o Segredo de Escobar

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 PO LÍTICA EC ON OMIA INT E RN ACION AL ES P OR TE S TE CN OLO GIA DIVIR TA-SE P M E OP IN IÃO DI O JT ELD OR ADO BLOG S TÓP IC OS Onde Buscar: Todo o site Busca O k Busca avançada ‹ Ir para edição atual Anuncie na piauí Login:  Cod.Assinante(9 dígitos) Entrar Onde en contro o código ? Ainda não sou assinante  Edição 105 > _questões histórico-literárias > Junho de 2015 Compartilhar: O segredo de Escobar por  A N D D U TR A BOUC IN HA T amanh o d a l e tra: A - A + A +/- Imprimir: Bento Santiago tinh a razões concretas para se sentir ameaçado por seu antigo amigo de seminário Bento Santiago, protagonista e narrador do romance  Dom Cas mur ro, de Machado de Assis, trabalhava em casa quando foi interrompido por um escravo que fazia alarido ao portão. O criado, propriedade de seu velho conhecido Escobar, estava aflito e pedia ajuda. “Para ir lá... sinhô nadando, sinhô morrendo”, anunciou. Bento correu à praia do Flamengo o mais rápido que pôde, mas não havia mais nada a fazer além de confirmar a morte do amigo. Arranjou-se velório e enterro para o mesmo dia e, “na hora da encomendação e da partida”, o desespero de Sancha, esposa do falecido, “consternou a todos”, levando homens e mulheres ao choro. É nesse momento tumultuado que ocorre o fato decisivo da narrativa: Bento notou “que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã”. Nascia nele a dúvida sobre a traição.  A se me lha nça ent re E zeq uie l, fi lho do casa l, e o fin ad o E scoba r, re par ada um an o d epois , foi a evidência final de que o protagonista precisava para se convencer do adultério. O casamento desgastou-se, e em pouco tempo a simples presença do filho já lhe era insuportável. Considerou se matar colocando veneno no café, acabou por desistir no último instante, por falta de coragem. E recuou de outra ideia impulsiva, que faria dele não um suicida, e sim um assassino: a de passar a xícara ao menino. Não deixou de confrontar a mulher, contudo. Ela riu e respondeu ao marido num tom, segundo o narrador, ao mesmo tempo irônico e melancólico. “Pois até os defuntos!”, reclamou. “Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!” Concordando que os dois, filho e falecido, se pareciam, Capitu justificou a coincidência pela “vontade de Deus”. Dali em diante passariam a levar  vidas sepa rad as, ma nte ndo a s a parê ncia s. Capitu traiu ou não traiu Bentinho? Sobre essa suspeita, a mais famosa da literatura brasileira, há uma outra pergunta que, surpreendentemente, não costuma ser feita: o que Capitu teria visto em Escobar? Ou, caso se acredite na inocência da moça, por que Bento Santiago enxergou no amigo uma am eaça? Sabemos que e ra ciumento, mas todas as suas c rises hav iam sido sempre passageiras  Brasil eliminado O programa de hoje traz os comentários acerca do jogo Brasil 1x1 Paraguai (posteriormente Brasil 3x4 Paraguai nos...   Aéc io es tuda as sumir a Grécia ESPARTA - Preocupado com a onda bolivariana que devasta a Grécia, A écio N eves rev elo u que pretende o ferecer seu carisma, ... Congress o aprova redução da envergadura moral SUCUPIRA - Enciumados com o recorde negativ o d e popularidade do poder Exe cutivo, parlamentares articularam uma série de... Eduardo Cunha submeterá Dez Mandamentos a nova  votaç ão GALILEIA - Ciente de que os dogmas religiosos precisam se adaptar aos novos tempos, Eduardo Cunha prome teu c olocar os 10...  N e s t e M ês Outras Ediç õ e s Bl o g s n o s ite Qu e m faz Cartas A s sine Con t a t o converted by Web2PDFConvert.com

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Análise sobre o personagem Escobar de Dom Casmurro, Machado de Assis.

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    por ANDR DUTRA BOUCINHAS Tamanho da letra: A - A + A +/-Imprimir:

    Bento Santiago tinha razes concretas para se sentir ameaado por seu antigo amigo deseminrio

    Bento Santiago, protagonista e narrador do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis,trabalhava em casa quando foi interrompido por um escravo que fazia alarido ao porto. O criado,propriedade de seu velho conhecido Escobar, estava aflito e pedia ajuda. Para ir l... sinhnadando, sinh morrendo, anunciou. Bento correu praia do Flamengo o mais rpido que pde,mas no havia mais nada a fazer alm de confirmar a morte do amigo. Arranjou-se velrio e enterropara o mesmo dia e, na hora da encomendao e da partida, o desespero de Sancha, esposa dofalecido, consternou a todos, levando homens e mulheres ao choro. nesse momento tumultuadoque ocorre o fato decisivo da narrativa: Bento notou que os olhos de Capitu fitaram o defunto,quais os da viva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lfora, como se quisesse tragar tambm o nadador da manh. Nascia nele a dvida sobre a traio.

    A semelhana entre Ezequiel, filho do casal, e o finado Escobar, reparada um ano depois, foi aevidncia final de que o protagonista precisava para se convencer do adultrio. O casamentodesgastou-se, e em pouco tempo a simples presena do filho j lhe era insuportvel. Considerou sematar colocando veneno no caf, acabou por desistir no ltimo instante, por falta de coragem. Erecuou de outra ideia impulsiva, que faria dele no um suicida, e sim um assassino: a de passar axcara ao menino. No deixou de confrontar a mulher, contudo. Ela riu e respondeu ao marido numtom, segundo o narrador, ao mesmo tempo irnico e melanclico. Pois at os defuntos!,reclamou. Nem os mortos escapam aos seus cimes! Concordando que os dois, filho e falecido, separeciam, Capitu justificou a coincidncia pela vontade de Deus. Dali em diante passariam a levarvidas separadas, mantendo as aparncias.

    Capitu traiu ou no traiu Bentinho? Sobre essa suspeita, a mais famosa da literatura brasileira, huma outra pergunta que, surpreendentemente, no costuma ser feita: o que Capitu teria visto emEscobar? Ou, caso se acredite na inocncia da moa, por que Bento Santiago enxergou no amigouma ameaa? Sabemos que era ciumento, mas todas as suas crises haviam sido sempre passageiras

    Brasil eliminadoO programa de hoje traz oscomentrios acerca do jogoBrasil 1x1 Paraguai(posteriormente Brasil 3x4

    Paraguai nos...

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    que pretende oferecer seu carisma,...Congresso aprova reduoda envergadura moralSUCUPIRA - Enciumados com orecorde negativo depopularidade do poder

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  • NT

    menos esta. verdade que no faltavam a Escobar elementos capazes de atrair uma mulher, comoo porte de atleta, o sucesso profissional, o esprito prtico. E poderamos menosprezar a questo,supondo que o corao tem l seus motivos insondveis. Se estivssemos falando de Jos deAlencar, ou mesmo da primeira fase de Machado de Assis, essas explicaes talvez bastassem.Talvez. Mas no em Dom Casmurro. Nada ali pode ser descartado como gratuito ou nosignificativo muito menos Escobar, elemento central da histria.

    Muito se avanou na compreenso dos romances machadianos quando se prestou a devida atenoa caractersticas nada fortuitas dos personagens, em especial seus perfis socioeconmicos.Enxergar Capitu, como fez Roberto Schwarz em Duas Meninas, como uma figura subalterna dafamlia Santiago acrescenta uma nova perspectiva ao romance: ele passa a ser tambm o relato datrajetria de uma moa que, independentemente do que sentia pelo vizinho, sabia que casar-se comele significaria ascenso social. Ao mesmo tempo, Bento Santiago, um tpico representante datradicional elite carioca, narra sua histria como bem entende, ressaltando ou omitindo o que lheconvm, com a mesma arbitrariedade e o mesmo elitismo com que seus pares escreviam a histriado Brasil ou comandavam o pas. At agora, porm, pouco se disse do suposto traidor. Afinal, quemera Escobar? Por que Machado de Assis escolheu esse homem para completar o tringulo amoroso?Uma tese recente de histria econmica pode ajudar a formular uma nova hiptese para a questo.

    o ano passado, quando esteve no Brasil para lanar O Capital no Sculo XXI, o economistafrancs Thomas Piketty afirmou que no incluiu o pas em seu celebrado livro sobre a

    evoluo da desigualdade no mundo devido falta de transparncia nos dados do imposto de rendapor aqui. De toda forma, acrescentou que quela altura j trabalhava com as informaesdisponveis para o perodo entre 1930 e 1988, liberadas para consulta pblica, e que ainda esperavaconseguir dados referentes ao ltimo quarto de sculo. Ao que tudo indica, ele no planeja ampliaro foco de sua pesquisa retrocedendo ao nosso sculo xix, comofez para Frana, Inglaterra e EstadosUnidos. uma pena. A comparao do Brasil oitocentista com esses pases no mesmo perodocontribuiria no s para nossos estudos de economia e histria econmica, como para os de crticaliterria.

    H indcios de que os nveis de desigualdade observados nos pases ricos fossem anlogos aosbrasileiros. Piketty afirmou, por exemplo, que em 1870 os 10% mais ricos da Europa possuam 85%de toda a riqueza disponvel; j nos Estados Unidos, a mesma fatia da populao detinha 70% dosbens. Em levantamento feito nos inventrios post mortem no Rio de Janeiro do mesmo ano,observei que os 10% do topo acumulavam 59% do total arrolado nesses documentos, quedescreviam e avaliavam todas as posses do falecido. Num primeiro momento, os nmerossurpreendem porque mostram um pas menos injusto do que os europeus e os Estados Unidos,impresso que aumenta quando descobrimos, ainda com o economista francs, que as capitaistendem a apresentar maior concentrao do que o pas como um todo. Depois de dcadas vendo oBrasil no topo de todas as listas de desigualdade do mundo, isso seria uma bela surpresa, mas existepelo menos uma explicao simples para ela. Como escravos e miserveis no abriam inventrios estes porque no possuam nada; aqueles, por no terem o direito de faz-lo, alm de em geral nopossurem nada , nenhum dos dois aparece na estatstica, mascarando a concentrao. Se Pikettyexpandisse sua pesquisa para o Brasil oitocentista, poderamos medir de forma mais precisa e amplasua distribuio de renda e riqueza e nos aprofundar nas razes para essa diferena entre pasesricos e pobres no sculo XIX.

    Seria talvez pedir demais que o autor se ocupasse tambm de nossa literatura, maneira como fez,de modo magistral, com grandes obras francesas e inglesas do sculo XIX. Para ele, Honor deBalzac e Jane Austen possuam um conhecimento ntimo da hierarquia da riqueza em suassociedades e desnudaram os meandros da desigualdade com um poder evocativo e umaverossimilhana que nenhuma anlise terica ou estatstica seria capaz de alcanar. Tal habilidade,ainda que notvel nos dois escritores, no deveria surpreender. Representar o cotidiano de formadetalhada e verossmil a prpria essncia do romance nos sculos XVIII e XIX, como assinalaramErich Auerbach, Ian Watt e, mais recentemente, Franco Moretti, trs tericos de escolas diferentes,mas afinados nesse ponto. Assim, nada mais natural que essa ateno realidade, capaz de tornarobras de fico documentos relevantes para as cincias sociais, possa ser encontrada emromancistas brasileiros. Entre eles, claro, Machado de Assis. Voltamos a Dom Casmurro.

    rata-se, como todo mundo sabe, da conturbada histria de amor entre Bentinho e Capitu, comum detalhe que, na verdade, constitui o ponto fundamental para a compreenso do romance: o

    protagonista o prprio narrador, disposto a convencer o leitor de sua posio de vtima inocentede uma traio indesculpvel. Sendo bacharel em direito, como mandava o figurino das grandesfamlias da poca, tem conscincia de que precisa provar o seu carter confivel. Para isso, no

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    Uma balada de LennonNo primeiro verso cantado, oamante pede sua amada: olhapra mim (Look at me, o ttuloda msica). O pedido...

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  • sculo XIX, nada mais decisivo do que identificar-se como parte da boa sociedade. Assim, comoquem no quer nada, o narrador revela logo no segundo captulo que mora em casa prpria,construda a seu mando, num bairro valorizado. Poucas pginas depois, somos tambm informadosde que, quando nasceu, sua famlia vivia em uma fazenda repleta de escravos e possua residnciano Centro da cidade, para onde se mudaram em definitivo aps alguns anos. Na morte do pai, suame resolveu vender a propriedade, bem como os escravos, e com o dinheiro comprou uma dziade prdios para alugar.

    Caracterizar a famlia Santiago como rica proprietria foi uma das prioridades donarrador/advogado, e com razo. Na Europa oitocentista, Piketty demonstrou que o rendimento deum imvel urbano ou de uma propriedade rural girava em torno de 5% ao ano, maior do que umsalrio poderia propiciar, mesmo a profissionais valorizados, em um sculo com inflao ecrescimento baixos no longo prazo. Foi exatamente o que tentou esclarecer Vautrin, personagemsem escrpulo de Balzac, ao ingnuo Rastignac, no romance O Pai Goriot, em trecho muitodiscutido nO Capital no Sculo XXI: estudando direito, Rastignac na melhor das hipteses obteria,como juiz, um ordenado de uns 1 200 francos por ano; por outro lado, se casasse com uma herdeirade 1 milho de francos, receberia de imediato uma renda anual de 50 mil francos, o que equivalia aomximo que um advogado poderia sonhar aps quatro dcadas de trabalho duro, muita sorte e bonscontatos. Vautrin estava certo, e de quebra explicitou a chave da altssima concentrao de riquezae da fora da aristocracia fundiria europeia naquele sculo: os grandes proprietrios tinham maiscondies de acumular renda do que os que comeavam a vida sem nada, contribuindo assim para amanuteno da hierarquia socioeconmica, sem alteraes significativas no topo da pirmide.

    Machado de Assis, em Dom Casmurro, no deixou dvidas sobre a importncia de se terpropriedades no Brasil imperial. Escobar, tentando convencer o amigo da superioridade dosalgarismos sobre o alfabeto em ltima instncia, o elogio do conhecimento prtico , pede queBento informe o nmero de casas da famlia e o valor dos aluguis para, segundo ele, demonstrarsua capacidade de realizar rapidamente clculos de cabea, algo impossvel para problemasmetafsicos. Eram nove imveis, e mesmo assim ele chega sem dificuldade ao valor total de1:070$000 (1 conto e 70 mil ris) mensais. Para termos uma ideia do que isso significava, umfuncionrio de nvel mdio ganhava, nos anos 1860, algo em torno de 150$000 mensais, um chefede polcia, 250$000, e um simples guarda, 24$000. Para se eleger deputado, uma pessoa precisavacomprovar uma renda anual de 400$000. Trocando em midos: bastavam os rendimentos dosimveis para colocar os Santiago no topo da hierarquia econmica.

    Os prdios, entretanto, no eram a nica fonte de renda da famlia. Com o dinheiro da fazenda, ame de Bentinho adquiriu tambm novos cativos, decerto mais acostumados aos servios urbanos,que ps ao ganho ou alugou. O que no quer dizer que os Santiago vivessem sem o servio diretodeles, pois h referncia a pelo menos outros nove escravos na casa, e provavelmente tinham mais.A alta sociedade no abria mo desses trabalhadores que, alm de realizarem as tarefas do dia a dia,traziam prestgio para os seus senhores, na mesma proporo de seu nmero. Ser proprietrio nacorte, por boa parte do sculo XIX, significava ter imveis e escravos, e o narrador no nos deixaesquecer de que sua famlia os possua em abundncia.

    Quem no tinha posses precisava correr atrs de proteo e apadrinhamento. O exemplo maisnotvel e conhecido o de Jos Dias, agregado tpico, que mora na casa dos Santiago de favor, a queretribui com gratido e servilismo. A melhor interpretao desse aspecto do personagem veio deRoberto Schwarz, ainda em Duas Meninas, que chamou a ateno para a sua primeira entrada noromance. Nela, Jos Dias anuncia a dona Glria, me de Bentinho, uma grande dificuldade. Antesde explic-la trata-se do namoro de Capitu e Bentinho vai prudentemente at a porta da sala,para ver se o menino no est ouvindo. A graa vem do contraste entre a gravidade vitoriana dapessoa e os cuidados subalternos a que se obriga. Essa contradio, escreve Schwarz, ecoa asfunes representativa e prestativa do agregado, bem como a vivacidade de quem vive deexpedientes. O leitor dir se inventamos ao imaginar que a mesma estrutura dirige os passistas deescola de samba, vagarosos e principescos da cintura para cima, enquanto os ps se dedicam a umpuladinho acelerado e diversificado.

    primeira vista, o vizinho Pdua, pai de Capitu, vivia em condies muito superiores s de JosDias, pois tinha emprego pblico e casa prpria, mas trata-se de outro tipo de dependente, comonotou Schwarz. A precariedade de sua situao logo emerge, pois descobrimos que comprou a casacom dinheiro de loteria e que seu salrio no sustenta um padro de vida condizente com aresidncia. Vive saudoso do breve perodo em que foi administrador interino da repartio em quetrabalhava, quando conseguia bancar algum luxo para a famlia; ao fim da promoo temporria,pensou em se matar, tamanha a vergonha de voltar penria de antes, e aparentemente desistiu porordem de dona Glria. De fato, as condies de vida em sua casa, pelo menos aos olhos de Bentinho,no eram das melhores. Capitu, como fez questo de observar o narrador s vsperas do primeirobeijo, tinha apenas um espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano,moldura tosca, argolinha de lato. A menina, por sua vez, compreende a delicadeza de sua situao,

    Entre promover e fiscalizarO jornalismo cientfico precisade menos cincia e maisjornalismo? Essa foi a provocaoque motivou uma das mais...

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  • Achegando a jogar na cara do namorado, em um de seus raros momentos de descontrole, que se fosserica ele fugiria com ela.

    A prova do status inferior da famlia do Pdua, bem como da sua conscincia disso, a constantedisputa com Jos Dias, que o chama de tartaruga e de gente reles, alm de acus-lo de jogar afilha para cima de Bentinho. O episdio em que o agregado faz de tudo para impedir o vizinho deocupar um lugar de prestgio numa procisso do Santssimo, carregando uma das varas do plio omanto que cobria o vigrio e o sacramento , ilustra bem essa rivalidade. No satisfeito em tomar aposio do outro, que a havia reservado com antecedncia, quando conseguem uma segunda vara,faz questo de que seja Bento a dividir a honraria. O Pdua, proprietrio por acaso, sabe que precisaentrar nesse jogo pela ateno dos Santiago e cede contrariado. Mais tarde, refere-se ao agregadocomo parasita em conversa com o futuro genro. Este, claro, se serve dos dois da maneira quemelhor lhe convm, sempre sob o manto de sua pretensa ingenuidade.

    aristocracia fundiria europeia, segundo Piketty, conheceu o fim definitivo de sua hegemoniaeconmica e social na primeira metade do sculo XX, com a grande crise formada pelas duas

    guerras mundiais e o crash da Bolsa de Valores norte-americana. At ento, alguns burguesesobtinham mais prestgio devido ao enriquecimento nos negcios, porm poucos eram vistos comoiguais pela elite tradicional. Enquanto alguns desses novos ricos reclamavam disso queconsideravam uma injustia, a maioria buscava, no fundo, a aceitao por parte da nobreza, quemuitos ainda viam, no fim do sculo XIX, como um grupo diferenciado.

    Essa intensa competio por status foi muito bem retratada nos romances do perodo. Na obrabalzaquiana, por exemplo, h inmeros personagens que prosperaram pelas vias do trabalho e dotalento nos negcios, que lutam para serem aceitos na alta sociedade e que normalmentefracassam. Os exemplos mais explcitos so talvez os do protagonista da Ascenso e Queda de CsarBirotteau, que deixa para trs sua origem camponesa trabalhando no ramo da perfumaria, masacaba enganado pela elite tradicional em um negcio milionrio; e do pai Goriot, no romance demesmo nome, que com sagacidade passa de operrio a rentista, embora precise parar de ver asprprias filhas para, com suas maneiras rudes, no arruinar as chances delas na alta sociedade. Anobreza fundiria, apoiada na tradio, erudio e rendimentos de suas terras, procurou barrar aentrada desses parvenus ao topo da hierarquia social, abrindo excees apenas a gruposespecficos, como banqueiros e grandes comerciantes estabelecidos h mais de uma gerao. Essacompetio entre a burguesia arrivista e a aristocracia estabelecida no entrou no radar de Piketty,pois era muito reduzido o nmero de pessoas que por mrito individual conseguiam ascender dacondio de classe mdia e buscavam os mesmos prestgios e privilgios das antigas famlias. Noentanto, para esses alpinistas e para os que j estavam no topo da montanha havia sculos, essadisputa era o que existia de mais importante. Com adaptaes, isso valia igualmente para o Brasil dofinal do sculo XIX, e quem sabia muito bem disso era, mais uma vez, Machado de Assis.

    Personagens que ganham muito dinheiro pelo trabalho demoraram a aparecer na literaturabrasileira, apesar de Balzac ter sido desde o incio uma forte inspirao para os romancistasnacionais. Em Ressurreio, romance de estreia de Machado, cai nas mos do protagonista, Flix,uma inesperada herana, que o levantou da pobreza. A soluo era to bvia que ao narradorrestou apenas reconhecer o fato e dizer que s a Providncia possui o segredo de no aborrecercom esses lances to estafados no teatro. At os anos 1870, basicamente s se enriquecia nosromances brasileiros por meio de heranas ou casamentos, muito diferente dos casos do pai Goriote de Csar Birotteau.

    Foi tambm o autor de Dom Casmurro um dos romancistas que mais cedo se preocupou emdesenvolver com seriedade e verossimilhana personagens que prosperavam por mrito prprio.Exemplos na sociedade sua volta podiam no abundar, mas existiam; ningum ignorava o caso deIrineu Evangelista de Sousa, que aos 9 anos trabalhava o dia inteiro em um estabelecimentocomercial na corte em troca de moradia e alimentao e, sem empurrozinho da Providncia,tornou-se dono de banco, o maior industrial do Brasil, controlando empresas em seis pases, e umdos homens mais ricos do Imprio. Foi eleito deputado pelo Rio Grande do Sul quatro vezes,recebeu o ttulo de baro de Mau em 1854 e, vinte anos depois, coroando sua aceitao na altasociedade, o de visconde com grandeza.

    Encontramos exemplos de ascenso inegvel at o topo tanto de brancos pobres quanto de mulatos,em reas como jornalismo, poltica, comrcio, direito e mesmo as artes plsticas. Francisco dePaula Brito, Lus Gama, Victor Meirelles, Francisco de Sales Torres Homem (at hoje o nico negroa ocupar o cargo equivalente ao atual Ministrio da Fazenda) talvez sejam os casos mais notveis,mas esto longe de serem os nicos. Seus bigrafos, por motivos bvios, tendem a tratar cada casoindividualmente, sem se dedicar a uma interpretao de conjunto. A historiografia, a quem cabeessa tarefa, ainda no se ocupou do fenmeno, talvez pela longa e persistente tradio, de vis

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  • NQ

    marxista, de anlise da nossa sociedade colonial e imperial a partir de seus extremos: escravos esenhores. Embora a crtica a essa viso reducionista venha sendo feita desde a dcada de 1980, osestudos sobre a ascenso social de camadas intermedirias no avanaram muito.

    os romances machadianos, o Palha, de Quincas Borba, o primeiro exemplo bem-sucedidodesse esforo de representar um self-made man nacional, mas o grande prestgio que alcana

    decorre tambm de seu casamento com Sofia, moa que possua uma tia proprietria de terras ainda que empobrecida e uma tia-av afilhada do vice-rei Lus de Vasconcelos. Outro o Escobar.Se no podemos dizer que viesse de origem pobre, tudo parece indicar que se situava numa posiointermediria, inclusive pela ausncia de referncias a qualquer distino de sua famlia. Filho deum advogado de Curitiba, rea ento sem grande relevo poltico, chega capital para estudar noseminrio, logo revelando sua inteno de trocar a batina pelo comrcio. Alm da facilidade com amatemtica, tinha um parente comerciante no Rio de Janeiro, porm no ficamos sabendo se este oajudou, ou de que forma, apenas que de fato enveredou por esse caminho e foi bem-sucedido.

    Assim que saiu do seminrio, nos anos 1860, Escobar resolveu vender caf era o momento doboom do produto brasileiro no mercado internacional, revelando seu timo tino para os negcios.Foi ele quem conseguiu os primeiros clientes importantes de Bento, o que evidencia o tipo depessoas com quem mantinha contato, bem como certa superioridade em relao ao amigo no quediz respeito vida prtica. Sua confortvel situao financeira lhe permitiu comprar uma chcarano Andara e, mais tarde, troc-la por uma casa no valorizado bairro do Flamengo, prxima deBento e Capitu. Acompanhava o casal, ao lado da mulher, em programas tpicos da alta sociedade,como grandes bailes, chegando inclusive a propor que os quatro viajassem Europa. Os indcios deseu sucesso so esparsos, mas inequvocos. Na fotografia de Escobar que Bentinho tem na parede, oamigo est de p, sobrecasaca abotoada, a mo esquerda no dorso de uma cadeira, a direita metidaao peito, o olhar ao longe para a esquerda do espectador. A pose e as vestes, semelhantes sencontradas nos retratos da aristocracia fluminense da poca, apresentam um homem bem-sucedido e confiante. Estavam ento, lado a lado, a fina flor da elite carioca, advogado eproprietrio, e um trabalhador e bom negociante (palavras do prprio narrador), sem um nomede famlia de respeito, com mentalidade prtica e desdm pela erudio bacharelesca.

    uerendo exibir suas qualidades desportivas caracterstica bastante burguesa, por sinal ,Escobar morre afogado na praia do Flamengo. No enterro, pomposo por exigncia de

    Bentinho, encontramos mais evidncias do status do amigo: Praias, ruas, Praa da Glria, tudoeram carros, muitos deles particulares. A morte de Escobar, em maro de 1871 (Nunca meesqueceu o ms nem o ano), coincide com a posse, na presidncia do Conselho de Ministros, dovisconde do Rio Branco, que logo iniciou a discusso sobre a famosa Lei do Ventre Livre, assinadaseis meses depois. Assim, a dvida particular que acabou por destruir a vida de Bento Santiagonasceu ao lado da ansiedade dos proprietrios de escravos diante da intensificao do movimentoabolicionista.

    Bentinho decide recontar sua histria em 1899, dez anos aps a Lei urea, que confirmou aquelemedo e eliminou a principal fonte de rendimentos dos grandes proprietrios de terras e de escravossem nenhum tipo de compensao financeira, levando muitos a se endividar. Poderamos dizer quea abolio cumpriu aqui um papel equivalente ao da Primeira Guerra Mundial na Europa, j queambas colocaram um ponto final na hegemonia de uma elite economicamente antiquada.

    Na passagem da monarquia para a repblica acontece tambm o Encilhamento, que muitosconsideram ter liquidado os antigos valores da sociedade, elevando o dinheiro acima de todos eles.Tratou-se na verdade de uma bolha especulativa na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro,impulsionada pela reforma de Rui Barbosa que, entre outros, buscava estimular a industrializao efacilitou a emisso monetria durante o primeiro governo republicano.

    A imagem que chegou at ns desse momento foi pintada por Alfredo Taunay no romance OEncilhamento, em que caracteriza tudo o que se refere a essa poltica econmica comoirresponsvel, corrupto e fracassado. Hoje se sabeque no foi bem assim, mas Taunay, como BentoSantiago, era parte da boa sociedade do Imprio e via nessa nova ordem social o fim do seumundo aristocrtico e a ascenso de outro, burgus, inferior. Como mostrou Gustavo Franco, talvezo primeiro estudioso a levar a srio o interesse de Machado de Assis por assuntos financeiros, aviso do romancista sobre o evento era menos pessimista, mas ele ainda assim explicitou em seusromances o que pensava dele a antiga elite. Em Esa e Jac, por exemplo, o conselheiro Aires,diplomata que fez carreira durante o Segundo Reinado, conhecido por sua moderao, emitiu aseguinte opinio sobre o tema: Cascatas de ideias, de invenes, de concesses rolavam todos osdias, sonoras e vistosas para se fazerem contos de ris, centenas de contos, milhares, milhares de

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    milhares, milhares de milhares de milhares de contos de ris. [...] Nasciam as aes a preo alto,mais numerosas que as antigas crias da escravido, e com dividendos infinitos. Para a aristocraciatradicional fluminense, a virada do sculo no parecia anunciar boas-novas, e sim o seu ocasodefinitivo.

    O prprio Bento, na abertura do livro, conta que quela altura tem um nico criado e moblia velha,reforando a impresso de decadncia que a melancolia do narrador (contrabalanada por umhumor cortante, como quase sempre em Machado) sugere o tempo todo. Nessas circunstncias,nada mais natural que um homem como ele procurasse reafirmar, para todos e sobretudo para elemesmo, que Escobar fora a origem de sua desgraa. A runa de Bentinho representa tambm a dogrupo social do qual fazia parte uma analogia que, como quase todo comentrio poltico e socialna obra machadiana, aparece nas entrelinhas, e no de forma explcita, como faria Balzac. J quepara essa elite cheia de si estava fora de cogitao atribuir a responsabilidade pela prpriadecadncia sua incompetncia, os suspeitos mais indicados para assumir a culpa ficavam sendojustamente aqueles comerciantes, identificados com a riqueza mvel que caracterizava os novostempos, que sobreviveram sem grandes problemas ao fim da escravido, mantendo sua trajetriaascendente.

    S podiam ter sido eles os culpados. Na virada para o sculo XX, quando dom Casmurro narra a suahistria na esperana de atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescncia, haviamroubado quase tudo da aristocracia. Influncia. Status. Riqueza. At a mulher.

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