O Segredo (Georg Simmel)

download O Segredo (Georg Simmel)

of 8

Transcript of O Segredo (Georg Simmel)

  • 7/31/2019 O Segredo (Georg Simmel)

    1/8

    1

    O SEGREDO 1

    Georg Simmel

    A caracterstica sociolgica das combinaes entre segredo e revelaona vida do indivduo o conhecimento de outrem: aquilo que intencional ouno-intencionalmente ocultado intencional ou no-intencionalmenterespeitado. A intencionalidade da ocultao no entanto assume intensidademuito maior no embate com a revelao. Esta situao d lugar ocultao eao mascaramento muitas vezes agressivo e defensivo, por assim dizer, contrauma pessoa, o que em si designado como segredo.

    O papel do segredo na vida social

    No sentido da ocultao de realidades por meios positivos ou negativos,o segredo uma das maiores realizaes humanas. Se comparado ao estgioinfantil em que cada concepo se expressa imediatamente e as coisas que sefaz so imediatamente acessveis aos olhos de todos, o segredo conduz a umagrande ampliao da vida, cujos numerosos contedos no podem ser levados publicidade completa. O segredo assim oferece, digamos, a possibilidade deum segundo mundo junto com o mundo manifesto, sendo este decisivamenteinfluenciado por aquele.

    A existncia de um segredo entre dois indivduos ou dois grupos e a suamedida, so questes que caracterizam as relaes entre eles. Pois enquanto

    uma das partes no se d conta da existncia de um segredo, ocomportamento daquele que o oculta e assim toda a relao, so permeadospor tal fato.

    O desenvolvimento histrico da sociedade caracteriza-se, em muitosaspectos, pelo fato de que algo que em algum momento tenha estadomanifesto mergulhe na proteo do segredo; e que, ao contrrio, aquilo queuma vez foi secreto no mais necessite de tal proteo, revelando-se. Isso

    1 Traduzido por Simone Carneiro Maldonado, pofessora do Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Universidade Federal da Paraba.

  • 7/31/2019 O Segredo (Georg Simmel)

    2/8

    2

    comparvel quele outro movimento intelectivo mediante o qual o queoriginalmente havia sido feito de maneira consciente, passa a existir no nvel darotina conscientemente mecnica, e o que em algum outro estgio houvesseestado inconsciente e instintivo se eleve clareza da conscincia. Como issose distribui entre as vrias formaes da vida pblica e da vida privada; comotal evoluo leva a condies ainda mais propositais na medida em que noincio o mbito do segredo se estende longe demais, de maneira desajeitada eindiferenciada sendo a utilidade do segredo reconhecida somente mais tardecom respeito a outros assuntos; como o quantum de segredo se modifica pelaimportncia ou pela irrelevncia dos seus contedos - tudo isso, ainda quecomo uma mera questo, joga luz sobre a significao do segredo para aestrutura da interao humana.

    Tal significao no pode ser omitida, em vista do fato do segredo sermuitas vezes eticamente visto como negativo; pois o segredo uma formasociolgica geral em situao de neutralidade, acima do valor e das funesdos seus contedos. Tal , por exemplo, o caso do indivduo nobre cujo sutilpudor faz com que oculte o que tem de melhor para no ser objeto do culto personalidade ou do auto-elogio; se assim no fora, ele teria essa recompensa,

    mas no o valor em si. Por outro lado, apesar do segredo no estardiretamente ligado com o mal, este tem uma conexo imediata com o segredo:aquilo que imoral se esconde por razes bvias, mesmo quando o seucontedo no carrega estigma social, como o caso de certas distores denatureza sexual no perceptveis ao olhar coletivo. O efeito intrinsecamenteisolante da imoralidade como tal, no importando toda a repulsa social explcitae direta, real e importante, indo alm dos meandros de tipo tico e social.

    Entre outras coisas, o segredo tambm a expresso sociolgica da ruindademoral, apesar dos fatos contradizerem a frase clssica de que ningum tomau que queira, alm disso, deixar-se ver como mau. Pode acontecer que odespeito e o cinismo no cheguem a levar ocultao do que mau: naverdade, pode-se explorar a maldade de modo a destacar a personalidade aosolhos de outros, ao ponto de algum indivduo vangloriar-se de imoralidades oude maldades que sequer cometeu.

  • 7/31/2019 O Segredo (Georg Simmel)

    3/8

    3

    O fascnio do segredo

    O uso do segredo como tcnica sociolgica, como uma forma de aosem a qual certos objetivos - pois vivemos num meio social - simplesmente nopoderiam ser atingidos, bastante compreensvel. No so to evidentes osatrativos e os valores do segredo alm da sua significao como simples meio -a atrao especfica do comportamento formalmente secreto, no importando oseu contedo momentneo. Em primeiro lugar, a excluso to enfatizada dosque no o detm traz um forte sentimento de posse. Para muitos indivduos, apropriedade no adquire significado com a mera posse, mas s com aconscincia de que outros no a detm. A base para tal, evidentemente, aimpressionabilidade dos nossos sentimentos atravs das diferenas. Almdisso, estando outros excludos da posse, deixa sugerir que o que negado amuitos deva ter um valor especial.

    A propriedade interior dos mais variados tipos, assim alcana um acentode valor caracterstico mediante a forma de segredo, em que a significao doque ocultado se acresce diante do simples fato de que outros nada sabemsobre aquilo. Entre crianas, o orgulho e a bazfia costumam basear-se numapoder dizer outra "eu sei de uma coisa que tu no sabes" e em tal grau, que a

    frase dita como meio formal de jactncia e de subordinao de outros,mesmo quando inventada e nada h de realmente secreto. Esse cime doconhecimento dos fatos que se oculta a outros demonstrado em todos oscontextos, do maior ao menor. As discusses do Parlamento ingls foramsecretas durante muito tempo, e at o reinado de George III comunic-las seriaconsiderado ofensa criminal como violao de privilgios parlamentares. Osegredo situa a pessoa numa posio de exceo; opera como uma atrao

    pura e socialmente determinada. basicamente independente do contedoque guarda, mas naturalmente torna-se cada vez mais efetivo na medida emque a sua posse exclusiva ganha em amplitude e em significado.

    Para tal, o oposto anlogo ao mencionado acima, tambm em parteresponsvel. Para o homem comum, todas as pessoas e as realizaessuperiores e diferenciadas tm algo de misterioso. como se o ser e o fazerhumanos flussem de foras enigmticas. No entanto, entre indivduos da

    mesma qualidade e do mesmo nvel, tal no se constitui num problema aosolhos do outro, particularmente porque a igualdade produz um certo

  • 7/31/2019 O Segredo (Georg Simmel)

    4/8

    4

    entendimento direto, no mediado pelo intelecto. O entendimento indiretoessencial, ao contrrio, no leva a tal resultante e qualquer diferena particularfaz com que o carter geral se deixe ver de imediato. (Isso seria semelhante aalgum que, vivendo sempre no mesmo lugar, sequer suspeita da influncia docenrio - que nos impressiona no entanto to logo mudamos de ambiente,advindo ento um sentimento diferente quanto ao papel causativo da paisageme do meio ambiente). A partir do segredo que sombreia tudo o que h designificativo e profundo, se origina a falcia de que tudo o que for misteriososer importante e essencial. Diante do desconhecido, o impulso natural dohomem em idealizar e o seu temor natural cooperam para com o mesmoobjetivo: intensificar o desconhecido atravs da imaginao e dar-lhe umanfase que nem sempre corresponde realidade patente.

    O fascnio da traio

    De modo bastante peculiar, os encantos do segredo esto relacionadoscom os do seu oposto lgico, a traio - que evidentemente no so menossociolgicos. O segredo contem uma tenso que se dissolve no momento da

    revelao. Este momento constitui o apogeu no desenvolvimento do segredo:todos os seus encantos se renem uma vez mais e alcanam o clmax assimcomo o momento da dissipao nos permite gozar em sua inteireza o valor doobjeto que se compra: a sensao de poder que acompanha a posse dodinheiro se concentra para o comprador, da maneira mais sensual e maiscompleta, no prprio instante em que o dinheiro lhe sai das mos. Tambm osegredo contm a conscincia de que pode ser rompido: de que algum detm

    o poder das surpresas, das mudanas de destino, da alegria, da destruio - eat da autodestruio. Por tal razo, o segredo est sempre envolvido napossibilidade e na tentao da traio; e o perigo externo de ser descoberto seentretece com o perigo interno, que como o fascnio de um abismo, avertigem de a ele nos entregarmos. O segredo cria barreiras entre os homens,mas ao mesmo tempo traz baila o desafio tentador de romp-lo por boatariaou por confisso - e esse desafio o acompanha todo o tempo. A significao

    sociolgica do segredo ento, tem sua medida prtica, seu modo de realizaos na capacidade, na inclinao individual de mant-lo, assim como na sua

  • 7/31/2019 O Segredo (Georg Simmel)

    5/8

    5

    resistncia ou fragilidade em face da tentao da traio, da revelao. Docontraponto entre esses dois interesses, o da ocultao e o da revelao,surgem nuanas e tonalidades de interao humana que o permeiam em suainteireza. luz do que foi dito anteriormente, toda relao humana caracterizada, entre outras coisas, pela quantidade de segredo que nela seencontra e que a envolve. Sobre isto ento, o encaminhamento de qualquerrelao determinado pela mdia das energias constituintes e mantenedorasenvolvidas na relao. As primeiras repousam sobre o interesse prtico nosegredo e na sua atrao formal. As segundas se baseiam na impossibilidadede suportar a tenso encompassada pela manuteno do segredo e num certosentimento de superioridade. Apesar dessa superioridade estar em formalatente no prprio segredo, ela s se atualiza inteiramente no momento darevelao ou ainda na luxria da confisso, que pode conter essa sensao depoder na forma pervertida de auto-humilhao e de contrio.

    Segredo e individualizao

    Todos estes elementos que determinam o papel social do segredo so

    de natureza individual; mas a medida em que as disposies e ascomplexidades das personalidades constituem segredos depender, ao mesmotempo, da estrutura social em que as suas vidas estejam inseridas. O pontodecisivo a esse respeito que o segredo um elemento de primeira linha naindividualizao. Trata-se de um duplo papel: condies sociais de fortediferenciao pessoal permitem e requerem um alto grau de segredo: e demaneira inversa, o segredo incorpora e intensifica essa diferenciao. Num

    crculo pequeno e estreito, a formao e a preservao dos segredos semostra difcil inclusive em bases tcnicas: todos esto muito prximos de todose suas circunstncias, de modo que a freqncia e a proximidade dos contatosimplicam em maiores tentaes e possibilidades de revelao. Alm disso, osegredo nem to necessrio, pois esse tipo de formao social costumanivelar seus membros e as peculiaridades da existncia, das atividades e dascoisas que se possui e cuja conservao tornaria necessria a forma do

    segredo, militam contra essa mesma forma social.

  • 7/31/2019 O Segredo (Georg Simmel)

    6/8

    6

    Com a ampliao do grupo evidentemente as coisas se invertem. Aqui,como em outros casos, os traos especficos do grupo ampliado so maisvisveis no contexto da economia monetria. Quando a determinao e otrfego dos valores econmicos passam a ser feitos unicamente por meio dodinheiro, tornam-se possveis nveis de segredo que de outra maneira seriaminatingveis. So trs as caractersticas da forma monetria de valor relevantesneste ponto da anlise: sua compressibilidade, que permite tornar-se rico aalgum fazendo chegar-lhe um cheque s mos sem o conhecimento dosdemais: a sua abstrao e ausncia de qualidade pelas quais transaes,aquisies e trocas na posse do dinheiro seriam invisveis ou irreconhecveisonde os valores fossem considerados propriedade s sob a forma de objetostangveis; e finalmente o efeito distncia do dinheiro, que permite o seuinvestimento em valores remotos sendo este passvel de ocultao aos olharesdo meio imediato. Tais possibilidades de dissimulao se desenvolvem namedida em que a economia monetria se expande e seus perigos se tornammais evidentes na ao econmica envolvendo moeda estrangeira. Isso levouao desenvolvimento de uma medida protetora que o carter pblico dastransaes financeiras por companhias, cartis e governos.

    Isso sugere que se refraseie com maior exatido a frmula evolucionriasegundo a qual, permitimo-nos relembrar, o segredo uma forma que estsempre recebendo e liberando contedos: o que originalmente havia sidomanifesto pode tornar-se secreto, e o que havia sido mantido oculto rompeessa ocultao. Poder-se-ia ento, quem sabe, alimentar a idia paradoxal deque, em circunstncias idnticas em outras quadraturas, a vida humanacoletiva requer uma certa medida de segredo que unicamente muda de tpicos:

    enquanto abre mo de alguns ou de um deles, o social apodera-se de outros eem toda essa alternncia, preserva-se uma quantidade determinada desegredo.

    Pode-se no entanto identificar um contedo mais precisamente dado decontedo para este esquema geral. como se, com o crescimento daconvenincia cultural, os negcios pblicos em geral se tornassem ainda maispblicos e as questes individuais sempre mais secretas. Em estgios menos

    desenvolvidos como j tem sido observado, o indivduo e suas condies nopodem proteger-se de olhares e intromisses na mesma medida que no estilo

  • 7/31/2019 O Segredo (Georg Simmel)

    7/8

    7

    moderno de vida, que produziu uma nova medida de reserva e de discrio,sobretudo nas grandes cidades. Antigamente, o costume revestia osfuncionrios pblicos de uma certa autoridade mstica enquanto que emcondies mais atuais a sua dignidade e sua autoridade provm da ampliaoda sua esfera de dominao, da objetividade da sua tcnica e da sua distnciado indivduo nas atividades pblicas. O antigo segredo das coisas pblicas, noentanto, demonstrava uma inconsistncia interior ao mesmo tempo criandocontramovimentos de traio por um lado e de espionagem por outro. At ossculos XVII e XVIII, os governos mantinham um silencio ansioso sobre asdvidas pblicas, sobre os impostos e os contingentes militares. Nessaperspectiva, os embaixadores nada mais faziam do que espionar, interceptarcartas e fazer falar os que "sabiam de algo", inclusive o pessoal domstico. Apartir do sculo XIX no entanto, a publicidade invadiu os negcios em talmedida que hoje em dia os governos tornam pblicos fatos que at entotornariam impossveis quaisquer regimes. A poltica, a administrao e a jurisdio perderam assim o seu carter secreto e a aquela inacessibilidade, namesma medida em que o indivduo ganhou em termos de retrao e na mesmamedida em que em meio s multides metropolitanas da vida moderna

    desenvolveram-se tcnicas de tornar e manter secretos certos assuntos, o queat ento s seria possvel mediante o isolamento espacial.

    A resposta questo da medida em que esse fenmeno pode serconsiderado expediente depende dos axiomas do valor social. As democraciasconsideram a publicidade algo intrinsecamente desejvel, sob a premissafundamental de que todos deveriam estar a par dos acontecimentos ecircunstncia que porventura lhes dissessem respeito, sendo esta a condio

    sem a qual no se pode contribuir para quaisquer decises: e todo oconhecimento compartilhado traz em si o desafio psicolgico da aocompartilhada.

    Esta concluso discutvel no entanto. Se acima dos interessesindividuais houver uma estrutura objetiva de governo que inclua certosaspectos desses interesses, a autonomia formal da estrutura pode muito bemser atribuda a funes secretas, sem para tanto trair a sua "publicidade" no

    sentido da considerao material dos interesses de todos. Assim, no hconexo lgica que vincule a publicidade como valor maior. Por outro lado, o

  • 7/31/2019 O Segredo (Georg Simmel)

    8/8

    8

    esquema geral da diferenciao cultural mostra-se de novo aqui: o que pblico se torna ainda mais pblico e o que privado se torna ainda maisprivado. E este encaminhamento histrico a expresso de uma significaomais profunda e mais objetiva: o que essencialmente pblico e o que, por seucontedo do interesse de todos, tambm se torna ainda mais pblicoexternamente, na sua forma sociolgica, assim como aquilo que no seu sentidointerior for autnomo - as questes centrpetas do indivduo - ganha um carterainda mais privado mesmo na sua posio sociolgica, numa possibilidadetambm mais distinta de permanecer secreto.

    Mostrei anteriormente que o segredo tambm opera no mbito da possede adornos e no valor da personalidade. Este fato envolve a contradio deque aquilo que recua diante da conscincia dos outros deles se ocultando,deve ser levado muito em conta na sua conscincia; que uma pessoa se fazparticularmente notvel atravs daquilo que esconde. Mas esta contradioprova no s que a anlise sociolgica necessria como pode recorrer ameios intrinsecamente contraditrios, mas tambm que aqueles contra quemtais meios so direcionados satisfazem tal necessidade assumindo o nus dasuperioridade. Eles o fazem num misto de disponibilidade e de desgosto, mas

    na prtica, no obstante, satisfazem o reconhecimento desejado. Pode-seento dizer que apesar de aparentemente poder ser caracterizado como acontrapartida sociolgica do segredo, o adorno teria de fato uma significaosocietria cuja estrutura seria anloga do prprio segredo. natureza efuno do adorno atrair os olhares para quem est adornado. se bem que,neste sentido, seja ele antagonista do segredo, nem mesmo o segredo existesem alguma funo na nfase do que pessoal. E este trao o adorno tambm

    detm, misturando a superioridade sobre outros com a dependncia destes e asua boa vontade com a sua inveja, o que ocorre de tal maneira que, comoforma sociolgica de interao, requer investigao especial.