanto os princípios, as normas e os valores do Islã,

quanto as suas práticas rituais e sua disciplina religiosa estão diretamente relacionadas com a

entrega a Deus. Tudo é oferenda divina, no sentido de demonstrar-se fé e submissão ao Deus

único, cuja fórmula da confissão inscreve a sua vontade como a soberana destinação de toda a

humanidade. Essa adoração permanente e total a Deus está motivada por um ideal ou uma

utopia que se estende, ao longo da vida, à experiência humana dos/das fiéis, dando-lhe

sentido, e preparando-os para a “salvação” plena – individual e coletiva –, cujo prêmio é a

justificação eterna no paraíso, na eternidade, após o dia do juízo final, junto do Deus único.

Nesse sentido a fórmula da confissão acompanha o/a fiel que, em primeiro lugar, manifesta

verbalmente a sua fé: “A crença é a base de toda a nossa visão (...). A palavra do testemunho

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da unicidade de Deus, a palavra do testemunho de que neste universo existe um único Deus,

não existe outro Deus (...)” (AMIN, entrevista agosto de 2004).

Pensando o sacrifício e a reciprocidade na tradição islâmica: um diálogo com Mauss

O sacrifício e sua lógica da entrega total

Até o momento, tem-se buscado um caminho que tenta trazer à superfície desta

reflexão uma visão mais fidedigna dos princípios e valores da tradição islâmica, que, a nosso

ver, condicionam a experiência dos chamados “homens-bomba”. Ora, é preciso aqui

aprofundar o fenômeno descrito, ocupando-se com sua lógica e com a configuração da

totalidade de seu sentido. Para alcançar esse intento, é necessário definir, inicialmente, uma

categoria que se considera como a mais apropriada para analisar esse fenômeno. Na

introdução deste estudo, recusava-se o termo “suicida”, porque este se afastaria da natureza do

ato em questão; ou seja, entende-se que não se trata apenas de “dar morte a si próprio”, tal

como é compreendido no mundo ocidental. Há um sentido muito mais profundo, pois, além

de “dar morte a si próprio”, essa ação se realiza contra certos objetivos político-militares, o

quer dizer: sai da esfera estritamente pessoal. Por outro lado, não se pode igualmente reduzi-

lo a um “ato terrorista”, posto que tal expressão está carregada de ideologia a serviço das

potências ocidentais, para invalidar as práticas vistas como “perigosas” para os seus

interesses; ou melhor, é um termo usado de maneira unilateral.

Para além dessas denominações – arbitrárias e parciais –, é preciso admitir, não parece

tarefa fácil a de classificar um evento dessa natureza, que foge das categorias com as quais

usualmente são analisadas as ações bélicas. Dificuldade esta que se radica, fundamentalmente,

no fato de que não se pode enquadrar esse fenômeno dentro de uma só esfera, porque ele

apresenta características não apenas de uma ação político-militar, mas se reveste

especialmente de um inegável sentido sócio-religioso. Daí a indagação: como, então,

denominar um ato dessa natureza, lidando com sua aparente ambigüidade e seu sentido

“multívoco”? A despeito de notar uma aparente ambigüidade, nas conversas com os

informantes, sobretudo, destacam-se importantes elementos indicando que o eixo dessa ação

poderia estar no campo religioso, cujo substrato fundamenta toda a vida e o pensamento da

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comunidade islâmica. Essa idéia aparece, de algum modo, nos depoimentos recolhidos,

evidenciando claramente o sentido religioso desse ato. Ou seja,

Não, não [se] encontra violência nenhuma no Alcorão, mas ele – o “homem-bomba” – pensa que, dando a vida dele por uma boa causa, ele vai ganhar o paraíso. Então, o sentido de matar é outro, é uma entrega. O suicídio para ele não é um suicídio. É um sentido diferente de fazer tua missão e ir para o paraíso (ABDEL NASSER, entrevista julho de 2004).

Vamos ampliar a visão desse sentido dos “homens-bomba”. Em qualquer revolução sempre haverá uma teoria e uma filosofia por trás, certo? E essa revolução sempre tem seus adeptos, que a teoria junta eles, une eles no mesmo objetivo; a favor desse direito, eles conseguem se auto-dominar, sacrificar e desprezar suas vidas em benefício do bem comum. Isso não somente referente ao Islã, até qualquer Estado, qualquer país, qualquer exército; ele tenta formar grupos ou células dessa natureza, para a defesa da pátria e do Estado. No islamismo o sentido disso é diferente. Eu não quero justificar o que está acontecendo, nem tão pouco criticar, porque isso aí é um outro assunto. Mas nós temos uma vida e temos bens, isso que nós possuímos dessa vida. Não posso pegar a tua vida nem também pegar seus bens, isso é um direito teu. Isso para um muçulmano não me pertence; aliás a qualquer um ser humano, seja muçulmano ou não, verdadeiramente não lhe pertence essas duas coisas. Isso aí pertence a Deus. Matar uma pessoa é um crime que Deus declara no Alcorão, que aquele que mata uma pessoa intencionalmente é como se tivesse cometido o pecado de matar todos os humanos e ele terá um castigo [...]. Mas, no caso, quando o assunto é defesa da sua pátria, da sua religião, da sua dignidade e da sua fé, então você oferecerá isto com a maior gratidão e a maior satisfação a Deus [grifo nosso] (AMIN, entrevista agosto de 2004).

Um outro aspecto que chama fortemente a atenção nos depoimentos refere-se à forma

como os informantes diferenciam a imolação dos “homens-bomba” daquela resultante de

outras práticas tomadas como semelhantes às deles – como a morte pela pátria ou por ideais

similares a estes. Para os mulçumanos, há “um sentido diferente”. E, entende-se, essa

diferença advém de uma “agregação” especial do simbólico: a “transcendência”, a busca do

“além”, fora do mundo humano, que se dinamiza e se concretiza por meio da “entrega” ou da

“oferenda de si mesmo” a Deus. Nessa perspectiva, propõe-se a noção de sacrifício para

categorizar esse ato, uma vez que ela se afigura como teoria satisfatória à compreensão dos

fenômenos a que se refere. De qualquer modo, é oportuno reconhecer, não se resolve todo o

problema levantado; pelo contrário, partindo desse novo elemento, surge uma série de

perguntas: trata-se de que tipo de sacrifício? qual a lógica interna a ele? que elementos

culturais o explicam?

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Com efeito, a aproximação da abordagem de Marcel Mauss e de Henri Hubert (2001)

mostra-se importante para o presente estudo. Os autores propõem um interessante marco

analítico, que permite entender a “lógica” do sacrifício. Segundo os pesquisadores, embora

haja uma diversidade de rituais sacrificais, existe uma prevalência de “unidade de ação”, que

consiste em:

(...) estabelecer uma comunicação entre o mundo sagrado e o mundo profano por intermédio de uma vítima, isto é, de uma coisa destruída no decorrer de uma cerimônia (MAUSS e HERBERT, 2001, p. 223).

Na esteira dessa abordagem, o sacrifício cumpriria o papel de mediação entre o mundo

“sagrado” e o mundo “profano” (TEIXEIRA, 1993, p. 167), estabelecendo contato entre essas

“duas ordens de realidade” e, por conseguinte, mobilizando certas forças que são necessárias

em determinados contextos sociais. Esse seria, pois, o princípio que determina a lógica do

sacrifício. Oportuno lembrar que o seu conteúdo muda no decurso da história, passando de

uma noção mais prosaica e materialista – “obter dos deuses benefícios muito precisos” – a

uma mais espiritual, referida a fins transcendentes – “salvação das almas”, “imortalidade”

“paraíso” etc –, assim como o concebem as grandes religiões históricas (MAUSS, 2003, p.

198; CAILLÉ, 2002, p. 196).

Por sua vez, os “homens-bomba” fariam parte desse último tipo de sacrifício, que se

orientam pelos fins transcendentes. Assim, da mesma forma que atua todo sacrifício, eles

realizariam uma mediação entre o mundo profano e o sagrado. Aproximam, pois, esses dois

planos da vida. Por meio deles próprios, de sua imolação – ato intenso e contundente –, fazem

essa ponte de comunicação e interação entre as partes. Nesse sentido, eles são vítimas e

sacrificantes ao mesmo tempo; no processo de “consagração”, ambos os elementos estão

concentrados neles, à medida que mudam de natureza: de um estado profano passam ao

domínio do sagrado (MAUSS, 2003, p. 151), ingressando numa nova categoria: a dos

mártires. Esse protótipo seria, então, algo com que o coletivo estabelece formas de

identificação e/ou projeção partindo de suas próprias carências e necessidades. Nessa

condição singular eles adquirem poder – o poder dado pelo “sagrado” e o “transcendente” –,

que transmitem e irradiam ao mundo profano. Aí se radica sua força e “eficácia simbólica”.

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Reciprocidade: a dimensão da troca

Em se considerando os elementos abordados até o momento, efetivamente, é possível

inferir, quanto ao rito sacrifical, que esse fenômeno comporta uma necessária dinâmica de

entrega e retribuição, de mobilização de forças e tributos, cuja dimensão da troca permite

certa inflexão na presente análise. De fato, a sugestão de Marcel Mauss, desde a época em

que foi escrita a teoria sobre o sacrifício, no ano de 1899, aponta para os elementos aqui

retomados à luz de sua abordagem acerca da correlação entre rito sacrifical e dinâmica da

reciprocidade. Recorrendo às palavras de Mauss e Hubert, temos:

Se o sacrificante dá alguma coisa de si, ele não se dá; ele se reserva prudentemente. É que, se ele dá, em parte é para receber. O sacrifício se apresenta, sob um duplo aspecto. É um ato útil e é uma obrigação. O desinteresse se mistura aí com o interesse. Daí por que com tanta freqüência foi tão amiúde concebido sob a forma de contrato. No fundo, talvez não haja sacrifício que não tenha alguma coisa de contratual (Mauss e Hubert, 2001, p. 225).

Ora, no Ensaio sobre a Dádiva (1924), Mauss não aprofunda essa questão, mas tem-se

uma clara reiteração da idéia do contrato preexistente no rito sacrifical. Afirma o autor que “a

destruição do sacrifício tem precisamente como finalidade ser uma doação que há de ser

necessariamente retornada” (MAUSS, 2001, p. 172). Por outro lado, no âmbito dos estudos

contemporâneos, muitos autores têm proposto o debate em torno ao tema da reciprocidade e

do sacrifício, dando continuidade à reflexão inaugurada por Mauss. Nessa perspectiva, alguns

matizes devem ser levados em conta. Um primeiro estudo a ser lembrado é o de Maurice

GODELIER (1996). Discorrendo sobre o sentido do sacrifício, o autor o compreende como

dívida eterna dos humanos para com Deus, para a qual não existe retribuição possível; logo, a

lógica da reciprocidade, em termos maussianos, não seria aplicável nesse caso. Nas palavras

de Godelier:

A humanidade encontra-se em dívida, portanto, desde sua origem, em relação às potências que deram forma e deixaram como herança o mundo em que

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vive, e esta dívida é impagável. Nenhum contradom pode ser “equivalente” a ela, pode cancelá -la (GODELIER, 2001, P. 279).

Um outro acento interessante é aquele proposto por Allain CAILLÉ (2002).

Diferentemente de Godelier, esse autor procura deslocar a discussão acerca do sacrifício para

o campo teórico da reciprocidade/dádiva. Ao indicar o limite presente à teoria do sacrifício de

Hubert e Mauss, Caillé observa que esta deveria ser reinterpretada à luz do Essai sur le don –

a obra maussiana de 1924. Daí que sua proposta é a de reformular tais noções traduzindo-as

para a linguagem do dom (CAILLÉ, 2002, p. 166). Depreende-se da abordagem desses

autores certa polarização em torno à complexa questão do sacrifício. De um lado, a ênfase no

sentido da dívida eterna, sem possível retribuição; de outro lado, a ênfase no sentido da

reciprocidade, entendida como o movimento do dom e contradom. Para além da polarização,

busca-se, assim, situar o debate no nível do diálogo entre o campo teórico do sacrifício e o da

reciprocidade, compreendendo-os segundo uma singularidade ontológica que os diferencia e,

simultaneamente, os coloca diretamente imbricados. Nessa perspectiva, a análise de Marcel

Mauss parece definir com clareza a existência dos dois campos teóricos, como já acenado

anteriormente. Não obstante, como bem sublinha Teixeira Pinto (1993, p. 168), o tema do

sacrifício acabou sendo “esquecido” inclusive pelo próprio Mauss, que teria relegado a

segundo plano o seu “problema original”. Segundo o autor, essa tarefa apresenta-se como um

dos desafios para a antropologia: retomar e prosseguir a análise de alguns dos problemas

colocados por Mauss.

Quanto à perspectiva de análise aqui adotada, o material etnográfico recolhido sugere

a interpretação do sentido de “reciprocidade” implícito na imolação dos “homens-bomba”. De

maneira inequívoca, aparece em primeiro plano a demonstração de abnegação, de entrega, de

“submissão absoluta” a Deus e à sua vontade. No entanto, por mais altruísta que se mostre tal

ato, ele não está isento de interesse. Ou seja, há uma busca explícita de compensação. Uma

aspiração que, como os mulçumanos mesmos sinalizam, não pertence à ordem do material

nem do imanente e/ou imediato:

Por vontade própria ninguém quer morrer. Quem gosta da morte? Ou, então, quem gosta de tirar todos os seus bens e entregar para outro? Mas os

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companheiros do Profeta fizeram isto por seu livre arbítrio. Vendo que atrás deste ato há uma grande recompensa. A recompensa é a satisfação de Deus e seu contentamento com a pessoa, a absorção do castigo infernal, o lugar no paraíso. A salvação. Com certeza, ele não espera a recompensa de alguém aqui na terra. O que ele espera da sua vida? O que ele espera em troca? Fazer um monumento e colocar no meio da praça? O que vai adiantar isso para ele? Vai devolver sua vida? A única coisa que a pessoa espera, nesse sentido, é o sucesso na outra vida (AMIN, entrevista agosto de 2004).

Na prática, entretanto, tal “reciprocidade” referente à comunicação com a esfera do

sagrado não é a mesma que se verifica no interior das relações sociais. Pode-se observar uma

mudança significativa na natureza da relação que se estabelece, quanto às partes envolvidas,

quanto aos objetos que se trocam, ao seu direcionamento e ao tempo em que a troca se efetiva.

Essa espécie de re-configuração dos elementos envolvidos na referida relação determina-se

fundamentalmente pela distância ontológica dos seres que se relacionam: de um lado estão os

seres humanos – pertencentes à esfera do imanente; e, de outro, está o Deus único –

pertencente à esfera do transcendente. A situação oriunda da comunicação entre as partes

coloca ambas as esferas num plano de verticalidade; ou melhor, trata-se de uma relação

assimétrica, de caráter hierárquico, entre um ser superior e suas criaturas (CAILLÉ, 2002, p.

168; GODELIER, 1996, p. 290). Destarte, o tipo de troca que se estabelece adquire uma outra

dimensão. Torna-se mais acentuada e contundente. Por um lado, há uma exacerbação da

“dimensão da abnegação”; e, por outro, uma amplificação ao máximo do interesse calculado”

(CAILLÉ, 2002, p. 168). Assim, na esteira dessas idéias e tendo em conta o que o xeique

afirma acerca do sacrifício, conforme citação acima, compreende-se a ação do “homem-

bomba” como um ato maximizado de entrega, cuja oferenda é o dar-se a si mesmo, e sem

reservas, a Deus. Pela oferta de sua própria vida, espera receber, em troca da entrega total, um

bem também supremo, absoluto, sem medida de comparação: o paraíso – a salvação eterna.

Observa-se, desse modo, uma relação evidentemente hierárquica, que encerra uma

imprescindível dimensão de poder: os humanos se submetem inteiramente ao mandato divino,

à vontade de Deus, à sua lei. Nesse sentido, ainda que pareça uma troca eventual e desconexa,

ela está, na verdade, inserida na lógica da reciprocidade, conservando uma linha de

continuidade a ela, muito embora se situe numa escala diferenciada de tempo, e, por sua longa

duração, abarque sujeitos de diferentes épocas e gerações. Importante ressaltar que essa troca

não se inicia com a imolação dos “homens-bomba”, ela é contínua a um movimento que tem

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suas origens, como o afirma Godelier (2001), na dívida original dos humanos para com os

deuses criadores do mundo em que vivem. Contudo, à diferença do que propõe o autor, esse

dom primogênito é retribuído por meio da fé e da demonstração permanente do ato de

submissão ao Deus todo poderoso. Daí que, na prática da religião islâmica, a comunidade de

fiéis incorpora à sua experiência cotidiana um significativo sentido da ação ritual, que se

estende aos diferentes âmbitos da vida humana. Portanto, constata-se a existência do contra-

dom humano; porém, este é de menor categoria, i.e., inferior ao dom divino. Todavia, não

deixa de se constituir numa contraprestação. Precisamente na diferença de “categorias” se dá

cimentação da relação hierárquica entre as esferas divina e a humana – oportuno assinalar que

Mauss procura mostrar esse elemento quando se refere às relações hierárquicas estabelecidas

por meio dos dons “agonísticos”. No sentido proposto por Mauss, a magnitude dos dons,

oferecidos e destruídos, é uma marca clara de status social e de relações de poder. Em suas

palavras:

Por meio desses dons [os agonísticos, de destruição e perda de grandes riquezas] se estabelece uma hierarquia entre os chefes e seus súditos, entre os súditos e seus mantenedores. Dar é sinal de superioridade, de ser mais, de estar mais alto, de magister; aceitar sem retornar, ou sem retornar mais, é subordinar-se, tornar-se cliente e servidor, fazer-se pequeno, escolher o mais baixo (MAUSS, 2003, p. 255).

Nessa perspectiva, a imolação dos “homens-bomba” emerge como uma prova maior

da submissão absoluta, que faz parte, por conseguinte, da relação de reciprocidade com a

esfera do divino. No entanto, nota-se, essa troca não se restringe ao nível do individual, pois a

pessoa que se sacrifica nesse ato não o faz motivada por uma causa pessoal, nem em busca de

uma recompensa individual. Ela entrega sua vida por uma causa social, em “defesa da pátria,

da sua religião, da sua fé”, e igualmente está esperando uma recompensa maior: a “salvação

de toda a humanidade”. Assim, a sua ação incorpora o coletivo, inserindo-o na dinâmica da

reciprocidade, no caráter extensivo da dádiva e em seu retorno necessário. De fato, ativa-se o

ciclo da reciprocidade em diferentes tempos e corporeidades.

Por outro lado, nessa noção de reciprocidade, há o elemento do duplo caráter do

referido fenômeno. O que significa dizer que se trata de um ato “voluntário, aparentemente

livre e gratuito”; e, ao mesmo tempo, “obrigado e interessado” (MAUSS, 2001, p. 157).

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Efetivamente, o que se coloca, aqui, em questão é a natureza aparentemente desinteressada,

altruísta e voluntária do ato de dar, mas, por trás disso, há um “interesse” e um sentido de

“obrigação”. Sendo assim, como entender esse sentido da obrigação em algo que se apresenta

como um ato livre? De acordo com a abordagem maussiana, é preciso olhar para o conjunto

de forças que atuam no universo social enquanto influenciam e delimitam igualmente o agir

individual – as alianças sociais, as relações de poder, a força do simbólico, os valores morais,

entre outros. Uma noção pertinente a esse tema, e que parece circunscreve-lo de forma eficaz,

é aquela desenvolvida por Pierre Bourdieu: a noção de habitus. De acordo com o autor:

Essa economia muito especial [a da reciprocidade] se apóia, ao mesmo tempo, em estruturas específicas e em estruturas incorporadas, disposições – habitus – que essas estruturas pressupõem e produzem ao lhe oferecer suas condições de realização. (...) Isso significa que o dom como ato generoso só é possível para agentes sociais que adquiriram, em universos onde são esperadas, reconhecidas e recompensadas, disposições generosas adaptadas às estruturas objetivas de uma economia capaz de garantir-lhes recompensa e reconhecimento (BOURDIEU, 1996, p. 9).

Procura-se, pois, considerar que o universo da tradição islâmica, já apresentada

anteriormente, fornece o contexto mais amplo das estruturas por meio das quais se

reproduzem essas disposições determinantes das ações que empreendem os chamados

“homens-bomba”. Tendo em conta alguns aspectos referentes a essa tradição, compreende-se

o dado da submissão como elemento central da doutrina religiosa, que perpassa todas as

esferas da vida dos muçulmanos, produzindo neles uma forma de conduta, de raciocínio e de

se relacionar e de agir diante do mundo. Com efeito, basta lembrar o fato de que os cinco

pilares do islamismo assinalam práticas de oblação a Deus. Assim, partindo da fé incorporada

desde cedo aos costumes de família, vê-se configurar o habitus nas diversas dimensões da

vida pessoal e da vida social. Como assevera Abdel Nasser: “(...) lá [no Oriente Médio] é

outra coisa. Desde cinco ou seis anos uma criança na escola já aprende a ler o Alcorão; aqui

não é desse jeito. A grande maioria desses países árabes tem o Alcorão no ensino, tem que

aprender a memorizar” (entrevista julho de 2004).

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Há toda uma situação colocada pela prática religiosa dos fiéis que cria as condições

para o exercício da obediência, da submissão e da entrega total a Deus. Os ensinamentos do

Alcorão e os documentos religiosos produzidos ao longo dos tempos não apenas introduzem

os fiéis no âmbito da vontade de Deus, mas os informa sobre as leis por meio das quais ele

continua agindo nas suas vidas individuais e sociais: na religião, na política, na economia, na

sociedade etc. Tal é a lógica que alimenta a obediência oferecida a Deus por Abraão. Também

ele recebe a palavra e a aceita incondicionalmente. O resultado de sua entrega é o

fortalecimento da sua fé, mas também dos benefícios que toda a humanidade receberia por

meio dessa entrega. Daí ser chamado o “pai” da fé. Nesse sentido, o coletivo é o principal

beneficiário da entrega. Abraão não teria imolado seu filho simplesmente por um capricho de

Deus, ou, menos ainda, para salvar-se a si mesmo, mas pela eficácia da entrega, que está

diretamente ligada à vontade de Deus com quem faz aliança por meio de sua livre decisão.

Enfim, esse contexto cultural islâmico, marcado pelo sentido religioso, está criando e

recriando na prática quotidiana um estilo de ser, uma disposição para se comportar e agir que

basicamente está orientada por sua atitude de entrega total a Deus. Uma entrega que está

alimentada por grandes ideais. Em primeiro lugar, a salvação eterna, o paraíso. Em seguida, o

que Demant (2004, p. 329) chama de “utopia islâmica”, que é a visão e a busca de uma

sociedade justa. Nessa perspectiva, os “homens-bomba” são a representação simbólica e ritual

maximizada dessa disposição de “entrega” em ordem à satisfação dos ideais de salvação e

justiça social. Observe-se o seguinte depoimento, que é bastante representativo dessa idéia:

Aquele que está lutando por um ideal é o mesmo que você [ao] defender-se contra um agressor para proteger sua vida, mas você está fazendo este ato porque você está cumprindo uma ordem de Deus. Acredita em Deus e acredita que este agressor irá para o inferno, irá ser castigado e você, ao se defender e matar, não será punida. Você acredita que Deus te deu o direito de proteger sua vida como a vida do próximo. Se o próximo tirar sua vida, você está fazendo uma coisa pela causa de Deus, porque esta vida não lhe pertence, mas pertence a Deus. A pessoa que está lutando num país onde ele está vendo sua pátria violada, sua mulher, seus filhos, seus bens, sua riqueza, sua casa está sendo destruída, sua vida está sendo tirada, ele está lutando não por causa somente disso, mas também porque Deus deu o direito de lutar para proteger estas coisas, porque a construção da vida humana é através da proteção destas coisas. Segundo o Alcorão, aquele que mata uma pessoa é como [se] tivesse matado toda a humanidade, aquele que dá a vida para alguém, dá a vida para toda a humanidade (AMIN entrevista agosto de 2004).

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Finalmente, parece imprescindível sublinhar que, independentemente do juízo moral

frente a esse ato, bem como das distintas posições que existem dentro do mundo islâmico e

fora dele, torna-se de fundamental importância a reflexão em torno de um fato cuja conduta

está intrinsecamente ajustada à lógica cultural e religiosa em que crescem e se educam os

homens e as mulheres-bomba. Dito de outra maneira, mais claramente, é uma possibilidade de

escolha, “normal” e/ou “plausível”. Ou ainda, trata-se de uma disposição apreendida ao longo

de suas vidas, que se ativa frente a determinadas condições sociais e políticas:

A questão política e religiosa no islamismo é o seguinte: é muito junta; junta no sentido [de que] o islamismo quer construir não um Estado religioso, no sentido de religiosidade, mas quer construir um Estado justo, um Estado puro, que tenha harmonia, que tenha solidariedade, objetivo superior e sublime acima de todos os interesses de cada um, que é adorar a Deus. E essa adoração faz com que todos, tanto o governante como o cidadão, perante a lei e perante Deus, sejam iguais. Direitos iguais e obrigações iguais (AMIN entrevista agosto de 2004).

CONCLUSÃO

Algumas considerações, ao final deste estudo, devem reconhecer primeiramente a

complexidade da abordagem desse fenômeno, que moral e politicamente tem inúmeras

implicações. De modo especial, os obstáculos surgem quando são exigidos princípios como o

da “objetividade” e da “neutralidade” científicas. De fato, parece muito difícil não assumir o

“lugar” que torne explícito o recorte feito – ou melhor, o “lugar” do qual se fala. Com efeito, a

nossa aproximação junto aos representantes da comunidade islâmica em Santa Catarina se dá,

como se sabe, numa perspectiva ocidental de análise dos “nativos”. Entretanto, lembrando a

reflexão de Eduardo VIVEIROS de CASTRO (1998)7, fizemos o esforço de compreender a

7 Ao falar sobre a atividade antropológica, o autor propõe a superação do jogo discursivo que coloca o “antropólogo” em situação de vantagem em relação ao “nativo”. Neste sentido, sugere tomar a todos os envolvidos nessa atividade por “antropólogos”, o que significa admitir uma relação de conhecimento entre “observador” e “observado” operando uma modificação recíproca que se constitui por “atualização de virtualidades insuspeitas do pensar”. Assim, a idéia de “relacionalismo” (perspectivismo para Deleuze) corresponde à afirmação de que “a verdade do relativo é a relação”. Com efeito, a “experiência antropológica” se torna efetiva não pela explicação do mundo do outro, mas pela possibilidade de multiplicar o mundo do próprio

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perspectiva do “outro”, sob o seu olhar, e pensá-la numa interlocução com a tradição de

pensamento ocidental. Nesse sentido, o diálogo com Marcel Mauss mostra-se eficaz. Em

outras palavras, o nosso “lugar” privilegia uma interpretação voltada para o confronto a certos

preconceitos e ao moralismo dominantes na visão que se tem construído no Ocidente acerca

de tal fenômeno. Tentamos captar a lógica e o sentido que os mesmos “nativos” dão a esse

fato. Por outro lado, seguindo a contribuição de Mauss, procuramos tomar à mão alguns

elementos da sua teoria, para explicar o sacrifício e a reciprocidade partindo da pertinência

desses temas na experiência de campo e nas leituras feitas sobre a tradição islâmica.

Oportuno refletir que essa aproximação poderia se dar de diversos modos, sobretudo

porque há um debate colocado pelas diferentes formas de violência no mundo contemporâneo,

que desafia as sociedades “modernas” a pensar muitas e complexas questões. A título de

ilustração, podemos citar recente entrevista de Jacques DERRIDA (2004) ao Jornal Folha de

São Paulo quando, interrogado sobre o terrorismo e o medo que este provoca hoje, a despeito

de criticar o uso ideológico desse conceito, indica que o futuro depende da filosofia e dos

novos conceitos criados pelos filósofos – como “um novo conceito do político” e “um novo

direito internacional”; ou seja, ao que tudo indica, as respostas, de uma forma ou de outra,

apontam para a “capacidade” do Ocidente de propor soluções.8 Diferentemente disso,

procuramos alcançar uma visão sensivelmente nova e diversa do olhar de que partimos. Trata-

se de algo complexo que, a nosso ver, desvela no fenômeno dos “homens-bomba”

significativa riqueza cultural e simbólica da sociedade muçulmana. Por outro lado,

entendemos que é possível fazer uma leitura “total” desse fato, em se considerando a

abordagem maussiana, para compreender essa cultura. Tendo em conta o “fato social total”,

vemos que o fenômeno aqui analisado concentra elementos de toda ordem: religiosos,

econômicos, políticos, sócio-culturais, simbólicos etc. Tais elementos se “ordenam” sob o

contexto contemporâneo da sociedade global. Nesse ponto concordamos com Demant (2004)

“observador”. Tal tarefa se realiza por meio da relação antropológica, cujas “idéias nativas” são tomadas como conceitos (VIVEIROS de CASTRO, E. O nativo relativo. In: Mana. v. 1, n. 8, fevereiro, 2002, p. 113-148). 8 DERRIDA, J. Jacques sem fatalismos. In: Jornal Folha de São Paulo. São Paulo, 15 de agosto de 2004, p. 10-11 (Caderno Mais). Um outro artigo no mesmo Jornal enfatiza ainda mais esse olhar “ocidentalizado” sobre as questões no mundo contemporâneo, por exemplo, quando afirma: “No caso do Iraque, creio que os americanos estivessem muito otimistas e cheios de ilusões sobre o que achavam que poderiam fazer no Oriente Médio. Foi um erro. Creio até que foi um ‘erro honesto’, e não uma mentira total em relação às intenções por trás da guerra. Mas foi ingenuidade acreditar que, depois de uma ditadura de 30 anos como a que existiu no Iraque, as pessoas simplesmente iriam aceitar uma democracia rapidamente” (LAQUEUR, W. Guerra sem limites: megaterror está a caminho, diz analista. In: Jornal Folha de São Paulo. São Paulo, 22 de agosto de 2004, p. A20 (Sessão Mundo, por Fernando Canzian).

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quando afirma que o “fundamentalismo muçulmano é moderno”. Essa idéia nos parece

bastante relevante para explicar esse fato, uma vez que os “homens-bomba” são produto da

sociedade moderna, de seus conflitos e suas crises. Mas não somente isso: é também a

atualização de uma tradição milenar, que reconstrói seus códigos simbólicos para dar

respostas diante dos desafios do mundo contemporâneo. Certamente, não estamos defendendo

essa “resposta” – a dos homens e das mulheres-bomba – como a melhor opção para os

embates de hoje. Entretanto, é necessário compreender a lógica histórica e cultural que

preside esses fatos no mundo. Como lembra Bourdieu (1996), há “disposições incorporadas”

que delimitam o agir.

Uma tal lógica fundamenta-se na tradição religiosa que, como já foi visto ao longo

deste estudo, é o substrato da cultura dos mulçumanos, do seu pensamento, dos seus valores e

dos princípios que norteiam sua vida. Na prática, essa tradição tem como elemento central o

sentido da submissão, da abnegação, da entrega absoluta a Deus. Daí que o “sacrifício” se

insere nesse universo simbólico como algo incorporado e vigente na vida desses povos. Como

bem sublinha Marcel Mauss (2003), o sacrifício foi conservado e inclusive sublimado pela

teologia cristã – aspecto que, de resto, consideramos perfeitamente aplicável ao islamismo –,

tornando-se uma importante estratégia de ação e de defesa diante de situações consideradas

“perigosas”, naquelas em que o “contra-ataque do caos e o mal requerem incessantemente

novos sacrifícios, criadores e redentores” (MAUSS, 2001, p. 167). Assim, a nossa opção para

interpretar a ação dos “homens-bomba” sob a ótica de Mauss corresponde ao esforço de

colocar novas possibilidades de discussão em torno do tema do sacrifício, cuja inspiração, na

tradição antropológica, permite perceber mais satisfatoriamente o fenômeno. Em outras

palavras, é preciso contribuir com a crítica aos limites do debate político na sociedade

Ocidental, observando o aspecto relacional sob o qual se deve tomar a visão do “outro”. Nesse

caso, a visão do “outro” é plasmada por uma tradição religiosa e cultural bastante relevante no

mundo, e não apenas por aquilo que significa o “ataque dos homens-bomba” à modernidade

ocidental. A própria lógica do fenômeno revela um conjunto simbólico por si só pertinente

aos nossos estudos, como “interlocutor” autônomo e legítimo, para continuarmos avançando,

inclusive quanto à premente discussão política acerca das relações humanas nas sociedades e

nos Estados.

Nessa direção, a análise sugere que o ato dos “homens-bomba” pode ser entendido

como manifestação de um “sacrifício redentor”, o qual irrompe enquanto “resposta cultural” a

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um contexto de conflito que afeta profundamente a estabilidade social desses povos. Esse

“lugar” de conflito é identificado pelos mulçumanos como “o mal” ameaçador, que atinge

tanto os bens fundamentais (primários) – território, pátria, família, comunidade etc – como

aqueles referentes aos seus grandes ideais (religiosos e/ou de vida) – a construção de uma

“sociedade justa” e a “salvação da humanidade”. Diante dessas forças do “mal” e do “caos”,

eles reagiriam, pois, com as “armas” da tradição: o rito e o sacrifício. Ora, sem dúvida, essa

“ação” mostra-se eficaz. Não apenas como mecanismo inapreensível pela lógica ocidental;

mas, especialmente, a eficácia do “sacrifício” se dá no interior dos povos mulçumanos, que,

como foi sugerido anteriormente, se projetam no “homem-bomba” e se identificam com ele

de algum modo, compreendendo-o como figura mística, “mártir” mesmo, o qual renova e

atualiza o sentido da fé e, de certa maneira, revivifica o “mito” primogênito de Abraão quando

oferece uma prova suprema de entrega e sacrifício incondicionais a Deus.

BIBLIOGRAFIA

Livros

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