O Senhor dos Anéis III. O Retorno do Rei – J. R. R. Tolkien

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J.R. R. TOLKIEN O SENHOR DOS ANÉIS TERCEIRA PARTE O RETORNO DO REI Sobre a digitalização desta obra: Esta obra foi digitalizada para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para leitura. Dessa forma, a venda deste e-book ou mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade é a marca da distribuição, portanto: Distribua este livro livremente! Se você tirar algum proveito desta obra, considere seriamente a possibilidade de adquirir o original. Incentive o autor e a publicação de novas obras! By Yuna Visite nossa biblioteca! Centenas de obras grátis a um clique! http://www.portaldetonando.com.br

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DESCRIÇÃO DO LIVRO “Pippin espiou de dentro do abrigo da capa de Gandalf. Perguntou-se se estava acordado ou continuava dormindo, ainda no sonho veloz no qual estivera envolto desde que a grande cavalgada começara”. Assim começa a terceira e última parte de “O Senhor dos Anéis”, que narra as estratégias opostas de Sauron e Gandalf, até a catástrofe final no fim da Grande Escuridão. —– “O Retorno do Rei” é a segunda parte da grande obra de ficção fantástica de J. R. R. Tolkien, “O Senhor dos Anéis”. É impossível transmitir ao novo leitor todas as qualidades e o alcance do livro. Alternadamente cômica, singela, épica, monstruosa e diabólica, a narrativa desenvolve-se em meio a inúmeras mudanças de cenários e de personagens, num mundo imaginário absolutamente convincente em seu detalhes. Nas palavras do romancista Richard Hughes, “quanto à ‘amplitude’ imaginativa, a obra praticamente não tem paralelos e é quase igualmente notável na sua vividez e na habilidade narrativa, que mantêm o leit

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J.R. R. TOLKIENO SENHOR DOS ANÉIS

TERCEIRA PARTEO RETORNO DO REI

Sobre a digitalização desta obra:Esta obra foi digitalizada para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefício de sua leitura àqueles que nãopodem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para leitura. Dessa forma, a venda deste e-book oumesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância.A generosidade é a marca da distribuição, portanto:Distribua este livro livremente!

Se você tirar algum proveito desta obra, considere seriamente a possibilidade de adquirir o original.Incentive o autor e a publicação de novas obras!By Yuna

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ÍNDICE Sinopse

O RETORNO DO REI

Livro I. Minas Tirith II. A passagem da Companhia Cinzenta III. A concentração das tropas de Rohan IV O cerco de Gondor V A cavalgada dos rohirrim VI. A batalha dos Campos do Pelennor VII. A Pira de Denethor VIII. As Casas de Cura IX. O último debate X. O Portão Negro se abre

Livro VII.. A Torre Cirith Ungol II. A Terra da Sombra III. A Montanha da Perdição IV O Campo de Cormallen V O Regente e o Rei VI. Muitas despedidas VII. A caminho de casa VIII. O Expurgo do Condado IX. Os Portos CinzentosApêndice A Apêndice B Apêndice CApêndice DApêndice E

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SINOPSE

Esta é a terceira parte de O Senhor dos Anéis. A primeira parte, A Sociedade doAnel, conta como Gandalf, o Cinzento, descobriu que o anel possuído por Frodo, ohobbit, era na verdade o Um Anel, governante de todos os Anéis de Poder.

Reconta a fuga de Frodo e seus companheiros do pacífico Condado, sua terra natal,perseguidos pelo terror dos Cavaleiros Negros de Mordor, até que finalmente, com aajuda de Aragorn, o guardião de Eriador, chegaram à Casa de Elrond em Valfenda, depoisde terem passado por terríveis perigos.

Ali aconteceu o grande Conselho de Elrond, no qual foi decidido que se deveriatentar destruir o Anel, e Frodo foi designado o Portador do Anel.

Foi então escolhida a Comitiva do Anel, que deveria ajudar Frodo em suaDemanda: chegar, se pudesse, à Montanha de Fogo em Mordor, o domínio do próprioInimigo, o único lugar onde o Anel poderia ser desfeito. Nessa Comitiva estavam Aragorne Boromir, filho do Senhor de Gondor, representando os homens; Legolas, filho do Elfo-rei da Floresta das Trevas, representando os elfos; Gimli, filho de Glóin, da MontanhaSolitária, pelos anões; Frodo e seu servidor Samwise, e dois jovens parentes dele,Meriadoc e Peregrin, representando os hobbits; e finalmente Gandalf, o Cinzento. OsCompanheiros viajaram em segredo, partindo de Valfenda, no norte, e trilhando um longocaminho até que, frustados em sua tentativa de cruzar a passagem alta de Caradhras noinverno, foram conduzidos por Gandalf através do portão oculto e entraram nas vastasMinas de Moria, procurando um caminho por baixo das montanhas.

Ali Gandalf, em batalha com um terrível espírito do mundo subterrâneo, caiu numabismo escuro. Mas Aragorn, agora revelado como o herdeiro oculto dos antigos Reis dooeste, conduziu a Comitiva a partir do Portão Leste de Moria, passando pela terra élficade Lórien, e descendo o Grande Rio Anduin, até chegar às Cachoeiras de Rauros. Játinham percebido que sua viagem era vigiada por espiões, e que a criatura Gollum, queoutrora possuíra o Anel e ainda o desejava, estava seguindo sua trilha.

Foi então necessário decidir se deveriam rumar para o leste, na direção de Mordor,ou continuar com Boromir em auxilio de Minas Tirith, a Principal cidade de Gondor, naguerra que se aproximava; ou ainda se deveriam se separar.

Quando ficou claro que o Portador do Anel estava decidido a Continuar suaviagem desesperada até a terra do Inimigo, Boromir tentou tirar-lhe o Anel à força. Aprimeira parte termina com Boromir sucumbindo à sedução do Anel: com a escapada e odesaparecimento de Frodo e seu servidor Samwise, e a dispersão dos outros membros daComitiva devido a um súbito ataque de soldados orcs, alguns a serviço do Senhor doEscuro de Mordor, outros a serviço do traidor Saruman de Isengard. A Demanda doportador do Anel já parecia estar fadada ao desastre.

A segunda parte (Livros III e IV), As Duas Torres, reconta os feitos da Comitivadepois do rompimento da Sociedade do Anel. O Livro III narra o arrependimento e amorte de Boromir, e seu funeral num barco que foi acolhido pelas Cachoeiras de Rauros;a captura de Meriadoc e Peregrin por soldados orcs, que os levaram na direção deIsengard por sobre as planícies orientais de Rohan, e a procura dos dois empreendida porAragorn, Legolas e Gimli. Então apareceram os Cavaleiros de Rohan. Uma tropa decavaleiros, conduzida por Éomer, o Marechal, cercou os orcs nas fronteiras da Floresta deFangorn e os destruiu; mas os hobbits escaparam para dentro da floresta, ondeencontraram Barbárvore, o ent, mestre secreto de Fangorn.

Na companhia dele testemunharam o despertar da ira do Povo das Árvores e suamarcha sobre Isengard.

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Enquanto isso, Aragorn e seus companheiros encontraram Éomer voltando dabatalha. Ele lhes forneceu cavalos, e os três cavalgaram para dentro da floresta.

Ali, procurando em vão os hobbits, encontraram novamente Gandalf, que retornarada morte e agora era o Cavaleiro Branco, apesar de ainda estar disfarçado em suas vestescinzentas. Com ele cavalgaram através de Rohan e chegaram ao Palácio do Rei Théoden,da Terra dos Cavaleiros, onde Gandalf curou o rei idoso e o resgatou dos feitiços deLíngua de Cobra, seu conselheiro maligno e aliado secreto de Saruman. Então calvagaramcom o rei e seu exército, avançando contra as forças de Isengard, tomando parte na vitóriadesesperada do Forte da Trombeta. Gandalf os conduziu então para Isengard, e elesencontraram a grande fortaleza em ruínas, destruída pelo Povo das Árvores, e Saruman eLíngua de Cobra cercados na invencível torre de Orthanc.

Na discussão diante da porta, Saruman se recusou a se arrepender; Gandalf depôs equebrou o seu cajado, deixando-o sob a vigilância dos ents. De uma alta janela, Língua deCobra atirou em Gandalf uma pedra, mas não acertou o alvo, e a pedra foi apanhada porPeregrin. A pedra acabou sendo revelada como um dos três palantír remanescentes, asPedras-videntes de Númenor. Mais tarde naquela noite, Peregrin sucumbiu á atração daPedra; roubou-a e olhou dentro dela, e dessa forma revelou-se a Sauron.

O livro termina com a chegada nas planícies de Rohan de um nazgúl, Espectro doAnel montado num cavalo alado, presságio da guerra iminente. Gandalf entregou opalantír a Aragorn, e, levando Peregrin, foi cavalgando na direção de Minas Tirith.

O Livro IV se volta para Frodo e Samwise, agora perdidos nas colinas desertas dasEmyn Muil. Narra como eles escaparam das colinas e foram alcançados por Sméagol-Gollum, e como Frodo domou Gollum e quase derrotou sua malícia, de modo que Gollumos conduziu através dos Pântanos Mortos e das terras arruinadas até o Morannon, o PortãoNegro da Terra de Mordor, no norte.

Por ali foi impossível entrar, e Frodo aceitou o conselho de Gollum: procurar uma"passagem secreta" que ele sabia existir, no lado sul das Montanhas da Sombra, asmuralhas ocidentais de Mordor. Em sua viagem para lá depararam com um grupo debatedores dos homens de Gondor, liderado por Faramir, irmão de Boromir. Faramirdescobriu a natureza da Demanda dos hobbits, mas resistiu á tentação à qual Boromirsucumbira, e os liberou para que fossem em frente, no último estágio de sua jornada, atéCirith Ungol, a Passagem da Aranha, não sem antes deixar de adverti-los do perigo mortalque representava aquele lugar, sobre o qual Gollum lhes dissera menos do que sabia. Nomomento em que atingiram a Encruzilhada e tomaram a trilha para a terrível cidade deMinas Morgul, uma grande escuridão surgiu de Mordor, cobrindo toda a região. EntãoSauron enviou seu primeiro exército, liderado pelo Rei Negro dos Espectros do Anel: aGuerra do Anel começara.

Gollum conduziu os hobbits a um caminho secreto que evitava Minas Morgul, e naescuridão eles chegaram finalmente a Cirith Ungol. Ali Gollum teve uma recaída e voltoua ser mau, tentando traí-los e entregá-los à monstruosa guardiã da passagem, Laracna. Foifrustrado pelo heroísmo de Samwise, que repeliu seu ataque e feriu Laracna.

A segunda parte termina com as escolhas de Samwise. Frodo, picado por Laracna,jaz morto, ao que parece: ou a Demanda terminaria em desastre, ou Samwise deveriaabandonar seu mestre. Finalmente ele pega o Anel e tenta sozinho levar a cabo aDemanda desesperada. Mas, no momento em que está prestes a entrar na terra de Mordor,um grupo de orcs sobe de Minas Morgul e outro desce da torre de Cirith Ungol, queguarda o topo da passagem. Escondido pelo Anel, Samwise fica sabendo pela discussãodos orcs que Frodo não está morto, mas apenas drogado.

Persegue-os mas não consegue alcançá-los; os orcs levam embora o corpo de

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Frodo e descem por um túnel que leva para o portão traseiro de sua torre. Samwisedesmaia diante do Portão, no momento em que este se fecha com um clangor.

Este volume, a terceira e última parte, narrará as estratégias opostas de Sauron eGandalf, até a catástrofe final no fim da Grande Escuridão. Voltaremos primeiro aodestino da batalha no oeste.

O RETORNO DO REI

TERCEIRA PARTE DE

O Senhor dos Anéis

LIVRO V

CAPÍTULO IMINAS TIRITH

Pippin espiou de dentro do abrigo da capa de Gandalf. Perguntou-se se estavaacordado ou continuava dormindo, ainda no sonho veloz no qual estivera envolto desdeque a grande cavalgada começara. O mundo escuro passava correndo e o vento cantavaalto em seus ouvidos. Não conseguia ver nada exceto as estrelas rodopiantes, e nadistância, á sua direita, vastas sombras contra o céu onde as montanhas do sul passavammarchando. Sonolento, tentava calcular os períodos e etapas da viagem, mas sua memóriaestava entorpecida e cheia de dúvidas.

Houvera a primeira cavalgada, numa velocidade alucinante e sem paradas, edepois, na aurora, Pippin vislumbrara um pálido brilho dourado, e eles tinham chegado àsilenciosa cidade e à grande casa vazia sobre a colina. E mal tinham alcançado esseabrigo quando a sombra alada passou sobrevoando mais uma vez, deixando os homensdescorçoados de medo. Mas Gandalf lhe disse palavras suaves, e Pippin adormeceu numcanto, cansado mas inquieto, percebendo vagamente as idas e vindas, e os homensconversando, e Gandalf dando ordens. E, depois, outra cavalgada, outra cavalgada nanoite. Aquela era a segunda, não, a terceira noite desde que o hobbit olhara dentro daPedra. E com essa lembrança hedionda despertou completamente, e tremeu; o ruído dovento se encheu de vozes ameaçadoras.

Uma luz se acendeu no céu, um clarão de fogo amarelo atrás de barreiras escuras.Pippin se escondeu amedrontado naquele momento, perguntando-se para que terratemível Gandalf o levava. Esfregou os olhos, e então viu que era a lua subindo acima dassombras do leste, agora quase cheia. Isso significava que a noite estava começando, e aescura viagem continuaria por horas. Mexeu-se e falou.

- Onde estamos, Gandalf? perguntou ele.- No reino de Gondor - respondeu o mago. - A terra de Anórien ainda está

passando.

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Ficaram em silêncio por mais um período. Então, de repente: - Que é aquilo,Gandalf? - gritou Pippin, agarrando-se à capa do mago. - Olhe! Fogo, fogo vermelho!Existem dragões nesta terra? Olhe, lá está outro!

Como resposta Gandalf gritou para o cavalo:- Adiante, Scadufax! Precisamos nos apressar. O tempo é curto. Veja! Os faróis de

Gondor estão acesos, pedindo socorro. A guerra está acesa. Veja, lá está o fogo sobreAmon Din, e a chama sobre Eilenach; e lá vão eles correndo para o oeste:

Nardol, Erelas, Min-Rimmon, Calenhad e Halifirien nas fronteiras de Rohan.Mas Scadufax reduziu suas passadas, limitando-se a andar, e então ergueu a cabeça

e relinchou. E da escuridão veio o relinchar de outros cavalos em resposta; de repenteouviu-se o ruído surdo de cascos, e três cavaleiros passaram correndo como fantasmasvoando ao luar, e desaparecendo no oeste. Então Scadufax se recompôs e deu um salto áfrente, e a noite fluía sobre ele como um vento a rugir.

Pippin ficou sonolento outra vez, e prestou pouca atenção ao que Gandalf lhe diziasobre os costumes de Gondor, e sobre como o Senhor da Cidade mandara construir faróisnos topos das montanhas externas, ao longo das duas bordas da grande cordilheira, emantinha postos nesses pontos onde cavalos descansados estavam sempre de prontidãopara levar os mensageiros em missões a Rohan no norte, ou a Belfalas no sul. - Faz tempoque os faróis não se acendem - disse ele -, e nos dias antigos eles não eram necessários,pois Gondor tinha as Sete Pedras. - Pippin se agitou, inquieto.

-Durma outra vez, e não tenha medo! - disse Gandalf - Pois você não está indopara Mordor, como Frodo, mas para Minas Tirith, e lá estará tão a salvo como poderiaestar em qualquer outro lugar nestes tempos. Se Gondor cair, ou se o Anel for tomado, oCondado não será nenhum refúgio.

- Você não me consola - disse Pippin, mas apesar disso foi dominado pelo sono. Aúltima coisa de que pôde se recordar antes de cair em sonhos profundos foi a rápida visãode picos altos e brancos, reluzindo como ilhas flutuantes acima das nuvens, quandocaptavam a luz da lua que ia em direção ao oeste. Ficou imaginando onde Frodo estaria,se já tinha chegado a Mordor, ou se estaria morto, sem saber que Frodo, de muito longe,observava a mesma lua que se punha além de Gondor, antes do inicio do dia.

Pippin acordou ao som de vozes. Tinham-se passado mais um dia de ocultamento emais uma noite de viagem. Amanhecia: a aurora fria estava próxima outra vez, e névoasgeladas e cinzentas os envolviam. Scadufax parou, molhado de suor, mas ainda com opescoço altivo e sem demonstrar sinais de cansaço.

Muitos homens altos e com capas pesadas estavam ao lado dele, e atrás, na névoa,assomava uma muralha de pedra. Parecia parcialmente arruinada, mas ainda antes que anoite tivesse passado ouviram-se os ruídos de um trabalho urgente: batidas de martelos,tinidos de trolhas, e ranger de rodas. Em alguns pontos, tochas e chamas tremeluziamfracas no nevoeiro.

Gandalf conversava com os homens que haviam barrado seu caminho e, enquantoescutava, Pippin percebeu que ele mesmo era o assunto da discussão.

- Sim, é verdade, nós conhecemos você, Mithrandir - disse o líder dos homens -, evocê conhece as senhas dos Sete Portões, e está livre para seguir em frente.

Mas não conhecemos seu companheiro. O que é ele? Um anão vindo dasmontanhas do norte? Não queremos forasteiros em nossa terra nestes tempos, a não serque sejam valorosos combatentes, em cuja lealdade e ajuda possamos confiar.

- Eu me responsabilizo por ele diante do trono de Denethor - disse Gandalf. - E,quanto a valor, isso não pode ser medido pela estatura. Ele passou por mais batalhas eperigos que você, Ingold, embora você tenha o dobro tomado de um grande cansaço, caso

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contrário eu o acordaria. Seu nome é Peregrin, um homem muito corajoso.- Homem? disse Ingold com um ar duvidoso, e os outros riram.- Homem! - gritou Pippin, embora não tivesse acordado inteiramente. - Homem!

Realmente não! Sou um hobbit, e não sou mais corajoso do que sou homem, a não sertalvez de vez em quando, por necessidade. Não se deixem enganar por Gandalf.

- Muitos autores de grandes feitos não poderiam dizer nada além disso - disseIngold. - Mas o que é um hobbit?

- Um Pequeno - respondeu Gandalf. - Não, não aquele que foi mencionado -acrescentou ele, percebendo a admiração nos rostos dos homens.

-Não ele, mas um parente dele.- É sim, um que viajou com ele - disse Pippin. – E Boromir, de sua Cidade, estava

conosco, e me salvou na neve do norte, e no fim foi morto quando me defendia de muitosinimigos.

- Calma! - disse Gandalf - A noticia dessa desgraça devia ser contada primeiropara o pai dele.

- Já se imagina o que ocorreu - disse Ingold -; pois houve acontecimentosestranhos aqui ultimamente. Mas agora passem á frente depressa. Pois o Senhor de MinasTirith ficará ansioso por ver qualquer um que traga as últimas noticias de seu filho, sejaele um homem ou um...

- Hobbit - disse Pippin. - De pouca serventia posso ser para o seu senhor, mas fareio que puder, em memória do bravo Boromir.

- Passem bem! - disse Ingold; e os homens abriram caminho para Scadufax, queatravessou um portão estreito na muralha. - Que você possa trazer bons conselhos aDenethor em sua necessidade, e a todos nós, Mithrandir! - exclamou Ingold. - Mas vocêchega com noticias de tristeza e Perigo, como dizem que é seu hábito.

- Isso porque raramente venho quando minha ajuda não é necessária - respondeuGandalf - E, quanto a conselhos, a você diria que é tarde demais para consertar a muralhado Pelennor. A coragem será agora sua melhor defesa contra a tempestade que seaproxima - essa é a única esperança que trago. Pois nem todas as noticias que trago sãomás. Mas abandonem suas trolhas e afiem suas espadas.

- O trabalho estará terminado antes do fim da tarde - disse Ingold. - Esta, a últimaparte da muralha a ser erguida em defesa: a menos aberta ao ataque, pois volta-se paranossos amigos de Rohan. Você sabe alguma coisa sobre eles? Será que responderão áconvocação?

- Sim, eles virão. Mas lutaram muitas batalhas em sua retaguarda. Esta, comoqualquer outra estrada, deixou de conduzir para a segurança. Estejam vigilantes. Se nãofosse por Gandalf, o Corvo da Tempestade, vocês teriam visto um exército de inimigosvindo de Anórien, e nenhum Cavaleiro de Rohan. E isso ainda pode acontecer. Passembem, e não durmam!

Gandalf agora penetrava a ampla região além de Rammas Echor.Assim os homens de Gondor chamavam a muralha externa que haviam construído

á custa de grande trabalho, depois que Ithilien caíra sob a sombra do Inimigo. A muralhase estendia por dez milhas ou mais, saindo dos pés das montanhas e depois retornando,fechando em seu interior os campos de Pelennor: belas e férteis regiões citadinas naslongas encostas e patamares que desciam até os níveis inferiores do Anduin. Em seuponto mais afastado do Grande Portão da Cidade, a nordeste, a muralha ficava a quatroléguas de distância, e lá, de um barranco franzido, viam-se as grandes planíciesmargeando o rio, e os homens tinham-na feito alta e forte; pois naquele ponto, sobre umdique murado, a estrada entrava vindo dos vaus e pontes de Osgiliath, e atravessava um

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portão vigiado entre torres com ameias. No ponto mais próximo, a muralha ficava a poucomais de uma légua da Cidade, a sudeste. Ali o Anduin, desenhando um grande cotoveloem torno das colinas de Emyn Arnen em Ithilien do Sul, fazia uma curva fechada a oeste,e a muralha externa se erguia exatamente sobre sua margem; abaixo dela ficavam os caise desembarcadouros do Harlond, para embarcações que subiam a correnteza vindo dosfeudos do sul.

As regiões citadinas eram ricas, com amplas lavouras e muitos pomares, e fazendascom fornos e silos, currais e estábulos, e muitos riachos ondulando através do verde,descendo das regiões mais altas até o Anduin. Apesar disso, os pastores e lavradores quemoravam ali não eram muitos, e a maior parte do povo de Gondor vivia nos sete círculosda Cidade, ou nos altos vales das fronteiras montanhosas em Lossarnach, ou mais além,ao sul, na bela Lebennin com seus cinco lépidos rios.

Ali, entre as montanhas e o mar, morava um povo forte. Eram consideradoshomens de Gondor, mas seu sangue era mesclado, e havia pessoas baixas e morenas entreeles, cujos antepassados eram na maioria os homens esquecidos que moraram na sombradas montanhas nos Anos Escuros, antes da chegada dos reis. Mas mais além, no grandefeudo de Belfalas, morava o Príncipe Imrahil, em seu castelo de Doí

Amroth perto do mar, e ele tinha sangue nobre, e seu povo também, homensgrandes e altivos com olhos cinzentos da cor do mar.

Depois que Gandalf tinha cavalgado por algum tempo, a luz do dia aumentou nocéu. E Pippin despertou e ergueu os olhos. A sua esquerda viu um mar de névoa,formando uma sombra desolada no céu ao leste, mas à sua direita grandes montanhaserguiam suas cabeças, formando uma cadeia que vinha do oeste e chegava a um finalíngreme e abrupto, como se na formação daquela região o Rio tivesse irrompido atravésde uma grande barreira, esculpindo um poderoso vale a fim de transformá-lo numa terrade batalha e debate nos tempos vindouros. E no ponto onde as Montanhas Brancas deEred Nimrais chegavam ao fim ele viu, como Gandalf prometera, a massa escura doMonte Mindolluin, as sombras púrpuras e escuras de seus altos vales, e sua alta facebranqueando no dia que avançava. E sobre o seu joelho protuberante ficava a CidadeGuardada, que com suas sete muralhas de pedra, tão fortes e antigas, não dava aimpressão de ter sido construída, mas sim esculpida por gigantes nos próprios ossos daterra.

No momento em que Pippin olhava boquiaberto, as muralhas passaram deum cinza indistinto para um tom branco, levemente rosado pela aurora; e de repente o solsubiu acima da sombra do leste e enviou um raio que bateu na face da Cidade. EntãoPippin deu um grito, pois a Torre de Ecthelion, erguendo-se altiva dentro das muralhasmais altas, brilhou contra o céu, reluzindo qual esporão de pérola e prata, alta, bela eelegante, com seu pináculo faiscando como se fosse de cristais; e bandeiras brancas seabriram e tremularam nos baluartes ao compasso da brisa da manhã, e alto e distantePippin ouviu um toque cristalino, que parecia sair de trombetas de prata.

Assim Gandalf e Peregrin cavalgaram até o Grande Portão dos homens de Gondorao nascer do sol, e as portas de ferro se abriram diante deles.

- Mithrandir! Mithrandir! - gritavam os homens. – Agora sabemos que atempestade realmente está próxima!

- Está sobre vocês - disse Gandalf. - Cavalguei em suas próprias asas. Deixem-mepassar! Devo encontrar-me com o seu Senhor, Denethor, enquanto sua regência aindaperdura. O que quer que aconteça, vocês chegaram ao fim da Gondor que conheceram.Deixem-me passar!

Os homens recuaram diante do comando da voz do mago e não o interrogaram

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mais, embora olhassem admirados para o hobbit montado diante dele e para o cavalo queos trazia. Pois o povo da Cidade raramente usava cavalos e eles quase nunca eram vistosnas ruas, exceto aqueles montados Pelos mensageiros de seu senhor. E disseram: - Não éeste um dos grandes corcéis do Rei de Rohan? Talvez os rohirrim venham logo paraaumentar fossa força. - Mas Scadufax subiu com altivez a estrada longa e sinuosa.

O modelo de Minas Tirith era tal que a Cidade fora construída em Sete níveis, cadaum cavado no flanco da colina, e ao redor de cada nível se erguia uma muralha, e em cadamuralha havia um portão. Mas os portões não eram alinhados, o Grande Portão daMuralha da Cidade ficava no ponto leste do circuito, mas o seguinte voltava-separcialmente para o sul, e o terceiro parcialmente para o norte, e assim, ora de um lado,ora do outro, dispunham-se os portões na subida, de modo que o caminho pavimentadoque ia na direção da Cidadela virava-se primeiro para um lado e depois para o outro pelaencosta da colina. E, cada vez que o caminho passava pela linha do Grande Portão,atravessava um túnel em arco, perfurando um vasto pilar de rocha cujo corpo enorme eprotuberante dividia em dois todos os círculos da Cidade, com a exceção do primeiro.Pois, em parte devido ao formato inicial da colina, e em parte ao oficio e trabalho árduodos antigos, ali se erguia, por detrás do amplo pátio além do Portão, uma alta fortaleza depedra, com sua borda pontuda como a quilha de um navio voltada para o leste. A fortalezasubia até o nível do círculo superior, e ali era coroada por um baluarte, de forma que oshabitantes da Cidadela, como marinheiros num navio muito alto, podiam observar dotopo, numa linha vertical, o Portão que ficava mais de duzentos metros abaixo. A entradapara a Cidadela também dava para o leste, mas era cavada no coração da rocha. Ali umalonga rampa iluminada conduzia ao sétimo portão. Dessa forma os homens atingiamfinalmente o Pátio Alto, e a Praça da Fonte diante dos pés da Torre Branca: alta eelegante, noventa metros da base até o pináculo, onde a bandeira dos Regentes tremulavatrezentos metros acima da planície.

Realmente era uma cidadela forte, que não poderia facilmente ser tomada por umexército inimigo, se houvesse alguém lá dentro que soubesse manejar armas; a não serque algum inimigo viesse por trás e escalasse as fraldas inferiores do Mindolluin, e assimchegasse ao patamar estreito que juntava a Colina da Guarda á massa da montanha. Masaquele patamar, que atingia o nível da quinta muralha, era cercado com grandes baluartesaté o precipício que se projetava sobre sua extremidade oeste, e naquele espaço ficavamcasas e túmulos abobadados de reis e senhores antigos, para sempre silenciosos entre amontanha e a torre.

Pippin observava num espanto crescente a grande cidade de pedra, mais vasta eesplêndida do que qualquer coisa que jamais sonhara, maior e mais forte que Isengard, emuito mais bonita. Apesar disso, na verdade, a cidade estava se deteriorando ano apósano, já sem metade dos homens que poderiam morar confortavelmente ali. Em cada ruapassavam por alguma grande casa ou pátio, em cujas portas e portões em arco estavamesculpidas muitas letras belas de formatos estranhos e antigos: nomes que Pippin supôsserem de grandes homens e famílias que outrora moraram lá; mas agora estavam emsilêncio, sem ruídos de passos em suas amplas calçadas, ou de vozes nos salões, nemqualquer rosto olhando das portas ou janelas vazias.

Finalmente saíram da sombra para o sétimo portão, e o sol quente que brilhavaalém do rio, no momento em que Frodo caminhava nas clareiras de Ithilien, reluzia aquinas paredes lisas e nos pilares profundos, e no grande arco com fecho esculpido àsemelhança de uma cabeça de rei coroada. Gandalf desmontou, pois não se permitia aentrada de nenhum cavalo na Cidadela, e Scadufax se deixou levar embora ao comandosuave de seu dono.

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Os Guardas do portão estavam vestidos de preto, e seus elmos tinham formatosestranhos, com a parte superior muito alta e com protetores faciais perfeitamenteajustados ao rosto, e acima desses protetores encaixavam-se as asas brancas de pássarosmarinhos; mas os elmos cintilavam com uma chama de prata, pois na realidade eramfeitos de mithril, legados da glória de dias antigos. Sobre as vestes negras estava bordadaem branco uma árvore florescendo como neve sob uma corôa de prata e estrelas de muitaspontas. Esse era o uniforme dos herdeiros de Elendil, e ninguém o usava em Gondor, anão ser os Guardas da Cidadela diante do Pátio da Fonte, onde a Arvore Branca outroracrescera.

Já parecia que a noticia de sua chegada os precedera; imediatamente foramadmitidos, silenciosamente e sem perguntas. Gandalf atravessou depressa o pátiopavimentado com pedras brancas. Uma fonte suave brincava ali no sol da manhã, e umgramado verde-claro jazia ao redor dela; mas na névoa, inclinando-se sobre o lago, haviauma árvore morta, e gotas pingavam tristemente de seus ramos secos e quebrados, caindode novo na água límpida.

Pippin a contemplou enquanto corria atrás de Gandalf. A cena era melancólica,pensou ele, e ficou imaginando por que a árvore morta fora deixada naquele lugar ondetodo o resto era bem cuidado.

Sete estrelas, sete pedras e uma árvore branca.As palavras murmuradas por Gandalf retornaram-lhe á mente. E então viu-se às

portas do grande palácio sob a torre reluzente, e seguindo o mago passou pelas altassentinelas e entrou nas sombras frescas e ressonantes da casa de pedra.

Desceram uma passagem pavimentada, longa e vazia, e enquanto caminhavamGandalf falou baixinho para Pippin.

- Cuidado com suas palavras, Mestre Peregrin! Isso não é hora para atrevimentosde hobbits. Théoden é um velho gentil. Denethor é um outro tipo, orgulhoso e astuto, umhomem de linhagem e poder muito maiores, embora não seja chamado de rei. Mas ele vaise dirigir a maior parte do tempo a você, e interrogá-lo muito, uma vez que você pode lhecontar sobre seu filho Boromir. Denethor o amava muito: talvez demais, sobretudo porqueeles eram diferentes. Mas usando o disfarce desse amor ele vai considerar mais fácil sabero que deseja por seu intermédio, e não por mim. Não lhe conte mais do que o necessário,e deixe de lado o assunto da missão de Frodo. Vou cuidar disso no tempo certo. E nãodiga nada também sobre Aragorn. a não ser que seja inevitável.

- Por que não? Qual é o problema com Passolargo? – Pippin sussurrou. - Ele tinhaa intenção de vir para cá, não tinha? E de qualquer forma estará chegando em breve.

- Talvez, talvez - disse Gandalf. - Mas, se vier, é provável que chegue de umaforma que ninguém espera, nem mesmo Denethor. Será melhor assim. Pelo menos émelhor que chegue sem ter sido anunciado por nós.

Gandalf parou diante de uma porta alta de metal polido.- Veja, Mestre Pippin, não há tempo agora para instruí-lo sobre a história de

Gondor, embora talvez fosse melhor se você tivesse aprendido algo sobre o assunto,quando ainda estava procurando ninhos de pássaros e gazeteando nos bosques doCondado. Faça como eu ordeno! É pouco inteligente, quando se traz a um senhorpoderoso a noticia da morte de seu herdeiro, falar muito sobre a chegada de alguém que,se chegar, reivindicará a realeza. Isso basta?

- A realeza? - perguntou Pippin surpreso.- É isso mesmo - disse Gandalf. - Se você viajou todos esses dias com os ouvidos

tapados e o cérebro adormecido, acorde agora! - O mago bateu na porta.A porta se abriu, mas não se viu ninguém abrindo-a. Pippin divisou um grande

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salão. Era iluminado por janelas profundas ao longo dos amplos corredores dos doislados, atrás das fileiras de altos pilares que sustentavam o teto.

Monolitos de mármore negro, eles se erguiam até grandes capitéis esculpidos naforma de muitas figuras estranhas de animais e folhas: bem acima, na sombra, a amplaabóbada reluzia num ouro pálido, combinado com esculturas de muitas cores. Não havianada pendurado, nem tapetes mostrando cenas de histórias, nem objetos tecidos ou demadeira. naquele longo salão solene; mas entre os pilares erguia-se um exército de altasimagens gravadas na pedra fria.

De repente Pippin lembrou-se das rochas esculpidas dos Argonath, e ficou tomadode admiração, olhando aquela avenida de reis há muito mortos. Na extremidade, sobreuma plataforma de muitos degraus, erguia-se um trono alto sob um dossel de mármore,que tinha a forma de um elmo coroado. Atrás dele, gravada na parede e adornada compedras, via-se a imagem de uma árvore em flor. Mas o trono estava vazio. Ao pé daplataforma, sobre o degrau inferior, que era largo e profundo, havia uma cadeira de pedrapreta e sem adornos, e nela estava sentado um velho que olhava para o próprio colo. Emsua mão via-se um bastão branco com um botão de ouro. Não ergueu os olhos.Solenemente os dois caminharam pelo longo piso na direção dele, até ficarem a trêspassos de seu escabelo. Então Gandalf falou.

- Salve, Senhor e Regente de Minas Tirith, Denethor, filho de Ecthelion! Venhocom conselhos e notícias nesta hora escura...

Então o velho ergueu os olhos. Pippin viu seu rosto esculpido, com ossos salientese pele de marfim, com o longo nariz adunco entre os olhos escuros e profundos, que ofizeram lembrar-se mais de Aragom que de Boromir.

- Realmente a hora é escura disse o velho -, e nessas horas espera-se a sua chegada,Mithrandir. Mas, embora todos os sinais prenunciem que o fim de Gondor se aproxima,menor para mim agora é essa treva que a minha própria treva. Foi-me dito que você trazconsigo alguém que viu meu filho morrer. É ele?

- É - disse Gandalf. - Um dos dois. O outro está com Théoden de Rohan eprovavelmente chegará mais tarde. São Pequenos, como vê, embora este não seja aquelede quem os presságios falaram.

- Apesar disso, um Pequeno - disse Denethor com um ar severo -, e tenho poucoamor pelo nome, uma vez que aquelas malditas palavras vieram perturbar nossos planos elevar meu filho na missão alucinada que o conduziu à morte. Meu Boromir! Agoraprecisamos de você. Faramir deveria ter ido em seu lugar.

- Ele teria ido - disse Gandalf - Não seja injusto em sua tristeza! Boromirreivindicou a missão e não admitiu que ninguém mais a assumisse. Era um homemobstinado, que fazia o que desejava. Viajei longamente ao lado dele e aprendi muito sobresua personalidade. Mas você fala de sua morte. Já sabia da noticia antes de nossachegada?

- Recebi isto - disse Denethor, colocando de lado o bastão e erguendo do colo acoisa que estivera fitando. Em cada mão ele ergueu uma metade de uma grande cornetapartida ao meio: um chifre de touro selvagem adornado de prata.

- Essa é a corneta que Boromir sempre carregava! - exclamou Pippin.- Exatamente - disse Denethor. - E em minha época eu a carreguei, e da mesma

forma fizeram todos os primogênitos de nossa casa, desde os anos imemoriais antes daqueda dos reis, desde que Vorondil, pai de Mardil, caçou as reses selvagens de Araw nosdistantes campos de Rhún. Ouvi-a soando fraca nas fronteiras do norte há treze dias, e orio a trouxe a mim, quebrada. Nunca mais tocará. - Parou de falar e fez-se um silênciopesado. De repente virou seu olhar obscuro na direção de Pippin: - Que me diz sobre isso,

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Pequeno?- Treze, treze dias - vacilou Pippin. - Sim, acho que é isso mesmo. estava ao lado

dele, no momento em que tocou a corneta. Mas nenhuma ajuda chegou. Apenas maisorcs.

- Então - disse Denethor, lançando um olhar agudo para o rosto de Pippin. - Vocêestava lá? Conte-me mais! Por que nenhuma ajuda chegou?

E como você escapou, e ele não, sendo um homem tão poderoso, com apenasorcs para enfrentá-lo?Pippin corou e esqueceu o medo. - O homem mais poderoso pode ser morto por

uma flecha - disse ele -; e Boromir teve o corpo perfurado por várias. Quando o vi pelaúltima vez, ele recostou-se numa árvore e arrarancou uma lança com plumas pretas de seuflanco. Então desmaiei e fui capturado. Não o vi mais, e não sei de mais nada. Masrespeito sua memória, pois ele era muito corajoso. Morreu para nos salvar, a meu parenteMeriadoc e a mim, atocaiados na floresta pelos soldados do Senhor do Escuro; e, emboraele tenha perecido e fracassado, minha gratidão é a mesma.

Então Pippin olhou nos olhos do velho, pois o orgulho se agitava de maneiraestranha dentro dele, ainda mordido pelo desprezo e pela suspeita daquela voz fria. -Pouca serventia, sem dúvida, um senhor de homens tão poderoso achará num hobbit, umPequeno vindo do Condado do norte; mas mesmo assim vou oferecê-la, em pagamento daminha dívida. - Afastando para o lado a capa cinzenta num movimento brusco, Pippinpuxou a espada e a depôs aos pés de Denethor.

Um sorriso pálido, como o reluzir de um sol frio numa manhã de inverno, passoupelo rosto do velho, mas ele curvou a cabeça e estendeu a mão, colocando de lado ospedaços da corneta. - Dê-me a arma! - disse ele.

Pippin a ergueu e apresentou-lhe o punho. - De onde veio isto? - perguntou Denethor. - Muitos, muitos anos repousam sobre

ela. Sem dúvida é uma espada criada por nossos próprios parentes do norte, no passadodistante.

- Veio dos túmulos que jazem nas fronteiras de minha terra - disse Pippin. - Masapenas criaturas más moram lá agora, e não estou disposto a falar mais sobre elas.

- Percebo que histórias estranhas se entretecem ao seu redor - disse Denethor -, emais uma vez fica demonstrado que as aparências podem dar uma idéia falsa sobre ohomem - ou sobre o Pequeno. Aceito seu serviço. Pois você não se intimida com aspalavras, e tem uma fala cortês, embora o som dela possa nos parecer estranho aqui nosul. E precisaremos de todas as pessoas corteses, sejam elas grandes ou pequenas, nosdias vindouros. Preste-me seu juramento agora.

- Pegue o punho - disse Gandalf- e fale depois do Senhor, se estiver resolvido emrelação a isso. - Estou - disse Pippin.

O velho colocou a espada sobre seu colo, e Pippin pôs a mão no punho, e dissedevagar, repetindo as palavras de Denethor:

- Aqui juro fidelidade e serviço a Gondor, e ao Senhor e Regente do reino, falandoe calando, agindo e não agindo, vindo e indo, na necessidade e na fartura, na paz ou naguerra, na vida ou na morte, desta hora em diante, até que meu senhor me libere, ou amorte me leve, ou o mundo acabe. Assim digo eu, Peregrin, filho de Paladin do Condadodos Pequenos.

- E isso eu escuto, Denethor, filho de Ecthelion, Senhor de Gondor, Regente doAlto Rei, e não me esquecerei, nem deixarei de recompensar o que me é oferecido:fidelidade com amor, coragem com respeito, perjúrio com vingança – Depois Pippinrecebeu de volta a espada e a colocou na bainha.

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- E agora - disse Denethor - minha primeira ordem para você: fale e não deixe dedizer nada! Conte-me toda a sua história, e trate de recordar-se de tudo o que puder sobreBoromir, meu filho. Sente-se agora e comece!

Enquanto falava, tocou um pequeno gongo de prata que ficava perto de seuescabelo, e imediatamente serviçais apareceram. Pippin percebeu então que eles tinhamestado em alcovas dos dois lados da porta, sem serem vistos quando ele e Gandalfentraram.

- Tragam vinho, comida e cadeiras para os convidados – disse Denethor - e cuidempara que ninguém nos incomode pelo período de uma hora.

- É todo o tempo de que disponho, pois há muito mais coisas a fazer disse ele aGandalf. - Muitas e mais importantes, pode parecer, e apesar disso para mim são menosurgentes. Mas talvez possamos conversar outra vez no fim do dia.

- E mais cedo, deve-se esperar - disse Gandalf - Pois eu não vim de Isengard atéaqui, ao longo de cento e cinquenta léguas, na velocidade do vento, apenas para trazer-lheum pequeno guerreiro, por mais cortês que ele seja. Não significa nada para você o fatode Théoden ter lutado numa grande batalha, e Isengard estar derrotada, e eu ter quebradoo cajado de Saruman?

- Significa muito. Mas já sei o suficiente sobre esses feitos para fazer meuspróprios planos contra a ameaça do leste. - Voltou os olhos escuros para Gandalf, e agoraPippin percebia uma semelhança entre os dois, e sentia a tensão entre eles, quase como sevisse uma linha de fogo latente traçada de olho a olho, que poderia de repente explodir emchamas.

Na verdade, Denethor se assemelhava muito mais a um grande mago que Gandalf,com mais realeza, mais beleza, mais poder e mais idade.

Apesar disso um sentido em Pippin, que não era a visão, percebia que Gandalftinha o poder maior, e a sabedoria mais profunda, e uma majestade velada. E era maisvelho, muito mais velho.

"Quanto mais velho?", perguntou-se ele, e então pensou como era estranho nuncater pensado nisso antes. Barbárvore dissera algo sobre os magos, mas mesmo naquelemomento ele não pensara em Gandalf como um deles, O que era Gandalf? Em que lugar eépoca distantes surgira no mundo, e quando o deixaria? Então suas meditações foraminterrompidas, e ele viu que Denethor e Gandalf ainda estavam se olhando, olhos nosolhos, como se estivessem lendo a mente um do outro.

Mas foi Denethor quem desviou o olhar primeiro.- Sim - disse ele -, pois, embora as Pedras estejam perdidas, pelo que dizem, ainda

os senhores de Gondor têm um olhar mais agudo que os homens inferiores, e muitasmensagens chegam a eles. Mas sentem-se agora!

Os homens vieram trazendo uma cadeira e um banco baixo, e um deles trouxe umabandeja com uma jarra de prata e taças, e bolos brancos.

Pippin sentou-se, mas não conseguiu tirar os olhos do velho senhor. Seria verdade,ou ele apenas imaginara, que enquanto Denethor falava das Pedras um brilho repentino deseu olhar se dirigira ao rosto de Pippin?

- Agora conte-me sua história, meu vassalo – disse Denethor, num tom de voz quemisturava cortesia e caçoada. - Pois as palavras de uma pessoa tão amiga de meu filhoserão realmente bem-vindas. Pippin jamais esqueceu aquela hora, no grande salão, sob oolhar agudo do Senhor de Condor, continuamente apunhalado por suas perguntasperspicazes, e consciente todo o tempo de Gandalf ao seu lado, observando, escutando e(assim sentia Pippin) controlando sua ira crescente e sua impaciência.

Quando a hora terminou e Denethor mais uma vez tocou o gongo, Pippin se sentia

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exausto. "Não podem ser mais de nove horas", pensou ele. "Conseguiria agora devorartrês desjejuns a fio."

- Conduzam o Senhor Mithrandir ao alojamento preparado para ele - disseDenethor - e seu companheiro poderá se alojar com ele por enquanto, se quiser. Que sejadivulgado que agora eu o tomei sob juramento a meu serviço, e ele deverá ser conhecidocomo Peregrin, filho de Paladin, e terá direito a aprender as senhas inferiores. Enviemordens aos Capitães dizendo que devem me encontrar aqui, o mais cedo possível depoisdo soar da terceira hora.

- E você, meu Senhor Mithrandir, deverá vir também, como e quando quiser.Ninguém impedirá que venha até mim a qualquer hora, com exceção das minhas breveshoras de sono. Deixe que a ira que sente em relação á tolice de um velho se esvaia, edepois retorne para meu consolo.

- Tolice? - disse Gandalf. - Não, meu senhor; quando for um parvo estará morto.Pode mesmo usar sua tristeza como um disfarce. Pensa que não entendo seu propósito eminterrogar por uma hora alguém que sabe o mínimo, enquanto eu fico sentadoobservando?

- Se entende, então fique feliz - respondeu Denethor. – O orgulho seria tolice, sedesdenhasse ajuda e aconselhamento na necessidade, mas você distribui essas dádivas deacordo com seus próprios desígnios. Apesar disso, o Senhor de Gondor não deve sertransformado na ferramenta dos propósitos de outros homens, não importa quanto sejamvalorosos. E para ele não há propósito mais alto no mundo, como ele se apresenta agora,do que o bem de Gondor; e a lei de Gondor, meu senhor, é minha e de nenhum outrohomem, a não ser que o rei retorne.

- A não ser que o rei retorne? - disse Gandalf. - Bem, meu senhor Regente, é suatarefa manter ainda algum reino tendo em vista esse evento, que agora poucos esperamver. Nessa tarefa terá toda a ajuda que estiver disposto a pedir. Mas vou lhe dizer isto: alei de nenhum reino é minha, nem a de Gondor nem a de qualquer outro, grande oupequeno. Mas todas as coisas que correm perigo no mundo como ele agora se apresenta,estas são a minha preocupação E, de minha parte, não terei fracassado inteiramente emminha missão, mesmo que Gondor venha a perecer, se alguma coisa atravessar esta noitee ainda puder crescer bela e dar flores e frutos de novo nos dias vindouros- Pois tambémsou um regente. Você não sabia? - E com isso virou-se e se afastou do salão, com Pippincorrendo ao seu lado.

Gandalf não olhou para Pippin, nem lhe dirigiu nenhuma palavra, enquanto os doiscaminhavam. O guia os conduziu pela porta do salão, e depois os levou através do Pátioda Fonte para uma alameda entre altas construções de pedra.

Depois de várias curvas chegaram a uma casa próxima à muralha da Cidadela, nolado norte, não muito distante da saliência que ligava a colina às montanhas. No interior,no primeiro andar acima da rua, subindo uma escada grande e esculpida, ele os levou parauma bela sala iluminada e arejada, com belos reposteiros de fosco brilho dourado, semfiguras. Havia poucos móveis: uma pequena mesa, duas cadeiras e um banco; mas dosdois lados havia alcovas com cortinas e camas bem guarnecidas, com jarras e vasilhaspara se lavarem. Havia três janelas altas e estreitas que davam para o norte, sobre agrande curva do Anduin, ainda oculto pela névoa, correndo na direção dos Emyn Muil ede Rauros lá adiante. Pippin precisava subir no banco para olhar por sobre o peitoril largode pedra.

- Está zangado comigo, Gandalf? - disse ele, quando o guia saiu e fechou a porta. -Fiz o melhor que pude.

- Realmente fez! - disse Gandalf, rindo de repente, e vindo ficar ao lado de Pippin,

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colocando o braço sobre os ombros do hobbit, e olhando através da janela. Pippinobservou com certa surpresa aquele rosto agora bem perto ao lado do seu, pois o som doriso fora alegre e contente. Mesmo assim, no rosto do mago só viu no inicio linhas depreocupação e de tristeza; todavia, olhando com mais atenção o hobbit percebeu que,subjugada a tudo, havia uma grande alegria: uma fonte de contentamento suficiente parafazer todo um reino rir, caso extravasasse.

- Realmente você fez o melhor que pôde - disse o mago -, e espero que demoremuito até você se achar encurralado assim de novo, entre dois velhos tão terríveis. Apesardisso, o Senhor de Gondor soube mais por você do que você possa ter imaginado, Pippin.Você não conseguiu ocultar o fato de que não foi Boromir quem liderou a Comitiva quedeixou Moria, e que havia entre vocês alguém de grande honra, que estava vindo paraMinas Tirith, e que esse alguém possuía uma espada famosa. Os homens de Gondorconsideram muito as histórias dos dias antigos; e Denethor tem meditado bastante na rimae nas palavras ruína de Isildur, desde que Boromir partiu.

- Ele não é como os outros homens de sua época, Pippin, e, qualquer que seja suadescendência de pai para filho, por algum acaso o sangue que corre em suas veias épraticamente o sangue legítimo do Ponente; como também o que corre nas veias de seuoutro filho, Faramir, e apesar disso não corria nas de Boromir, a quem ele amava mais.Ele tem uma visão aguda. Pode perceber, se forçar sua vontade, muito do que se passa nasmentes dos homens, mesmo daqueles que moram em lugares distantes. É difícil enganá-lo, e perigoso tentar.

- Lembre-se disso! Pois agora você deve servi-lo sob juramento. Não sei o quepassou por sua cabeça, ou em seu coração, para que fizesse aquilo. Mas foi bem feito.Não impedi, pois ações generosas não devem ser reprimidas por conselhos frios. Tocou-lhe o coração, além de (permita-me dizer) diverti-lo. E no mínimo agora você está livrepara caminhar à vontade em Minas Tirith – quando não estiver desempenhando algumatarefa. Pois há um outro lado. Você está sob as ordens do Senhor, e disso ele não seesquecerá. Por isso, tenha cuidado! Calou-se e suspirou. - Bem, não é necessáriopreocupar-se com o que o amanhã poderá trazer. Em primeiro lugar, porque o amanhãtrará certamente coisas piores que hoje, ainda por muitos dias vindouros. E não há maisnada que eu possa fazer para evitá-lo. O tabuleiro está armado, e as peças estão semovendo. Uma peça que desejo muito encontrar é Faramir, agora o herdeiro de Denethor.Não acho que ele esteja na Cidade, mas não tive tempo de colher noticias. Preciso ir,Pippin. Devo estar nesse conselho de senhores e obter todas as informações possíveis.Mas o lance agora é do Inimigo, e ele está prestes a abrir totalmente seu jogo. E éprovável que os peões possam ter um campo de visão tão amplo quanto qualquer outrapeça, Peregrin, filho de Paladin, soldado de Gondor. Afie sua espada!

Gandalf foi até a porta, e ali virou-se. - Estou com pressa, Pippin - disse ele. -Faça-me um favor quando sair. Antes mesmo de descansar, se não estiver cansadodemais. Vá procurar Scadufax e veja como ele está alojado. Este povo é gentil com osanimais, pois é um povo bom e sábio, mas tem menos habilidades com cavalos queoutros.

Dizendo isso, Gandalf saiu, e naquele momento ouviu-se um sino tocando suave elímpido numa torre da cidadela. Soou três vezes, como prata no ar, e parou: a terceirahora depois do nascer do sol.

Depois de um minuto, Pippin passou pela porta, desceu a escada e foi olhar na rua.O sol agora brilhava quente e claro, e as torres e velhas casas projetavam longas e nítidassombras na direção do oeste. Alto no ar azul, o Monte Mindolluin erguia seu elmo brancoe sua capa de neve. Homens armados iam de um lado para o outro nos caminhos da

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Cidade, como se ao bater das horas devessem mudar de posto e atividade.Nove horas nós diríamos no Condado - disse Pippin em voz alta para si mesmo. -

Hora exata para um desjejum agradável perto da janela aberta ao sol da primavera.E como adoraria um desjejum! Será que essas pessoas têm desjejum alguma vez,

ou será que já passou da hora? E quando será que almoçam, e onde?De repente notou um homem, vestido de branco e preto, vindo pela rua estreita do

centro da Cidadela na direção dele. Pippin sentiu-se solitário e tomou a decisão de falarquando o homem passasse; mas não foi necessário. O homem veio exatamente na direçãodele.

- Você é Peregrin, o Pequeno? - disse ele. - Ouvi dizer que você jurou servir aoSenhor e à Cidade. Bem-vindo! - Estendeu a mão e Pippin a apertou.

- Meu nome é Beregond, filho de Baranor. Não tenho obrigações esta manhã, e fuienviado para lhe ensinar as senhas e para lhe contar algumas das muitas coisas que semdúvida você deseja saber. E, quanto a mim, gostaria de saber sobre você também. Poisnunca antes nesta terra vimos um Pequeno, e, embora tenhamos ouvido falar sobre eles,pouco se fala deles nas histórias que conhecemos. Além do mais, você é amigo deMithrandir. Você o conhece bem?

- Bem - disse Pippin - ele é meu conhecido desde o início de minha curta vida,como se pode dizer; ultimamente tenho viajado com ele para lugares distantes. Mas hámuito a ser lido naquele livro, e não posso afirmar que vi mais que uma ou duas páginas.Apesar disso, talvez eu o conheça tão bem como qualquer um, com exceção de unspoucos. Aragorn era o único em nossa Comitiva, eu acho, que realmente o conhecia bem.

- Aragorn? - disse Beregond. - Quem é ele?- Oh! - gaguejou Pippin - era um homem que viajou conosco. Acho que agora está

em Rohan.- Você esteve em Rohan, ouvi dizer. Há muitas coisas que gostaria de lhe

perguntar sobre aquela terra também, pois depositamos naquele povo grande parte dapouca esperança que nos resta. Mas estou me esquecendo de minha missão, que eraresponder primeiro ao que você perguntasse. O que gostaria de saber, Mestre Peregrin?

- É, bem - disse Pippin - se eu puder ousar dizer isto, uma pergunta que estáqueimando em minha cabeça neste momento é, bem, e o desjejum e tudo mais? Querodizer, quais são as horas das refeições, se é que você me entende, e onde é a sala de jantar,se é que existe uma? E as estalagens? Eu procurei, mas não vi nenhuma em nossa subida,embora tenha vindo carregado pela esperança de poder conseguir um gole de cervejaquando chegássemos nas casas dos homens sábios e corteses.

Beregond lançou-lhe um olhar sério.- Um típico veterano, pelo que vejo - disse ele. - Dizem que os homens que vão

guerrear longe de casa estão sempre de olho na próxima oportunidade de conseguircomida e bebida, embora eu mesmo não seja um homem viajado. Quer dizer que você nãocomeu nada hoje?

- Bem, sim, para ser educado, digo que comi sim - disse Pippin. - Mas nada alémde uma taça de vinho e um ou dois pedaços de bolo branco graças à cortesia de seusenhor; mas em troca disso ele me torturou com uma hora de interrogatório, e isso é umtrabalho que dá fome.

Beregond riu.- A mesa, homens pequenos podem ser responsáveis pelos maiores feitos, dizemos

por aqui. Mas você quebrou seu jejum como qualquer homem na Cidadela, e com maioreshonras. Esta é uma fortaleza e uma torre de guarda, que está agora em regime de guerra.Levantamo-nos antes de o sol nascer, e comemos alguma coisinha na luz cinzenta, e

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vamos fazer nossos deveres na primeira hora. Mas não se desespere! - disse Beregondrindo outra vez, ao ver a frustração nos olhos de Pippin. - Aqueles que tiveramtrabalho pesado tomam alguma coisa para renovar suas forças no meio da manhã. Há oalmoço ao meio-dia ou mais tarde, como permitirem os deveres; e os homens se reúnempara a refeição do dia, e para a diversão que ainda é possível, na hora do pôr-do-sol.

- Venha! Vamos caminhar um pouco e depois achar alguma coisa para repor asenergias, e comida e bebida na ameia, apreciando a bela manhã.

- Um momento! - disse Pippin corando. - A voracidade, ou a fome, como vocêgentilmente diz, me tirou isso da cabeça. Mas Gandalf, Mithrandir, como vocês ochamam, me pediu que fosse ver o seu cavalo - Scadufax, um grande corcel de Rohan, e amenina dos olhos do rei, pelo que ouvi, embora tenha sido doado a Mithrandir por seusserviços. Acho que seu novo dono o ama mais do que ama a muitos homens, e, se a boavontade dele tem algum valor para esta cidade, vocês devem tratar Scadufax com todas ashonras: com maior gentileza do que trataram este hobbit, se for possível.

- Hobbit? - disse Beregond.- É assim que nos chamamos a nós mesmos - disse Pippin.- Fico feliz em sabê-lo - disse Beregond -, pois agora posso dizer que sotaques

estranhos não estragam belas falas, e os hobbits são um povo que fala bonito. Mas venha!Deve apresentar-me a esse bom cavalo. Adoro animais, e raramente os vemos nestacidade de pedra; pois meu povo veio dos vales das montanhas, e antes disso de Ithilien.Mas não tema! O encontro será rápido, uma mera visita de cortesia, e depois então vamospara as despensas.

Pippin viu que Scadufax fora bem alojado e cuidado. Pois no sexto círculo, do ladode fora das muralhas da Cidadela, havia alguns belos estábulos onde eram mantidosalguns cavalos velozes, ao lado dos alojamentos dos mensageiros do Senhor: homenssempre prontos a partir ao comando urgente de Denethor ou de seus superiores.

Mas agora todos os cavalos e mensageiros estavam ausentes em lugares distantes.Quando Pippin entrou no estábulo, Scadufax relinchou e virou a cabeça. - Bom

dia! - disse Pippin. - Gandalf virá assim que puder. Está ocupado, mas envia seuscumprimentos, e eu devo cuidar para que tudo esteja bem com você; espero que vocêesteja descansando, depois de seus longos trabalhos.

Scadufax empinou a cabeça e pateou o chão. Mas permitiu que Beregond lhesegurasse a cabeça de leve e acariciasse seus grandes flancos.

- Dá a impressão de que ele está sendo preparado para uma corrida, e não de queacaba de chegar de uma longa viagem – disse Beregond. - Como é forte e altivo!

Onde está seu arreio? Deve ser valioso e bonito.-Nenhum é valioso e bonito o suficiente para ele - disse Pippin. - Ele não aceita

nenhum. Se consentir em levá-lo, ele o leva; senão, bem, não há freio, rédea, chicote oucorreia que possam domá-lo. Passe bem, Scadufax! Tenha paciência. A batalha seaproxima.

Scadufax levantou a cabeça e soltou um relincho que fez o estábulo tremer, e elescobriram os ouvidos. Então saíram, após verificarem que a manjedoura estava bem cheia.

- E agora, para a nossa manjedoura - disse Beregond, levando Pippin de volta àCidadela, e para uma porta do lado norte da grande torre. Ali desceram por uma escadalonga e fresca até uma alameda larga iluminada por lamparinas.

Havia postigos nas paredes laterais, e um deles estava aberto.- Este é o armazém e a despensa de minha companhia da Guarda - disse Beregond.

- Meus cumprimentos, Targon! - chamou ele através do postigo. -Ainda é cedo, mastemos aqui um novato que o Senhor tomou a seu serviço. Ele cavalgou numa longa e

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distante viagem, com o cinto bem apertado, teve um trabalho duro durante a manhã e estáfaminto. Traga-nos o que tiver!

Conseguiram pão, manteiga, queijo e maçãs: as últimas do suprimento de inverno,enrugadas, mas doces e firmes; e um odre de couro cheio de cerveja recém-tirada dobarril, e pratos e copos de madeira. Colocaram tudo num cesto de vime e subiram de voltapara o sol; Beregond levou Pippin a um ponto na extremidade leste da grande ameiasaliente, onde havia um vão de janela nas muralhas com um assento de pedra colocadoabaixo do peitoril. Dali podiam observar a manhã sobre o mundo.

Comeram e beberam, falando algumas vezes de Gondor, de seus modos ecostumes, e outras do Condado e das estranhas terras que Pippin vira. E, à medida queconversavam, Beregond ia ficando mais assombrado, - olhava com admiração cada vezmaior para o hobbit, que balançava as pernas curtas enquanto estava sentado no banco, ouficava na ponta dos pés sobre ele para espiar por cima do parapeito as terras lá embaixo.

- Não vou esconder de você, Mestre Peregrim – disse Beregond -, que para nósvocê parece quase uma de nossas crianças, um rapaz de nove verões mais ou menos;apesar disso, você enfrentou perigos e viu maravilhas que poucos de nossos barbas-cinzentas poderiam se gabar de ter visto. Pensei que fosse um capricho do nosso Senhorcontratar um pajem nobre, à moda dos reis de antigamente, como se diz. Mas vejo quenão é assim, e você deve perdoar minha tolice.

- Eu perdôo - disse Pippin. - Embora você não esteja muito errado. Sou pouco maisque um garoto pelos padrões de meu povo, e ainda levará quatro anos até que eu "atinja amaioridade", como dizemos no Condado. Mas não se incomode comigo. Venha, olhe ediga o que posso ver.

O sol agora se erguia, e a névoa nos vales lá embaixo havia subido. Uma últimaporção flutuava, um pouco acima de suas cabeças, como fragmentos de nuvens brancascarregados pela brisa constante que soprava do leste, agora agitando e balançando asbandeiras e insígnias brancas da cidadela.

Lá embaixo, no fundo do vale, a cerca de cinco léguas de distância em linha reta,podia-se ver o Grande Rio agora cinzento e luminoso, saindo do noroeste e fazendo umagrande curva para o sul e depois outra vez para o oeste, até se perder de vista na névoatremeluzente, além da qual jazia o Mar, a cinquenta léguas de distância.

Pippin conseguia enxergar todo o Pelennor se estendendo diante dele, salpicado nadistância de fazendas e pequenas muralhas, celeiros e estábulos, mas em lugar algum seviam reses ou outros animais. Várias estradas e trilhas cruzavam os campos verdes, ehavia muita gente indo e vindo: carroças movendo-se em fila na direção do GrandePortão, e outras saindo. De vez em quando um cavaleiro subia, saltava da sela e corriapara dentro da Cidade. Mas a maior parte do tráfego saía pela estrada principal, que sevirava para o sul e depois, curvando-se mais rápido que o Rio, contornava as colinas elogo sumia de vista. Era ampla e bem pavimentada, e ao longo de sua margem leste corriauma larga pista verde para cavalos, e além desta havia uma muralha. Cavaleirosgalopavam de um lado para o outro, mas toda a rua parecia estar sufocada com grandescarroças cobertas indo para o sul. Mas logo Pippin viu que, na verdade, tudo era bemorganizado: as carroças avançavam em três fileiras, uma mais veloz puxada por cavalos; asegunda mais lenta, grandes carroções com belas mantas multicoloridas, puxados porbois; e ao longo da borda oeste da estrada muitos veículos menores puxados por homensque avançavam a muito custo.

- Aquela é a estrada que conduz aos vales de Tumladen e lossarnach, e para asaldeias das montanhas, e depois continua até Lebennin - disse Beregond. –Ali vão asúltimas carroças levando para o refúgio os anciãos, as crianças, e as mulheres que

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precisam acompanhá-las. Todos precisam estar longe do Portão, deixando a estrada livrepor uma légua antes do meio-dia: esta foi a ordem. Uma triste necessidade. - Ele suspirou.- Poucos, talvez, daqueles agora separados poderão se encontrar de novo. E sempre houvemuito poucas crianças nesta cidade; mas agora não resta nenhuma - exceto alguns rapazesnovos que se recusam a partir, e podem encontrar alguma tarefa a desempenhar: meupróprio filho é um deles.

Ficaram em silêncio por um tempo. Pippin olhou ansioso para o leste, como se aqualquer momento esperasse ver milhares de orcs inundando os campos. - O que vejo ali?- perguntou ele, apontando para baixo, para o meio da grande curva do Anduin. - Aquelaé outra cidade, ou o quê?

- Foi uma cidade - disse Beregond -, a mais importante de Gondor, da qual esta eraapenas uma fortaleza. Pois aquelas são as ruínas de Osgiliath, dos dois lados do Anduin, aqual nossos inimigos tomaram e incendiaram há muito tempo. Apesar disso, conseguimosrecuperá-la nos dias da juventude de Denethor: não para morarmos nela, mas para mantê-la como um posto avançado, e para reconstruir a ponte para a passagem de nossosexércitos. E então vieram os Cavaleiros Cruéis, de Minas Morgul.

- Os Cavaleiros Negros? - disse Pippin, abrindo os olhos, que ficaramesbugalhados e escuros com o despertar de um velho medo.

- Sim, eles são negros - disse Beregond - e agora vejo que você sabe alguma coisasobre eles, embora não os tenha mencionado em nenhuma de suas histórias.

- Sei sobre eles - disse Pippin baixinho, mas não vou falar neles agora, tão perto,tão perto. - Interrompeu o que dizia e levantou os olhos acima do Rio, tendo a impressãode que tudo o que conseguia ver era uma sombra vasta e ameaçadora. Talvez fossemmontanhas assomando no limiar da visão, suas afiadas bordas suavizadas por cerca devinte léguas de ar enevoado; talvez fosse apenas uma parede de nuvens, e além dela umaescuridão ainda mais profunda. Mas, ainda enquanto olhava, Pippin teve a impressão deque a escuridão crescia e se adensava, muito lentamente, lentamente se erguendo parasufocar as regiões ensolaradas.

-Tão perto de Mordor? - disse Beregond em voz baixa. - Sim, lá está ela.Raramente pronunciamos seu nome; mas sempre moramos à vista daquela sombra:algumas vezes ela parece mais sumida e distante; outras vezes mais próxima e escura.Agora está crescendo e escurecendo, e portanto nosso medo e nossa inquietude crescemtambém. E os Cavaleiros Cruéis, menos de um ano atrás, conseguiram reconquistar astravessias, e muitos de nossos melhores homens foram mortos. Foi Boromir quemfinalmente conseguiu afastar o inimigo desta margem ocidental, e ainda mantemos emnosso poder a metade mais próxima de Osgiliath. Por um curto tempo. Mas aguardamosagora um novo ataque lá. Talvez o ataque principal da guerra que se aproxima.

- Quando? - disse Pippin. - Você tem uma idéia? Pois na noite passada vi os faróise os mensageiros; Gandalf disse que isso era um sinal de que a guerra começara. Eleparecia estar com uma pressa desesperada. Mas agora parece que tudo ficou mais calmooutra vez.

- Somente porque agora tudo está pronto - disse Beregond. - É apenas uma tomada de fôlego antes do mergulho.- Mas por que os faróis estavam acesos a noite passada?- É tarde demais para enviar pessoas em busca de ajuda quando você já está

cercado - respondeu Beregond. - Mas desconheço os planos do Senhor e de seus capitães.Eles têm muitos meios de conseguir notícias. E o Senhor Denethor é diferente de outroshomens: ele enxerga longe. Alguns dizem que, quando ele se senta em seu alto aposentona Torre durante a noite, e direciona seu pensamento neste ou naquele caminho, ele

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consegue ler alguma coisa do futuro, e de vez em quando vasculha a própria mente doInimigo, digladiando-se com ele. Tanto assim que ele está velho, desgastadoprecocemente. Mas de qualquer forma meu senhor Faramir está longe, além do Rio emalguma missão perigosa, e ele pode ter enviado notícias.

- Mas, se quer saber qual, na minha opinião, seria o motivo de os faróis seacenderem, foi a noticia que chegou ontem á noite de Lebennin. Há uma grande esquadrase aproximando da foz do Anduin, liderada pelos corsários de Umbar no sul. Já faz tempoque deixaram de temer o poder de Gondor, e se aliaram ao Inimigo, e agora desferem umpesado golpe a favor dele. Pois esse ataque retirará grande parte da ajuda queprocurávamos conseguir de Lebennin e Belfalas, onde o povo é valente e numeroso. Maisque nunca voltamos nossos pensamentos para o norte e para Rohan, e estamos muitoalegres por essa noticia de vitória que vocês trazem agora.

- E mesmo assim - ele parou e se levantou, olhando em volta, para o norte, o leste eo sul - os acontecimentos em Isengard devem nos advertir de que estamos presos numagrande rede e estratégia. Não é mais uma contenda nos vaus, atacando por Ithilien e porAnórien, com emboscadas e pilhagens. Esta é uma grande guerra planejada há muitotempo, e nela somos apenas uma peça, não importa o que o orgulho possa dizer. As coisasestão se movendo no extremo leste, além do Mar Interno, sabemos pelos relatos; etambém no norte, na Floresta das Trevas e mais além; e ao sul em Harad. E agora todos osreinos deverão ser submetidos à prova, para resistir ou cair - sob a Sombra.

- Apesar disso, Mestre Peregrin, temos esta honra: sempre fomos o alvo do maioródio do Senhor do Escuro, pois esse ódio vem das profundezas do tempo, por sobre asprofundidades do Mar. Aqui o golpe do martelo será mais forte. E por esse motivoMithrandir veio até aqui com tanta pressa. Pois, se cairmos, quem resistirá? E, MestrePeregrin, você tem alguma esperança de que possamos resistir?

Pippin não respondeu. Olhou as grandes muralhas, e as torres e as altivasbandeiras, e o sol no céu alto, e depois para a escuridão que se adensava no leste; pensounos longos dedos daquela Sombra: os orcs das florestas e montanhas, a traição deIsengard, os pássaros de olhos malévolos, e os Cavaleiros Negros até mesmo nasalamedas do Condado - e pensou também no terror alado, os nazgúl. Estremeceu, e teve aimpressão de que a esperança definhava. E naquele exato momento o sol, por um instante,vacilou e foi obscurecido, como se uma asa negra tivesse passado por ele. Quaseinaudível ele teve a impressão de captar, alto e muito acima nos céus, um grito: fraco, masde estremecer o coração, cruel e frio. Ficou branco e encolheu-se contra a muralha.

- Que foi isso? - perguntou Beregond. - Você também sentiu alguma coisa?- Senti - murmurou Pippin. - É o sinal de nossa queda, e a sombra da destruição,

um Cavaleiro Cruel dos ares.- Sim, a sombra da destruição - disse Beregond. – Receio que Minas Tirith deva

cair. A noite se aproxima. O próprio calor de meu sangue parece que me foi roubado.Por um tempo ficaram sentados juntos, cabisbaixos e calados.Então, de repente, Pippin ergueu os olhos e viu que o sol ainda estava brilhando e

as bandeiras continuavam tremulando ao vento. Sacudiu o corpo. - Passou - disse ele. -Não, meu coração ainda não vai se desesperar. Gandalf pereceu, retornou e está conosco.Podemos resistir, nem que seja numa só perna, ou até mesmo de joelhos.

- Muito bem dito! - exclamou Beregond, levantando-se e andando de um lado parao outro em largas passadas. - Não, embora todas as coisas irremediavelmente devamchegar a um fim em determinada hora, Gondor ainda não perecerá Nem mesmo se asmuralhas forem tomadas por um inimigo impiedoso que construa uma parede decadáveres diante delas. Ainda há outras fortalezas, e caminhos secretos de fuga para

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dentro das montanhas. A esperança e a memória ainda viverão em algum vale oculto,onde a relva é verde.

- Mesmo assim, eu gostaria que tudo terminasse, para o bem ou para o mal - dissePippin. - Não sou de forma alguma um guerreiro, e me desagrada a idéia da batalha; masesperar no limiar de uma batalha da qual eu não posso escapar é pior que tudo. Como estedia já parece longo! Seria mais feliz se não fôssemos obrigados a vigiar e resistir, semfazer qualquer movimento e sem desferir o primeiro golpe. Nenhum golpe teria sidodesferido em Rohan, eu acho, se não fosse por Gandalf.

- Ah! Nesse ponto você toca na ferida de muitas pessoas! – disse Beregond. - Masas coisas podem mudar com o retorno de Faramir. Ele é corajoso, mais corajoso do quemuitos julgam; nestes dias os homens demoram a crer que um capitão possa ser sábio eversado nos pergaminhos da tradição e das canções como ele é, e ser ao mesmo tempo umhomem audacioso e de julgamento rápido no campo de batalha. Mas Faramir é assim.Menos temerário e ansioso que Boromir, mas não menos resoluto. Mesmo assim, o quepoderá ele fazer realmente? Não podemos atacar as montanhas do... do reino que ficamais além. Nosso alcance está diminuído, e não podemos atacar até que algum inimigoinvada nossa esfera. Ai então nossa mão deverá ser pesada. - Beregond bateu no punho daespada.

Pippin olhou para ele: grande, altivo e nobre, como todos os homens que já viranaquela terra; um brilho faiscava em seus olhos ao pensar na batalha. "É uma pena, masminha mão parece mais leve que uma pluma", pensou ele, mas não disse nada. "Um peão,Gandalf dissera? Talvez, mas no tabuleiro errado."

Assim conversaram até que o sol atingiu seu apogeu, e de repente os sinos domeio-dia soaram, e a Cidadela começou a se agitar; todos, exceto as sentinelas, estavamindo fazer suas refeições.

- Você não vem comigo? - disse Beregond. - Pode se juntar ao meu grupo hoje.Não sei a que companhia será designado, ou talvez o Senhor possa mantê-lo sob seucomando direto. Mas você será bem-vindo. E será bom que conheça o maior númeropossível de nossos homens, enquanto ainda houver tempo.

- Ficarei feliz em acompanhá-lo - disse Pippin. - Sinto-me solitário, para falar averdade. Deixei para trás meu melhor amigo, em Rohan, e não tenho tido ninguém paraconversar ou para fazer brincadeiras. Quem sabe eu não possa realmente juntar-me á suacompanhia? Você é o capitão? Se esse é o caso, você poderia me aceitar, ou dizer umapalavra a meu favor?

- Não, não - riu Beregond. - Não sou o capitão. Não sou oficial, nem graduado enem tenho qualquer título, não passando de um simples soldado da Terceira Companhiada Cidadela. Mesmo assim, Mestre Peregrin, ser apenas um soldado da Guarda da Torrede Gondor é algo respeitável na Cidade, e esses homens gozam de respeito nesta terra.

- Então é uma posição muito acima da minha pessoa – disse Pippin.- Leve-me de volta ao nosso quarto, e, se Gandalf não estiver lá, irei aonde você

quiser como seu convidado.Gandalf não estava no alojamento e não enviara qualquer recado; então Pippin

acompanhou Beregond e foi apresentado aos homens da Terceira Companhia. E, ao quepareceu, isso foi motivo de honra tanto para Beregond como para seu convidado, poisPippin foi muito bem recebido. Já se tinha comentado muito na Cidadela sobre ocompanheiro de Mithrandir, e sobre sua longa conversa a portas fechadas com o Senhor, ecorriam boatos de que um Príncipe dos Pequenos viera do norte para oferecer a Gondorobediência e cinco mil espadas. E alguns diziam que, quando os Cavaleiros viessem deRohan, cada um traria em sua garupa um guerreiro do povo dos Pequenos, miúdo talvez,

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mas valente.Embora Pippin tenha precisado, contra a sua vontade, destruir essa lenda

esperançosa, não conseguiu se livrar dessa nova posição, que seria bem adequada,pensavam os homens, a alguém que tivesse sido amigo de Boromir e que fosse respeitadopelo Senhor Denethor. Agradeceram-lhe por ter vindo se juntar a eles, ouviram comavidez suas palavras e histórias sobre as terras estrangeiras, e lhe ofereceram toda acomida e a cerveja que ele poderia desejar. Na verdade, o único problema de Pippin eramanter cautela", seguindo o conselho de Gandalf, e não ficar com a língua solta, comofica um hobbit entre amigos.

Finalmente, Beregond se levantou. - Até logo, por enquanto! - disse ele. - Tenho tarefas a cumprir agora até o pôr-do-

sol, como todos os outros aqui, eu acho. Mas, se você está se sentindo solitário, comodisse, talvez aprecie um guia alegre para conduzi-lo pela Cidade. Meu filho terá prazerem acompanhá-lo. Um bom rapaz, posso dizer. Se isso lhe agradar, desça até o círculomais baixo e pergunte pela Velha Hospedaria na Rath Celerdain, a rua dos Lampioneiros.

Você poderá encontrá-lo lá, juntamente com outros rapazes que permanecem naCidade. Pode haver coisas que valham a pena ver junto ao Grande Portão, antes que eleseja fechado.

Saiu, e logo depois todos os outros o seguiram. O dia permanecia agradável,embora estivesse ficando enevoado, e estava quente para março, mesmo naquela regiãodo sul. Pippin se sentia sonolento, mas o alojamento parecia melancólico, e ele decidiudescer e explorar a Cidade. Levou para Scadufax alguns alimentos que separara, e queforam muito bem aceitos, embora o cavalo não parecesse estar sentindo falta de comida.Então Pippin desceu por longos caminhos sinuosos.

As pessoas olhavam-no muito enquanto ele passava. Quando passava, os homenseram de uma cortesia grave, saudando-o à maneira de Gondor, curvando a cabeça com amão sobre o peito; mas atrás de si Pippin escutava muitos chamados, como se os queestivessem para fora chamassem aqueles no interior das casas para que viessem ver oPríncipe dos Pequenos, o companheiro de Mithrandir. Muitos usavam idiomas diferentesda Língua Geral, mas não demorou muito para que Pippin percebesse pelo menos osignificado de Ernil i Pheriannath, e sabia que esse título o precedera na Cidade.

Finalmente passou por ruas com arcos e por muitas alamedas e calçadas belas,chegando até o círculo maior e mais baixo, e ali lhe indicaram o caminho da rua dosLampioneiros, uma rua larga que conduzia ao Grande Portão. Nela encontrou a VelhaHospedaria, um grande prédio de pedra desgastada e cinzenta, com duas alas queavançavam até a rua, e entre elas um gramado verde, atrás do qual ficava a casa de muitasjanelas. Ao longo de toda a fachada havia um pórtico com pilares, e um lance de escadaque descia até o gramado. Meninos brincavam entre os pilares, as únicas crianças quePippin vira em Minas Tirith, e ele parou para observá-las.

De repente um deles o avistou, e com um grito veio saltando pelo gramado até arua, seguido de vários outros. Ali parou na frente de Pippin, fitando-o de cima a baixo.

- Meus cumprimentos! - disse o menino. - De onde você vem? Vejo que é umforasteiro.

- Eu era - disse Pippin -; mas dizem que agora me transformei num homem deGondor.

- Ora, ora - disse o menino. - Então somos todos homens aqui. Mas quantos anostem, e qual é o seu nome? Eu já tenho dez anos, e logo estarei medindo um metro e meio.Sou mais alto que você. Mas, também, meu pai é um Guarda, um dos mais altos. E o seu?

- Que pergunta devo responder primeiro? - disse Pippin. - Meu pai cultiva as terras

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ao redor de Poçalvo, perto de Tuqueburgo, no Condado. Tenho quase vinte e nove anos, oque quer dizer que em idade estou na sua frente; apesar disso meço apenas um metro evinte, e não é provável que eu cresça mais, exceto para os lados.

- Vinte e nove - disse o menino soltando um assobio. – Que coisa, você é bemvelho. Da mesma idade do meu tio Jorlas. Mesmo assim - acrescentou ele cheio deautoconfiança -, aposto que poderia virá-lo de cabeça para baixo ou derrubá-lo no chão.

- Talvez possa, se eu permitir - disse Pippin com uma risada. - E talvez eu pudessefazer o mesmo com você: conhecemos alguns truques de luta em nossa pequena terra. Lá,deixe-me dizer, sou considerado singularmente grande e forte, e nunca permiti queninguém me colocasse de cabeça para baixo. Então, se houvesse uma tentativa sua, e eunão visse outra solução, talvez tivesse de matá-lo. Pois, quando você for mais velho,aprenderá que as pessoas não são sempre o que aparentam, e, embora você tenha metomado por um menino forasteiro e frágil, e uma presa fácil, deixe-me adverti-lo: não souo que está pensando; sou um Pequeno, forte, corajoso e malvado! - Pippin deu um sorrisotão sinistro que o menino recuou um passo, mas imediatamente avançou com punhoscerrados e a luz da batalha nos olhos.

- Não! - disse Pippin rindo. - Também não deve acreditar no que os forasteirosdizem sobre si mesmos! Não sou um lutador. Mas seria mais educado, de qualquer forma,se o desafiante dissesse quem é.

O menino se empertigou cheio de orgulho. - Sou Bergil, filho de Beregond daGuarda - disse ele.

- Foi o que pensei - disse Pippin - pois você se parece com seu pai. Eu o conheço, eele me mandou procurá-lo.

- Então por que não disse imediatamente? - disse Bergil, e de repente umaexpressão frustrada cobriu-lhe o rosto. - Não me diga que ele mudou de idéia, e decidiume mandar embora com as donzelas! Mas não pode ser, as últimas carroças já se foram.

- A mensagem dele é menos ruim que essa, se é que não é boa - disse Pippin. - Elemanda dizer que, se você preferir isso a me virar de cabeça para baixo, pode me mostrar aCidade durante algum tempo e alegrar minha solidão. Em retribuição posso lhe contarumas histórias de terras distantes.

Bergil bateu palmas, e riu aliviado. - Está tudo bem – gritou ele. - Então venha!Estávamos de saída para o Portão para ver os acontecimentos. Vamos agora.

- O que está acontecendo lá?- Os Capitães das Terras Estrangeiras estão sendo esperados na Estrada Sul antes

do pôr-do-sol. Venha conosco e verá.Bergil acabou se mostrando um bom companheiro, a melhor companhia que Pippin

teve desde que se separara de Merry, e logo os dois estavam rindo e conversandoalegremente enquanto andavam pelas ruas, sem se darem conta dos muitos olhares que oshomens lhes dirigiam. Logo se viram em meio a um tropel, indo para o Grande Portão.Ali Pippin cresceu muito na estima de Bergil, pois, quando falou seu nome e a senha, oguarda o saudou e permitiu que passasse. Além disso, permitiu também que o hobbitlevasse consigo o companheiro.

- Isso é bom! - disse Bergil. - Não é mais permitido que nós garotos atravessemoso portão sem um adulto. Agora poderemos ver melhor.

Além do Portão havia uma multidão de homens ao longo da borda da estrada e dogrande espaço pavimentado para o qual todos os caminhos para Minas Tirith convergiam.Todos os olhos se voltavam para o sul, e logo um murmúrio se ergueu. - Há poeira láadiante! Eles estão chegando!

Pippin e Bergil se esgueiraram para a frente da multidão.

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Cornetas soaram a alguma distância, e o ruido de aplausos veio na direção delescomo um vento crescente.

Então ouviu-se um alto clangor de trombeta, e por toda a volta as pessoasgritavam.

- Forlong! Forlong! - ouviu Pippin. - O que eles estão dizendo? - perguntou ele.- Forlong chegou - respondeu Bergil. - O velho Forlong, o Gordo, o senhor de

Lossarnach. Lá vive meu avô. Viva! Lá vem ele. O bom e velho Forlong!Á frente da fila vinha caminhando um grande cavalo de pernas grossas, e nele um

homem de ombros largos e enorme cintura, mas velho e de barba grisalha; mesmo assimestava vestido de malha metálica e usava um elmo negro, carregando uma lança compridae pesada. Atrás dele marchava orgulhosa uma fileira empoeirada de homens, bemarmados e carregando grandes machados-de-batalha; tinham os rostos sinistros, erammais baixos e um tanto mais morenos que qualquer homem que Pippin já vira em Gondor.

- Forlong! - gritavam os homens. - Coração sincero, amigo sincero! Forlong! -Mas, quando os homens de Lossarnach haviam passado, eles murmuraram:

- Tão poucos! Duzentos, é essa a conta? Esperávamos dez vezes esse número. Essavai ser a última novidade da esquadra negra. Estão enviando apenas um décimo de suaforça. Mesmo assim, qualquer número já é um ganho.

E assim as companhias vieram e foram saudadas e aplaudidas e passaram atravésdo Portão, homens das Terras Estrangeiras marchando para defender a Cidade de Gondornuma hora escura; mas sempre em número reduzido, sempre menos homens do que seesperava, ou do que se pedira. Os homens do Vale Ringló atrás do filho de seu senhor,Dervorin, avançando a pé: três centenas. Das regiões altas de Morthond, o grande Vale daRaiz Negra, o alto Duinhir e seus filhos,

Duilin e Derufin, e quinhentos arqueiros. De Anfalas, a distante Praia Comprida,uma longa fileira de homens de vários tipos, caçadores e pastores, e homens de

pequenas aldeias, parcamente equipados, exceto os homens da casa de Golasgil,seu senhor. De Lamedon, alguns montanheses austeros sem um capitão. Pescadores doEthir, cerca de uma centena ou mais, dispensados dos navios. Hirluin, o Belo, das ColinasVerdes de Pinnath Gelin, com três centenas de esplêndidos homens vestidos de verde. Epor último o mais altivo, Imrahil, Príncipe de Doí Amroth, parente do Senhor, combandeiras cor de ouro ostentando seu símbolo: o Navio e o Cisne de Prata, e umacompanhia de cavaleiros bem paramentados, montando cavalos cinzentos; atrás deles setecentenas de soldados, altos como senhores, de olhos cinzentos, cabelos escuros, cantandoenquanto avançavam. E isso era tudo, menos de três mil no total. Ninguém mais viria.

Seus gritos e as pisadas de seus pés entraram na Cidade e foram sumindo.Os que assistiam ficaram em silêncio por um tempo. Pairava poeira no ar, pois o

vento cessara e o fim da tarde estava pesado. A hora do fechamento do Portão já seaproximava, e o sol vermelho já estava atrás do Mindolluin. A sombra caiu sobre aCidade.

Pippin ergueu os olhos, com a impressão de que o céu ficara cor de cinza, como seuma enorme poeira e fumaça pairassem acima deles, e a luz passasse vagamente por elas.Mas no oeste o sol que morria incendiara toda a fumaça, e agora o Mindolluin se erguianegro contra um fogo aceso salpicado de cinzas.

- Assim termina um belo dia em ira! - disse ele, esquecido do menino ao seu lado.- Assim será, se eu não estiver em casa antes dos sinos do pôr-do-sol - disse Bergil.

- Venha! Aí está a trombeta que anuncia o fechamento do Portão.De mãos dadas entraram de novo na Cidade, os últimos a atravessarem o Portão

antes que fosse fechado; quando alcançaram a rua dos Lampioneiros, todos os sinos nas

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torres badalavam solenemente. Luzes se acendiam em muitas janelas, e das casas e dasguaritas dos soldados ao longo das muralhas vinha o som de canções.

- Até logo, por esta vez - disse Bergil. - Leve minhas saudações a meu pai, eagradeça-lhe pela companhia que me enviou. Volte logo, eu lhe peço. Quase chego adesejar agora que não houvesse guerra, pois então poderíamos ter-nos divertido umbocado. Poderíamos ter viajado para Lossarnach, para a casa de meus avós; é bom estar lána primavera, as florestas e campos ficam cheios de flores. Mas talvez ainda possamosvisitar aquela região juntos. O nosso Senhor nunca será derrotado, e meu pai é muitocorajoso. Até logo, e espero que retorne!

Separaram-se e Pippin correu de volta para a Cidadela. Pareceu-lhe um caminholongo, e ele ficou com calor e muita fome; a noite se fechava rápida e escura. Nem sequeruma estrela apontava no céu. Chegou atrasado para a refeição do dia na Companhia, eBeregond o recebeu com alegria, sentando-se ao seu lado para saber notícias do filho.Depois da refeição Pippin permaneceu lá por mais um tempo, e então saiu, pois foitomado de uma estranha melancolia, desejando muito ver Gandalf de novo.

- Você sabe o caminho? - perguntou Beregond à porta do pequeno salão, ao norteda Cidadela, onde estavam sentados. - A noite está escura, e mais escura do que nuncadesde que recebemos ordens para diminuir a intensidade das luzes dentro da Cidade, comrecomendações de que nenhuma fosse acesa do lado de fora das muralhas. E posso lhe daruma noticia de outra ordem: você será convocado pelo Senhor Denethor amanhã bemcedo. Receio que você não esteja designado para a Terceira Companhia. Mesmo assim,podemos ter esperanças de nos encontrar de novo. Até logo e durma em paz!

O alojamento estava escuro, exceto por uma pequena lamparina acesa sobre amesa. Gandalf não estava lá. A melancolia se abateu ainda mais pesada sobre Pippin.Subiu no banco e tentou espiar pela janela, mas era como olhar dentro de um lago detinta. Desceu, fechou a janela e foi dormir. Ficou um tempo deitado, atento, tentandoescutar ruídos do retorno de Gandalf, e então passou para um sono inquieto.

Durante a noite foi acordado por uma luz, e viu que Gandalf retornara e estavaandando de um lado para o outro na sala além da cortina de sua alcova. Havia velas namesa e rolos de pergaminhos. Ouviu o suspiro do mago, que murmurou: - Quandoretornará Faramir?

- Olá! - disse Pippin, metendo a cabeça na abertura da cortina. Pensei que tinha seesquecido completamente de mim. Fico feliz por vê-lo de volta. Foi um longo dia.

- Mas a noite será curta demais - disse Gandalf. - Voltei para cá porque precisavade um pouco de paz, sozinho. Você deveria dormir numa cama, enquanto ainda pode. Aonascer do dia eu o levarei até o Senhor Denethor de novo. Ou melhor, quando vier aconvocação, não ao nascer do dia. A Escuridão começou. Não haverá aurora.

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CAPÍTULO II A PASSAGEM DA COMPANHIA CINZENTA

Gandalf fora embora, e o ruido surdo dos cascos de Scadufax se perdia na noite,quando Merry voltou ao encontro de Aragorn. Trazia apenas um embrulho pequeno, poisperdera sua mochila no Parth Galen, e tudo o que tinha eram algumas poucas coisas úteisque apanhara nas ruínas de Isengard. Flasufel já estava selado. Legolas e Gimli, com seucavalo, estavam ali perto.

- Então quatro membros da Comitiva ainda restam - disse Aragorn.- Vamos continuar cavalgando juntos. Mas não iremos sozinhos, como eu havia

pensado. Agora o rei está determinado a partir imediatamente. Desde a passagem dasombra alada, ele deseja retornarás colinas sob a proteção da noite.

- E depois para onde? - perguntou Legolas.- Ainda não sei dizer - respondeu Aragorn. - Quanto ao rei, irá à concentração de

tropas que convocou em Edoras, daqui a quatro noites. E lá, eu acho, saberá notícias daguerra, e os Cavaleiros de Rohan descerão até Minas Tirith. Exceto eu e quem quer queesteja disposto a me seguir.

- Conte comigo! - exclamou Legolas. - E comigo também! – disse o anão.- Bem, quanto a mim - disse Aragorn - tudo está escuro á minha frente. Também

devo descer até Minas Tirith, mas ainda não vejo a estrada. Uma hora há muito preparadase aproxima.

-Não me deixem para trás! - disse Merry. -Ainda não fui de muita utilidade, masnão quero ser deixado de lado, como bagagem a ser apanhada quando tudo terminar.

Não acho que os Cavaleiros queiram se incomodar comigo agora. Embora o rei, éclaro, tenha dito que eu deveria sentar ao seu lado quando chegássemos à sua casa, paralhe contar tudo sobre o Condado.

- Sim - disse Aragorn - e sua estrada segue com ele, eu acho, Merry. Mas nãoespere divertimento no fim. Demorará muito, receio eu, até que Théoden possa se sentartranquilo outra vez em Meduseld. Muitas esperanças fenecerão nesta primavera amarga.

Logo todos estavam prontos para partir - vinte e quatro cavalos, com Gimli nagarupa de Legolas, e Merry na frente de Aragorn. De repente estavam cavalgando rápidoatravés da noite. Não fazia muito tempo que tinham passado pelos túmulos nos Vaus doIsen, quando um Cavaleiro veio da retaguarda e alcançou a fila onde estavam.

- Meu senhor - disse ele ao rei -, há cavaleiros atrás de nós. Quase nos alcançando,galopando em grande velocidade.

Imediatamente Théoden ordenou uma pausa. Os Cavaleiros se viraram e agarraramas lanças. Aragorn desmontou e colocou Merry no chão e puxando sua espada parou aolado do estribo do rei. Éomer e seu séquito se dirigiram à retaguarda. Merry mais quenunca se sentiu como bagagem inútil, e ficou pensando o que faria se houvesse uma lutasupondo que a pequena escolta do rei fosse presa e derrotada, e só ele escapasse naescuridão - sozinho nos campos desertos de Rohan, sem idéia de onde estava em todoaquele espaço de milhas intermináveis? "De nada adiantaria", pensou ele. Puxou a espadae apertou o cinto.

A lua que ia descendo foi obscurecida por uma grande nuvem flutuante, mas derepente surgiu clara de novo. Então todos ouviram o som de cascos, e no mesmomomento viram figuras escuras rapidamente se aproximando pela trilha que vinha dosvaus. O luar reluzia aqui e ali nas pontas das lanças. Não se podia calcular o número dosperseguidores mas no mínimo eles não pareciam um grupo menor que a escolta do rei.

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Quando estavam a uns cinquenta passos de distância Éomer gritou em voz alta:-Alto! Alto! Quem cavalga em Rohan?

Os perseguidores de súbito frearam suas montarias. Seguiu-se um silêncio então, áluz do luar, foi possível ver um cavaleiro desmontando e caminhando para a frente numpasso lento. Sua mão apareceu branca assim que ele a ergueu, com a palma para fora, emsinal de paz; mas os homens do rei agarraram suas armas. A dez passos o homem parou.Era alto, uma sombra escura. Então sua voz soou.

- Rohan? Você disse Rohan? Essa é uma palavra alegre. Estamos vindo de muitolonge á procura dessa terra, e temos pressa em achá-la.

- Vocês a encontraram - disse Éomer. - Quando atravessaram os vaus lá adiante,entraram nela. Mas este é o reino de Théoden, o Rei. Ninguém cavalga aqui a não ser coma sua permissão. Quem é você? Que significa essa pressa?

- Sou Halbarad Dúnadan, guardião do norte - exclamou o homem. Procuramos umcerto Aragorn, filho de Arathorn, e ouvimos dizer que ele estava em Rohan.

- E também o encontraram! - exclamou Aragorn. Dando as rédeas para Merry,correu á frente e abraçou o recém-chegado. - Halbarad! - disse ele. – De todas as alegrias,esta era a menos esperada!

Merry deu um suspiro de alivio. Tinha pensado que aquele era um dos últimostruques de Saruman, para atocaiar o rei enquanto estava acompanhado apenas por algunshomens; mas parecia que não seria necessário morrer defendendo Théoden, não porenquanto, de qualquer forma. Embainhou a espada.

- Está tudo bem - disse Aragorn, voltando-se. - Aqui estão alguns de meusparentes, que vêm das terras distantes onde morei. Mas por que vêm, e quantos são,Halbarad deverá nos contar.

- Tenho trinta homens comigo - disse Halbarad. - Foi o máximo de patentes queconseguimos reunir ás pressas; mas os irmãos Elladan e Elrobir cavalgaram conosco,desejando ir para a guerra. Viemos na maior velocidade possível, quando chegou a suaconvocação.

- Mas eu não os convoquei - disse Aragorn -, exceto apenas em desejo. Meuspensamentos frequentemente têm-se voltado em sua direção, e hoje mais do que nunca;apesar disso, não enviei mensagem alguma. Mas venham! Todos esses assuntos podemesperar. Vocês nos encontram cavalgando com pressa e em perigo. Acompanhem-nosagora, se o rei der sua permissão. Théoden ficou realmente feliz com a noticia. Isso ébom! – disse ele.

- Se esses seus parentes forem de alguma forma parecidos com você, meu senhorAragorn, trinta desses cavaleiros serão uma força que não poderá ser avaliada pelonúmero de cabeças.

Então os Cavaleiros partiram de novo, e Aragorn por um tempo cavalgou com osdúnedain, e, quando tinham conversado sobre os acontecimentos no norte e no sul,Elrobir lhe disse:

- Trago-lhe uma mensagem de meu pai: Os dias agora são curtos. Se estás compressa, lembra-te das Sendas dos Mortos.

- Sempre meus dias me pareceram curtos demais para realizar meu desejo -respondeu Aragorn. - Mas realmente grande será minha pressa quando eu tomar essaestrada.

- Isso logo vetemos - disse Elrohir. - Mas deixemos de falar dessas coisas aqui naestrada aberta!

E Aragorn disse para Halbarad:- O que é isso que você carrega, Primo? - Pois ele viu que em vez de uma lança

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Halbarad trazia um grande cajado, como se fosse um estandarte, mas que estavaembrulhado num tecido negro, amarrado com várias correias.

- É um presente que eu trago da Senhora de Valfenda - respondeu Halbarad. - Ela oteceu em segredo, e a confecção foi demorada. Mas ela também lhe manda umamensagem: Os dias são curtos. Ou nossa esperança chega, ou todas as esperanças seacabam. Portanto envio-te o que fiz para ti. Passe bem, Pedra Élfica!

E Aragorn disse:- Agora sei o que você carrega. Carregue-o para mim por mais um tempo! - E

voltou-se e olhou na distância ao norte, sob as grandes estrelas e depois ficou em silêncioe não disse mais nada enquanto durou a viagem noturna.

Era noite alta e o leste estava cinzento quando subiram finalmente a Garganta doAbismo, e retornaram ao Forte da Trombeta. Ali deveriam se deitar e descansar por umbreve período, e fazer planos.

Merry dormiu até ser acordado por Legolas e Gimli. - O sol está alto- disse Legolas. - Os outros estão em plena atividade. Venha, Mestre Preguiçoso, e

dê uma olhada no lugar enquanto ainda pode!- Houve uma batalha aqui três dias atrás - disse Gimli -, e aqui Legolas e eu

jogamos um jogo que eu venci por apenas um único orc. Venha ver como foi! E hácavernas, Merry, cavernas maravilhosas! Vamos visita-las, Legolas, o que você acha?

- Não! Não há tempo - disse o elfo. - Não estrague essa maravilha com a pressa!Dei minha palavra de que voltarei aqui com você, se um dia de paz e liberdade surgiroutra vez. Mas agora é quase meio-dia, e a essa hora deveremos almoçar, e depois partirnovamente, pelo que ouvi. Merry se levantou e bocejou. Suas poucas horas de sono forammuito menos que o suficiente; estava cansado e bastante desanimado. Sentia a falta dePippin, e sentia também que não passava de um peso morto, enquanto todo o mundo faziaplanos para se apressar num negócio que ele não entendia completamente.

- Onde está Aragorn? - perguntou ele.- Num alto aposento do Forte - disse Legolas.- Não dormiu nem descansou, eu acho. Foi para lá há algumas horas, dizendo que

precisava pensar, e apenas o seu parente, Halbarad, foi com ele; mas ele está tomado poralguma dúvida ou preocupação negra. São uma companhia estranha, esses recém-chegados - disse Gimli.

Homens robustos e de porte nobre, que fazem com que os Cavaleiros deRohan fiquem quase parecendo crianças ao lado deles; pois eles são homens de

rostos austeros, marcados como pedras desgastadas, exatamente como o próprio Aragorne também falam muito pouco.

- Mas assim como Aragorn são corteses, quando quebram seu silêncio - disseLegolas. - E você notou os irmãos Elladan e Elrohir? Seus trajes são menos sombrios queos dos outros, e são belos e galantes como Senhores Élficos; e isso não é de admirar nosfilhos de Elrond de Valfenda.

- Por que vieram? Você ficou sabendo? - perguntou Merry.Agora já vestido, jogou a capa cinzenta sobre os ombros e os três caminharam

juntos na direção do portão arruinado do Forte.- Responderam a uma convocação, como você ouviu – disse Gimli. Uma

mensagem chegou a Valfenda, dizem eles: Aragorn precisa de seu povo. Que os dúnedaincavalguem para encontrá-lo em Rohan! Mas de onde veio essa mensagem eles não sabemao certo. Gandalf a enviou, eu arriscaria dizer.

- Foi Galadriel - disse Legolas. - Ela não falou , através de Gandalf, da cavalgadada Companhia Cinzenta que viria do norte?

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- Você tem razão - disse Gimli - A Senhora da Floresta! Ela leu muitos corações edesejos. Agora, por que nós também não desejamos a participação de nossos parentes,Legolas?

Legolas parou diante do portão e voltou os olhos claros para o norte e para o leste,com o sofrimento estampado em seu belo rosto. – Não acho que alguém viria - respondeuele. - Eles não precisam cavalgar ao encontro da guerra; a guerra já marcha em suaspróprias terras.

Por um tempo os três companheiros caminharam juntos, comentando sobre um ououtro lance da batalha; desceram do portão quebrado e passaram pelos túmulos dosmortos na relva ao lado da estrada, até que pararam sobre o Dique de Helm e observarama Garganta. A Colina da Morte ainda estava lá, negra, alta e pedregosa, e ainda haviamarcas bem visíveis na grama removida e pisada pelos huorns. O povo da Terra Parda emuitos homens da guamição do Forte estavam trabalhando no Dique ou nos campos e aoredor das muralhas destruídas mais além; apesar disso, tudo parecia estranhamente quieto:um vale cansado, repousando depois de uma grande tempestade.

Logo os três voltaram e se dirigiram à refeição do meio-dia no salão doForte.O rei já estava lá, e logo que entraram ele chamou Merry e lhe ofereceu uma

cadeira ao seu lado. - Não é como eu gostaria – disse Théoden -, pois este lugar é poucoparecido com minha casa em Edoras. E seu amigo, que também deveria estar aqui, partiu.Mas pode demorar muito até que nos sentemos, você e eu, à alta mesa em Meduseld; nãohaverá tempo para banquetes quando eu retornar. Mas venha agora! Coma e beba e vamosconversar um pouco enquanto pudermos. Depois você deverá cavalgar comigo.

- Eu posso? - disse Merry, surpreso e deliciado. – Seria esplêndido! - O hobbitnunca ficara tão agradecido diante de palavras corteses. - Receio estar apenasatrapalhando todo o mundo - gaguejou ele-; mas ficaria feliz em poder fazer qualquercoisa que estivesse ao meu alcance, o senhor sabe.

- Não duvido disso - disse o rei. - Mandei preparar um bom pônei montanhês paravocê. Vai conduzi-lo com a velocidade de qualquer cavalo pelas estradas que tomaremos.Pois vou partir do Forte e passar por trilhas nas montanhas, evitando a planície, e dessaforma vou chegar a Edoras pelo Templo da Colina, onde a

Senhora Éowyn me aguarda. Você será meu escudeiro, se isso lhe agrada.Existe neste lugar algum equipamento de guerra, Éomer, que meu nobre

espadachim possa usar?- Não há grandes arsenais aqui, meu senhor - respondeu Éomer.- Talvez encontremos um elmo leve que lhe possa servir; mas não temos malhas

metálicas ou espadas que se ajustem ao seu tamanho.- Eu tenho uma espada - disse Merry, saltando da cadeira e puxando de sua bainha

negra a pequena espada brilhante. Cheio de um súbito afeto por aquele velho, ajoelhou-sesobre um dos joelhos, tomou-lhe a mão e beijou-a.

- Permita-me depositar a espada de Meriadoc do Condado em seu colo, ReiThéoden! - exclamou ele. - Aceite meu serviço, se lhe aprouver.- Aceito com satisfação - disse o rei, e, colocando as longas e velhas mãos sobre os

cabelos castanhos do hobbit, abençoou-o. - Levante-se agora, Meriadoc, escudeiro deRohan, da casa de Meduseld! - disse ele. - Pegue sua espada e conduza-a para uma sortefeliz.

- O senhor será como um pai para mim - disse Merry.- Por pouco tempo - disse Théoden.Os dois conversaram durante a refeição, até que de repente Éomer falou.

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- A hora que marcamos para partir se aproxima, meu senhor – disse ele. - Devopedir que os homens toquem as trombetas? Mas onde está Aragorn? Seu lugar está vazio,e ele não comeu.

- Vamos nos aprontar para partir - disse Théoden -; mas faça com que umamensagem seja enviada ao Senhor Aragorn, dizendo que a hora se aproxima.

O rei com sua guarda, acompanhado de Merry, desceu do portão do Forte para oponto no gramado onde os Cavaleiros estavam se reunindo.

Muitos já estavam montados. Seria uma grande companhia; pois o rei estavadeixando apenas uma pequena guarnição no Forte, e todos os que podiam ser utilizadosestavam indo para o encontro de armas em Edoras. Mil lanceiros já haviam, na realidade,partido durante a noite; mas ainda haveria mais quinhentos acompanhando o rei, namaioria homens dos campos e vales do Folde Ocidental.

Os guardiões estavam sentados um pouco mais longe, em silêncio, num grupoordenado, armados com lanças, arcos e espadas. Estavam vestidos com capas de umcinza-escuro, e seus capuzes cobriam elmo e cabeça.

Os cavalos eram fortes e de porte altivo, mas tinham pêlo duro e um estava ali semseu cavaleiro; era o próprio cavalo de Aragorn que tinham trazido do norte; Roheryn eraseu nome. Não havia brilho de pedras ou ouro, nem qualquer coisa bonita nos seusestribos e arreios; nem os seus cavaleiros usavam qualquer insígnia ou símbolo, a não sero broche no formato de uma estrela raiada de prata, que cada um tinha espetado sobre oombro esquerdo.

O rei montou seu cavalo, Snawmana, e Merry se pôs ao lado dele em seu pônei:este chamava-se Stybba. De repente Éomer saiu do portão acompanhado de Aragorn eHalbarad, este trazendo o grande cajado, todo embrulhado no tecido negro, e dois homensaltos, nem jovens nem velhos.

Eram tão parecidos os filhos de Elrond que poucos conseguiam distinguir umoutro; cabelos escuros, olhos cinzentos, e nos rostos a beleza dos elfos, vestidos damesma forma em malhas brilhantes sob as capas de um cinza-prateado. Atrás delescaminhavam Legolas e Gimli. Mas Merry só tinha olhos para Aragorn, tão assustadora eraa mudança que se operara nele, como se em uma noite anos tivessem desabado sobre suacabeça. O rosto estava austero, cor de cinza e exausto.

- Estou preocupado, senhor - disse ele, parando ao lado do cavalo do rei. - Ouvipalavras estranhas, e vejo novos perigos á frente. Esforcei-me muito pensando, e agorareceio que deva mudar meu propósito. Diga-me, Théoden, você cavalga agora para oTemplo da Colina; quanto tempo levará para que chegue lá?

-Agora já passa uma hora do meio-dia - disse Éomer. -Antes da noite do terceirodia a contar de agora devemos chegar à Fortaleza. A lua então terá passado um dia de suafase cheia, e a concentração de tropas que o rei pediu acontecerá no dia seguinte. Nãopodemos ser mais rápidos, se quisermos reunir a força de Rohan.

Aragorn ficou em silêncio por um momento. Três dias – murmurou ele -, e aconcentração das tropas de Rohan terá apenas começado. Mas vejo que não se podeapressá-la. Ergueu os olhos e parecia ter tomado alguma decisão; seu rosto estava menospreocupado. - Então, com a sua permissão, senhor, devo fazer novos planos para mim emeu povo. Devemos ir por nossa própria estrada, não mais em segredo. Para mim, otempo de clandestinidade acabou. Vou cavalgar pelo caminho mais rápido, e vou tomar asSendas dos Mortos.

- As Sendas dos Mortos - disse Théoden, estremecendo. - Por que você asmenciona? - Éomer virou-se e fitou Aragorn, e Merry teve a impressão de que os rostosdos Cavaleiros que estavam por perto e puderam ouvir ficaram pálidos à menção daquelas

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palavras. - Se realmente existirem tais sendas - disse Théoden -, o portão para elas está noTemplo da Colina; mas nenhum homem vivo pode passar por ele.

- Que pena, Aragorn, meu amigo! - disse Éomer. – Esperava que pudéssemoscavalgar juntos para a guerra; mas, se você procura as Sendas dos Mortos, então chegou ahora de nossa separação, e é pouco provável que nos encontremos de novo sob este sol.

- Não obstante, tomarei aquela estrada - disse Aragorn. - Mas digo a você, Éomer,que na batalha poderemos nos encontrar de novo, mesmo que todos os exércitos deMordor se posicionem entre nós.

- Faça como quiser, meu senhor Aragorn - disse Théoden. - É o seu destino, talvez,trilhar caminhos estranhos que os outros não ousam. Esta despedida me entristece, ediminui minha força; mas agora devo tomar as estradas das montanhas sem maisdelongas. Passe bem!

-Até logo, senhor! - disse Aragorn. - Cavalgue para a fama! Até logo,Merry! Deixo você em boas mãos, melhor do que esperávamos quando caçavamos

os orcs em Fangorn. Legolas e Gimli ainda vão caçar ao meu lado espero, mas não nosesqueceremos de você.

- Adeus! - disse Merry. Não conseguiu encontrar outras palavras. Sentiu-se muitopequeno e estava consternado e deprimido diante de todas aquelas palavras

melancólicas. Mais do que nunca sentia falta da inesgotável alegria de Pippin. OsCavaleiros estavam prontos, e os cavalos, inquietos; Merry desejava que partissem

e terminassem logo com aquilo.Agora Théoden se dirigia a Éomer, erguendo a mão e falando em voz alta, e com

aquela palavra os Cavaleiros partiram. Passaram pelo Dique e desceram a Garganta, edepois, virando-se depressa para o leste, pegaram a trilha que contornava os pés dascolinas por cerca de uma milha até que, curvando-se para o sul, passava por trás dascolinas e desaparecia de vista. Aragorn cavalgou até o Dique e ficou observando até queos homens do rei estivessem bem distantes, na Garganta. Então virou-se para Halbarad.

- Lá se vão três entes que amo, e o menor deles não menos – disse ele.- Ele não sabe para que fim se dirige; mas, se soubesse, mesmo assim prosseguiria.- Um povo pequeno, mas de grande valor, são as pessoas do Condado - disse

Halbarad. - Sabem pouco de nosso longo trabalho para salvaguardar suas fronteiras, masmesmo assim não lhes guardo ressentimento.

- E agora nossos destinos estão entrelaçados – disse Aragorn. - Mesmo assim,infelizmente, aqui temos de nos separar. Bem, preciso comer um pouco, e depois nóstambém devemos partir depressa. Venham, Legolas e Gimli! Preciso lhes falar enquantocomo.

Juntos voltaram ao Forte, mas por algum tempo Aragorn ficou sentado em silêncioà mesa do salão, e os outros aguardando que ele falasse.

- Vamos! - disse Legolas finalmente. - Fale e se reconforte, e espante a sombra! Oque aconteceu desde que retornamos a este lugar triste na manhã cinzenta?

- Uma luta de certa forma mais dificil para mim que a batalha do Forte daTrombeta – respondeu Aragorn. - Olhei na Pedra de Orthanc, meus amigos.

- Você olhou naquela maldita pedra de feitiçaria! – exclamou Gimli com medo eestupefação cobrindo-lhe o rosto. - Disse alguma coisa a... ele? Até mesmo

Gandalf temia tal encontro.- Você esquece quem é a pessoa a que se dirige – disse Aragorn de modo austero, e

seus olhos faiscaram. - Não proclamei meu título diante das portasde Edoras? Que receiam que eu possa ter dito a ele? Não, Gimli - disse ele numa

voz mais suave, e o ar severo desapareceu de seu rosto; agora parecia alguém que

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trabalhara sem descanso através de várias noites de sofrimento. - Não, meus amigos, eusou o dono legítimo da Pedra, e eu tinha tanto o direito como a força para usá-la, ou pelomenos julguei que fosse assim- Do direito não se pode duvidar. A força apenas suficiente.Respirou fundo. - Foi uma luta amarga, e o cansaço demora a passar. Não disse a elepalavra alguma, e no fim domei a Pedra segundo a minha vontade. Só isso será dificilpara ele suportar. E ele me viu. Sim, Mestre Gimli, ele me viu, mas numa roupagemdiferente da que vocês enxergam agora. Se isso o ajudar, então fiz uma coisa ruim. Masnão acho que seja assim. Saber que eu estou vivo e caminho sob o sol foi um duro golpepara o coração dele, julgo eu, pois não sabia disso até agora. Os olhos em Orthanc nãoenxergaram através da armadura de Théoden; mas Sauron não esqueceu Isildur e a espadade Elendil. Agora, no momento exato de seus grandes desígnios o herdeiro de Isildur e aEspada são revelados; pois eu lhe mostrei a lâmina reforjada. Ele ainda não tem tantopoder para estar acima do medo; não, a dúvida constantemente o corrói.

- Mas ele controla um grande domínio, apesar de tudo - disse Gimli -; e agoraatacará mais rápido.

- O golpe apressado geralmente se perde - disse Aragorn. - Devemos pressionarnosso Inimigo, e não mais esperar que ele ataque. Vejam, meus amigos, quando dominei aPedra, aprendi muitas coisas. Vi um grande perigo inesperado vindo do sul e seaproximando de Gondor, que retirará grande parte da força de defesa de Minas Tirith. Senão houver um contragolpe rápido, acho que a Cidade estará perdida antes que dez dias sepassem.

- Então ela se perderá - disse Gimli. - Pois que socorro há que possamos enviaràquela direção, e como poderia chegar a tempo?

- Não tenho Socorro para enviar portanto devo ir em pessoa, disse Aragorn. - Massó há um caminho através das montanhas que pode me conduzir até a região costeiraantes que tudo esteja perdido. As Sendas dos Mortos.

-As Sendas dos Mortos! - disse Gimli - É um nome cruel, pouco do agrado doshomens de Rohan, pelo que vi. Podem os vivos usar essa estrada, sem que pereçam? E,mesmo que você passe por esse caminho, que eficácia terão tão Poucos contra os golpesde Mordor?

- Os vivos nunca usaram aquela estrada desde a chegada dos rohirrim - disseAragorn -, pois ela está fechada para eles. Mas nesta hora escura o herdeiro de Isildurpoderá tomá-la, se ousar fazê-lo. Escutem! Esta é a mensagem que os filhos de Elrond metrazem, enviada de Valfenda por seu pai, o mais sábio na tradição: Peçam a Aragorn quese lembre das palavras do vidente e das Sendas dos Mortos.

- E quais podem ser as palavras do vidente? – disse Legolas.- Assim falou Malbeth o Vidente nos dias de Arvedui o último rei de Fornost -

disse Aragorn:

Sobre a terra se estende uma sombra terrível,Lançando sobre o oeste longas asas de trevas.A Torre treme; das tumbas de reis a sina se aproxima. Os Mortos despertam, chegada é a hora dos que foram perjuros: junto á Pedra de Erech de pé ficarão para ouvir a corneta ecoar nas colinasDe quem será a corneta? Quem irá chamar da dúbia meia-luz o olvidado povo?O herdeiro daquele a quem foi feita a jura.

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Do norte ele virá movido pela sorte.Seguirá pela Porta para as Sendas dos Mortos.

- Caminhos obscuros, sem dúvida - disse Gimli -, mas esses versos não são menosobscuros para mim.

- Se vocês pudessem entendê-los melhor, então eu pediria que me acompanhassem- disse Aragorn -, pois tal caminho devo trilhar. Mas não vou de bom grado; apenas anecessidade me move. Portanto, só poderia aceitar que vocês me acompanhassem se fossepor sua livre e espontânea vontade, pois encontrarão árdua fadiga e grande medo, e talvezcoisa pior.

- Irei com você, mesmo que seja pelas Sendas dos Mortos, e para qualquer fim queelas possam conduzir - disse Gimli.

- Também irei - disse Legolas -, pois não temo os Mortos.- Espero que o olvidado povo não tenha olvidado como se luta - disse Gimli -; caso

contrário, não vejo por que deveríamos molestá-los.- Isso saberemos se conseguirmos chegar a Erech – disse Aragorn. -Mas o

juramento que quebraram foi o de lutar contra Sauron, portanto eles devem lutar, sequiserem cumpri-lo. Pois em Erech se ergue uma pedra negra que foi trazida de Númenor,como se conta, por Isildur; e ela foi colocada sobre uma colina, e sobre ela o Rei dasMontanhas jurou fidelidade a ele no inicio do reino de Gondor. Mas, quando Sauronretornou e ficou outra vez poderoso, Isildur convocou os homens das Montanhas para quecumprissem seu juramento, e eles não cumpriram: tinham adotado Sauron durante osAnos Escuros.

- Então Isildur disse ao rei deles: "Tu serás o último rei. E, se o oeste se mostrarmais forte que teu Mestre Negro, esta maldição eu lanço sobre ti e teu povo: jamaisdescansar enquanto o juramento não for cumprido. Pois esta guerra perdurará por anossem conta, e vós sereis chamados mais uma vez antes do fim." E eles fugiram diante daira de Isildur, e não ousaram avançar para lutar a favor de Sauron; esconderam-se emlugares secretos nas montanhas e não tiveram contato com outros homens; e lentamenteforam se extinguindo nas colinas desoladas. E o terror dos Mortos Insones paira sobre acolina de Erech e sobre todos os lugares onde aquele povo subsistia. Mas por essecaminho devo ir, já que não há nenhum vivo que possa me ajudar.

Levantou-se. -Venham! - gritou ele, puxando da bainha a espada, que reluziu na dúbia luz do

salão do Forte. -Para a Pedra de Erech! Procuro as Sendas dos Mortos. Que meacompanhe quem quiser!

Legolas e Gimli não responderam, mas levantaram-se e seguiram Aragorn, saindodo salão. Sobre a relva esperavam, imóveis e em silêncio, os guardiões encapuzados.

Legolas e Gimli montaram. Aragorn saltou no lombo de Roheryn. Então Halbaradergueu uma grande corneta, cujo clangor ecoou no Abismo de Helm; e com isso partiramem disparada, descendo a Garganta como um trovão, enquanto todos os homens queficaram no Dique ou no Forte observavam assombrados.

E, enquanto Théoden ia pelas morosas trilhas das colinas, a Companhia Cinzentapassou depressa através da planície, e no dia seguinte á tarde chegaram a Edoras, e alifizeram apenas uma pausa breve, antes de avançar subindo o vale; assim chegaram aoTemplo da Colina ao cair da noite.

A Senhora Éowyn os cumprimentou e ficou feliz com a sua chegada, pois nuncavira homens mais poderosos que os dúnedain e os belos filhos de Elrond; mas seus olhosrepousavam principalmente em Aragorn. E, quando se sentaram à ceia com ela, os dois

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conversaram, e ela ficou sabendo sobre tudo o que se passara desde a partida de Théoden,fatos sobre os quais ela apenas recebera notícias apressadas; quando ouviu sobre a batalhano Abismo de Helm, sobre a grande matança dos inimigos, e sobre o ataque de Théoden etodos os seus cavaleiros, os olhos dela brilharam.

Mas finalmente ela disse:- Senhores, estão cansados e devem agora ir para suas camas, com todo o conforto

que se possa improvisar. Mas amanhã alojamentos melhores serão preparados para vocês.Mas Aragorn disse:- Não, senhora, não se preocupe conosco! Se pudermos dormir aqui esta noite e

quebrar nosso jejum amanhã, isso será o suficiente. Pois cavalgo numa missão de extremaurgência, e com a primeira luz da manhã devemos partir.

Ela lhe sorriu e disse:- Então foi uma enorme gentileza, senhor, terem cavalgado tantas milhas fora de

seu caminho para trazer notícias para Éowyn, e conversar com ela em seu exílio.- Na verdade nenhum homem consideraria tal viagem um desperdício - disse

Aragorn -; e, apesar disso, senhora, eu não poderia ter vindo até aqui se a estrada quedevo tomar não passasse pelo Templo da Colina.

E ela respondeu como alguém que não gostou do que ouviu:- Então, senhor, você está perdido; pois do Vale Harg nenhuma estrada vai para o

leste ou para o sul; e é melhor que retorne por onde veio.- Não, senhora - disse ele -, não estou perdido pois andei nesta terra antes que você

nascesse para enfeita-la. Há uma estrada que sai deste vale e essa estrada tomarei.Amanhã cavalgarei pelas Sendas dos Mortos.

Então ela o fitou como alguém que está chocado; seu rosto embranqueceu, e porum longo período não disse mais nada, enquanto todos ficaram em silêncio.

- Mas, Aragorn - disse ela finalmente -, então sua missão é procurar a morte? Poisisso é tudo o que encontrará naquela estrada. Eles não permitem que os vivos passem.

- Eles podem tolerar que eu passe - disse Aragorn -; mas no mínimo vou arriscar.Nenhuma outra estrada servirá.

- Mas isso é loucura - disse ela. - Pois aqui há homens de fama e coragem, quevocê não deveria levar para as sombras, mas conduzir para a guerra, onde se precisa dehomens. Imploro que fique e cavalgue com meu irmão, pois assim os nossos corações sealegrarão e nossa esperança será maior.

- Não é loucura, senhora - respondeu ele -; pois irei por um caminhopredeterminado. Mas aqueles que me seguem o fazem de livre e espontânea vontade, e, sequiserem agora ficar e cavalgar com os Rohirrim, podem fazê-lo. Mas eu vou tomar asSendas dos Mortos, sozinho, se for necessário.

Então ela não disse mais nada, e todos comeram em silêncio; mas seus olhosestavam sempre em Aragorn, e os outros perceberam que sua mente estava atormentada.

Finalmente se levantaram, pediram permissão à Senhora, agradeceram-lhe e foramdescansar.

Mas, quando Aragorn chegou à barraca onde deveria se alojar com Legolas eGimli, e seus companheiros entraram, veio a Senhora Éowyn atrás dele e o chamou.

Ele se virou e a viu como um brilho na noite, pois estava toda vestida de branco;mas tinha os olhos em chamas.

- Aragorn - disse ela -, por que você vai por essa estrada mortal?- Porque preciso - disse ele. - Só assim posso ver qualquer esperança de

desempenhar meu papel na guerra contra Sauron. Não escolho trilhas de perigo,Éowyn. Se pudesse ir para onde meu coração mora, estaria no norte distante,

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caminhando no belo vale de Valfenda.Por um momento ela ficou quieta, como se estivesse ponderando o significado

daquelas palavras. Então, de repente, colocou-lhe a mão sobre o ombro.-Você é um senhor austero e resoluto,disse ela-, e assim os homens ganham fama. -

Fez uma pausa. - Senhor - disse ela , se precisa ir, então permita que eu o siga. Pois estoucansada de me esconder covardemente nas colinas, e desejo enfrentar o perigo e abatalha.

-Seu dever está com seu povo, respondeu ele.- Já ouvi demais sobre deveres - exclamou ela. - Mas por acaso não sou da Casa de

Eorl, uma escudeira e não uma ama-seca? Já servi a pés vacilantes por muito tempo. Umavez que eles já não vacilam, ao que parece, não posso eu passar minha vida como desejar?

- Poucos podem fazer isso com honra - respondeu ele. - Mas quanto a senhora: nãoaceitou o encargo de governar seu povo até que o senhor retorne?

Se não tivesse sido escolhida, então algum marechal ou capitão teria sido colocadono mesmo lugar, e não poderia fugir da incumbência, estando cansado ou não.

Serei sempre eu a escolhida? - disse ela num tom amargo. – Serei sempre deixadapara trás quando os Cavaleiros partem, para cuidar da casa enquanto eles ganham fama, epara preparar-lhes cama e comida, esperando seu regresso?

- Logo pode chegar um tempo - disse ele - em que ninguém retornará. Entãohaverá necessidade de valor sem fama, pois ninguém se recordará dos feitos realizados naderradeira defesa de suas casas. Apesar disso, os feitos não serão menos corajosos por nãoserem celebrados.

E ela respondeu:- Todas as suas palavras querem dizer apenas isto: você é uma mulher, e seu papel

é na casa. Mas, quando os homens estiverem mortos na batalha e com honra, você tem apermissão para ser queimada na casa, pois os homens não mais precisarão dela. Mas eusou da Casa de Eorl, e não uma serviçal. Posso cavalgar e brandir uma espada, e não temoo sofrimento ou a morte.

- O que teme, senhora? - perguntou ele.- Uma gaiola - disse ela. - Ficar atrás de grades, até que o hábito e a velhice as

aceitem e todas as oportunidades de realizar grandes feitos estejam além de qualquerlembrança ou desejo.

- E mesmo assim me aconselhou a não me aventurar na estrada que escolhi, sóporque é perigosa?

- Dessa forma um pode aconselhar o outro - disse ela. - Mas eu não lhe peço quefuja do perigo, mas que cavalgue para a batalha, onde sua espada possa conquistar fama evitória. Não gostaria que uma coisa que é nobre e excelente fosse desperdiçada à toa.

- Nem eu - disse ele. - Portanto lhe digo, senhora: Fique!Pois você não tem missão alguma no sul.- Os que te acompanham também não têm. Eles só vão porque não estão dispostos

a se separar de ti... porque te amam. - Então virou-se e desapareceu dentro da noite.Quando chegou a luz do dia no céu, mas antes que o sol tivesse subido acima das

altas cordilheiras do leste, Aragorn se aprontou para partir. Sua companhia estava todamontada, e ele prestes a saltar para a sela, quando a Senhora Éowyn veio lhes dizer adeus.Estava vestida como um Cavaleiro, e trazia uma espada na cintura.

Na mão trazia uma taça, e levando-a aos lábios bebeu um pouco, desejando- lhesboa viagem; depois ofereceu a taça a Aragorn; ele bebeu e disse: - Até logo, Senhora deRohan! Bebo ao sucesso de sua Casa, e ao seu, e de todo o seu povo. Diga ao seu irmão:além das sombras podemos nos reencontrar!

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Então Gimli e Legolas, que estavam próximos, tiveram a impressão de que elaestava chorando, e numa pessoa tão austera e altiva isso parecia mais triste.

Mas ela disse:- Aragorn, tu vais?- Eu vou - disse ele.- Então tu não permitirás que eu cavalgue com este grupo, como pedi?- Não permitirei, senhora. Pois isso eu não poderia conceder sem a permissão do

rei e de seu irmão, e eles não retornarão antes de amanhã. Mas agora conto cada hora, narealidade cada minuto. Adeus!

Então ela caiu de joelhos, dizendo:- Eu te imploro!- Não, senhora disse ele, tomando-lhe a mão e erguendo-a. Então deu-lhe um beijo

na mão e saltou na sela, e partiu sem olhar para trás, e só aqueles que o conheciam bem eestavam próximos dele viram a dor que levava consigo.

Mas Éowyn ficou imóvel como uma figura esculpida em pedra, as mãos crispadasao longo do corpo, olhando-os até que desaparecessem nas sombras sob a negraDwimorberg, a Montanha Assombrada, na qual ficava o Portão dos Mortos.

Quando desapareceram de vista, ela se virou e, aos tropeços, como uma cega,voltou ao seu alojamento. Mas ninguém de seu povo viu essa despedida, pois todoshaviam-se escondido de medo e não ousaram sair até que o dia despertasse, e os incautosforasteiros já tivessem ido embora.

E alguns diziam:- Eles são criaturas élficas. Que vão para seu lugar, os locais escuros, e que nunca

mais voltem. Os tempos já são malignos o bastante.A luz ainda estava cinzenta quando a cavalgada começou, pois o sol ainda não

tinha subido sobre as cordilheiras negras da Montanha Assombrada diante deles.Foram tomados de pavor, no momento em que passaram entre as fileiras de pedras

antigas e assim atingiram o Dimholt. Ali, sob a escuridão de árvores negras que nemmesmo Legolas conseguiria suportar por muito tempo, encontraram uma concavidadeabrindo-se na raiz da montanha, e bem na trilha deles erguia-se uma única rochapoderosa, semelhante a um dedo em gesto de condenação.

- Meu sangue está gelado - disse Gimli, mas os outros ficaram em silêncio, e a vozdo anão morreu nas úmidas agulhas de abeto aos seus pés. Os cavalos se recusaram apassar pela pedra ameaçadora, exigindo que os cavaleiros desmontassem e osconduzissem. E então finalmente afundaram na fenda; ali se erguia uma parede de pedraíngreme, e na parede a Porta Negra abria-se diante deles como se fosse a própria boca danoite. Sinais e figuras apareciam entalhados acima de seu amplo arco, ilegíveis de tãoapagados, e o medo fluía dela como um vapor cinzento.

O grupo parou. e não havia um só coração entre eles que não estremecesse, a nãoser o coração de Legolas dos elfos, que não temia fantasmas de homens.

- Esta é uma porta maligna - disse Halbarad -, e minha morte jaz atrás dela. Nãoobstante, ousarei passar por ela; mas nenhum cavalo entrara.

- Mas precisamos entrar, e, portanto, os cavalos devem ir também - disse Aragorn.- Pois, se conseguirmos passar por esta escuridão, muitas léguas se estendem á frente, ecada hora perdida ali trará o triunfo de Sauron para mais perto. Sigam-me!

Então Aragorn foi na frente, e a força de sua vontade nessa hora foi tamanha quetodos os dúnedain e seus cavalos o seguiram. E, na realidade, o amor que o cavalos dosguardiões tinham por seus cavaleiros era tão grande que os animais estavam dispostos aenfrentar até mesmo o terror da Porta, se os corações de seus donos estivessem firmes ao

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caminharem ao lado deles. Mas Arod, o cavalo de Rohan, recusava-se a entrar, e parousuando e tremendo num medo que dava pena de ver.

Então Legolas colocou a mão sobre os olhos do animal e cantou algumas palavrasque pairaram suaves na escuridão, até que o cavalo se deixou conduzir, e Legolas entrou.

E ali ficou Gimli, o anão, completamente sozinho.Os joelhos tremiam, e ele estava furioso consigo mesmo.-Esta é uma coisa de que ninguém nunca ouviu falar! - disse ele. - Um elfo entra

debaixo da terra e um anão não tem a coragem! - Com isso mergulhou para dentro. Masparecia-lhe que seus pés pesavam como chumbo na entrada; imediatamente foi acometidode uma cegueira, até mesmo ele, Gimli, filho de Glóin, que já caminhara sem medo emmuitos lugares profundos do mundo.

Aragorn trouxera tochas do Templo da Colina, e agora ia à frente erguendo umanas mãos; Elladan, na retaguarda, levava outra, e Gimli, aos tropeços, lutava paraconseguir alcançá-lo. Não conseguia enxergar nada, exceto a chama fraca das tochas;mas, se o grupo parava, parecia haver um sussurro interminável de vozes por toda a volta,um murmúrio em palavras numa língua que ele nunca ouvira antes.

Nada atacou o grupo, nem impediu sua passagem. Mesmo assim, o medo nãoparava de crescer dentro do anão á medida que ele avançava: principalmente porque sabiaagora que não haveria como voltar; todas as trilhas atrás estavam apinhadas por umexército que os seguia na escuridão.

Assim se passou um tempo impossível de se calcular, até que Gimli avistou algoque posteriormente sempre odiaria recordar. A estrada era ampla, pelo que podia julgar,mas agora o grupo de repente chegava a um grande espaço vazio, e não havia maismuralhas em nenhum dos lados. O pavor que sentia era tão grande que mal conseguiaandar. Na distância, à esquerda, algo brilhou na escuridão assim que a tocha de Aragornse aproximou. Então Aragorn parou e foi verificar o que era aquilo.

- Ele não sente medo? - murmurou o anão. - Em qualquer outra caverna, Gimli,filho de Glóin, teria sido o primeiro a correr em direção ao brilho do ouro. Mas não aqui!Que o ouro fique onde está!

Mesmo assim chegou mais perto, e viu Aragorn ajoelhado, enquanto Elladanerguia as duas tochas. Diante dele estavam os ossos de um homem forte. Estivera vestidode malha metálica, e sua armadura jazia ainda inteira, pois o ar da caverna era seco comopó; sua cota era dourada. O cinto era de ouro e granadas, e rico em ouro era o elmo sobreos ossos de sua cabeça, caída com o rosto contra o chão. O homem tombara perto daparede oposta da caverna, pelo que se podia presumir, e diante dele havia uma porta depedra hermeticamente fechada: os ossos de seus dedos ainda agarravam as fendas. Umaespada quebrada e chanfrada jazia ao seu lado, como se ele tivesse golpeado a rocha emseu último desespero.

Aragorn não o tocou, mas, depois de fitá-lo em silêncio por um tempo, levantou-see suspirou. - Para cá, até o mundo se acabar, nunca virão as flores de simbelmyné -murmurou ele. - Nove e sete túmulos existem agora, cobertos de grama verde, e durantetodos os longos anos este homem jaz ao lado da porta que não conseguiu destrancar. Paraonde ela conduz? Por que queria passar? Ninguém jamais saberá!

- Pois esta não é minha missão! - exclamou ele, voltando-se e dirigindo-se áescuridão sussurrante. - Mantenham seus tesouros e segredos ocultos nos AnosAmaldiçoados! Só queremos rapidez. Deixem-nos passar, e depois venham!

Convoco-os a irem para a Pedra de Erech!Não houve resposta, a não ser um silêncio completo, mais terrível que os sussurros

anteriores; e então um vento gelado soprou, no qual as tochas tremeluziram e se

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apagaram, e não puderam ser reacendidas. Do tempo que se seguiu, uma ou muitas horas,Gimli se recordaria pouco. Os outros continuaram

avançando, mas ele sempre ficava para trás, perseguido por um terror que oprocurava e parecia estar o tempo todo prestes a agarrá-lo; atrás dele vinha um rumorcomo a sombra do ruido de muitos pés. Avançou aos tropeços até ficar rastejando comoum animal no solo, sentindo que não suportaria mais aquilo: devia ou achar um caminho eescapar ou correr alucinadamente ao encontro do medo que o perseguia.

De repente ouviu um tilintar de água, um ruído forte e límpido como uma pedracaindo num sonho de sombra escura. A luz aumentou e eis que o grupo passou

através de outro portão, largo e de arco alto, e um riacho corria ao lado deles; maisadiante, descendo abruptamente, havia uma estrada entre penhascos íngremes pontas defaca contra o céu lá em cima Tão profundo e estreito era aquele abismo que o céu ficavaescuro, e nele pequenas estrelas reluziam. Apesar disso, como Gimli veio a saber depois,ainda faltavam duas horas para o pôr-do-sol do dia em que tinham partido do Templo daColina, embora, por tudo o que saberia dizer na ocasião, pudesse tratar-Se do nascer dosol em algum ano posterior, ou em algum outro mundo.

A companhia montou de novo, e Gimli voltou para junto de Legolas. Cavalgaramem fila, e o fim de tarde escureceu num azul profundo; e ainda o medo os perseguia.

Legolas, voltando-se para falar com Gimli, olhou para trás, e o anão viu diante deseu rosto o faiscar dos olhos brilhantes do elfo. Atrás deles vinha Elladan, o último daCompanhia, mas ele não era o último que descia a estrada.

- Os Mortos estão nos seguindo - disse Legolas. - Vejo vultos de homens e cavalos,e pálidas bandeiras como retalhos de nuvens, e lanças como arbustos hibernais numa noitede névoa. Os Mortos estão nos seguindo.

- Sim, os Mortos vêm atrás de nós. Eles foram convocados - disse Elladan.Por fim a Companhia saiu da garganta, de repente, como se tivesse saído de uma

fenda numa parede, e lá estava a região montanhosa de um grande vale diante deles, e oriacho que corria ao lado saltava com uma voz fria por sobre várias cachoeiras.

- Em que lugar da Terra-média estamos"? - perguntou Gimli, e Elladan respondeu:- Descemos das cabeceiras do Morthond, o rio longo e frio que corre para finalmenteencontrar o mar que banha os muros de Doí Amroth. De agora em diante você não precisaperguntar a razão de seu nome: Raiz Negra os homens o chamam.

O Vale do Morthond formava uma grande baia que batia contra as íngremesencostas meridionais das montanhas. Suas ladeiras inclinadas eram cobertas de grama,mas tudo estava cinzento àquela hora, pois o sol se fora, e lá embaixo luzes piscavam nascasas dos homens. O vale era rico e muitas pessoas moravam lá.

Então, sem se virar, Aragom disse em voz alta, para que todos pudessem ouvir: -Amigos, esqueçam o cansaço! Cavalguem agora, cavalguem! Devemos chegar à Pedra deErech antes do fim do dia, e ainda temos um longo caminho pela frente. - Dessa forma,sem olhar para trás, eles cavalgaram através dos campos nas montanhas, até chegarem auma ponte sobre a correnteza crescente onde encontraram uma estrada que descia até opovoado.

As luzes se apagavam nas casas e aldeias à medida que eles se aproximavam, e asportas se fechavam, e as pessoas que estavam nos campos gritavam de medo e corriamalucinadas como corças perseguidas. Sempre se ouvia o mesmo grito na noite que seadensava: "O Rei dos Mortos! O Rei dos Mortos está nos atacando!"

Sinos tocavam lá embaixo, e todos os homens fugiam do rosto de Aragorn; mas aCompanhia Cinzenta, em sua pressa, cavalgava como um bando de caçadores, até seuscavalos ficarem trôpegos de cansaço. E dessa forma, um pouco antes

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da meia-noite, e numa escuridão igual á das cavernas das montanhas, finalmentechegaram à Colina de Erech.

Por muito tempo, o terror dos Mortos pairara sobre aquela colina e sobre oscampos vazios ao redor dela. Pois no topo erguia-se uma pedra negra, redonda como umgrande globo, da altura de um homem, embora uma metade estivesse enterrada no chão.Tinha uma aparência sobrenatural, como se tivesse caído do céu, como acreditavamalguns; mas aqueles que ainda recordavam a tradição do Ponente contavam que ela foratrazida da ruína de Númenor e colocada ali por Isildur em sua chegada.

Ninguém do povo do vale ousava se aproximar dela, nem estavam dispostos amorar nas proximidades, pois diziam que era um ponto de encontro dos Homens daSombra, e ali eles se reuniam em tempos de medo, ajuntando-se ao redor da Pedra esussurrando.

Para essa Pedra a Companhia se dirigiu e parou na calada da noite. Então Elrohirdeu uma corneta de prata a Aragorn, que a tocou; os que estavam nas proximidadestiveram a impressão de ouvir o som de outras cornetas em resposta, como se fosse um ecoem cavernas profundas e distantes. Não ouviram qualquer outro som, e mesmo assimperceberam que um grande exército se reunia ao redor de toda a colina sobre a qual elesestavam; um vento frio como o hálito dos fantasmas desceu das montanhas.

Mas Aragorn desmontou, e parando ao lado da Pedra gritou numa voz poderosa:- Perjuros, por que viestes?Então ouviu-se uma voz saída da noite, que lhe respondeu, como se viesse de

muito longe:- Para cumprir nosso juramento e ter paz.Então Aragorn disse: - Finalmente é chegada a hora. Agora vou paraPelargir, sobre o Anduin, e deveis me seguir. E, quando toda esta terra estiver livre

dos servidores de Sauron, vou considerar o juramento cumprido, e tereis paz e podereispartir para sempre. Pois eu sou Elessar, herdeiro de Isildur de Gondor.

E com isso ordenou que Halbarad desfraldasse o grande estandarte que haviatrazido, e eis que era negro, e, se nele havia qualquer símbolo. Estava oculto na escuridão.Então fez-se silêncio, e nem sequer um sussurro ou um suspiro se ouviu outra vez durantetoda a longa noite. A Companhia acampou ao lado da Pedra, mas dormiram pouco, porcausa do medo das Sombras que os cercavam.

Mas, quando chegou a aurora, fria e pálida, Aragorn se levantou imediatamente, econduziu a Companhia adiante na viagem de maior velocidade e cansaço que qualquerum deles conhecera, exceto ele próprio, e apenas sua disposição conseguia fazer com queos outros continuassem. Nenhum outro homem mortal teria suportado a viagem, nenhum,exceto os dúnedain do norte, e com eles Gimli, o anão, e Legolas dos elfos.

Passaram pela Garganta de Tarlang e chegaram a Lamedon, e o Exército daSombra se apressava atrás deles, e o medo ia adiante, até que chegaram a Calembel àmargem do Ciril, e o sol desceu feito sangue atrás das pinnath Geliu, na distância a oesteatrás deles. Encontraram as terras e os vaus do Ciril abandonados, pois muitos homenshaviam partido para a guerra, e todos os que ficaram fugiram para as colinas ao ouviremos rumores sobre a chegada do Rei dos Mortos. Mas no dia seguinte não houve aurora, e aCompanhia Cinzenta passou para dentro da escuridão da Tempestade de Mordor e seperdeu da visão dos mortais; mas os Mortos a seguiram.

CAPÍTULO III

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A CONCENTRAÇÃO DAS TROPAS DE ROHAN

Agora todas as estradas corriam juntas para o leste, ao encontro da guerra iminentee do ataque da Sombra. E, no momento em que Pippin se postava no Grande Portão daCidade e via o Príncipe de Doí Amroth entrar cavalgando com

suas insígnias, o Rei de Rohan desceu as colinas.O dia terminava. Nos últimos raios do sol os Cavaleiros projetavam sombras

longas e pontudas que os precediam. A escuridão já penetrara embaixo das florestasmurmurantes de abetos que cobriam as encostas íngremes das montanhas. Agora o reicavalgava devagar no fim do dia. De repente, a trilha contornou uma enorme

saliência de pedra nua e mergulhou na escuridão das árvores que suspiravamsuavemente. Foram descendo cada vez mais numa longa fila sinuosa. Quando finalmentechegaram ao fundo da garganta, viram que a noite já caíra nos lugares profundos. O sol sefora. O crepúsculo se deitava sobre as cachoeiras.

Durante todo o dia, bem abaixo deles, um riacho saltitante viera descendo dapassagem alta que ficava mais atrás, abrindo seu caminho estreito por entre muralhascobertas de pinheiros; agora corria através de um portão de pedra e passava para um valemais largo. Os Cavaleiros o seguiram, e de repente o Vale Harg estendia-se diante deles,ressoando com o barulho das águas no início da noite. Ali o branco Riacho de Neve,encontrando-se com córregos menores, corria veloz, vaporizando-se nas pedras descendopara Edoras, para as colinas verdes e para as planícies. Mais ao longe e a direita, no topodo grande vale, o poderoso Picorrijo assomava sobre seus amplos contrafortes envoltosem nuvens; mas seu pico dentado, vestido de neve eterna, reluzia bem acima do mundo,com sombras azuladas no leste, manchado pelo vermelho do pôr-do-sol no oeste.

Merry observava surpreso aquela terra estranha, sobre a qual ouvira muitashistórias durante a longa viagem. Era um mundo sem céu, no qual seu olho, através

de espaços escuros de ar sombrio, via apenas encostas sempre subindo, grandesmuralhas de pedra atrás de grandes muralhas, e precipícios sinistros envoltos pela névoa.Ficou por um momento numa espécie de devaneio, ouvindo o ruído da água, o sussurrodas árvores escuras, os estalidos das rochas, e o vasto silêncio de espera que pairavaacima de qualquer som. Ele amava as montanhas, ou amara pensar nelas se erguendo àmargem das histórias trazidas de longe; mas agora sentia-se acabrunhado pelo pesoinsuportável da Terra-média. Desejava isolar-se da imensidão numa sala tranquila, aolado de uma fogueira.

Estava muito cansado pois, embora tivessem cavalgado devagar, haviam feitopouquíssimas pausas na viagem. Hora após hora por quase três dias fatigantes, eleestivera sacolejando sobre passagens, através de longos vales e cruzando muitos rios.Algumas vezes, nos pontos onde o caminho era mais largo, cavalgara ao lado do rei, semnotar que muitos dos Cavaleiros sorriam ao ver os dois juntos: o hobbit montando opequeno pônei cinzento e peludo, e o Senhor de Rohan em seu grande cavalo branco.Nessas ocasiões conversara com Théoden, contando-lhe sobre sua terra natal e sobre osafazeres do povo do Condado, ou ouvindo por sua vez histórias sobre a Terra dosCavaleiros e seus poderosos homens de antigamente. Mas na maior parte do tempo,especialmente nesse último dia, Merry tinha cavalgado sozinho logo atrás do rei, semdizer nada, e tentando entender a fala lenta e sonora de Rohan usada pelos homens quevinham atrás dele. Era uma língua da qual Merry tinha a impressão de conhecer muitaspalavras, embora fossem pronunciadas com mais sonoridade e força do que no Condado,e apesar disso ele não conseguia juntar essas palavras. Algumas vezes algum Cavaleiro

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levantava sua voz cristalina numa canção animadora, e Merry sentia seu coração batermais forte, embora sem saber sobre o que falava a canção.

Mesmo assim sentia-se solitário, mais ainda quando chegava o fim do dia.Perguntava-se onde, em todo aquele mundo estranho, fora parar Pippin. e o queaconteceria com Aragorn, Legolas e Gimli. Depois, de repente, sentindo um frio em seucoração, pensou em Frodo e Sam. - Estou me esquecendo deles! disse para si mesmo numtom reprovatório. - E apesar disso eles são mais importantes que todos nós. E eu vim paraajudá-los, mas agora devem estar a centenas de milhas daqui,

se ainda estiverem vivos. - Teve um calafrio.- O Vale Harg, finalmente! - disse Éomer. - Nossa viagem está quase no fim. - Eles

pararam. As trilhas que desciam da garganta estreita eram íngremes. Era possível apenasentrever, como que olhando de uma janela alta, o grande vale no crepúsculo lá embaixo.Uma única luz fraca aparecia piscando ao lado do rio.

Esta viagem talvez tenha acabado - disse Théoden -, mas ainda tenho muito o queviajar. Ontem à noite a lua estava cheia, e amanhã cedo devo cavalgar até

Edoras para a concentração da Terra dos Cavaleiros. Mas, se o senhor aceitassemeu conselho - disse Éomer numa voz baixa -, depois o senhor voltaria para cá e aquificaria, até que a guerra estivesse terminada, com vitória ou derrota.

Théoden sorriu.- Não, meu filho, pois dessa forma irei chamá-lo, não diga as palavras suaves de

Língua de Cobra a meus ouvidos de velho! - Esticou o corpo e olhou para trás, vendo alonga fileira de seus homens sumindo dentro do crepúsculo. - Parece que longos anos sepassaram no espaço de dias desde que cavalguei para o oeste; mas jamais me apoiareinum cajado de novo. Se perdermos a guerra, de que adiantará eu me esconder nascolinas? E, se vencermos, que motivo haverá para tristeza, mesmo que eu pereça usandominhas últimas forças? Mas vamos deixar isso de lado agora. Esta noite vou descansar naFortaleza do Vale Harg. Ao menos uma noite de paz nos resta. Vamos continuar acavalgada!

No crepúsculo que se adensava eles desceram para o vale. Ali o Riacho de Nevecorria próximo ás paredes ocidentais, e logo a trilha os conduziu a um vau onde as águasrasas murmuravam alto sobre as pedras. O vau estava guardado. Com a aproximação dorei, muitos homens saltaram da sombra das rochas, e, quando o viram, gritaram comvozes alegres: - o Rei Théoden! O Rei Théoden! O Rei da

Terra dos Cavaleiros retorna!Então um deles fez soar um longo toque numa corneta, que ecoou no vale.

Outras cornetas responderam, e luzes brilharam do outro lado do rio.De repente elevou-se um grande coro de trombetas lá de cima, emitido de algum

lugar côncavo, ao que parecia, e que reunia as notas numa só voz, e a enviavaretumbando e batendo nas muralhas de pedra.Assim o Rei da Terra dos Cavaleiros retornou vitorioso do oeste para o Templo da

Colina, sob os pés das Montanhas Brancas. Ali encontrou já reunida a força que restavade seu povo, pois logo que ficaram sabendo da chegada os capitães cavalgaram ao seuencontro no vau, trazendo mensagens de Gandalf. Dúnhere, chefe do povo do Vale Harg,vinha á frente.

- Três dias atrás, ao amanhecer, senhor- disse ele -, Scadufax chegou a Edoras navelocidade do vento, vindo do oeste; Gandalf trouxe notícias de sua vitória para alegrarnossos corações. Mas também trouxe mensagens suas para que apressássemos a reuniãodos Cavaleiros. E então veio a Sombra alada.

- A Sombra alada? - disse Théoden. - Nós também a vimos, mas foi na calada da

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noite anterior à partida de Gandalf.- Pode ser, senhor - disse Dúnhere. -Apesar disso, a mesma, ou outra semelhante a

ela, uma escuridão que vôa na forma de um pássaro monstruoso, sobrevoou Edorasnaquela manhã, e todos os homens ficaram tomados de medo. Pois ela deu um vôorasante sobre Meduseld, e, quando abaixou, quase tocando o cume, ouvimos um grito queparalisou nossos corações. Foi então que Gandalf nos aconselhou a não nos reunirmos noscampos, mas a encontrá-lo aqui no vale sob as montanhas. E ele ordenou que sóacendêssemos luzes ou fogueiras em caso de extrema necessidade. E assim foi feito.Gandalf falou com grande autoridade.

Confiamos que esse seja o seu desejo. Não se viu nenhuma dessas coisas malignasno Vale Harg.

- Isso é bom - disse Théoden. - Agora vou cavalgar para a Fortaleza e lá, antes dedescansar, encontrarei os marechais e capitães. Quero vê-los O mais cedo

possível!Agora a estrada conduzia para o leste, direto através do vale, que nesse ponto não

tinha muito mais que oitocentos metros de largura. Planícies e Campinas de capim grosso,agora cinzento ao cair da noite, jaziam por toda a volta; mas à frente, do lado oposto dovale, Merry viu uma parede franzida, uma última saliência das grandes raízes do Picorrijo,fendida pelo rio em eras passadas.

Em todos os espaços planos havia um grande agrupamento de homens. Algunsapinhados na borda da estrada, saudando o rei e os cavaleiros que vinham do oeste comgritos alegres; mas estendendo-se na distância atrás deles viam-se fileiras ordenadas detendas e barracas, e colunas de cavalos amarrados em estacas, e um grande estoque dearmas, e pilhas de lanças eretas como matas de árvores recém plantadas. Agora toda agrande assembléia estava mergulhando na escuridão e mesmo assim, embora o vento danoite soprasse gelado das alturas, nenhuma lamparina reluzia, nenhuma fogueira foraacesa. Sentinelas com vestes pesadas

caminhavam de um lado para o outro.Merry ficou imaginando quantos Cavaleiros havia. Não conseguia calcular o

número na escuridão que se adensava, mas parecia-lhe um grande exército, com milharesde homens. Enquanto ele esquadrinhava todos os pontos, o grupo do rei atingiu openhasco que assomava na encosta leste do vale; ali, de repente, a trilha começou a subir,e Merry ergueu os olhos assombrado. Estava numa estrada como nunca vira antes, umgrande trabalho de mãos humanas, feito em épocas além do alcance das canções.

Subia fazendo curvas, ziguezagueando como uma cobra, abrindo seu caminhoatravés da encosta íngreme de pedra. Inclinada como uma escada, curvava-

se para lá e para cá á medida que ia subindo. Para cima, os cavalos conseguiamandar, e as carroças podiam ser lentamente puxadas; mas nenhum inimigo poderiaavançar por aquele caminho se este fosse defendido lá de cima, a não ser que esse inimigochegasse pelos ares. A cada curva da estrada postavam-se grandes rochas que haviam sidoesculpidas á semelhança de homens, enormes e desajeitados, agachados, de pernascruzadas, com os braços fortes cruzados sobre barrigas robustas. Alguns, com o passardos anos, tinham perdido todos os traços, exceto os buracos escuros dos olhos, que aindafitavam tristes os passantes. Os Cavaleiros mal olhavam para eles.

Chamavam-nos de homens-púkel, pouca atenção lhes davam: naquelas imagensnão restava qualquer poder ou terror, mas Merry os fixava surpreso e com um sentimentoquase de dó, à medida que eles iam assomando melancolicamente no crepúsculo.

Depois de um tempo olhou para trás e percebeu que já tinha subido várias dezenasde metros acima do vale, mas ainda conseguia divisar lá embaixo uma linha sinuosa de

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cavaleiros atravessando o vau e avançando em fila ao longo da estrada em direção aoacampamento preparado para eles.

Apenas o rei e sua guarda subiriam até a Fortaleza.Finalmente a companhia do rei atingiu uma borda íngreme, e a estrada ascendente

avançou por um corte feito nas muralhas de pedra, e assim subiu uma pequena encosta eatingiu uma plataforma larga. Os homens a chamavam de Firienfeld, um campo de gramae charneca na montanha, bem acima do leito profundo do Riacho de Neve, que passavapelo colo das grandes montanhas lá atrás: o Picorrijo ao sul; ao norte o maciço deSerraferro com seus dentes de serrote, entre os quais, à frente dos cavaleiros, postava-se amuralha negra da Dwimorberg, a Montanha Assombrada, saindo de encostas íngremescobertas de pinheiros sombrios. Dividindo a plataforma ao meio havia uma linha dupla depedras fincadas e disformes, que iam desaparecendo no crepúsculo, sumindo entre asárvores. Aqueles que ousavam passar por aquela estrada logo atingiam o negro Dimholtsob Dwimorberg, e a ameaça do pilar de pedra, com a boca escura e escancarada da portaproibida.

Assim era o escuro Templo da Colina, trabalho de homens havia muito esquecidos.Ninguém se lembrava dos seus nomes, e nenhuma canção ou lenda os celebrava.

Com que propósito haviam construído esse lugar, para ser uma cidade ou umtemplo secreto ou um túmulo de reis, ninguém sabia dizer. Ali tinham trabalhado duranteos Anos Escuros, antes que qualquer navio chegasse às praias do oeste, ou Gondor dosdúnedain fosse construída; agora tinham desaparecido, e restavam apenas os velhoshomens-púkel, ainda sentados nas curvas da estrada.

Merry olhou para as fileiras de pedras em desfile: estavam desgastadas e escuras;algumas inclinadas, algumas caídas, outras rachadas ou quebradas; pareciam fileiras develhos dentes famintos. Ficou pensando o que poderiam ser, e esperava que o rei nãofosse segui-las em direção à escuridão mais além.

Então percebeu que havia tendas e barracas aglomerando se dos dois lados docaminho de pedra, mas que não estavam armadas perto das árvores, parecendo antesagruparem-se longe delas, na direção da borda do penhasco. A maioria estava à direita,onde o Fíríenfeld era mais amplo; à esquerda havia um acampamento menor, no meio doqual se erguia um alto pavilhão. Deste lado vinha agora um cavaleiro para encontrá-los, eeles deixaram a estrada.

Assim que se aproximaram, Merry percebeu que o cavaleiro era uma mulher comlongos cabelos trançados que reluziam no crepúsculo, mas ela usava um elmo, e estavavestida até a cintura como um guerreiro, trazendo uma espada no cinto.

- Salve, Senhor da Terra dos Cavaleiros! - exclamou ela. – Meu coração se alegracom seu retorno.

- É você, Éowyn - disse Théoden - está tudo bem com você?- Está tudo bem - respondeu ela, mas Merry teve a impressão de que sua voz a

traía, e poderia pensar que Éowyn estivera chorando, se isso fosse possível em umapessoa com o rosto tão austero. Está tudo bem. Foi uma estrada cansativa para o povo,afastado repentinamente de suas casas. Houve palavras duras, pois faz tempo que a guerranos expulsou dos campos verdes, mas não houve más ações. Tudo agora está em ordem, osenhor vê E seu alojamento já está preparado, pois recebi notícias completas sobre vocêse a hora de sua chegada. Então Aragorn veio - disse Éomer. - Ele ainda está aqui?

- Não, ele se foi - disse Éowyn, virando-se e olhando para as montanhas, escurascontra o leste e o sul.

- Para onde foi? - perguntou Éomer.- Eu não sei -respondeu ela. - Chegou á noite, e partiu ontem de manhã, antes que

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o sol tivesse subido acima dos topos das montanhas. Ele partiu.-Você está triste, filha - disse Théoden. - O que aconteceu? Diga-me, ele falou

daquela estrada? - O rei apontou a distância, ao longo das linhas de pedra que seescureciam na direção da Dwimorberg. - Falou das Sendas dos Mortos?

- Sim, senhor - disse Éowyn. - E penetrou nas sombras das quais nunca ninguémretornou. Não pude dissuadi-lo. Ele partiu.

- Então nossos caminhos estão separados - disse Éomer. - Ele se perdeu. Devemoscavalgar sem ele, e nossa esperança diminui.

Devagar passaram através da charneca baixa e da grama das montanhas, sem falarmais nada, até chegarem ao pavilhão do rei. Ali Merry viu que tudo estava preparado, eque ele mesmo não fora esquecido. Uma pequena tenda fora armada para ele ao lado doalojamento do rei; ali sentou-se sozinho, enquanto os homens andavam de um lado para ooutro, entrando para ver o rei e se aconselhar com ele.

A noite se aproximou, e os topos das colinas parcialmente visíveis a oeste ficaramcoroados de estrelas, mas o leste estava escuro e vazio. As pedras enfileiradas foramlentamente desaparecendo de vista, mas ainda além delas, mais negra que a escuridão,espreitava a vasta sombra agachada da Dwimorberg.

- As Sendas dos Mortos - murmurou Merry para si mesmo. - As Sendas dosMortos? O que significa tudo isso? Todos me abandonaram agora. Cada um em direção aum destino: Gandalf e Pippin para a guerra no leste; Sam e Frodo para

Mordor; Passolargo, Legolas e Gimli para as Sendas dos Mortos. Mas minha vezchegará em breve, suponho eu. Gostaria de saber sobre o que estão conversando, e o queo rei pretende fazer. Pois agora devo ir aonde ele for.

Em meio a esses pensamentos melancólicos, Merry de repente se lembrou de queestava com muita fome! Levantou-se para ver se alguém naquele estranho acampamentosentia a mesma coisa. Mas nesse exato momento uma trombeta soou, e um homem veiochamando-o, ao escudeiro do rei, para que servisse à mesa do rei.

Na parte interna do pavilhão havia um espaço exíguo, isolado por telas bordadas, ecoberto de peles; ali, a uma pequena mesa, estava sentado Théoden com Éomer, Éowyn eDúnhere, senhor do Vale Harg. Merry ficou de pé ao lado do banco do rei e o serviu, atéque o velho, saindo de pensamentos profundos, virou-se para ele e sorriu.

-Venha, Mestre Meriadoc! - disse ele. - Você não ficará de pé. Vai sentar-se aomeu lado, enquanto eu permanecer em minhas próprias terras, e alegrará meu coraçãocom histórias.

Abriu-se espaço para o hobbit á esquerda do rei, mas ninguém pediu qualquerhistória. Na realidade houve pouca conversa, e eles comeram e beberam em silêncio amaior parte do tempo, até que, finalmente, criando coragem, Merry fez a pergunta que oatormentava.

- Já duas vezes, senhor, ouvi sobre as Sendas dos Mortos – disse ele.- O que são elas? Para onde foi Passolargo, quero dizer, o Senhor Aragorn, aonde

ele foi?O rei suspirou, mas ninguém respondeu; finalmente Éomer falou.- Nós não sabemos, e nossos corações estão pesados - disse ele. - Mas, quanto às

Sendas dos Mortos, você mesmo caminhou nos primeiros passos dela. Não, não estoupronunciando palavras de mau agouro! A estrada que subimos é o acesso à Porta que ficamais além, no Dimholt. Mas o que fica atrás dela, homem nenhum sabe.

- Homem nenhum sabe - disse Théoden. - Apesar disso, antigas lendas, agorararamente contadas, têm algo a reportar. Se essas histórias antigas, que passaram de paipara filho na Casa de Eorl, falam a verdade, então a Porta sob a Dwimorberg conduz a um

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caminho secreto que passa por baixo da montanha e se dirige para algum fim esquecido.Mas ninguém jamais se aventurou a entrar para vasculhar seus segredos desde queBaldor, filho de Brego, passou pela Porta e nunca mais foi visto entre os homens. Ele fezum juramento temerário, ao esvaziar o chifre naquele banquete que Brego fez paraconsagrar o recém-construído palácio de Meduseld, e ele jamais chegou ao trono do qualera herdeiro. As pessoas dizem que os Homens Mortos, dos Anos Escuros, guardam ocaminho e não permitem que nenhum homem vivo penetre seus salões ocultos; masalgumas vezes eles próprios podem ser vistos saindo da Porta como sombras e descendo apedregosa estrada. Então o povo do Vale tranca as portas e cobre as janelas, sentindomedo. Mas os Mortos raramente saem, e só em horas de grande inquietação ou quando amorte se aproxima.

- Apesar disso comenta-se no Vale Harg - disse Éowyn numa voz baixa - que emnoites sem luar, há pouco tempo, um grande exército numa formação estranha passou. Deonde vinha ninguém pôde saber, mas subiu a estrada de pedra e desapareceu dentro dacolina, como se estivesse rumando para um encontro marcado.

- Então por que Aragorn foi por esse caminho? – perguntou Merry. - Vocês nãoconhecem nenhum motivo que pudesse explicar isso?

- A não ser que, como seu amigo, ele tenha lhe dito palavras que não ouvimos -disse Éomer -, ninguém agora na terra dos vivos pode dizer quais são os seus propósitos.

- Ele parecia muito mudado em comparação a quando o vi na casa do rei - disseÉowyn -: mais austero, mais velho. Pareceu-me alguém às portas da morte, como alguémque é chamado pelos Mortos.

- Talvez ele tenha sido chamado - disse Théoden -; e meu coração me diz que nãoo verei de novo. Apesar disso, ele é um homem nobre, com um destino importante. Econsole-se com isso, filha, uma vez que você parece precisar de consolo em sua tristezapor esse hóspede. Comenta-se que, quando os Eorlingas vieram do norte e finalmentepassaram subindo ao longo do Riacho de Neve, procurando lugares seguros para serefugiarem em tempos de necessidade, Brego e seu filho Baldor subiram a Escada daFortaleza e assim chegaram diante da Porta. No limiar estava sentado um velho, de umaidade incalculável em anos; fora alto e nobre, mas agora estava desgastado como umapedra velha. Na realidade, tomaram-no por uma pedra, pois não se moveu, nem dissepalavra alguma, até que eles tentaram passar por ele e entrar. E então uma voz saiu docorpo dele, como se viesse do chão, e para o assombro dos dois falou na língua do oeste:O caminho está fechado.

- Então eles pararam e olharam para ele, percebendo que ainda estava vivo; masele não retribuiu o olhar, O caminho está fechado - disse a voz outra vez. - Foi fechadopor aqueles que estão Mortos, e os Mortos o guardam, ate que chegue o tempo. Ocaminho está fechado.

- E quando será o tempo? - disse Baldor. Mas nunca conseguiu qualquer resposta.Pois o velho morreu naquela hora e caiu com o rosto no chão; e nunca mais meu povoteve notícias dos antigos moradores das montanhas. Apesar disso, talvez o tempo previstotenha chegado, e Aragorn possa passar.

- Mas como poderá um homem descobrir se o tempo chegou ou não, a não serdesafiando a Porta? - disse Éomer. - E por aquele caminho eu não iria nem mesmo setodos os exércitos de Mordor estivessem diante de mim, e eu estivesse sozinho e semoutro refúgio. É pena que uma disposição para a morte deva recair sobre um homem decoração tão grande nesta hora de necessidade! Já não há coisas malignas suficientes, semque se precise procurar embaixo da terra? A guerra se aproxima.

Fez uma pausa, pois naquele momento ouviu-se um ruido do lado de fora, uma voz

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de homem chamando o nome de Théoden, e a sentinela exigindo a senha.De repente o capitão da Guarda abriu a cortina. - Está aqui um homem, senhor -

disse ele -, um mensageiro de Gondor. Deseja vê-lo imediatamente.- Faça-o entrar! - disse Théoden.Um homem alto entrou, e Merry sufocou um grito; por um momento teve a

impressão de que Boromir estava vivo outra vez e retornara. Então viu que não eraverdade; o homem era um forasteiro, embora parecido com Boromir como se fosse umparente dele, alto e de olhos cinzentos, de porte altivo. Estava vestido como um cavaleiro,com uma capa verde-escuro sobre uma cota de malha fina; na frente de seu elmo estavagravada uma pequena estrela de prata. Na mão trazia uma única flecha, adornada complumas negras e com farpas de aço; mas a ponta era pintada de vermelho.

Ajoelhou-se e apresentou a flecha a Théoden. - Salve, Senhor dos Rohirrim, amigode Gondor! - disse ele. - Sou Hirgon, mensageiro de Denethor, e trago-lhe este símbolo deguerra. Gondor está numa grande necessidade. Várias vezes os rohirrim nos ajudaram,mas agora o Senhor Denethor solicita toda a sua força e toda a sua velocidade, para queGondor não venha a cair.

- A Flecha Vermelha! - disse Théoden, segurando-a como alguém que recebe umaconvocação há muito esperada mas terrível quando chega. Sua mão tremeu.

- A Flecha Vermelha não foi vista na Terra dos Cavaleiros durante toda a minhavida! As coisas realmente chegaram a este ponto? E o que o Senhor Denethor calcula queseja toda a minha força e toda a minha velocidade?

- Isso é o senhor quem melhor sabe - disse Hirgon. – Mas em breve pode acontecerque Minas Tirith seja cercada, e, a não ser que o senhor tenha a força para quebrar umcerco de muitos exércitos, o Senhor Denethor me ordena dizer-lhe que ele julga que asfortes armas dos rohirrim ficariam melhor no interior das muralhas do que do lado defora.

- Mas ele sabe que somos um povo que luta de preferência montado em cavalos eem espaços abertos, e também sabe que somos um povo disperso, e precisamos de tempopara reunirmos nossos Cavaleiros. Não é verdade, Hirgon, que o Senhor de Minas Tirithsabe mais do que coloca em sua mensagem? Pois já estamos em guerra. Como você deveter ouvido, você não nos encontra totalmente despreparados. Gandalf, o Cinzento, esteveentre nós, e neste exato momento estamos concentrando nossas tropas para a batalha noleste.

- O que o Senhor Denethor possa saber ou supor sobre todas essas coisas não possodizer - respondeu Hirgon. - Mas realmente nosso caso é desesperador. Mas meu senhornão lhe envia nenhum comando, ele lhe implora apenas para que se recorde da velhaamizade e dos juramentos feitos há muito tempo, e que para o seu próprio bem faça o quepuder. Ficamos sabendo que muitos reis cavalgaram do leste a serviço de Mordor. Donorte até o campo de Dagorlad há conflitos e rumores de guerra. No sul os haradrim estãose movendo, e o medo paira sobre todas as nossas regiões costeiras, de modo quereceberemos pouca ajuda de lá. Apresse-se! Pois é diante das muralhas de Minas Tirithque o destino de nossa época será decidido, e, se a maré não for estancada ali, entãoinundará todos os belos campos de Rohan, e nem mesmo aqui, neste Forte entre ascolinas, haverá refúgio.

- Notícias negras - disse Théoden -, e apesar disso não de todo inesperadas. Masdiga a Denethor que, mesmo se Rohan não se sentisse ameaçada, ainda assim iríamos emseu auxílio. Mas sofremos muitas perdas em nossas batalhas contra o traidor Saruman, eprecisamos ainda pensar em nossa fronteira ao norte e a leste, como esclarece a própriamensagem que ele envia. Um poder tão grande como o que o Senhor do Escuro parece

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agora controlar poderia muito bem nos cercar em batalhadentro da Cidade, e mesmo assim atacar com grande força do outro lado do Rio, lá

adiante. além do Portão dos Reis.- Mas não faremos mais planos de prudência. Iremos. O encontro de armas está

marcado para o dia de amanhã. Quando tudo estiver em ordem, partiremos.Poderia ter enviado dez mil lanceiros através da planície para o desalento de

nossos inimigos. O número será menor agora, receio eu, pois não deixarei minhasfortalezas totalmente desprotegidas. Apesar disso, no mínimo seis mil deverão cavalgaratrás de mim. Pois diga a Denethor que nesta hora o Rei da Terra dos Cavaleiros desceráaté Gondor, embora seja possível que ele não retorne. Mas é uma longa estrada, e homense animais devem chegar ao fim com forças ainda para lutar. Pode levar uma semana, acontar do dia de amanhã, até que vocês ouçam o grito dos Filhos de Eorl chegando donorte.

- Uma semana! - disse Hirgon. - Se deve ser assim, que seja. Mas é provável quesó encontrem muralhas arruinadas daqui a sete dias, a não ser que outro auxilioinesperado chegue. Ainda assim, vocês poderão pelo menos perturbar os orcs e os homensmorenos em seu banquete na Torre Branca.

- Pelo menos faremos isso - disse Théoden. - Mas eu próprio acabei de chegar deuma batalha e de uma longa viagem, e agora vou descansar. Permaneça aqui esta noite.Então poderá assistir à concentração das tropas de Rohan e partir mais feliz peloespetáculo que viu, e mais depressa pelo descanso. Pela manhã os conselhos sãomelhores, e a noite altera muitos pensamentos.

Com isso o rei ficou de pé, e todos se levantaram. - Agora todos devem irdescansar - disse ele -, e durmam bem. E de você, Mestre Meriadoc, não necessito maisesta noite. Mas fique pronto para minha convocação assim que o sol nascer.

- Estarei a postos - disse Merry -, mesmo que ordene que eu cavalgue com o senhorpelas Sendas dos Mortos.

- Não pronuncie palavras de mau agouro! - disse o rei. - Pois é possível que hajamais de uma estrada digna de tal nome. Mas eu não disse que ordenaria que vocêcavalgasse comigo em qualquer estrada. Boa noite!

- Não vou ficar para trás, para ser apanhado na volta! - disse Merry.- Não vou ficar para trás, não vou! - E repetindo isso inúmeras vezes para si

mesmo finalmente adormeceu em sua tenda. Foi acordado por um homem que o sacudia. -Acorde, acorde, Mestre Hobbit! - exclamou ele, e finalmente Merry despertou de seussonhos profundos e sentou-se num sobressalto. Achou que ainda estava muito escuro.

- Qual é o problema"? - perguntou ele.- O rei o chama.- Mas o sol ainda não nasceu - disse Merry.- Não, e não nascerá hoje, Mestre Hobbit. E nunca mais, poderíamos presumir sob

esta nuvem. Mas o tempo não pára, embora o sol esteja perdido. Depressa!Jogando sobre o corpo algumas roupas, Merry olhou lá fora. O mundo estava

sombrio. O próprio ar parecia escuro, e todas as coisas ao redor estavam negras, cinzentase sem sombras; havia uma grande imobilidade. Não se via o vulto de uma nuvem sequer,a não ser que estivesse muito distante, na direção do oeste, onde os mais longínquosdedos da grande escuridão ainda avançavam rastejando, e uma pequena luz escoavaatravés deles. Acima pairava um teto pesado, sombrio e disforme, e a luz mais pareciaestar se extinguindo do que aumentando.

Merry viu muitas pessoas de pé, olhando para o alto e murmurando; seus rostosestavam sombrios e tristes, alguns amedrontados. Com o coração pesado, o hobbit se

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dirigiu até onde se encontrava o rei. Hirgon, o cavaleiro de Gondor, estava lá diante dele,e ao lado agora estava um outro homem, parecido com ele e com roupas semelhantes, masmais baixo e troncudo.

Quando Merry entrou ele estava falando com o rei.-Vem de Mordor. senhor- disse ele. - Começou ontem, ao pôr-do-sol Das colinas

do Folde Oriental de seu reino eu a vi se erguendo e se alastrando no céu, e toda a noite,durante a minha cavalgada, ela me seguiu, devorando as estrelas. Agora a grande nuvempaira sobre toda a região daqui até as Montanhas da Sombra; e está ficando mais densa. Aguerra já começou.

Por um tempo o rei ficou sentado e em silêncio. Finalmente falou.- Então por fim chegamos a ela - disse ele -: a grande batalha de nossa era, na qual

muitas coisas deverão morrer. Mas pelo menos não há mais necessidade de nosescondermos. Vamos cavalgar pelo caminho direto e na estrada aberta com toda a nossavelocidade. A concentração das tropas deve começar imediatamente, sem esperar porninguém que esteja atrasado. Vocês têm bons estoques em Minas Tirith?

Pois, se devemos cavalgar com a maior rapidez possível, então devemos estarleves, levando apenas comida e bebida que nos sustentem até a batalha.

- Temos um enorme estoque, preparado há muito tempo – respondeu Hirgon. -Partam agora com a maior leveza e velocidade possível!

- Então chame os arautos, Éomer - disse Théoden. - Que os Cavaleiros sejamreunidos!

Éomer saiu e de repente as trombetas soaram na Fortaleza e muitas outras lá debaixo responderam; mas suas vozes não mais soavam cristalinas e corajosas como Merryas ouvira na noite anterior. Pareciam abafadas e roucas, zurrando funestas.

O rei virou-se para Merry. - Estou indo para a guerra, Mestre Meriadoc - disse ele.- Em breve deverei tomar a estrada. Dispenso-o de meu serviço, mas não de minhaamizade. Você permanecerá aqui, e, se quiser, poderá servir à Senhora Éowyn, quegovernará o povo em meu lugar.

- Mas, mas, senhor - gaguejou Merry. - Eu lhe ofereci minha espada. Não querome separar de sua pessoa desta forma, Rei Théoden. E, como todos os meus amigos forampara a batalha, eu me sentiria envergonhado se ficasse para trás.

- Mas nós montamos cavalos altos e velozes - disse Théoden -; e, embora vocêpossa ter grande coragem, não pode cavalgar esses animais.

- Então amarre-me ao lombo de um, ou deixe-me andar pendurado num estribo, ouqualquer outra coisa - disse Merry. - Há uma longa estrada a percorrer; mas eu ireicorrendo, se não puder cavalgar, mesmo que tenha de gastar meus pés e chegar comsemanas de atraso.

Théoden sorriu.- Seria melhor que eu o levasse comigo na garupa de Snawmana - disse ele. - Mas

pelo menos você cavalgará comigo até Edoras para ver Meduseld; pois devo fazer essecaminho. Até lá Stybba pode levá-lo: a grande corrida não começará até atingirmos asplanícies.

Então Éowyn se levantou.- Venha agora Merriadoc. Vou lhe mostrar as armas que preparei para você. - Os

dois saíram juntos. - Apenas esse pedido Aragorn me fez - disse Éowyn, enquanto elespassavam por entre as tendas -, que você fosse armado para a batalha. Eu garanti que seriaassim, que faria o possível. Pois meu coração me diz que você vai precisar dessas armasantes do fim.

Então ela levou Merry a uma barraca em meio aos alojamentos da guarda do rei, e

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lá um armeiro lhe trouxe um pequeno elmo, um escudo redondo, e outras armas.- Não temos malhas que lhe sirvam - disse Éowyn -, nem tempo para forjar uma

cota desse tipo; mas aqui também há um gibão de couro resistente, um cinto e uma faca.A espada você já tem.

Merry fez uma reverência, e a senhora lhe mostrou o escudo, que era parecido comaquele que dera a Gimli e ostentava a insígnia do cavalo branco.

- Pegue todas essas coisas - disse ela - e conduza-as a um bom desenlace! Adeusagora, Mestre Meriadoc! Mas talvez nos encontremos outra vez, você e eu.

Foi assim que, em meio a uma escuridão que se adensava, o Rei da Terra dosCavaleiros se aprontou para conduzir todos os seus homens na estrada para o leste.

Os corações estavam pesados, e muitos estremeciam diante da sombra. Mas eramum povo resoluto, leal ao seu senhor, e ouvia-se pouco choro ou murmúrio, mesmo noacampamento da Fortaleza, onde se abrigavam os exilados de Edoras, mulheres; criançase velhos. O destino pairava sobre eles, que o enfrentavam em silencio.

Duas rápidas horas se passaram, e agora o rei montava seu cavalo branco,refulgindo na meia-luz. Parecia orgulhoso e altivo, embora o cabelo que esvoaçavaembaixo de seu alto elmo parecesse neve; muitos se surpreenderam com ele, e alegraram-se ao vê-lo ereto e destemido.

Lá nas amplas planícies ao lado do rio ruidoso estavam agrupadas muitascompanhias que perfaziam quase cinco mil e quinhentos Cavaleiros completamentearmados, e muitas centenas de outros homens com cavalos avulsos levemente carregados.Uma única trombeta soou. O rei levantou a mão, e então, em silêncio, o exército da Terrados Cavaleiros começou a se mover. Na frente iam doze dos homens da casa do rei,Cavaleiros de renome. Depois ia o rei com Éomer à sua direita.

Dissera adeus a Éowyn em cima, no Forte, e a lembrança lhe trazia tristeza, masagora voltava sua mente para a estrada que se estendia à frente. Atrás dele Merry montadoem Stybba, com os mensageiros de Gondor, e mais atrás outros doze homens da casa dorei. Passaram pelas longas fileiras de homens que esperavam com rostos austeros eimóveis. Mas, quando chegaram quase ao fim da fileira, um deles ergueu os olhos,lançando um olhar agudo para o hobbit. "Um jovem", pensou Merry ao retribuir o olhar,"menor em tamanho e corpulência que muitos." Merry

capturou o brilho de olhos cristalinos e cinzentos, e então estremeceu, pois derepente lhe ocorreu o pensamento de que aquele era o rosto de uma pessoa sem esperançaque partia ao encontro da morte.

Continuaram descendo pela estrada cinzenta ao lado do Riacho de Neve, correndosobre suas pedras, através das aldeias de Sob-templo e de Sobre-riacho, onde muitosrostos tristes de mulheres olhavam através de portas escuras; assim, sem cornetas ouharpas ou música de vozes humanas, começou a grande cavalgada para o leste, da qual ascanções de Rohan se ocuparam por muitas vidas de homem posteriormente.

Do Templo da Colina na manhã calada com nobre e capitão saiu o filho deThengel: para Edoras ele veio, para os velhos salões dos guardas de Rohan envoltos emneblina; das madeiras douradas imersas em dor. Adeus ele deu ao seu povo em liberdade,ao lar, ao alto assento e aos sagrados recintos, onde tanto celebrara até a luz se apagar.Em frente vai o rei, o medo atrás ficando, adiante o destino. Sua lealdade ele manteve;juras que fizera, todos as cumpriram.

Em frente vai Théoden.Cinco noites, cinco dias, avante para o leste foram os eorlingas Pelo Folde e por

Fenmark e por Firienholt, seis milhares de lanças para Sunlending, Mundburg magníficaaos pés do Mindolluin, dos reis do Mar cidade no reino do sul infestado de inimigos,

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sitiado pelo fogo.O Destino os dirigia.As trevas dominaram cavalo e cavaleiro; cascos na distância sumiram no silêncio:

assim rezam as canções.Foi realmente numa escuridão cada vez mais profunda que o rei chegou a Edoras,

embora não passasse do meio-dia. Ali fizeram apenas uma pausa curta e fortaleceram -seuexército com algumas dezenas de Cavaleiros que haviam chegado atrasados para oencontro de armas. Agora, tendo comido, ele se aprontava para partir novamente, edesejou ao seu escudeiro uma estada feliz. Mas Merry implorou pela última vez que nãose separasse dele.

- Esta não é uma viagem para animais como Stybba, como eu já lhe falei - disseThéoden. - - E, numa batalha como a que pensamos travar nos campos de Gondor, o quevocê faria, Mestre Meriadoc, embora você seja um espadachim, e maior na coragem doque na estatura?

- Quanto a isso, quem pode saber? respondeu Merry. - Mas por que, meu senhor,fui aceito como espadachim, senão para ficar ao seu lado? E eu não permitiria que de mimas canções dissessem que sempre fiquei para trás.

- Recebi-o para protegê-lo - respondeu Théoden - e também para que cumprisseminhas ordens. Nenhum de meus Cavaleiros pode levá-lo como fardo. Se a batalhaestivesse diante de meus portões, talvez seus feitos fossem recordados pelos menestréismas são cento e duas léguas daqui até Nundburg, onde Denethor é senhor. Não direi maisnada.

Merry fez uma reverência e se afastou infeliz, olhando as fileiras de cavaleiros. Ascompanhias já estavam se aprontando para partir: os homens apertando cilhas, tratandodas selas, acariciando seus cavalos; alguns olhavam aflitos para o céu ameaçador. Sem sernotado, um cavaleiro se aproximou e falou baixinho ao ouvido do hobbit.

- Quando a vontade não falta, caminho se abre, assim dizemos nós - sussurrou ele-; e foi isso o que aconteceu comigo. - Merry ergueu os olhos e viu que era o jovemCavaleiro que notara durante a manhã. - Você deseja ir aonde o Senhor da Terra dosCavaleiros for: vejo isso em seus olhos.

- Desejo - disse Merry.- Então irá comigo - disse o Cavaleiro. - Vou levá-lo sentado na minha frente sob

minha capa até que estejamos bem longe, e esta escuridão esteja ainda mais escura. Essaboa vontade não lhe deveria ter sido negada. Não diga mais nada para ninguém, masvenha!

- Fico imensamente grato! - disse Merry. - Obrigado, senhor, embora eu não saibaseu nome.

- Não sabe? - disse o Cavaleiro baixinho. - Então chame-me de Dernhelm.Foi assim que, quando o rei partiu, na frente de Dernhelm foi montado Meriadoc, o

hobbit, e o grande corcel cinzento Windfola fez pouco do fardo, pois Bernhelm era menospesado que muitos homens, embora esbelto e de corpo bem feito.

Avançaram para dentro da sombra. Nos maciços de salgueiros, onde o Riacho deNeve corria para desembocar no Entágua, doze léguas a leste de Edoras, eles acamparamnaquela noite. E depois continuaram de novo através do Folde, e através de Fenmark,onde á direita grandes florestas de carvalhos subiam nas encostas das colinas, sob assombras do escuro Halifirien, ao lado das fronteiras de Gondor; mas á esquerda a névoapairava nos pântanos alimentados pelas desembocaduras do Entágua. Enquantocavalgavam chegaram-lhes aos ouvidos os boatos da guerra no norte. Homens sozinhos,cavalgando alucinados, trouxeram notícias sobre os inimigos atacando as fronteiras

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orientais, sobre exércitos de orcs marchando no Descampado de Rohan..- Avante! Avante! - gritou Éomer. - É tarde demais agora para desviarmos. Os

charcos do Entágua deverão guardar nosso flanco. Precisamos agora de velocidade.Avante!

E assim o Rei Théoden partiu de seu próprio reino, e milha após milha a longaestrada avançava sinuosa, e as colinas dos faróis passaram marchando: Calenhad, Min-Rimmon, Erelas, Nardol. Mas suas fogueiras estavam apagadas. Toda a terra estavacinzenta e quieta, e cada vez mais a escuridão se adensava diante deles, e a esperançaminguava em seus corações.

CAPÍTULO IV O CERCO DE GONDOR

Pippin foi acordado por Gandalf. Havia velas acesas no quarto, pois apenas umafraca luz crepuscular entrava pelas janelas; o ar estava pesado como se uma tempestade seaproximasse.

- Que horas são? - perguntou Pippin bocejando.- Já passa da segunda hora - disse Gandalf. - Hora de levantar e se fazer

apresentável. O Senhor da Cidade o convoca para informá-lo sobre seus novos deveres.- E ele vai providenciar o desjejum?- Não, eu providenciei isso: tudo o que você vai comer até o meio-dia. A comida

agora está sendo racionada.Pippin olhou desolado para o pequeno pedaço de pão e a porção muito inadequada

(achou ele) de manteiga que lhe foi servida, ao lado de uma xícara de leite aguado.- Por que você me trouxe para cá? - disse ele.- Você sabe muito bem disse Gandalf. - Para mantê-lo longe de confusão; e, se

você não aprecia estar aqui, é melhor se lembrar de que foi você quem atraiu a confusão. -Pippin não disse mais nada.

Logo estava descendo mais uma vez com Gandalf pelo frio corredor que levava àporta do Salão da Torre. Denethor estava sentado lá numa escuridão cinzenta, como umaaranha velha e paciente, na opinião de Pippin; não parecia ter mudado de posição desde odia anterior. Apontou uma cadeira para Gandalf, mas deixou Pippin um tempo parado depé, sem lhe dar atenção. De repente o velho voltou-se para ele:

- Bem, Mestre Peregrin, espero que tenha usado o dia de ontem em seu proveito, ea seu gosto. Mas receio que a mesa seja mais pobre nesta Cidade do que você poderiadesejar.

Pippin teve uma sensação incômoda de que a maioria do que tinha falado ou feitochegara, de alguma forma, ao conhecimento do Senhor da Cidade, que também estavaadivinhando grande parte de seus pensamentos. Não respondeu.

- O que você poderia fazer a meu serviço?- Pensei que minhas tarefas seriam designadas pelo senhor.- E serão, quando eu souber para que serviço você serve -disse Denethor. - Mas

isso talvez eu saiba mais depressa se o mantiver ao meu lado. O escudeiro de minhacâmara pediu permissão para ir á guarnição externa, de modo que você deve substitui-lopor algum tempo. Vai me servir, levar recados e conversar comigo. se a guerra e o

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planejamento me deixarem algum tempo de sobra. Sabe cantar"?- Sei - disse Pippin. - Quero dizer, bem o suficiente para o meu próprio povo. Mas

não temos canções adequadas para grandes salões e tempos ruins. Raramente cantamossobre qualquer coisa mais terrível que o vento ou a chuva. E a maioria de minhas cançõesé sobre coisas que nos fazem rir, ou sobre comida e bebida, é claro.

- E por que essas canções seriam inadequadas para meus salões, ou para horascomo estas"? Quem viveu muito tempo sob a Sombra está proibido de ouvir os ecos deuma terra não perturbada por ela? Nesse caso poderemos sentir que nossa vigilância nãofoi em vão, embora não tenha sido reconhecida. Pippin sentiu o coração pesado. Nãoapreciava a idéia de cantar qualquer canção do Condado para o Senhor de Minas Tirith,com certeza não as cômicas que ele sabia melhor; essas eram muito, bem, rústicas parauma ocasião daquelas. No entanto foi dispensado, pelo momento, da penosa provação.

Não lhe foi ordenado que cantasse. Denethor voltou-se para Gandalf, perguntandocoisas sobre os rohirrim e suas estratégias, e sobre a posição de Éomer, o sobrinho do rei.Pippin ficou surpreso ao ver a quantidade de coisas que o Senhor parecia saber sobre umpovo que vivia distante, embora, pensou ele, muitos anos devessem ter passado desde queDenethor cavalgara fora de seus domínios.

De repente Denethor acenou para Pippin e o dispensou de novo por um tempo.- Vá até os arsenais da Cidadela - disse ele - e pegue o seu uniforme e as armas da

Torre. Vai encontrar tudo preparado. Dei ordens nesse sentido ontem.Volte quando estiver devida mente vestido!Foi como ele dissera, e Pippin logo se viu trajado com uma roupa estranha, toda

preta e prateada. Tinha uma pequena cota de malha, com anéis forjados de aço, talvez,embora fossem pretos como o azeviche; também um elmo alto com pequenas asas decorvo dos dois lados, adornado com uma estrela de prata no centro do diadema. Sobre acota de malha trazia um pequeno casaco preto, com o símbolo da Árvore bordado emprata no peito. Suas roupas antigas foram dobradas e guardadas, mas lhe permitiram ficarcom a capa cinzenta de Lórien, embora não pudesse usá-la quando estivesse trabalhando.Mal sabia que agora estava parecendo realmente o Ernil i Pheriannath, o Príncipe dosPequenos, que as pessoas diziam que ele era; mas não se sentia á vontade, e a melancoliacomeçou a derrotar o seu humor.

Ficou escuro e sombrio o dia todo. Desde a aurora sem sol até a noite, a sombrapesada se aprofundou, e todos os corações da Cidade estavam oprimidos. Lá em cimauma grande nuvem passava lentamente para o oeste, vinda da Terra Negra, devorando aluz, carregada por um vento de guerra; mas mais abaixo o ar estava parado e sem vento,como se o Vale do Andum esperasse pelo ataque de uma tempestade destruidora.

Lá pela décima primeira hora, finalmente dispensado do serviço por um tempo,Pippin saiu e foi procurar comida e bebida para alegrar seu coração pesado e transformarsua tarefa de servir em algo mais suportável. No refeitório encontrou outra vez Beregond,que acabara de chegar de uma missão pelo Pelennor, saindo das Torres de Guarda sobre oPassadiço. Juntos foram caminhando até as muralhas, pois Pippin se sentia enclausuradodo lado de dentro, e sufocado atê mesmo na alta cidadela.

Agora estavam sentados lado a lado outra vez no parapeito que dava para o leste,onde tinham comido e conversado no dia anterior.

Estava na hora do pôr-do-sol, mas a grande mortalha agora se estendera paradentro do oeste, e só quando ela finalmente afundou no Mar o Sol libertou-se para emitirum brilho breve de despedida antes da noite, no mesmo momento em que Frodo o via naEncruzilhada, incidindo sobre a cabeça do rei caido. Mas aos campos do Pelennor, sob asombra do Mindolluin, não chegou nenhum raio: estava tudo escuro e desolado.

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Pippin tinha a impressão de que já fazia anos que se sentara lá, em algum temposemi-esquecido quando ele ainda era um hobbit, um andarilho alegre que pouco seimportava com os perigos pelos quais passara. Agora era um pequeno soldado numacidade que se preparava para um grande ataque, vestido á moda altiva mas sombria daTorre de Guarda.

Em algum outro tempo e lugar, Pippin poderia ter ficado satisfeito com suas novasvestes, mas agora sabia que não estava tomando parte em alguma brincadeira; era agora,num jogo sério como a morte, o servidor de um senhor severo, correndo o maior dosperigos. A cota de malha era incômoda, e o elmo pesava-lhe sobre a cabeça. Jogara a capaem cima do banco. Desviou seu olhar cansado dos campos escuros lá embaixo e bocejou;depois veio um suspiro.

- Cansado do trabalho de hoje? - disse Beregond.- Estou - disse Pippin -, muito: exausto por não fazer nada e esperar. Fiquei

batendo os calcanhares contra a porta do quarto de meu mestre por muitas horasarrastadas, enquanto ele debatia com Gandalf e o Príncipe e outras pessoas importantes. Enão estou habituado, Mestre Beregond, a ficar com fome servindo, enquanto os outroscomem. Isso é uma terrível provação para um hobbit. Sem dúvida você está pensando queeu deveria sentir a honra mais intensamente. Mas de que adianta essa honra? E mesmo acomida e a bebida, de que adiantam elas sob esta sombra que avança? O que significaisso? O próprio ar parece estar espesso e escuro! É freqüente aqui essa escuridão, quandosopra o vento do leste?

- Não - respondeu Beregond -, isso não é natural. É algum artifício da malícia dele;algum tumulto de fumaça que ele envia da Montanha do Fogo para turvar nossos coraçõese nossas mentes. E realmente o efeito é esse. Gostaria que o Senhor Faramir retornasse.Ele não desanimaria. Mas, agora, quem pode saber se ele algum dia vai voltar do outrolado do Rio vindo da Escuridão?

- É - disse Pippin -. Gandalf também está ansioso. Ficou desapontado, julgo eu, pornão ter encontrado Faramir aqui. E onde se meteu ele"? Deixou o conselho do Senhorantes da refeição do meio-dia, e tive a impressão de que estava de mau humor. Talveztenha tido a premonição de alguma má noticia.

De repente, enquanto conversavam, emudeceram, como se transformados empedras alertas. Pippin se agachou tapando os ouvidos com as mãos, mas Beregond, queestivera olhando para fora no parapeito enquanto falava de Faramir, permaneceu ali,imóvel, com o olhar assustado. Pippin conhecia o grito arrepiante que ouvira: era omesmo que ouvira havia muito tempo no Pântano do Condado, mas agora crescera emforça e ódio, atravessando o coração com um desespero venenoso.

Finalmente Beregond falou com dificuldade.- Eles chegaram! - disse ele. - Tome coragem e olhe! Há seres cruéis lá embaixo.Com relutância Pippin subiu no banco e olhou por sobre a muralha. O Pelennor

jazia escuro abaixo dele, desaparecendo na linha quase invisível do Grande Rio.Mas agora, voando em rápidos círculos através dele, como sombras de uma noite

precoce, ele viu no ar, abaixo de onde estava, cinco figuras semelhantes a pássaros,horríveis como aves carniceiras, e apesar disso maiores que águias, cruéis como a morte.Em alguns momentos voavam mais baixo, arriscando-se a chegar quase ao alcance dasflechas que vinham das muralhas, outras vezes voavam para longe em círculos.

- Cavaleiros Negros! - murmurou Pippin. - Cavaleiros Negros do ar! Mas veja,Beregond! - exclamou ele. - Com certeza estão procurando algo. Veja como eles fazemcírculos e mergulham em vôos rasantes, sempre descendo na direção daquele ponto ali. Evocê está vendo alguma coisa se mexendo no chão? Coisinhas escuras. Sim, homens

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montados em cavalos: quatro ou cinco. Ah! Não consigo suportar isso! Gandalf! Gandalf,salve-nos! Um outro grito penetrante cresceu e diminuiu, e Pippin se jogou da muralha denovo, ofegando como um animal acossado. Fraco e aparentemente remoto, atravésdaquele grito estarrecedor, ele ouviu subindo lá de baixo o som de uma trombetaterminando numa nota longa e aguda.

- Faramir! O Senhor Faramir! É o chamado dele! – gritou Beregond.- Homem corajoso! Mas como poderá alcançar o Portão, se esses nojentos falcões

do inferno tiverem outras armas além do medo? Mas olhe! Eles continuam resistindo. Vãochegar até o Portão. Não! Os cavalos estão ficando loucos. Veja!

Os homens foram jogados no chão, e estão correndo a pé. Não, um ainda estámontado, mas está voltando em direção aos outros. Com certeza é o Capitão: ele conseguecontrolar tanto animais quanto homens. Ah! Lá está uma das criaturas nojentasarremetendo contra ele! Socorro! Socorro! Ninguém vai ajudá-lo? Faramir!

Dizendo isso Beregond deu um salto e correu para dentro da escuridão.Envergonhado do próprio medo, enquanto Beregond da Guarda pensava primeiro nocapitão que amava, Pippin se levantou e espiou lá fora. Naquele momento captou umclarão branco e prateado vindo do norte, como uma pequena estrela descendo nos campossombrios.

Movia-se com a velocidade de uma flecha, e crescia à medida que se aproximava,convergindo rapidamente com a fuga dos quatro homens em direção ao Portão. Pippinteve a impressão de que uma luz pálida se espalhava ao redor da estrela, e as sombraspesadas abriam caminho diante dela; então, assim que se aproximou mais, o hobbitpensou ter ouvido, como um eco nas muralhas, uma voz imponente chamando.

- Gandalf! - gritou ele. - Gandalf! Ele sempre aparece quando as coisas estãopretas. Avante! Avante, Cavaleiro Branco! Gandalf, Gandalf! - berrou ele alucinado,como o espectador de um grande páreo, motivando um corredor que não precisa mais detorcida.

Mas agora as escuras sombras de rapina estavam cientes do recém chegado. Umadescreveu um giro na direção dele; mas Pippin teve a impressão de que ele ergueu a mão,e dela um raio de luz branca cortou os ares acima. O nazgúl soltou um grito longo echoroso e desviou-se, e depois disso os outros quatro hesitaram, então, erguendo-se emrápidas espirais, rumaram para o leste, desaparecendo na baixa nuvem acima deles; láembaixo, no Pelennor, a escuridão pareceu menos densa por um tempo.

Pippin assistia a tudo, e viu que o homem a cavalo e o Cavaleiro Branco seencontraram e pararam, aguardando os outros que vinham a pé.

Agora homens corriam da Cidade em direção a eles, e logo todos passaram edesapareceram sob as muralhas externas e o hobbit sabia que estavam entrando peloPortão.

Supondo que imediatamente viriam para a Torre para ver o Regente, correu para aentrada da cidadela. Ali juntou-se a muitos outros que das altas muralhas tinham assistidoá corrida e ao resgate.

Não demorou muito para que se ouvisse um clamor nas ruas que vinham doscírculos exteriores e subiam; muitas pessoas aplaudiam e bradavam os nomes de Faramire Mithrandir. De repente Pippin viu tochas, e à frente de uma multidão dois cavaleirosavançando devagar: um em vestes brancas que já não brilhavam; estava agoraempalidecido no crepúsculo como se seu fogo se tivesse exaurido ou ocultado; o outro erasombrio, e estava com a cabeça curvada. Os dois desmontaram e, enquanto cavalariçoslevavam Scadufax e o outro cavalo, caminharam na direção da sentinela do portão:Gandalf num passo firme, a capa cinzenta jogada para trás e o fogo ainda ardendo em

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seus olhos; o outro, todo vestido de verde, avançava devagar, num passo vacilante, comoalguém que está exausto ou ferido.

Pippin abriu caminho para a frente assim que eles passaram sob a lamparina abaixodo arco do portão e, quando viu o rosto pálido de Faramir, perdeu o fôlego.

Era um rosto atingido pelo medo e pela angústia, mas que agora dominara osentimento e estava tranquilo. Altivo e solene, ele parou por um momento enquantofalava com o guarda, e Pippin, olhando para ele, viu como Faramir era parecido com seuirmão Boromir - de quem Pippin gostara desde o início, admirando os modos nobres e aomesmo tempo gentis do grande homem. Mesmo assim, de repente, sentiu por Faramiruma coisa que nunca sentira antes. Ele era alguém com um ar de alta nobreza, como o queAragorn certas vezes revelara, talvez não tão alta, mas também não tão insondável eremota: um ar dos Reis de Homens nascidos numa época posterior, mas tocados pelasabedoria e pela tristeza da Raça Antiga. Agora percebia por que Beregond pronunciavaseu nome com tanta devoção. Era um capitão que os homens seguiriam, que ele próprioseguiria, até mesmo sob a sombra das asas negras.

- Faramir! - gritou ele junto com os outros. - Faramir! -E Faramir captando a estranha voz do hobbit em meio á aclamação dos homens da

Cidade, virou-se e desceu os olhos até ele, estupefato.- De onde você vem? - disse ele. - Um Pequeno, e com o uniforme da Torre! De

onde...Mas nesse momento Gandalf parou ao seu lado e falou. - Ele veio comigo da terra

dos Pequenos - disse ele. - Veio comigo. Mas não vamos ficar mais tempo aqui. Há muitoo que dizer e fazer, e você está cansado. Ele virá conosco. Na verdade, é o que deve fazer,pois, se não estiver esquecendo suas novas tarefas mais facilmente do que eu, ele deveservir seu senhor outra vez agora. Venha, Pippin, siga-nos!

Então finalmente eles chegaram ao aposento particular do Senhor daCidade. Três cadeiras com espaldares altos estavam dispostas ao redor de um braseiro decarvão; trouxeram vinho; ali Pippin, quase sem ser notado, ficou atrás da cadeira deDenethor e sentiu o cansaço diminuir, tão grande foi a atenção que deu a tudo o que foidito.

Depois que Faramir havia comido pão branco e bebido um gole de vinho, sentou-se numa cadeira baixa á esquerda de seu pai. Um pouco afastado, do lado oposto, estavaGandalf numa cadeira de madeira esculpida, e a princípio parecia estar dormindo. Pois noinicio Faramir falou apenas da missão para a qual fora enviado dez dias antes, e trouxenotícias de Ithilien e dos movimentos do Inimigo e seus aliados; contou também sobre aluta na estrada, na qual os homens de Harad e seu grande animal foram derrotados: umcapitão relatando ao seu senhor esses assuntos frequentemente tratados, coisas pequenasde uma guerra de fronteiras que agora pareciam inúteis e insignificantes, desprovidas deuma importância maior.

Então, de repente, Faramir olhou para Pippin.- Mas agora vamos tratar de assuntos estranhos - disse ele. - Pois este não é o

primeiro Pequeno que vejo saindo das lendas do norte e entrando nas terras do sul.Ao ouvir isso, Gandalf aprumou-se agarrando os braços da cadeira, mas não disse

nada, e com um olhar conteve a exclamação nos lábios de Pippin. Denethor olhou para osrostos deles e fez um sinal com a cabeça, como se quisesse dizer que lera ali muitascoisas, antes mesmo de serem mencionadas.

Lentamente, enquanto os outros ficaram sentados e imóveis, Faramir contou suahistória com os olhos fixos em Gandalf a maior parte do tempo, embora de vez emquando seu olhar se desviasse para Pippin, como que tentando recordar-se melhor dos

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outros hobbits que vira.Ã medida que se desenrolava a história sobre o encontro de Faramir com Frodo e

seu servidor, e sobre os eventos em Henneth Annún, Pippin percebeu que as mãos deGandalf estavam trêmulas, agarrando-se aos braços da cadeira. Agora pareciam brancas emuito velhas, e olhando para elas, de repente, com um arrepio de medo, Pippin viu queGandalf, o próprio Gandalf, estava preocupado, até mesmo amedrontado. O ar da salaestava parado e pesado. Finalmente, quando Faramir relatou sua separação dos viajantes,e a resolução deles de ir para Cirith Ungol, sua voz ficou mais baixa, e ele balançou acabeça e suspirou. Então Gandalf saltou de pé.

- Cirith Ungol? Vale Morgul? - disse ele. - O dia, Faramir, o dia: Quando você seseparou deles? Quando acha que eles atingiriam aquele vale amaldiçoado?

- Separei-me deles há dois dias, pela manhã - disse Faramir. - São quinze léguas delá até o vale do Morgulduin, se eles foram direto para o sul; e então haveria mais cincoléguas a oeste da Torre amaldiçoada. Andando o mais rápido possível, eles não poderiamchegar lá antes de hoje, e talvez não tenham chegado ainda. Na verdade percebo o quevocê teme. Mas a escuridão não se deve á aventura deles. Começou na noite de ontem, etoda Ithilien ficou coberta de sombra a noite passada.

- Para mim está claro que o Inimigo planeja há muito tempo este ataque contra nós,e a hora já estava determinada antes mesmo que os viajantes deixassem a minhacompanhia.

Gandalf andava de um lado para o outro.- Dois dias atrás, pela manhã, quase três dias de viagem! A que distância daqui fica

o lugar onde vocês se separaram?- Cerca de vinte e cinco léguas num vôo de pássaro – respondeu Faramir. Mas eu

não consegui chegar mais rápido. Ontem pernoitei em Andros, a longa ilha do Rio aonorte, onde mantemos um ponto de defesa; temos cavalos do lado de cá do rio. A medidaque a escuridão foi se aproximando, percebi que precisava me apressar, de modo quecavalguei para cá com mais três homens que também tinham montarias. O resto de minhacompanhia enviei para fortalecer a guarnição nos vaus de Osgiliath. Espero que não tenhafeito nada de errado – disse ele olhando para o pai.

- Nada de errado? - gritou Denethor, e seus olhos de repente faiscaram. - Por queestá perguntando? Os homens estavam sob o seu comando. Ou será que você quer saber oque penso sobre todos os seus atos? Na minha presença, sua postura é humilde; apesardisso, faz tempo que você não se desvia de seu próprio caminho a conselho meu. Veja,você falou com habilidade, como sempre; mas eu, então, não vi seu olho fixo emMithrandir, procurando saber se você falou bem ou demais? Faz tempo que seu coraçãolhe pertence. Meu filho, seu pai está velho, mas não está decrépito. Consigo ver e ouvir,como sempre foi meu hábito; e pouco do que você deixou de dizer ou disse com meiaspalavras é segredo para mim. Agora conheço a resposta para vários enigmas. Lamento,lamento por Boromir!

- Se o que fiz lhe desagrada, meu pai - disse Faramir numa voz suave -, gostaria deter sabido a sua opinião antes que o fardo de uma decisão tão dificil fosse jogado emminhas costas.

- E isso faria com que você alterasse a sua decisão? – disse Denethor.- Você teria agido da mesma forma, julgo eu. Conheço-o bem. Seu desejo é

parecer sempre nobre e generoso como um rei de antigamente, bondoso, gentil. Essasqualidades servem para alguém de sangue nobre, se essa pessoa detiver o poder emtempos de paz. Mas nas horas de desespero a recompensa pela gentileza pode ser a morte.

- Então, que assim seja! - disse Faramir.

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- Que assim seja! - gritou Denethor. - Mas não se trata apenas da sua morte,Senhor Faramir: também da morte de seu pai, e de todo o seu povo, que você deveproteger agora que Boromir partiu.

- Gostaria então - disse Faramir - que nossos lugares tivessem sido trocados?- Sim, realmente gostaria - disse Denethor. - Pois Boromir era fiel a mim, e não era

pupilo de nenhum mago. Teria pensado na necessidade de seu pai, e não teria jogado forao que lhe fosse oferecido pela sorte. Ele me teria trazido um presente valioso.

Por um momento, Faramir perdeu o controle. - Eu lhe pediria, meu pai, que se lembrasse do motivo pelo qual eu, e não ele,

estava em Ithilien. Pelo menos em uma ocasião o seu desejo prevaleceu, não muito tempoatrás. Foi o Senhor da Cidade que lhe designou a missão.

- Não remexa o amargor da taça que preparei para mim mesmo - disse Denethor. -Já não o provei por muitas noites em minha boca, pressentindo que um sabor ainda piorestava no fundo? Como realmente percebo agora. Gostaria que não tivesse sido assim!Gostaria que aquela coisa tivesse chegado até mim!

- Console-se! - disse Gandalf. - Não havia nenhuma possibilidade de Boromirtrazê-la até você. Ele está morto, e morreu de forma nobre; que possa agora descansar empaz! Mas você se engana. Ele teria estendido a mão para essa coisa, e ao tomá-la teriasucumbido. Guardá-la-ia para si mesmo, e retornando não seria reconhecido por seu pai.

O rosto de Denethor se fechou, ficando duro e frio. – Na sua opinião Boromir eramenos maleável em suas mãos, não é verdade? - disse ele em voz baixa.

- Mas eu, que era seu pai, digo que ele me teria trazido a coisa. Você talvez sejasábio, Mithrandir, e apesar disso, com todas as sutilezas, você não detém toda a sabedoria.Pode haver planos que não sejam nem as teias dos magos nem a pressa dos tolos. Nesseassunto, tenho mais conhecimento e sabedoria do que você supõe.

- Qual é então a sua sabedoria? - perguntou Gandalf.- A suficiente para perceber que há duas loucuras que se devem evitar. Usar essa

coisa é perigoso. Nesta hora, enviá-la nas mãos de um Pequeno desmiolado para dentro daterra do próprio Inimigo, como você fez, e também este meu filho, isso é sandice.

- E o Senhor Denethor, que teria ele feito?- Nenhuma das duas coisas. Mas, com toda certeza, por argumento algum teria ele

colocado essa coisa num perigo que elimina as esperanças de qualquer um, a não ser quese trate de um tolo, arriscando nossa completa ruína, no caso de o Inimigo recuperar o queperdeu. Não, ela deveria ter sido guardada, escondida, muito bem escondida. Não usada,eu lhe digo, exceto numa extrema necessidade, mas colocada fora do alcance dele, a nãoser que ocorresse uma vitória tão decisiva que o que acontecesse depois não nosincomodasse, pois estaríamos mortos.

- Você está pensando, meu senhor, como é seu costume, apenas em Gondor - disseGandalf. - Apesar disso há outros homens e outras vidas, e outro tempo ainda por vir. E,quanto a mim, condôo-me até dos escravos dele.

- E onde os outros homens poderão buscar socorro, se Gondor cair? - respondeuDenethor. - Se eu tivesse essa coisa agora, nas profundas galerias desta cidadela, nãoestaríamos tremendo de medo sob esta escuridão, temendo o pior, e nossos planos nãoestariam sendo ameaçados. Se não confia que eu resista ao teste, você ainda não meconhece.

- Não obstante, não confio em você - disse Gandalf. – Se confiasse, poderia tê-laenviado para cá, a fim de que você a guardasse, poupando-me a mim e a muitos outros deuma grande carga de angústia. E agora, ouvindo-o falar, confiou menos ainda em você,não mais do que confiava em Boromir. Não, contenha sua ira! Não confio nem em mim

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mesmo nesse assunto, e recusei a coisa, mesmo quando me foi oferecida como umpresente. Você é forte e ainda pode se controlar em alguns pontos, Denethor, mas, setivesse recebido essa coisa, ela o teria derrotado. Se fosse enterrada embaixo das raízes doMindolluin, ainda assim ela iria continuar queimando sua mente, enquanto cresce aescuridão, e sobrevém coisas ainda piores, que logo nos surpreenderão.

Por um momento, os olhos de Denethor voltaram a brilhar quando se fixaram emGandalf, e Pippin sentiu mais uma vez a tensão entre as disposições de ambos; mas agoraquase parecia que os olhares dos dois eram como lâminas de olho a olho, faiscando àmedida que se digladiavam. Pippin tremeu, temendo algum golpe terrível.

Mas de repente Denethor relaxou e ficou frio de novo. Encolheu os ombros.- Se eu tivesse! Se você tivesse! - disse ele. – Essas palavras e esses "sês" são

inúteis. A coisa foi para dentro da Sombra, e agora apenas o tempo mostrará que destinoestá sendo reservado para ela e para nós. Não demorará muito. No tempo que ainda nosresta, que todos os que lutam contra o Inimigo á sua maneira fiquem unidos, e quemantenham a esperança enquanto puderem, e depois da esperança ainda a coragem demorrer em liberdade. - Voltou-se para Faramir. - O que você acha da guarnição emOsgiliath?

- Não é forte - disse Faramir. - Enviei a companhia de Ithilien para fortalecê-la,como já disse.

- Não será suficiente, julgo eu - disse Denethor. - É lá que será desferido oprimeiro golpe. Eles precisarão de algum capitão forte ali.

- Ali e em muitos outros lugares - disse Faramir, suspirando. - Lamento por meuirmão, a quem eu também amava! - Levantou-se. – Permita que eu me vá, pai?- E entãocurvou-se e debruçou-se sobre a cadeira de Denethor.

- Vejo que está cansado - disse este. - Cavalgou um longo caminho com granderapidez, e sob sombras do mal no ar, pelo que soube.

- Não vamos falar disso! - disse Faramir.- Então não falemos - disse Denethor. - Vá e descanse como puder. O dever de

amanhã será mais duro.Todos deixaram então o Senhor da Cidade e foram descansar enquanto ainda

podiam. Do lado de fora havia uma escuridão sem estrelas quando Gandalf, com Pippinao seu lado levando uma pequena tocha, dirigiu-se para o seu alojamento.

Não disseram nada até estarem a portas fechadas. Então, finalmente, Pippin tomoua mão de Gandalf.

- Diga-me - disse ele -, há alguma esperança? Quero dizer, para Frodo; ou pelomenos sobretudo para Frodo?

Gandalf colocou a mão sobre a cabeça de Pippin. - Nunca houve muita esperança -disse ele. - só houve a esperança de um tolo, como me disseram. E quando ouvi sobreCirith Ungol... - Parou de falar e dirigiu-se para a janela, como se seus olhos pudessempenetrar a noite no leste. - Cirith Ungol! - murmurou ele. -

Por que por ali, eu me pergunto? - Voltou-se. - Agora há pouco, Pippin, meucoração quase parou, quando ouvi esse nome. E apesar disso, na verdade, acredito que anotícia de Faramir traz alguma esperança. Pois parece claro que nosso Inimigo finalmentecomeçou sua guerra, fazendo o primeiro movimento enquanto Frodo ainda estava livre.Então agora, por muitos dias, ele ficará com o olho voltado para um lado ou para o outro,sem fixar seus próprios domínios. E, contudo, Pippin, já sinto, a distância, seu medo e suapressa. Ele começou mais cedo do que pretendia. Aconteceu alguma coisa que o incitou.

Gandalf parou por um momento, pensando.- Talvez - murmurou ele. - Talvez até mesmo a sua tolice tenha ajudado, meu

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rapaz. Deixe-me ver: agora deve fazer uns cinco dias que ele descobriu que derrotamosSaruman e pegamos a Pedra. E o que se pode presumir disso? Não poderíamos usa-la paramuitas coisas, ou sem que ele soubesse. Ah! Eu fico pensando. Aragorn? A hora dele seaproxima. E no fundo ele é forte e resoluto, Pippin: corajoso, determinado, capaz de fazerseus próprios planos e se expor a grandes riscos se for necessário. É possível. Ele pode terusado a Pedra mostrando-se para o Inimigo, exatamente com o propósito de desafiá-lo.Fico pensando. Bem, não saberemos a resposta até que os Cavaleiros de Rohan cheguem,se eles não chegarem tarde demais. Os dias à nossa frente serão malignos. Vamos dormir,enquanto podemos!

- Mas - disse Pippin.- Mas o quê? - disse Gandalf. - Só permitirei um único mas esta noite.- Gollum - disse Pippin. - Como é que eles poderiam estar andando com ele, até

mesmo seguindo-o? E pude perceber que Faramir não gostou mais do que você do lugarpara o qual ele os estava levando. Qual é o problema?

- Não posso responder isso agora - disse Gandalf. – Mesmo assim, meu coração dealguma forma sabia que Frodo e Gollum iriam se encontrar antes do fim. Para o bem oupara o mal. Mas sobre Cirith Ungol não falarei esta noite. Traição, é a traição que receio;traição daquela criatura miserável. Mas precisava ser assim. Vamos nos lembrar de queum traidor pode trair-se a si mesmo e fazer o bem que não pretende. Pode ser assim,algumas vezes. Boa noite!

O dia seguinte chegou com uma manhã que se assemelhava a um crepúsculoescuro, e os corações dos homens, por um período mais leves com a chegada de Faramir,ficaram pesados de novo. As Sombras aladas não foram vistas de novo naquele dia, masde vez em quando, bem acima da cidade, um grito fraco chegava, muitos que ouviamficavam paralisados com um terror passageiro, enquanto os menos corajosos estremeciame choravam.

E agora Faramir partira outra vez.- Eles não lhe dão descanso - murmuravam alguns. - O Senhor é muito duro com o

filho, e agora ele deve fazer o serviço de dois, por ele e pelo outro que não retornará - E atodo momento os homens olhavam para o norte, perguntando-se: - Onde estão osCavaleiros de Rohan?

Era verdade que Faramir não partira por opção própria. Mas o Senhor da Cidadeera o mestre do Conselho, e não estava disposto naquele dia a se curvar às opiniões dosoutros. Cedo naquela manhã o Conselho fora convocado. Lá todos os capitães julgaramque, por causa da ameaça no sul, o exército que tinham era fraco demais para desferir porsua própria iniciativa qualquer golpe de guerra, a não ser talvez que os Cavaleiros deRohan chegassem. Enquanto isso, deveriam guarnecer as muralhas com soldados eesperar.

- Contudo - disse Denethor -, não devemos abandonar facilmente as defesasexternas, a Rammas construída com tanto trabalho. E o Inimigo devera pagar caro

por atravessar o Rio. Isso ele não pode fazer, com força suficiente para tomar deassalto a Cidade, nem pelo norte de Cair Andros, por causa dos pântanos, nem pelo sul nadireção de Lebennin, por causa da amplitude do Rio, que exige muitos barcos. É emOsgiliath que vai concentrar seu peso, como antes, quando Boromir não permitiu que elepassasse.

- Foi apenas uma tentativa - disse Faramir. - Hoje podemos fazer com que oInimigo nos pague dez vezes pelo nosso prejuízo na passagem e mesmo assim lamentar atroca. Pois ele pode se permitir perder um exército com mais tranquilidade do que nóspodemos perder uma companhia. E a retirada daqueles que colocamos espalhados nos

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campos será perigosa, se ele conseguir atravessar com toda a força.- E Cair Andros? - disse o Príncipe. - Ela também deve ter proteção, se Osgiliath

for defendida. Não vamos nos esquecer do perigo á nossa esquerda. Pode ser que osrohirrim venham, e pode ser que não. Mas Faramir nos falou de um grande exército quesaiu do Portão Negro e que se aproxima cada vez mais. Mais de um exército pode sair porali, e atacar muito mais que uma passagem.

- Na guerra é preciso arriscar muita coisa - disse Denethor. - Cair Andros estáguarnecida, e não podemos enviar mais homens para lá por enquanto. Mas não entregareio Rio e o Pelennor sem lutar - não se houver aqui um capitão ainda com coragem de fazera vontade de seu senhor.

Todos ficaram em silêncio, mas finalmente Faramir disse:- Não me oponho à sua vontade, pai. Uma vez que Boromir lhe foi roubado, farei o

que puder no lugar dele - se o senhor assim ordenar.- Assim ordeno - disse Denethor.- Então adeus - disse Faramir. - Mas, se eu retornar, faça melhor juízo de mim.- Isso depende de como você retornar - disse Denethor.Foi Gandalf quem por último falou com Faramir antes que este partisse para o

leste.- Não jogue fora sua vida temerariamente ou movido pela mágoa – disse ele. -

Você será necessário aqui, para outras coisas além da guerra. Seu pai O ama, Faramir, evai se lembrar disso antes do fim. Adeus!

Então agora o Senhor Faramir partira novamente, levando consigo um grupo dehomens voluntários ou disponíveis. Nas muralhas alguns observavam através daescuridão, com os olhos voltados para a cidade arruinada, e ficavam imaginando o queestaria acontecendo lá, pois não se enxergava nada. E outros, como sempre, olhavam parao norte e contavam as léguas que Théoden de Rohan deveria percorrer.

- Será que virá? Será que vai se lembrar de nossa velha aliança? - perguntavam-seeles.

- Sim, ele virá - dizia Gandalf -, mesmo que chegue tarde demais. Mas pensem! Namelhor das hipóteses, a Flecha Vermelha não pode ter chegado até ele há mais de doisdias, e são longas as milhas desde Edoras.

Já era noite quando a notícia chegou. Um homem veio dos vaus cavalgandodepressa, dizendo que um exército tinha saído de Minas Morgul e já estava seaproximando de Osgiliath; a ele tinham-se juntado regimentos vindos do sul, os haradrim,homens cruéis e altos. - E ficamos sabendo - disse o mensageiro - que o Capitão Negro oslidera novamente, e o seu terror o antecede através do Rio.

Com essas palavras de mau agouro terminava o terceiro dia desde que Pippinchegara a Minas Tirith. Poucos foram descansar, pois pequena era a esperança de que atémesmo Faramir pudesse resistir nos vaus por muito tempo.

O dia seguinte, embora a escuridão já tivesse atingido seu auge e não pudesse ficarmais densa, pesou mais no coração dos homens, tomados de grande terror. Más noticiaslogo tornaram a chegar. A passagem do Anduin fora conquistada pelo Inimigo. Faramirestava se retirando para a muralha do Pelennor, reagrupando seus homens nos Fortes doPassadiço, mas sua tropa era dez vezes menor que a do Inimigo.

- Se ele conseguir voltar através do Pelennor, os inimigos estarão nos seuscalcanhares - disse o mensageiro. - Eles pagaram caro por terem atravessado, mas menoscaro do que imaginávamos. O plano foi bem feito. Agora vemos que, em segredo, eles hámuito tempo vêm construindo balsas e barcaças em Osgiliath Oriental.

Atravessaram como um enxame de besouros. Mas é o Capitão Negro quem nos

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derrota. Poucos suportam e resistem até mesmo ao rumor de sua chegada. Seu própriopovo estremesse diante dele, e se mataria se ele ordenasse.

- Então precisam mais de mim lá do que aqui – disse Gandalf, partindoimediatamente, e seu brilho logo desapareceu de vista.

E por toda aquela noite Pippin, solitário e insone, ficou na muralha, olhando para oleste.

Os sinos do dia mal tinham soado de novo, um arremedo na escuridão iniluminada,quando na distância ele viu chamas se arremessando nos ares, ao longe nos espaçosescuros onde ficavam as muralhas do Pelennor. Os vigias gritaram, e todos os homens dacidade prepararam suas armas. Agora, com frequência, via-se um clarão vermelho, e emseguida através do ar pesado ouviam-se estrondos surdos.

- Tomaram a muralha! - gritavam os homens. - Estão abrindo fendas. Eles estãochegando.

- Onde está Faramir? - gritou Beregond desesperado. – Não me digam que eletombou!

Foi Gandalf quem trouxe as primeiras noticias. Com um punhado de cavaleiros elechegou no meio da manhã, escoltando uma fileira de carroças. Estavam cheias de homensferidos, e de tudo o que pudera ser salvo dos escombros os Fortes do Passadiço. Dirigiu-se imediatamente a Denethor. O Senhor da Cidade estava sentado num alto aposentoacima do Salão da Torre Branca com Pippin ao seu lado; através das janelas sombrias, aonorte, ao sul e ao leste, ele fixava os olhos escuros, como se tentasse penetrar as sombrasda destruição que o circundavam.

Olhava com mais insistência para o norte, e de vez em quando parava para escutar,como se por alguma arte antiga seus ouvidos pudessem ouvir o trovão de cascos sobre asplanícies distantes.

- Faramir chegou? perguntou ele.- Não - disse Gandalf - Mas ainda estava vivo quando o deixei. Contudo está

resolvido a ficar na retaguarda, para evitar que a retirada através do Pelennor setransforme numa fuga desordenada. Talvez consiga manter seus homens reunidos pelotempo necessário, mas eu duvido. Está encurralado por um inimigo poderoso demais. Poischegou quem eu temia.

- Não... o Senhor do Escuro? - exclamou Pippin, esquecendo sua posição devido aopavor.

Denethor riu de um modo amargo.-Não, ainda não, Mestre Peregrin! Ele não virá, a não ser para triunfar sobre mim

quando tudo estiver perdido. Ele usa outros como suas armas. Assim fazem os grandessenhores, se forem sábios, Mestre Pequeno. Ou por que motivo estaria eu aqui, sentadoem minha torre e pensando, assistindo, esperando, pondo em risco até mesmo meusfilhos? Pois ainda consigo brandir uma arma.

Levantou-se e abriu sua longa capa negra. Surpreendentemente, vestia uma cota demalha por baixo, e no cinto trazia uma longa espada, com grande punho, numa bainhanegra e prateada.

- Assim sempre andei, e assim agora por muitos anos tenho dormido - disse ele -,para evitar que meu corpo fique fraco e amedrontado.

- Mesmo assim, o mais cruel de todos os capitães do senhor de Barad-dûr já é donode suas muralhas externas - disse Gandalf - Rei de Angmar de outrora, Feiticeiro,Espectro do Anel, Senhor dos Nazgúl, uma lança de terror na mão de Sauron, sombra dedesespero.

- Então, Mithrandir, você teve um inimigo à sua altura disse Denethor. - Quanto a

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mim, sei há muito tempo quem é o principal capitão dos exércitos da Torre Escura. Foi sópara dizer isso que você retornou? Ou será que se retirou por estar em desvantagem?

Pippin estremeceu, temendo que Gandalf fosse tomado de uma ira repentina, masseu medo foi infundado.

- Pode ter sido isso – respondeu Gandalf numa voz suave. - Mas nosso teste deforças ainda não começou. E, se palavras pronunciadas antigamente forem verdadeiras,ele não deverá cair pela mão do homem, e o destino que o aguarda é desconhecido dosSábios. Seja como for, o Capitão do Desespero não está avançando, ainda. Ele governabem de acordo com as regras que você acabou de

mencionar, na retaguarda, empurrando antes para a frente seus escravosalucinados.

- Não, eu vim mais para proteger os homens feridos que ainda podem ser curados;pois a Rammas está grandemente destruída, e logo o exército de Morgul entrará porvários pontos. E vim principalmente para dizer isto: logo haverá uma batalha nos campos.É preciso preparar uma surtida. Que seja de homens montados. Neles repousa nossapequena esperança, pois em uma coisa apenas o inimigo ainda está mal equipado: tempoucos cavaleiros.

- E nós também temos poucos. Agora seria o momento exato de os Cavaleiros deRohan chegarem - disse Denethor.

- É provável que vejamos outros chegando primeiro – disse Gandalf, fugitivos deCair Andros já nos alcançaram. A ilha caiu. Um outro exército saiu pelo Portão Negro,atravessando pelo nordeste.

Alguns o acusaram, Mithrandir, de se deliciar em trazer más noticias - disseDenethor -, mas para mim isso já não é mais novidade: eu sabia disso antes do cair danoite de ontem. E, quanto à surtida, já pensei nesse assunto. Vamos descer.

O tempo passou. Por fim as sentinelas nas muralhas conseguiram ver aretirada das companhias avançadas. Pequenos grupos de homens cansados e

frequentemente feridos chegaram primeiro com pouca ordem; alguns corriaalucinados, como se estivessem sendo perseguidos. Na distância ao leste fogueiras

longínquas bruxuleavam, e agora parecia que em alguns pontos elas rastejavam através daplanície. Casas e celeiros estavam em chamas. Então, de vários pontos, pequenos rios defogo rubro vieram correndo, ziguezagueando através da escuridão, convergindo nadireção da linha da larga estrada que conduzia do portão à Cidade de Osgiliath.

- O inimigo - murmuravam os homens. -A barreira caiu. Lá vêm eles aos borbotõesatravés das brechas! E parece que estão carregando tochas. Onde está o nosso pessoal?

Começava a noite, e a luz estava tão fraca que mesmo os homens de visãopenetrante da Cidadela mal conseguiam discernir as formas nos campos, a não ser apenasos incêndios que cada vez mais se multiplicavam, e as linhas de fogo que cresciam emtamanho e velocidade. Finalmente, a menos de uma milha da Cidade, um grupo dehomens mais bem ordenado apareceu, marchando sem correr, ainda se mantendo unido.

As sentinelas prenderam a respiração.- Faramir deve estar lá - diziam elas. - Ele consegue dominar homens e animais.

Conseguirá chegar até aqui.Agora a retirada principal estava a menos de quatrocentos metros de distância.

Surgindo do fundo da escuridão galopava uma pequena companhia de cavaleiros, tudo oque restava da retaguarda. Mais uma vez se viraram acuados, enfrentando as linhas defogo que avançavam. Então, de repente, houve um tumulto de gritos ferozes. Cavaleirosinimigos foram chegando e varrendo tudo. As linhas de fogo transformaram-se em riosflamejantes: fileira após fileira de orcs carregando tochas, e sulistas bárbaros com

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bandeiras vermelhas, gritando em línguas rudes, avançando numa onda, alcançando ossoldados em retirada. E, com um grito cortante, da escuridão do céu negro caíram assombras aladas, os nazgúl mergulhando para a matança.

A retirada se transformou numa debandada. Os homens já se dispersavam, fugindoalucinados, feito malucos, para todos os lados, jogando fora suas armas, gritando demedo, tombando ao chão.

Nesse momento uma trombeta soou na Cidadela, e Denethor finalmente liberou asurtida. Reunidos á sombra do Portão, e sob as muralhas que se erguiam do lado de fora,eles estiveram aguardando um sinal dele: todos os homens com montarias que haviampermanecido na Cidade. Agora saltavam á frente, em forma, num galope rápido, atacandocom grande alarido. E das muralhas um grito veio em resposta, pois à frente de todos osdemais apareciam os cavaleiros do cisne de Doí Amroth, encabeçados por seu Príncipecom insígnia azul.

- Amroth por Gondor! - gritavam eles. - Amroth por Faramir!Como trovões eles caíram sobre o inimigo nos dois flancos da retirada; um

cavaleiro disparou á frente, veloz como o vento sobre a relva; Scadufax o levava,brilhante, mais uma vez revelado, com uma luz emanando de sua mão erguida.

Os nazgúl soltaram um guincho e fugiram, pois seu Capitão ainda não estavapronto para desafiar o fogo branco de seu oponente. Os exércitos de Morgul,concentrados em sua presa, pegos desprevenidos numa carreira desabalada, dispersaram-se e se espalharam como faiscas ao vento. As companhias avançadas, com grandedisposição, viraram-se e atacaram seus perseguidores. Caçadores se transformaram emcaça. A retirada virou um assalto. Orcs e homens caídos cobriram o campo, e um cheiroforte subiu das tochas lançadas ao chão, crepitando e se extinguindo numa fumaçaespiralada. A cavalaria avançava.

Mas Denethor não permitiu que fossem longe. Embora o inimigo estivesse sobcontrole e por enquanto rechaçado, grandes exércitos chegavam do leste. Mais uma vezsoou a trombeta, ordenando a retirada. A cavalaria de Gondor parou.

Atrás de sua proteção, as companhias avançadas reorganizaram suas fileiras.Agora retornavam, marchando compassadamente. Atingiram o Portão da Cidade eentraram, num passo imponente; e também com imponência o povo da Cidade olhavapara eles e gritava-lhes elogios, mas mesmo assim tinham os corações perturbados. Poisas companhias estavam lamentavelmente reduzidas. Faramir perdera um terço de seushomens. E onde estava ele?

Chegou por último. Seus homens entraram. Os cavaleiros montados retornaram, naretaguarda a bandeira de Doí Amroth e o Príncipe. E em seus braços, em seu cavalo,carregava o corpo de seu parente, Faramir, filho de Denethor, encontrado no campo debatalha.

- Faramir! Faramir! - gritaram os homens, chorando nas ruas. Mas ele nãorespondia, e foi levado pela estrada sinuosa até a Cidadela e à presença do pai.

No momento em que os nazgúl desviaram do ataque do Cavaleiro Branco, umaseta mortal veio voando e Faramir, que estivera impedindo o avanço de um campeãomontado de Harad, tombou no chão. Apenas o ataque de Doí Amroth pudera salvá-lo dasespadas rubras do sul, que o teriam golpeado ali no chão.

O Príncipe Imrahil levou Faramir para a Torre Branca, e disse:- Seu filho retornou, senhor, depois de grandes feitos - e então fez um relato de

tudo o que vira.Denethor se levantou e olhou no rosto do filho, sem dizer nada. Depois ordenou

que arrumassem uma cama no aposento para Faramir e saíssem. Mas ele mesmo subiu até

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a sala secreta no topo da torre; muitos que olhavam lá para cima naquela hora viram umaluz pálida que tremeluziu e faiscou nas janelas estreitas por algum tempo, e depois piscoue se extinguiu. E, quando Denethor novamente desceu, foi até Faramir e sentou-se ao seulado sem dizer palavra; mas o rosto do Senhor estava cinzento, mais cadavérico que o dofilho.

Então agora, finalmente, a Cidade estava cercada, fechada num circulo deadversários. A Rammas fora derrubada, e todo o Pelennor estava abandonado ao Inimigo.

A última palavra que veio de fora das muralhas foi trazida por homens fugindopela estrada norte antes que o Portão se fechasse. Eram remanescentes da guarda que foramantida no ponto onde o caminho de Anórien e Rohan entrava nos povoados. Ingold osconduzia, o mesmo que havia admitido Gandalf e Pippin menos de cinco dias antes,quando o sol ainda surgia e a manhã trazia esperanças.

- Não há noticia dos rohirrim - disse ele. - Rohan não virá agora. Ou, se vier, issonão nos servirá de nada. O novo exército do qual tivemos notícias chegou primeiro, vindodo outro lado do rio passando por Andros, ouvi dizer. São fortes: batalhões de orcs doOlho, e incontáveis companhias de homens de um outro tipo que nunca vimos antes. Nãosão altos, mas corpulentos e sisudos, Barbados como os anões, brandindo grandesmachados. Achamos que eles vêm de alguma região selvagem do amplo leste. Tomaram aestrada do norte, e muitos avançaram até Anórien. Os rohirrim estão impossibilitados dechegar.

O Portão foi fechado. Durante toda a noite, vigias nas muralhas ouviram osrumores dos inimigos que perambulavam do lado de fora, queimando árvores e campos,apunhalando qualquer homem que encontrassem, vivo ou morto. Não se podia adivinharquantos tinham atravessado o rio no escuro, mas quando a manhã, ou sua sombraembaçada, avançou furtivamente sobre a planície, percebeu-se que o medo noturno nãosuperestimara o número. A planície estava escurecida pelas suas companhias marchando,e até onde a vista alcançava surgiam, como florescências nojentas de fungos, por toda avolta da cidade sitiada, grandes acampamentos de tendas negras ou de um vermelhosombrio.

Diligentes feito formigas, orcs apressados cavavam, cavavam longas trincheirasfundas num enorme círculo, fora do alcance de flechas que partissem das muralhas; eassim que cada trincheira ia sendo terminada, enchiam-na de fogo, embora não se pudessever como o alimentavam ou acendiam, se por arte ou feitiçaria. Durante todo o dia otrabalho continuou, enquanto os homens de Minas Tirith assistiam, sem poder impedi-lo.E, á medida que cada metro de trincheira se completava, eles divisavam grandes carroçasse aproximando; logo, mais companhias do inimigo, cada uma protegida por umatrincheira, instalavam rapidamente grandes máquinas para o lançamento de projéteis. Nãohavia nas muralhas da Cidade nenhum mecanismo grande o suficiente para alcançar tãolonge ou impedir o trabalho.

No início os homens riram e não temeram aqueles instrumentos. Pois a muralhaprincipal da cidade era extremamente alta e de uma espessura impressionante, e foraconstruída antes que o poder e o oficio de Númenor declinassem no exílio; sua faceexterna era semelhante á da Torre de Orthanc, rígida,

escura e lisa, imune a fogo ou aço, indestrutível, exceto por alguma convulsão quelacerasse o próprio solo no qual ela se erguia.

- Não - diziam eles -, nem que o próprio Inominado atacasse; nem mesmo eleconseguirá entrar aqui enquanto ainda estivermos vivos. – Mas alguns respondiam:

- Enquanto ainda estivermos vivos? Por quanto tempo? Ele tem uma arma que jápôs por terra muitas fortalezas desde o inicio do mundo. A fome. As estradas estão

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bloqueadas. Rohan não chegará.Mas as máquinas não desperdiçaram tiros contra a parede indômita. Não era

qualquer salteador ou chefe orc que iria ordenar o assalto sobre o maior inimigo doSenhor de Mordor. Dirigiam-no uma força e uma mente de malícia. Assim que as grandescatapultas foram montadas, em meio a muitos gritos e ao rangido de cordas e manivelas,elas começaram a arremessar projéteis a uma altura impressionante, de modo quepassavam bem acima do parapeito e caíam com um baque surdo dentro do primeirocírculo da Cidade; muitos deles, por alguma arte secreta, explodiam em chamas enquantocaiam.

Logo já havia grande perigo de incêndio atrás da muralha, e todos os que estavamdisponíveis se ocupavam em dominar as chamas que se deflagravam em vários pontos.Então, em meio aos golpes mais poderosos, veio uma outra saraivada, menos destruidorae no entanto mais horrível. Por todas as ruas e alamedas atrás do Portão caíam pequenosprojéteis redondos que não explodiam. Mas, quando os homens corriam para saber o quepoderia ser aquilo, soltavam gritos ou choravam. O Inimigo estava arremessando paradentro da Cidade todas as cabeças daqueles que tinham caído na luta em Osgiliath, ou naRammas, ou nos campos. Eram horripilantes de se olhar, pois, embora algumasestivessem esmagadas e disformes, e algumas tivessem sido cruelmente estraçalhadas,muitas ainda conservavam seus traços, indicando que aqueles homens tinham morrido emsofrimento; todas estavam marcadas com o símbolo maligno do Olho sem Pálpebra.Mesmo desfiguradas e aviltadas como estavam, freqüentemente era possível que daquelaforma um homem revisse o rosto de alguém que conhecera, que já andara armado eorgulhoso, ou cultivara os campos ou, vindo dos verdes vales das colinas, cavalgara paralá num dia de folga.

Em vão os homens mostravam os punhos para os impiedosos inimigos que seaglomeravam diante do Portão. Não se importavam com pragas, e nem entendiam aslínguas dos homens do oeste, pois gritavam com vozes roucas como animais e aves derapina. Mas logo restavam poucos em Minas Tirith com coragem suficiente para se erguere desafiar os exércitos de Mordor. Pois o Senhor da Torre Escura tinha ainda uma outraarma, mais rápida que a fome, o medo e o desespero.

Os nazgúl vieram de novo, e, agora que o Senhor do Escuro crescia e exibia suaforça, da mesma forma as vozes deles, que expressavam apenas a sua vontade e malícia,se encheram de maldade e horror. Faziam círculos acima da Cidade, como abutres queaguardam sua parcela de carne humana destinada a morrer. Voavam fora do alcance davista ou de algum tiro, e mesmo assim estavam sempre presentes, e suas vozes mortaisrasgavam o ar. Ao invés de diminuírem, a cada grito iam ficando mais insuportáveis. Porfim até mesmo os mais corajosos se jogavam no chão quando a ameaça oculta passavasobre suas cabeças, ou então ficavam de pé, deixando cair as armas das mãos paralisadas,enquanto suas mentes eram invadidas por um negror total, e eles não pensavam mais naguerra, mas só em se esconder e rastejar, e morrer.

Durante todo aquele dia negro, Faramir ficou em sua cama, no aposento da TorreBranca, delirando numa febre desesperada, morrendo, disse alguém, e logo "morrendo"diziam todos os homens nas muralhas e nas ruas. E ao seu lado sentava-se seu pai, nãodizendo nada, mas observando sem dar qualquer atenção á defesa.

Pippin nunca conhecera horas tão escuras, nem mesmo quando estivera nas garrasdos Uruk-hai. Seu dever era permanecer ao lado do Senhor, e foi isso o que fez,aparentemente esquecido, em pé junto á porta do quarto escuro, dominando os própriosmedos da melhor maneira possível. E enquanto observava teve a impressão de queDenethor envelhecia diante de seus olhos, como se algo tivesse arrebentado em sua altiva

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obstinação, derrotando sua vontade inflexível. Talvez a tristeza tivesse feito aquilo, e oremorso. Naquele rosto outrora empedernido, Pippin enxergava lágrimas, maisinsuportáveis que a ira.

- Não chore, meu senhor - gaguejou ele. - Talvez ele melhore. O senhor solicitou apresença de Gandalf?

- Não me console com magos! - disse Denethor. -A esperança do tolo fracassou. OInimigo descobriu isso, e agora seu poder aumenta; ele enxerga nossos própriospensamentos, e tudo o que fizermos será desastroso.

- Enviei meu filho, sem meus agradecimentos, sem minha bênção, em direção a umperigo desnecessário, e aqui jaz ele, com veneno nas veias. Não, não, o que quer queaconteça agora na guerra, também minha linhagem está se extinguindo, até mesmo a Casados Regentes fracassou. Pessoas mesquinhas deverão governar os últimos remanescentesdos Reis dos Homens, escondendo-se nas colinas até que sejam todos caçados.

Homens vieram á porta bradando pelo Senhor da Cidade.- Não, não descerei - disse ele. - Preciso ficar ao lado de meu filho. Pode ser que

ele ainda fale antes do fim. Mas o fim está perto. Sigam quem quiserem, até mesmo oTolo Cinzento, embora a esperança dele tenha fracassado. Ficarei aqui

Foi assim que Gandalf tomou para si o comando da última defesa daCidade de Gondor. Aonde quer que fosse, fazia com que os corações dos homens

ficassem de novo mais leves, e as sombras aladas desaparecessem da lembrança. Passavaincansável da Cidadela para o Portão, do norte para o sul em torno da muralha; com ele iao Príncipe de Doí Amroth em sua cota metálica brilhante. Pois ele e seus cavaleiros aindase comportavam como senhores nos quais a raça de Númenor se mantinha integra. Oshomens que os viam sussurravam, dizendo: - É possível que velhas histórias falem averdade; há sangue élfico nas veias dessa gente, pois o povo de Nimrodel certa vez morounaquela terra, há muito tempo. - E então alguém cantava em meio á escuridão algunsversos da Balada de Nimrodel, ou outras canções do Vale do Anduin, vindas de temposimemoriais.

E apesar disso, quando os dois se iam, as sombras se fechavam sobre os homens denovo, e seus corações ficavam frios, e a bravura de Gondor se acabava em cinzas. Eassim, lentamente, eles passavam de um dia sombrio de temores para a escuridão de umanoite desesperada. Fogueiras agora devastavam sem qualquer resistência o primeirocirculo da Cidade, e a guarnição sobre a muralha externa já estava em vários pontosimpedida de bater em retirada. Os leais que lá permaneciam em seus postos eram poucos;a maioria tinha fugido para além do segundo portão.

Muito atrás da batalha, uma ponte fora construída rapidamente sobre o Rio, edurante todo o dia mais homens e equipamentos de guerra tinham feito a travessia aosborbotões. Por fim agora, no meio da noite, o ataque fora liberado. A vanguardaatravessou as trincheiras de fogo por várias trilhas sinuosas que haviam sido deixadasentre elas. Avançavam, sem se preocuparem com suas perdas á medida que seaproximavam, ainda reunidos em grupos, ao alcance dos arqueiros nas muralhas.

Mas agora, na realidade, restavam ali muito poucos para que o prejuízo fossegrande, embora a luz das fogueiras expusesse muitos alvos para os arqueiros de cujahabilidade Gondor outrora se gabara. Então, percebendo que a coragem da Cidade jáestava derrotada, o Capitão oculto exibiu sua força. Lentamente as grandes torres de sítioconstruídas em Osgiliath foram rolando para a frente através da escuridão.

Mensageiros foram outra vez até o aposento da Torre Branca, e Pippin os deixouentrar, pois eles insistiram. Denethor desviou lentamente a cabeça do rosto de Faramir, eolhou para eles em silêncio.

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- O primeiro círculo da Cidade está em chamas, senhor - disseram eles. - Quais sãoas suas ordens? Ainda é o Senhor e o Regente. Nem todos estão dispostos a seguirMithrandir. Os homens estão fugindo das muralhas, deixando-as desguarnecidas.

- Por quê? Por que fogem os tolos? - disse Denethor. – É melhor ser queimadomais cedo que mais tarde, pois esse será nosso fim. Voltem para a sua fogueira! E eu? Ireiagora para a minha pira. Para a minha pira. Nada de túmulo para Denethor e Faramír.Nada disso! Nada de longos sonos de morte embalsamada. Vamos arder como arderam osreis bárbaros antes que qualquer navio tivesse vindo do oeste para cá. O Ocidentefracassou. Voltem e queimem!

Os mensageiros, sem reverência ou resposta, viraram-se e saíram correndo.Nesse momento Denethor se levantou, soltando a mão febril deFaramir que estivera segurando.- Ele está queimando, já está queimando - disse ele com tristeza. - A casa de seu

espírito está desmoronando. - Então, andando suavemente na direção de Pippin, desceu osolhos até ele.

-Adeus! - disse ele. -Adeus, Peregrin, filho de Paladin! Seu serviço foi curto, eagora está chegando ao fim. Eu o dispenso do pouco que resta. Vá agora, e morra damaneira que lhe pareça melhor. E com quem desejar, até mesmo aquele amigo cujaloucura o trouxe para esta morte. Mande chamar meus serviçais, e depois vá. Adeus!

- Não direi adeus, meu senhor - disse Pippin, ajoelhando-se. E então, de repente,mais uma vez á maneira dos hobbits, levantou-se e olhou nos olhos do velho.

- Vou deixá-lo, senhor - disse ele -; pois realmente desejo muito ver Gandalf. Masele não é um tolo, e eu não vou pensar em morrer ate que ele perca as esperanças na vida.Mas de minha palavra e de seu serviço não quero ser dispensado enquanto o senhor viver.E, se finalmente eles chegarem á Cidadela, espero estar aqui para ficar ao seu lado, etalvez fazer por merecer as armas que me foram dadas.

- Faça como quiser, Mestre Pequeno - disse Denethor. – Mas minha vida acabou.Mande chamar meus serviçais! - Voltou-se para Faramir.

Pippin o deixou e chamou os serviçais: vieram seis homens da casa, fortes e belos;apesar disso, tremeram ao chamado. Mas numa voz suave Denethor lhes ordenou quecolocassem cobertas quentes na cama de Faramir e a levassem. Assim fizeram eles, e,erguendo a cama, levaram-na do aposento. Andavam devagar, para incomodar o homemfebril o mínimo possível, e Denethor, agora curvado sobre um cajado, os seguia; porúltimo vinha Pippin.

Saíram da Torre Branca, como se fosse um funeral, para dentro da escuridão, ondea nuvem que pairava sobre a Cidade era iluminada por baixo por laivos de um vermelhoapagado. Suavemente atravessaram o grande pátio, e a um comando de Denethor pararamao lado da Árvore Seca.

Tudo era silêncio, salvo o rumor da guerra na Cidade lá embaixo, e eles ouviam aágua pingando melancólica dos galhos mortos para dentro do lago escuro.

Então avançaram através do portão da Cidadela, onde a sentinela os observou comsurpresa e desânimo á medida que eles foram passando. Virando-se para o oeste,finalmente chegaram a uma porta na parede dos fundos do sexto circulo. Chamava-se FenHollen, pois sempre se mantinha fechada, exceto em ocasiões de funerais, e apenas oSenhor da Cidade poderia usar aquele caminho, ou aqueles que usavam o símbolo dastumbas e cuidavam das casas dos mortos. Além dela se estendia uma rua sinuosa quedescia em muitas curvas para a região estreita sob a sombra do precipício do Mindolluin,onde ficavam os túmulos dos Reis mortos e os dos seus Regentes.

Um porteiro estava sentado numa guarita ao lado da rua, e com medo nos olhos ele

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se aproximou, trazendo uma lanterna na mão. Ao ouvir a ordem do Senhor, destrancou aporta, e sem ruido ela recuou; eles atravessaram, tomando a lamparina da mão doporteiro. Estava escuro no caminho que subia entre muralhas antigas e balaústres demuitos pilares que assomavam ao brilho oscilante da lamparina. Os passos lentosecoavam, à medida que eles iam descendo, descendo, até que finalmente chegaram à ruaSilenciosa, Rath Dinen, entre abóbadas pálidas e salões vazios e imagens de homensmortos muito tempo atrás; entraram na Casa dos Regentes, e colocaram no chão o seufardo.

Ali Pippin, observando inquieto tudo á sua volta, viu que estava num amplocômodo abobadado, que parecia todo coberto pelas grandes cortinas de sombra que apequena lamparina projetava nas paredes amortalhadas. E quase invisíveis havia alimuitas fileiras de mesas, esculpidas no mármore, e sobre cada mesa jazia uma formadormente, com as mãos unidas, e a cabeça repousando sobre a pedra. Mas uma mesa maispróxima era ampla e estava vazia. Sobre ela, a um sinal de Denethor, eles colocaramFaramir e seu pai lado a lado, e os cobriram com uma mesma coberta, e então ficaramcom as cabeças baixas como alguém que chora do lado de um leito de morte. DepoisDenethor falou numa voz baixa.

- Aqui esperaremos - disse ele. - Mas não quero que mandem chamar osembalsamadores. Tragam-nos lenha de queima rápida, e coloquem-na em toda a nossavolta, e embaixo; derramem óleo sobre ela. E, quando eu mandar, lancem uma tocha.Façam isso e não falem mais comigo. Adeus!

- Com a sua permissão, senhor - disse Pippin, virando-se e fugindo amedrontadodaquela casa de morte. "Pobre Faramir", pensou ele. "Preciso encontrar Gandalf. PobreFaramir! É muito provável que precise mais de remédios suponho eu; e ele não terá tempoa perder com moribundos ou loucos!"

Ao pé da porta, dirigiu-se a um dos serviçais que ficara de guarda. - seu senhorestá fora de si - disse ele. - Tenham calma! Não tragam fogo para este lugar enquantoFaramir viver! Não façam nada até que Gandalf chegue!

- Quem é o senhor de Minas Tirith? - respondeu o homem. - O Senhor Denethor ouo Caminheiro Cinzento?

- O Caminheiro Cinzento e ninguém mais, ao que parece - disse Pippin, e foicorrendo de volta pelo caminho sinuoso, com a maior velocidade que conseguiu imprimiraos pés, passando pelo porteiro atônito, saindo pela porta, e adiante, até chegar perto doportão da Cidadela. A sentinela o saudou á sua passagem, e ele reconheceu a voz deBeregond.

- Aonde vai assim correndo, Mestre Peregrin? - gritou ele.- Procurar Mithrandir - respondeu Pippin.- As mensagens do Senhor são urgentes, e eu não poderia retardá-las - disse

Beregond -; mas diga-me depressa, se puder: o que está acontecendo? Para onde foi omeu Senhor? Acabei de assumir meu posto, mas ouvi falar que ele passou na direção daPorta Fechada, e homens levavam á frente Faramir.

- É - disse Pippin - para a rua Silenciosa.Beregond baixou a cabeça para esconder as lágrimas.- Disseram que ele estava morrendo - disse ele suspirando -, e agora está morto.- Não - disse Pippin -, ainda não. E até mesmo agora sua morte ainda pode ser

impedida, eu acho. Mas o Senhor da Cidade, Beregond, caiu antes que sua cidade fossetomada. Está obcecado pela morte, e transformou-se numa pessoa perigosa. -Rapidamente contou sobre as estranhas palavras e atos de Denethor. - Preciso encontrarGandalf com urgência.

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- Então deve descer até a batalha.- Eu sei. O Senhor me deu permissão. Mas, Beregond, se você puder, faça alguma

coisa para impedir que algo terrível aconteça.- O Senhor não permite que aqueles que vestem o negro e a prata deixem seus

postos por qualquer motivo, a não ser por sua própria ordem.- Bem, você deve escolher entre ordens e a vida de Faramir - disse Pippin. - E,

quanto a ordens, acho que você está lidando com um louco, e não com um senhor. Precisocorrer. Voltarei se puder.

Saiu numa corrida desabalada, e foi descendo na direção da cidade externa.Homens fugindo do incêndio passavam por ele, e alguns, vendo seu uniforme, voltavam-se e gritavam, mas Pippin não lhes dava atenção. Finalmente passou pelo Segundo Portão,além do qual enormes labaredas subiam entre as muralhas.

Apesar disso, tudo parecia estranhamente silencioso. Não se ouvia nenhumbarulho, gritos de batalha ou troar de armas. Então, de repente, houve um berro pavoroso,uma grande batida e um estrondo profundo e retumbante. Forçando-se a avançar, contrauma rajada de medo e horror que quase o derrubou de joelhos, Pippin virou uma esquinaque se abria no páteo amplo da cidade. Ficou paralizado. Encontrara Gandalf, mas recuou,escondendo-se numa sombra.

Desde a meia-noite prosseguia o ataque. Tambores retumbavam. Ao norte e ao sul,as companhias inimigas, uma atrás da outra, avançavam contra as muralhas.

Chegavam animais enormes, parecendo edifícios moveis a luz rubra e oscilante, osmúmakil de Harad, arrastando pelas alamedas enormes torres e máquinas, em meio aoincêndio. Seu Capitão já não se preocupava muito com o que faziam ou quantos poderiamser mortos: seu único objetivo era testar a força da defesa e manter os homens de Gondorocupados em vários lugares. Era contra o Portão que ele jogaria seu maior peso. O Portãopodia ser muito forte, feito de aço e ferro, guardado por torres e baluartes de pedrainvencível, e apesar disso era a chave, o ponto mais fraco em toda aquela muralha alta eimpenetrável. Os tambores retumbaram mais alto. As labaredas subiram com mais força.Grandes máquinas se arrastavam através do campo, e no meio havia um enorme aríete,grande como uma árvore da floresta, de trinta metros de comprimento, oscilando preso afortes correntes. Estivera sendo forjado por muito tempo nas escuras ferrarias de Mordor,e sua cabeça hedionda, moldada em aço negro, tinha o formato de um lobo voraz; possuíafeitiços de destruição. Chamavam-no Grond, em memória do Martelo do MundoSubterrâneo de outrora. Grandes animais o puxavam, orcs se amontoavam em volta dele,e atrás vinham os trolls das montanhas para manejá-lo. Mas em volta do Portão aresistência ainda era forte, e ali os cavaleiros de Doí Amroth e os mais resistentes daguarnição se mantinham sitiados. Choviam flechas e lanças; torres de sitio tombavam oude repente se incendiavam como tochas. Por toda a volta, diante das muralhas dos doislados do Portão, o chão estava coberto de escombros e de corpos dos mortos; mesmoassim, como se guiados por uma loucura, mais e mais deles chegavam.

Grond se aproximava. O fogo não atacava o seu suporte; embora de vez emquando algum dos grandes animais que o puxavam enlouquecesse e espalhasse atropelo edestruição em meio aos incontáveis orcs que o escoltavam, seus corpos eram jogados delado e outros tomavam-lhes o lugar.

Grond se aproximava. Os tambores retumbavam alucinadamente. Por sobre osmontes de mortos um vulto hediondo surgiu: um cavaleiro, alto, encapuzado, coberto porum manto negro. Lentamente, pisando e esmagando os caídos, cavalgou á frente, sem seimportar com a possibilidade de ser atingido por uma lança. Parou e ergueu uma enorme

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espada pálida. Assim que fez isso, um grande terror atingiu a todos, defensores einimigos; as mãos dos homens ficaram imóveis ao longo dos corpos, e nenhum arcozuniu. Por um momento, todos ficaram paralisados.

Os tambores retumbaram e repicaram. Num impulso enorme, Grond foi arrastado àfrente. Atingiu o Portão. Balançou no ar. Um enorme estrondo retumbou

Através da Cidade, como um trovão rolando nas nuvens. Mas as portas de ferro eos pilares de aço resistiram ao golpe.

Então o Capitão Negro se ergueu nos estribos e gritou numa voz apavorante,pronunciando em alguma língua esquecida palavras de poder e terror capazes deestraçalhar coração e pedra.

Três vezes gritou. Três vezes o grande aríete retumbou. E de repente, no últimogolpe, o Portão de Gondor partiu-se. Como se sob o efeito de algum feitiço explosivo, elecaiu aos pedaços: houve um clarão de luz cortante, e as portas se espatifaram no chão.

Para dentro cavalgou o Senhor dos Nazgúl. Uma grande figura negra contraas labaredas ao fundo, ele assomou, transformado numa enorme ameaça de desespero.Para dentro cavalgou o Senhor dos Nazgúl, pelo arco que nenhum inimigo jamaisatravessara, e todos fugiam diante dele.

Todos exceto um. Esperando ali, imóvel e calado no pátio diante do portão, estavaGandalf montado em Scadufax: Scadufax que era o único entre os cavalos livres da terracapaz de suportar o terror, imóvel, imperturbável como uma imagem esculpida em RathDinen.

- Não pode entrar aqui - disse Gandalf, e a enorme sombra parou. - Volte para oabismo que lhe foi preparado! Volte! Caia no nada que aguarda você e seu Mestre. Vá!

O Cavaleiro Negro jogou para trás o capuz e todos ficaram atônitos: ele tinha umacorôa real, e mesmo assim ela não repousava sobre nenhuma cabeça visível As labaredasrubras reluziam entre a corôa e os ombros largos e escuros protegidos pela capa. De umaboca invisível veio uma risada mortal.

- Velho tolo! - disse ele. - Velho tolo! Esta é a minha hora. Não reconhece a morteao deparar com ela? Morra agora e pragueje em vão! - E com essas palavras ergueu aespada, de cuja lâmina escorriam chamas.

Gandalf não se mexeu. E naquele exato momento, em algum pátio distante daCidade, um galo cantou. Cantou num tom estridente e cristalino sem se importar comfeitiçaria ou guerra, apenas saudando a manhã que no céu, acima das sombras da morte,chegava com a aurora. E como em resposta veio de longe uma outra nota. Trombetas,trombetas, trombetas. Ecoaram fracas nas encostas escuras do Mindolluin.

Grandes trombetas do norte, num clangor alucinado. Rohan finalmente chegara.

CAPÍTULO V A CAVALGADA DOS ROHIRRIM

Estava escuro e Merry, deitado no chão e enrolado num cobertor, não enxergavanada. Apesar disso, embora a noite estivesse sufocada e sem vento, por toda a sua voltaárvores ocultas suspiravam suavemente. Levantou a cabeça.

Então ouviu outra vez: um som semelhante a tambores fracos nas colinas cobertaspor florestas e nos patamares das montanhas. De repente o rufar cessava e depoiscomeçava outra vez em algum outro ponto, ora mais próximo, ora mais distante. Merry

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perguntava-se se os vigias também teriam ouvido. Não se podiam vê-las, mas ele sabiaque por toda a volta estavam as companhias dos rohirrim. Sentia no escuro o cheiro doscavalos, e os ouvia mudar de posição pateando de leve o chão coberto de agulhas depinheiro. O exército estava acampado em meio aos bosques de pinheiros que seaglomeravam em torno do Farol Eilenach, uma colina alta que se destacava das longascordilheiras da Floresta Drúadan, ao lado da grande estrada em Anórien Oriental.

Apesar de cansado, Merry não conseguia dormir. Já havia cavalgado quatro diasseguidos, e a escuridão que se adensava ia lentamente pesando cada vez mais em seucoração. Começou a se perguntar por que insistira tanto em vir, quando lhe foram dadostodos os motivos, até mesmo a ordem de seu senhor, para ficar para trás. Pensava tambémse o rei sabia que sua ordem fora desobedecida e estava zangado. Talvez não. Pareciahaver algum entendimento entre Dernhelm e Elfhelm, o Marechal que comandava o éoredno qual estavam. Ele e todos os seus homens ignoravam Merry e fingiam não ouvir se elefalasse. Era como se o hobbit fosse apenas um outro saco que Dernhelm estavacarregando. Dernhelm não era consolo: nunca falava com ninguém. Merry se sentiapequeno, inconveniente, e solitário.

O momento agora era de ansiedade, e o exército corria perigo. Estavam a menos deum dia de cavalgada das muralhas externas de Minas Tirith, que circundavam ospovoados. Batedores haviam sido enviados à frente. Alguns não tinham retornado.Outros, voltando às pressas, contaram que a estrada fora tomada por exércitos inimigos.Nela acampava uma tropa inimiga, três milhas a oeste do Mon Din, e alguns homensavançavam pela estrada, não estando a mais de três léguas de distância. Orcsperambulavam nas colinas e florestas ao longo da estrada. O rei e Éomer discutiam seusplanos durante as vigias noturnas.

Merry queria conversar com alguém e pensava em Pippin. Mas isso só aumentavasua ansiedade. Pobre Pippin, enclausurado na grande cidade de pedra, sozinho e commedo. Merry desejou ser um Cavaleiro alto como Éomer, e poder tocar uma corneta oualguma outra coisa, para ir a galope resgatar o amigo. Sentou-se, escutando escutando ostambores que batiam de novo, agora bem próximos. De repente ouviu vozes falandobaixo, e viu lamparinas fracas, semiveladas, passando através das árvores.

Perto dele homens começaram a se mover no escuro em várias direções.Um vulto alto assomou e tropeçou nele, amaldiçoando as raízes das árvores. Merry

reconheceu a voz de Ellhelm, o Marechal.- Não sou uma raiz de árvore, Senhor - disse ele -, nem um saco de bagagem, mas

um hobbit escoriado. O mínimo que pode fazer para consertar a situação é me explicar oque está acontecendo.

- Qualquer coisa que consiga acontecer nessa escuridão dos demônios respondeuElfhelm. - Mas meu senhor enviou mensagens para que nos preparássemos. Podemosreceber ordens para partir a qualquer momento.

- Então o inimigo está vindo? - perguntou Merry ansioso. - Aqueles são ostambores deles? Comecei a pensar que fosse a minha imaginação, pois ninguém maisparecia tomar conhecimento deles.

- Não, não - disse Elfhelm. - O inimigo está na estrada, não nas colinas. Você estáouvindo os woses, os homens selvagens da Floresta: essa é a sua maneira de conversarema distância. Eles ainda habitam a Floresta Drúadan, pelo que se comenta. Sãoremanescentes de um tempo mais antigo, vivendo escondidos e em pequeno número,selvagens e cautelosos como os animais. Eles não vão para a guerra com Gondor e a Terrados Cavaleiros, mas agora estão preocupados com a escuridão e a chegada dos orcs:receiam que os Anos Escuros estejam retornando, o que parece suficientemente provável.

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Fiquemos agradecidos por não estarem nos caçando: pois eles usam flechas envenenadas,pelo que se diz, e têm habilidades incomparáveis nas florestas. Mas ofereceram seusserviços a Théoden.

Neste momento um de seus líderes está sendo levado à presença do rei. Lá vão asluzes. Ouvi dizer isso e mais nada. E agora preciso me ocupar das ordens de meu senhor.

- Aprume-se, Mestre Saco! - Elfhelm desapareceu nas sombras.Merry não gostara nada daquela conversa de homens selvagens e flechas

envenenadas, mas além disso um grande peso o acabrunhava. Era insuportável esperar.Desejava saber o que aconteceria. Levantou-se e logo estava andando com cuidado atrásda última lamparina, antes que ela desaparecesse em meio ás árvores.

De repente atingiu um espaço aberto, onde uma pequena barraca fora armada parao rei, sob uma árvore frondosa. Uma lamparina grande, coberta na parte superior, estavapendurada num galho e projetava no chão um pálido circulo de luz. Sentados ali estavamThéoden e Éomer e diante deles, no chão, uma figura estranha de homem, atarracado,nodoso feito uma rocha velha, e os fios de sua barba rala se espalhavam no queixoencaroçado como musgo seco. Tinha as pernas curtas, os braços gordos, era troncudo eroliço, vestido apenas com palha ao redor da cintura. Merry teve a impressão de tê-lovisto em algum outro lugar antes, e de repente se lembrou dos homens-Púkel do Temploda Colina. Ali estava uma daquelas imagens antigas revivida, ou talvez um descendenteem linha direta, através de anos incontáveis, dos modelos usados pelos artesãosesquecidos de antigamente.

Estavam em silêncio quando Merry se aproximou, e então o homem selvagemcomeçou a falar, aparentemente respondendo a alguma pergunta. Sua voz era grave egutural; apesar disso, para a surpresa de Merry, ele falava a Língua Geral, mas de umamaneira pausada, e palavras rudes se misturavam com ela.

- Não, pai dos Cavaleiros - disse ele. - Nós não lutar. Só caçar. Mata gorgún nafloresta, odeia os orcs. Vocês também odeia gorgún. Nós ajudar como pode. Homensselvagens ter olhos compridos e orelhas compridas; conhecer todas as trilhas. Homensselvagens viver aqui antes das Casas de Pedra; antes dos homens altos vir da Agua.

- Mas precisamos de ajuda na batalha - disse Éomer. - Como você e seu povopodem nos ajudar?

-Trazer noticias - disse o homem selvagem. - Nós olhar das colinas. Subirmontanha grande e olhar para baixo. Cidade de Pedra está fechada. Fora dela queimafogo, agora também dentro. Vocês quer ir para lá? Então precisa ser rápido. Mas gorgún ehomens de longe - disse ele acenando um braço curto e nodoso em

direção ao leste - está tudo sentado na estrada de cavalo. Muitos, muitos mais queos Cavaleiros.

- Como você pode saber disso? - perguntou Éomer. O rosto achatado do velho eseus olhos escuros não demonstraram nada, mas sua voz ficou perturbada, contrariada. -Homens selvagens ser selvagens, livres, mas não ser crianças - respondeu ele. - Sou umgrande líder, Ghân-buri-Ghân. Sei contar muitas coisas: estrelas no céu, folhas em árvorese homens no escuro. Você tem uma vintena de vintenas contando dez vezes e mais cinco.Eles ter mais. Grande luta, e quem vai ganhar? E muitos outros estar em volta dasmuralhas das Casas de Pedra.

- Ai de nós! Ele fala com grande perspicácia - disse Théoden. – E nossos batedoresdizem que o inimigo fez trincheiras e fogueiras na estrada. Não podemos dispersá-losnum ataque repentino.

- E apesar disso precisamos de grande velocidade – disse Éomer. - Mundburg estáem chamas!

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- Deixe Ghân-buri-Ghân terminar! - disse o homem selvagem.- Ele conhecer mais de uma estrada. Vai levar vocês pela estrada que não tem poço

nem gorgún, só homens selvagens e bichos. Muitas trilhas feitas quando o povo das Casasde Pedra era mais forte. Cortaram colinas como os caçadores cortam carne de bicho.Homens selvagens acha que eles come pedra. Eles ir para Rinimon, passando porDrúadan com grandes carroças. Agora ninguém passar mais ali. Estrada esquecida, masnão por homens selvagens. Sobre colina e atrás de colina ela fica ainda debaixo de capime árvore, lá atrás de Rimmon e descendo para o Din, e no fim volta para a estrada dosCavaleiros. Homens selvagens mostrar para vocês a estrada. Então vocês matar gorgún, eexpulsar a escuridão má com ferro brilhante, e homens selvagens poder voltar para dormirna floresta selvagem.

Éomer e o rei conversaram em sua própria língua. Finalmente Théoden dirigiu-seao homem selvagem.

- Aceitamos a sua oferta – disse ele. - Pois, embora deixemos uma tropa deinimigos para trás, o que importa isso? Se a Cidade de Pedra cair, então não haverá comoretornarmos. Se ela for salva, então o próprio exército orc ficará isolado. Se você for fiel,Ghânburi-Ghân, vamos lhe oferecer uma grande recompensa, e você terá para sempre aamizade da Terra dos Cavaleiros.

- Homens mortos não ser amigos dos homens vivos, e não dar presentes paraeles - disse o homem selvagem. - Mas, se Cavaleiros viver depois da Escuridão, entãoCavaleiros deixar homens selvagens em paz na floresta e nunca mais caçar eles comobichos. Ghân-buri-Ghân não levar vocês para armadilha. Ele mesmo vai junto com o paidos Cavaleiros, e, se levar vocês para o lugar errado, vocês mata ele.

- Que assim seja! - disse Théoden.- Quanto tempo vai levar para passarmos pelo inimigo e voltarmos para a estrada?

- perguntou Éomer. - Precisamos ir em ritmo de caminhada, se você nos guiar, e nãoduvido que a trilha seja estreita.

- Homens selvagens andar rápido a pé - disse Ghân. –A trilha é larga para quatrocavalos no Vale das Carroças de Pedra. - Apontou para o sul. - Mas é estreita no começoe no fim. Homem selvagem andar daqui até o Din entre o nascer do sol e o meio-dia.

- Então devemos contar pelo menos sete horas para os batedores - disse Éomer -;mas é preferível calcularmos umas dez horas para o resto da tropa.

Imprevistos podem nos atrasar, e, se nosso exército se espalhar, vai demorar muitoaté que consiga se colocar em ordem quando sairmos das colinas. Que horas são agora?

- Quem pode saber? - disse Théoden. - É tudo noite agora.- Está tudo escuro, mas não é tudo noite - disse Ghân. - Quando o sol aparece

homens selvagens sentir, mesmo quando está escondido. Ele já está subindo sobre asmontanhas do leste. O dia começar nos campos do céu.

- Então devemos partir o mais cedo possível - disse Éomer. - Mesmo assim nãopodemos ter esperanças de chegar em auxílio de Gondor ainda hoje.

Merry não esperou para ouvir mais nada. Correu e foi se preparar para aconvocação da marcha. Essa era a última etapa antes da batalha. Não lhe parecia provávelque muitos sobrevivessem a ela. Mas pensou em Pippin e nas chamas de

Minas Tirith e sufocou o próprio medo.Tudo correu bem naquele dia, e eles não viram ou ouviram qualquer sinal do

inimigo, esperando-os com uma emboscada. Os Homens Selvagens tinham preparadouma proteção de caçadores cuidadosos, de modo que nenhum orc ou espião pudesse saberdo movimento nas colinas. A noite estava mais escura que nunca, à medida que eles seaproximaram da cidade sitiada, e os Cavaleiros assaram em longas filas como sombras

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escuras de homens e cavalos. Cada companhia vinha liderada por um homem da floresta:mas o velho Ghân caminhava ao lado do rei. A partida fora mais demorada que oesperado, pois levou muito tempo para que os Cavaleiros, andando e puxando os cavalos,encontrassem trilhas nas cordilheiras cobertas por matas espessas atrás do acampamentoe na descida para o oculto Vale das Carroças de Pedra. Já era fim de tarde quando os queiam à frente atingiram as amplas matas cinzentas estendendo-se além da encosta leste doAmon Din, e mascarando um grande desfiladeiro no conjunto de colinas que, do Nardolaté o Diu, corria de leste a oeste.

Pelo desfiladeiro, a esquecida estrada de carroças antigamente descera, voltandopara o caminho principal que vinha da Cidade através de Anórien; mas agora por muitasvidas de homem as árvores tinham dominado a região, e a trilha desaparecera,interrompida e encoberta sob as folhas dos anos incontáveis. Mas os maciços de árvoresofereciam aos Cavaleiros sua última esperança de proteção, antes que partissem para abatalha aberta; pois além dos maciços ficavam a estrada e as planícies do Anduin,enquanto ao leste e ao sul as encostas tornavam-se nuas e pedregosas, à medida que ascolinas retorcidas se juntavam e subiam, baluarte após baluarte, formando a grande massado Mindolluin com as suas saliências.

A companhia que liderava parou, e, à medida que aqueles que a seguiam seenfileiravam e saiam através da fenda do Vale das Carroças de Pedra, eles se espalharamprocurando locais de acampamento sob as árvores cinzentas. O rei convocou os capitãespara um conselho. Éomer enviou batedores para espionar a estrada, mas o velho Ghânbalançou a cabeça.

- Não adianta mandar Cavaleiros - disse ele. - Homens selvagens já viu tudo o quepode se ver no ar ruim. Logo chegam aqui para conversar comigo.

Os capitães vieram e então, saindo das árvores, outras figuras púkel seaproximaram, tão semelhantes ao velho Ghân que Merry mal conseguia distingui-los.Falaram com Ghân numa estranha língua gutural.

De repente, Ghân voltou-se para o rei. - Homens selvagens dizer muita coisa -disse ele. - Primeiro precisar cuidado e ainda muitos homens acampados além do Din,uma hora de caminhada daqui - disse ele acenando o braço na direção do farol negro. -Mas ninguém entre este lugar e as novas muralhas do Povo das Pedras.

Muitos trabalhando ali. Muralhas no chão: gorgún derruba elas com o trovão daterra e com bastões de ferro preto. Não tomam cuidado e não olham em volta. Achar queos amigos deles vigia todas as estradas! - Dizendo aquilo, o velho Ghân emitiu umcurioso ruido gorgolejante, dando a impressão de estar rindo.

- Boas notícias! - exclamou Éomer. - Mesmo nesta escuridão, a esperança reluzoutra vez. As estratégias de nosso Inimigo frequentemente se revertem a nosso favor. Aprópria escuridão amaldiçoada nos tem sido uma proteção. E, agora que Ele está ávidopor destruir Gondor sem deixar pedra sobre pedra, seus orcs afastaram meu maior temor.A muralha externa poderia ter sido ocupada por muito tempo, e usada contra nós. Agorapodemos passar por ela – se conseguirmos chegar até lá.

- Mais uma vez lhe agradeço, Ghân-buri-Ghân da floresta - disse Théoden. - Que aboa sorte o acompanhe, pelas boas noticias e por sua orientação!

- Matar gorgún! Matar os orcs! Nenhuma outra palavra agrada aos homensselvagens - respondeu Ghân. - Expulsar ar ruim e escuridão com ferro brilhante!

- Para fazer essas coisas é que cavalgamos até aqui - disse o rei -, e vamos tentá-las. Mas o que conseguiremos só o amanhã mostrará.

Ghân-buri-Ghán se agachou no chão e tocou a terra com a testa ossuda em sinal dedespedida. Então levantou-se, como se fosse partir. Mas de repente parou, olhando para

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cima como um animal assustado da floresta que fareja algo diferente no ar. Seus olhos seiluminaram.

-Vento está mudando! - exclamou ele, e com isso, como num piscar de olhos, ele eseus companheiros desapareceram dentro da escuridão, e nunca mais foram vistos pornenhum Cavaleiro de Rohan. Não muito tempo depois, na distância ao leste, os tamboresvibraram outra vez. Mas nenhum coração em todo o exército foi tomado por qualquer tipode receio de que os homens selvagens não fossem fiéis, embora pudessem parecerestranhos e rudes.

- Não precisamos mais de orientação - disse Elfhelm -, pois há cavaleiros noexército que já desceram até Mundburg em tempos de paz. Eu sou um deles. Quandoatingirmos a estrada, ela desviará para o sul, e restarão ainda sete léguas à frente antes dechegarmos à muralha dos povoados. Ao longo da maior parte daquele caminho há matodos dois lados da estrada. Naquele trecho, os mensageiros de Gondor calculavam atingirsua maior velocidade. Podemos cavalgar por ali com rapidez e sem muito barulho.

- Então, uma vez que precisamos contar com atos cruéis e temos necessidade detodo o nosso vigor - disse Éomer -, sugiro que descansemos agora, e partamos de noite,planejando nossa marcha de tal forma que possamos avançar sobre os campos quando odia estiver no seu ponto mais claro, ou quando nosso rei der o sinal.

O rei concordou com isso, e os capitães se retiraram. Mas logo Elthehn voltou.- Os batedores não encontraram nada para reportar além da floresta cinzenta,

senhor - disse ele -, exceto dois homens apenas: dois homens mortos e dois cavalosmortos.

- Bem - disse Éomer. - E então?- O seguinte, senhor: esses homens eram mensageiros de Gondor; provavelmente

Hirgon era um deles. Pelo menos sua mão ainda segurava a Flecha Vermelha; mas suacabeça fora decepada. E também isto: pelos vestígios parece que estavam fugindo emdireção ao oeste quando caíram. Pelo que presumo, encontraram o inimigo já sobre amuralha externa, ou atacando-a, quando retornaram - e isso teria sido duas noites atrás, seusaram cavalos descansados de seus postos, como é o costume deles. Não conseguiramchegar à Cidade e retornaram.

- Lamentável! - disse Théoden. - Então Denethor não recebeu noticias de nossamarcha, e vai perder a esperança de que possamos chegar em seu auxilio.

- A necessidade não aceita a demora, mas antes tarde do que nunca - disse Éomer. -E é possível que desta vez o velho ditado seja mais verdadeiro que em qualquer outraocasião anterior, desde que foi pela primeira vez pronunciado.

Era noite. Dos dois lados da estrada o exército de Rohan avançava em silêncio.Agora o caminho, passando pelas bordas do Mindolluin, desviava para o sul. Ao longe,quase em linha reta, havia um clarão vermelho sob o céu negro, e as encostas da grandemontanha assomavam escuras contra ele. Estavam se aproximando da Rammas doPelennor, mas o dia ainda não chegara.

O rei cavalgava no meio da companhia da frente, acompanhado pelos homens desua casa. O éored de Elfhelm vinha em seguida, e agora Merry percebia que Dernhelmdeixara sua posição e, no escuro, avançava firme para a frente, até que por fim estavacavalgando logo atrás da guarda do rei. Houve uma parada. Merry ouviu vozes navanguarda falando baixo. Os cavaleiros que se tinham aventurado quase até a muralharetornaram. Vieram ter com o rei.

- Há um grande incêndio, senhor - disse um deles. – A cidade está envolta emchamas e o campo está cheio de inimigos. Mas parece que todos se retiraram para oassalto. Pelo que podemos supor, restam poucos na muralha externa, e estão desatentos,

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preocupados em destruir.- Lembra-se das palavras do homem selvagem, senhor? - disse um outro. - Eu vivo

no Descampado em tempos de paz; Widfara é meu nome, e a mim também o ar traznotícias. O vento já está virando. Há uma brisa vinda do sul, há nela um cheiro de mar,embora possa ser muito fraco. A manhã trará novidades. Sobre a fumaça surgirá a auroraquando o senhor passar pela muralha.

- Se o que fala é verdade, Widfara, então que você viva a partir deste dia muitosanos de felicidade - disse Théoden. Virou-se para os homens de sua casa que estavampróximos, e falou agora numa voz clara de forma que também vários dos cavaleiros doprimeiro éored puderam ouvi-lo:

- É chegada a hora, Cavaleiros de Rohan, filhos de Eorl! O inimigo e o fogo estãodiante de vocês, e suas casas ficaram para trás. Apesar disso, embora vocês lutem numcampo estrangeiro, para sempre terão direito à glória que colherem lá. Fizeramjuramentos: agora devem cumpri-los todos, ao senhor, à terra e á aliança de amizade.

Os homens bateram as lanças contra os escudos.- Éomer, meu filho! Você deve liderar o primeiro éored - disse Théoden -, que

deverá ir atrás da bandeira do rei, ao centro. Elfhelm, conduza sua companhia para adireita quando passarmos pela muralha. E Grimbold deverá conduzir a sua para aesquerda. Que as outras companhias que virão atrás sigam essas três, como puderem.Ataquem onde quer que haja uma concentração inimiga. Não podemos fazer outrosplanos, pois ainda não sabemos como estão as coisas no campo. Avante agora, e nãotemam escuridão alguma!

A companhia da frente avançou na velocidade possível, pois ainda estava muitoescuro, a despeito de qualquer mudança que Widfara pudesse ter previsto. Merry vinhamontado atrás de Dernhelm, segurando-se com a mão esquerda, enquanto tentava com aoutra soltar a espada de sua bainha. Agora sentia de forma amarga a verdade das palavrasdo rei: numa batalha dessas, o que você poderia fazer Meriadoc?, "Apenas isso", pensouele: "estorvar um cavaleiro e esperar na melhor das hipóteses manter-me na sela e não serpisoteado até a morte por cascos galopantes!"

Era menos de uma légua até o ponto onde outrora as muralhas externas se erguiam.Logo as atingiram, cedo demais para Merry. Irromperam gritos selvagens, e houve algumchoque de armas, que no entanto foi breve. Os orcs ocupados as muralhas eram poucos, eficaram assustados; foram rapidamente mortos ou expulsos. Diante da ruína do portãonorte da Rammas, o rei parou outra vez. O primeiro éored se aproximou e ficou atrás dele,e dos dois lados.

Dernhelm se mantinha próximo ao rei, embora a companhia de ElfhelmEstivesse distante e à direita. Os homens de Grimbold desviaram e passaram

contornando a muralha até chegar a uma grande fenda mais para o leste.Merry espiou por trás das costas de Dernhelm. Distante, talvez há dez milhas ou

mais, havia um grande incêndio, mas entre ele e os Cavaleiros linhas de fogo fulguravamnum crescendo constante, a mais próxima estando a menos de uma légua. O hobbitconseguia distinguir pouca coisa mais na planície escura, e até agora não via qualqueresperança de aurora, nem sentia qualquer vento, alterado ou não.

Agora o exército de Rohan avançava em silêncio, entrando no campo de Gondor,inundando-o lentamente mas sem parar, como a maré que sobe e penetra as brechas de umdique que os homens consideravam impermeável. Mas a mente e a vontade do CapitãoNegro estavam inteiramente voltadas para a cidade que ruia, e até o momento não lhechegara qualquer mensagem advertindo-o de que seus planos poderiam apresentar algumafalha.

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Depois de um tempo, o rei conduziu seus homens um pouco para o leste, atéchegar a um local que ficava entre o fogo do cerco e os campos externos. Ainda nãohaviam sido desafiados, e ainda Théoden não dera nenhum sinal. Por fim ele parou maisuma vez. A Cidade agora estava mais próxima. Havia no ar um cheiro de fogo e umasombra da própria morte. Os cavalos sentiam-se inquietos. O rei estava montado emSnawmana, imóvel, assistindo à agonia de Minas Tirith, como se tomado por umaangústia repentina, ou pelo terror. Parecia encolher-se sob o peso da idade. O próprioMerry se sentia como se um grande fardo de terror e dúvida houvesse caído sobre ele. Seucoração batia devagar. O tempo parecia se librar na incerteza. Haviam chegado tardedemais! Tarde demais era pior que nunca! Talvez Théoden vacilasse, talvez curvasse acabeça e se virasse, indo embora furtivamente para se esconder nas colinas.

Então, de súbito, Merry finalmente a sentiu, sem sombra de dúvida: uma mudança.Sentia o vento no rosto! Surgia uma luz fraca. Distantes, muito além e ao sul, era possíveldivisar nuvens como formas cinzentas e remotas, subindo, flutuando: a aurora estava atrásdelas. Mas naquele mesmo momento houve um clarão, como se um relâmpago tivessesaltado da terra sob a Cidade. Por um cáustico momento permaneceu feito luzdeslumbrante em negro e branco, com sua extremidade superior como uma agulha emfaiscas; e depois, quando a escuridão se fechou mais uma vez, veio retumbando pelascolinas um grande estrondo.

Àquele som, a figura curvada do rei de repente se aprumou. Agora ele parecia altoe orgulhoso novamente; e levantando-se nos estribos gritou numa voz poderosa, maiscristalina do que qualquer um já ouvira um homem mortal produzir antes:

Acordem, acordem,Cavaleiros de Théoden!Duros feitos despertam;jugo e massacre.Quebrada será a lança,trincado será o escudo,em dia de espada,vermelho, antes de o sol raiar!Avante agora, avante!Avante para Gondor!

E com isso tomou uma grande corneta da mão de Guthláf, seu porta bandeira, eproduziu um clangor tão forte que a corneta se partiu em dois pedaços. E imediatamentetodas as cornetas do exército se ergueram em música, e o toque das cornetas de Rohannaquela hora era como tempestade sobre a planície, e como um trovão nas montanhas.

Avante agora, avante! Avante para Gondor!De repente o rei gritou para Snawmana, e o cavalo disparou. Atrás dele sua

bandeira tremulava ao vento, corcel branco sobre um campo verde, mas o rei era maisveloz. Depois vieram numa carreira desabalada os cavaleiros de sua casa, mas o reisempre se mantinha à frente. Éomer cavalgava ali, o rabo- de-cavalo branco de seu elmosolto ao vento, e a vanguarda do primeiro éored rugia como uma onda enorme que searrebenta em espuma na praia, mas não se podia alcançar Théoden. Parecia umcondenado à morte, ou então a fúria da batalha de seus antepassados corria como um fogonovo em suas veias, e ele ia montado em Snawmana como um deus antigo, talvez mesmocomo Oromê, o Grande, na batalha dos Valar, quando o mundo era jovem. Seu escudodourado estava descoberto e era surpreendente ver seu brilho como uma imagem do Sol, e

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a relva se incendiava verde ao redor dos pés de seu corcel. Pois a manhã chegara, a manhãe um vento do mar; a escuridão fora removida, e os exércitos de Mordor gemeram,tomados de terror, fugiram e morreram, pisoteados pelos cascos da ira. E então todo oexército de Rohan irrompeu numa canção, e cantando enquanto matavam, pois a alegriada batalha estava neles, e o som de sua música, que era belo e terrível, chegava até aCidade.

CAPÍTULO VI A BATALHA DOS CAMPOS DE PELENNOR

Mas não era um chefe-orc nem um salteador qualquer quem comandava o ataquecontra Gondor. A escuridão se desfazia precocemente, antes da data que seu Mestre haviadeterminado: a sorte o traíra pelo momento, e o mundo se voltara contra ele; a vitória lheescapava das mãos no momento em que as estendia para agarrá-la. Mas seu braço eralongo. Ainda estava no comando, controlando grandes poderes. Rei, Espectro do Anel,Senhor dos Nazgúl, ele ainda tinha muitas armas. Abandonou o Portão e desapareceu.

O Rei Théoden da Terra dos Cavaleiros atingira a estrada que conduzia do Portãopara o Rio, e rumou para a Cidade, agora a menos de uma milha de distância.

Diminuiu um pouco a velocidade, espreitando novos inimigos, e seus cavaleiros oalcançaram; Dernhelm estava entre eles. À frente e mais próximos das muralhas oshomens de Elfhelm estavam em meio às torres de sítio, apunhalando, matando,empurrando os inimigos para dentro das trincheiras em chamas. A metade norte doPelennor estava quase toda devastada, e lá se viam acampamentos ardendo; os orcsfugiam na direção do Rio como bandos de animais á frente de caçadores; os rohirrim iamde um lado para o outro como bem queriam. Mas ainda não tinham derrubado o cerco,nem tomado o Portão. Muitos inimigos estavam diante dele, e na metade mais distante daplanície ainda havia outras tropas por combater. Ao sul, além da estrada, estava a maiorforça dos haradrim, e lá os seus cavaleiros se reuniam em torno da bandeira de seucapitão. Ele olhou e na luz que crescia viu a bandeira do rei; percebeu que ela estavamuito à frente da batalha e com poucos homens em volta. Então encheu-se de uma irasanguinária e soltou um grito; exibindo sua bandeira, serpente negra sobre escarlate,partiu contra o cavalo branco e o campo verde com uma grande força de homens; ascimitarras nas mãos dos sulistas pareciam estrelas faiscando.

Então Théoden percebeu a presença do inimigo, e não esperou pelo ataque:gritando para Snawmana, atirou-se ao seu encontro. Grande foi o estrondo do choqueentre os dois. Mas ardeu com mais intensidade a fúria branca dos homens do norte queeram mais habilidosos e ferinos com lanças longas. Eram poucos mas abriram caminhoem meio aos sulistas como um raio na floresta. Bem ao centro da tropa ia Théoden, filhode Thengel, e sua lança se partiu no momento em que ele derrubou o capitão inimigo.Sacou então a espada, avançou contra a bandeira, derrubando seu mastro e quem acarregava, e a serpente negra soçobrou. Todos da cavalaria oponente que escaparam damorte viraram-se e fugiram para longe. Mas eis que, subitamente, em meio à glória do rei,seu escudo dourado embaçou-se. A nova manhã apagou-se no céu. A escuridão caiu sobreele. Os cavalos empinavam-se relinchando. Homens atirados das selas gemiam no chão.

- Sigam-me! Sigam-me! - gritou Théoden. - Levantem-se, eorlingas!Não temam a escuridão! - Mas Snawmana, num terror alucinado, levantou-se sobre

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as pernas traseiras, lutando com o ar, e então, com um rincho horrível, caiu sobre opróprio lombo: uma lança negra o atingira. O rei ficou debaixo do cavalo.

A grande sombra desceu como uma nuvem. E, para a surpresa de todos, era umacriatura alada: se era um pássaro, então era maior que todos os outros pássaros, e era nu,sem penas ou plumas, e suas enormes asas eram como membranas de couro entre dedosde garras; e seu corpo fedia. Talvez fosse uma criatura de um mundo mais antigo, cujaespécie, sobrevivendo em montanhas esquecidas e frias sob a lua, perdurara além de seusdias, e em ninhos hediondos criara esta última criatura extemporânea, voltada para o mal.E o Senhor do Escuro a acolhera, alimentando-a com carnes nojentas, até que crescessealém da medida de todos os seres voadores; depois deu-a de presente a seu servidor, paraque fosse sua montaria. A criatura veio descendo, descendo, e então, fechando asmembranas que lhe cobriam os dedos, soltou um grito crocitante, e pousou sobre o corpode Snawmana, enterrando nele as garras e abaixando o pescoço longo e nu. Na criaturaestava montado um vulto, coberto com um manto negro, enorme e ameaçador. Usava umacorôa de aço, mas entre corôa e capa não havia nada para se ver, exceto apenas o brilhode um olhar mortal: o Senhor dos Nazgúl.

Voltara para o ar, chamando sua montaria antes que a escuridão cedesse, e agoravinha de novo, trazendo a destruição, transformando esperança em desespero, e vitória emmorte. Brandia uma enorme maça negra.

Mas Théoden não estava completamente abandonado. Os cavaleiros de sua casajaziam mortos ao redor dele, ou então, dominados pela loucura de seus cavalos, tinhamsido levados para longe. Mas um ainda permanecia lá: Dernhelm, o jovem, fiel acima dequalquer medo; e chorava, pois amara seu rei como a um pai. Durante todo o ataque,Merry cavalgara ileso atrás dele, até a chegada da Sombra; então

Windfola, em seu terror, derrubou os dois ao chão, e agora corria alucinado sobre aplanície. Merry se arrastava de quatro como um animal que não enxerga, e tamanho terroro dominava que ele se sentia doente e cego.

- Homem do Rei! Homem do Rei! - seu coração gritava. - Você deve ficar ao ladodele. O senhor será como um pai para você, foi isso o que você disse. - Mas sua vontadenão respondia, e o corpo tremia. Não ousava abrir os olhos nem olhar para cima. Então,na escuridão de sua mente, teve a impressão de ouvir Dernhelm falando: mas agora suavoz parecia estranha, fazendo-o lembrar de alguma outra voz que já ouvira antes.

- Vá embora, criatura asquerosa, senhor das aves carniceiras! Deixe os mortos empaz!

Uma voz fria respondeu:- Não te intrometas entre o nazgúl e sua presa! Ou ele te matará na tua hora. Vai

levar-te embora para as casas de lamentação, além de toda a escuridão, onde tua carneserá devorada, e tua mente murcha será desnudada diante do Olho Sem Pálpebra.

Uma espada tiniu ao ser sacada.- Faça o que quiser; vou impedi-lo, se conseguir.- Impedir-me? Tu és tolo. Nenhum homem mortal pode me impedir!Então Merry ouviu o mais estranho de todos os sons daquela hora. Parecia que

Dernhelm estava rindo, e sua voz cristalina era como aço.- Mas não sou um homem mortal! Você está olhando para uma mulher. Sou

Éowyn, filha de Éomund. Você está se interpondo entre mim e meu senhor, que também émeu parente. Suma daqui, se não for imortal! Pois seja vivo ou morto-vivo obscuro, vougolpeá-lo se tocar nele.

A criatura alada gritou contra ela, mas o Espectro do Anel não respondeu e ficouem silêncio, como se tomado por uma dúvida repentina. Por um momento, o coração de

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Merry foi presa de puro assombro. Abriu os olhos e viu que o negrume subira acimadeles. Ali, a alguns passos dele, estava o grande animal, e tudo parecia escuro ao seuredor, e sobre ele assomava o Senhor dos Nazgúl como uma sombra de desespero. Umpouco á esquerda estava aquela que ele chamara de Dernhelm. Mas o elmo de seu segredolhe caíra da cabeça, e os cabelos claros, libertos de seus laços, reluziam num ouro pálidosobre os ombros. Os olhos cinzentos como o mar eram duros e cruéis, e apesar disso havialágrimas em suas faces. Segurava uma espada na mão, e erguia o escudo contra o horrordos olhos do inimigo. Era Éowyn, e também Dernhelm. Pois na mente de Merry derepente surgiu, como um clarão, a imagem do rosto que ele vira na cavalgada, partindo doTemplo da Colina: o rosto de alguém que vai em busca da morte, sem qualquer esperança.Seu coração encheu-se de pena, misturada a uma grande surpresa, e de repente a coragemde sua raça, de inflamação lenta, despertou. Cerrou a mão. Ela não deveria morrer, tãobela, tão desesperada! Pelo menos não morreria sozinha, sem ajuda.

O rosto do inimigo não estava voltado para ele, mas mesmo assim o hobbit malousava se mexer, aterrorizado com a possibilidade de que aqueles olhos mortais recaissemsobre ele. Devagar, devagar, começou a se arrastar para o lado; mas o capitão Negro,cheio de dúvidas e de intenções malignas em relação à mulher diante dele, não deu aohobbit mais atenção do que daria a um verme na lama.

De repente o grande animal bateu suas asas hediondas, e o vento produzido porelas era nojento. Mais uma vez subiu aos ares, e depois se arremessou rápido contraÉowyn, guinchando, atacando com bico e garras.

Mesmo assim ela não recuou: donzela dos rohirrim, filha de reis, esbelta e aomesmo tempo como uma lâmina de aço, bela mas terrível. Desferiu um golpe rápido,habilidoso e fatal. Cortou fora o pescoço esticado, e a cabeça decepada caiu como umapedra. Pulou para trás no momento em que a enorme figura caiu destruída, as vastas asasabertas, inerte no chão; e com sua queda a sombra desapareceu. Uma luminosidade caiuao redor de Éowyn, e seus cabelos reluziram aos raios do sol que nascia.

Da ruína ergueu-se o Cavaleiro Negro, alto e ameaçador, assomando sobre ela.Com um grito de ódio que feria os ouvidos como veneno, desferiu um golpe com suamaça. Partiu-se em pedaços o escudo de Éowyn, e seu braço ficou quebrado; elacambaleou e caiu de joelhos. Ele pairava sobre ela como uma nuvem, os olhos faiscando;ergueu sua maça para matar.

Mas de repente ele também cambaleou, com um grito lancinante de dor, eseu golpe passou longe, atingindo o chão. A espada de Merry o ferira por trás, rasgandode cima a baixo o manto negro e, passando por baixo da couraça metálica, atravessara otendão atrás de seu forte joelho.

- Éowyn! Éowyn! - gritava Merry. Então cambaleando, esforçando-se para selevantar, com suas últimas forças, ela enfiou a espada entre corôa e manto, quando osgrandes ombros se curvaram diante dela. A espada se estilhaçou faiscando em milfragmentos. A corôa rolou para o chão estrepitosamente. Éowyn caiu para a frente, sobreo corpo de seu inimigo. Mas eis que o manto e a couraça estavam vazios. Jaziam agoradisformes no chão, rasgados e amontoados; e um grito subiu estremecendo o ar, e foisumindo num gemido chiado, passando com o vento, feito voz fraca e sem corpo, quemorreu e foi engolida, e nunca mais foi ouvida naquela era deste mundo.

E lá estava Meriadoc, o hobbit, em meio aos mortos, piscando como uma coruja àluz do dia, pois as lágrimas turvavam-lhe a vista; e através de uma névoa ele olhou para abela cabeça de Éowyn, que estava deitada e imóvel; olhou então para o rosto do rei, quecaíra em meio à própria glória. Pois Snawmana, em sua agonia, rolara o corpo outra vezpara longe dele; apesar disso fora a ruína de seu senhor.

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Merry abaixou-se e levantou a mão do rei para beijá-la, e foi tomado de surpresa:Théoden abriu os olhos, que ainda brilhavam, e falou numa voz tranquila, apesar dadificuldade.

- Adeus, Mestre Hobbit! - disse ele. - Meu corpo está destruído. Vou ao encontrode meus antepassados. E mesmo na poderosa companhia deles eu agora não me sentireienvergonhado. Derrubei a serpente negra Uma manhã cinzenta, um dia alegre, e um ocasode ouro!

Merry não conseguiu dizer nada, mas chorou mais uma vez.- Perdoe-me, senhor - disse ele finalmente -, se desobedeci á sua ordem, e apesar

disso não consegui fazer mais nada a seu serviço do que chorar na sua despedida.O velho rei sorriu.- Não chore! Está perdoado. Não se pode repudiar um grande coração. Viva feliz

agora, e, quando estiver em paz fumando seu cachimbo, pense em mim! Pois nunca maispoderei me sentar ao seu lado em Meduseld, como prometi, nem escutarei você falandosobre o estudo das ervas. - Fechou os olhos, e Merry curvou-se ao lado dele. De repente orei falou de novo. - Onde está Éomer? Pois meus olhos escurecem, e eu gostaria de vê-loantes de partir. Ele deve me suceder como rei. E eu gostaria de mandar uma palavra paraÉowyn. Ela, ela não queria que eu a deixasse, e agora não a verei de novo, ela que me émais querida que uma filha.

- Senhor, senhor - começou Merry, gaguejando. - Ela está... – mas naquelemomento houve um grande clamor, e por toda a volta cornetas e trombetas ressoaram.

Merry olhou ao redor: esquecera a guerra e o mundo ao seu lado, e tinha aimpressão de que muitas horas haviam-se passado desde que o rei cavalgara em direção àprópria morte, embora na verdade fizesse pouco tempo. Mas agora percebia que estavamcorrendo o perigo de ficarem presos bem no centro da grande batalha que logo começaria.

Novas forças do inimigo subiam depressa pela estrada que vinha do Rio; dospontos sob as muralhas vinham as legiões de Morgul; dos campos do sul vinham a péhomens de Harad, precedidos por cavaleiros, e atrás deles assomavam os enormes lombosdos múmakil, carregando torres de guerra. Mas ao norte a crista branca de Éomer lideravaa grande dianteira dos rohirrim, que ele outra vez reunira e ordenara; da Cidade veio todaa força de homens que lá havia, e o cisne prateado de Dol Amroth vinha na vanguarda,expulsando do Portão o inimigo.

Por um instante o pensamento passou pela mente de Merry: "Onde está Gandalf?Não está aqui? Não poderia ter salvo o Rei e Éowyn?" Mas neste momento Éomer seaproximava depressa, e com ele vinham os cavaleiros sobreviventes, que agora tinhamdominado os cavalos. Olharam assombrados a carcaça do animal cruel que jazia ali, eseus cavalos recusaram-se a se aproximar. Mas Éomer saltou da sela, e a tristeza e odesespero desabaram sobre ele quando se acercou do rei e parou ao seu lado em silencio.

Um dos cavaleiros tomou a bandeira real da mão de Guthláf, o porta-bandeira quejazia morto, e a ergueu. Lentamente Théoden abriu os olhos. Vendo a bandeira, fez umgesto significando que ela deveria ser entregue a Éomer.

- Salve, Rei da Terra dos Cavaleiros! - disse ele. –Cavalgue agora para a vitória!Mande meu adeus a Éowyn! - Assim morreu, sem saber que Éowyn jazia ao seu lado. Eaqueles que estavam perto choraram, gritando:

- Rei Théoden! Rei Théoden!Mas Éomer lhes disse:- Não chorem demais! Foi um forte quem caiu, foi digno seu fim. Erguida sua

tumba, mulheres chorarão. Agora a guerra chama! - Mas ele próprio chorava enquantofalava. - Que os cavaleiros do rei permaneçam aqui - disse ele - e com a devida honra

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levem o seu corpo, para evitar que a batalha o pisoteie! Sim, e façam o mesmo com todosos homens do rei que aqui jazem. - Olhou para os mortos, relembrando seus nomes.Então, de repente, viu sua irmã Éowyn deitada, e a reconheceu. Parou um momento, comoum homem que no meio de um grito é atingido por uma flecha que lhe trespassa ocoração; depois seu rosto ficou mortalmente branco, e uma fúria fria cresceu dentro dele,de tal forma que não conseguiu dizer nada por um tempo. Uma sensação de morte odominou.

- Éowyn, Éowyn! - gritou ele finalmente. - Éowyn, como veio parar aqui? Queloucura ou feitiçaria é esta? Morte, morte, morte! Morte, leva-nos a todos!

Então, sem pensar nem esperar a aproximação dos homens da Cidade, enterrou asesporas no cavalo e voltou direto para a frente do grande exército, tocando uma corneta, egritando para que começassem o ataque. Por sobre o campo ecoou sua voz cristalina,chamando:

- Morte! Cavalguem, cavalguem para a morte e para a ruína, e para o fim domundo!

E com isso o exército começou a se mover. Mas os rohirrim não cantavam mais.Morte, gritavam em uma só voz terrível, e, aumentando a velocidade como uma grandeonda, sua batalha circundou seu rei caído e avançou rugindo em direção ao sul.

E ainda Meriadoc, o hobbit, estava ali, piscando entre as lágrimas, e ninguém lhedirigiu a palavra; na realidade, ninguém parecia tê-lo notado. Limpou o rosto e abaixou-separa apanhar o escudo verde que Éowyn lhe dera, e que ele jogara às costas. Entãoprocurou a espada que deixara cair, pois, no momento em que golpeava o inimigo, sentiuo braço adormecer, e agora só conseguia usar o esquerdo. E ora vejam só, lá estava suaespada, mas a lâmina fumegava como um ramo seco que foi jogado no fogo; enquantoassistia, Merry viu a espada se torcendo e encolhendo, até se consumir. Assimdesapareceu a espada das Colinas dos Túmulos, trabalho do Ponente. Mas feliz teriaficado se soubesse o destino dela aquele que a

Forjou lentamente, há muito tempo no Reino do Norte, quando os dúnedain eramjovens, e o maior de seus inimigos era o terror do reino de Angmar e de seu rei feiticeiro.Nenhuma Outra lâmina, nem que mãos mais poderosas a tivessem brandido teria causadonaquele inimigo um ferimento tão terrível, abrindo a carne morta-viva, quebrando oencanto que prendia seus tendões invisíveis à sua vontade.

Homens agora erguiam o rei, e, dispondo capas sobre lanças, improvisaram umamaca para levá-lo até a Cidade; outros levantaram Éowyn devagar e a levaram atrás dele.Mas não puderam remover do campo, na mesma hora, os homens da casa do rei; sete doscavaleiros do rei haviam caído ali e entre eles estava Déorwine, seu chefe. Entãosepararam-nos dos corpos de seus inimigos e da carcaça do animal cruel e fincaram lançasem torno deles. Depois, quando tudo estava terminado, voltaram e fizeram ali umafogueira, que queimou a carcaça do animal; mas para Snawmana cavaram um túmulo esobre ele colocaram uma pedra, na qual foi gravado nas línguas de Gondor e da Terra dosCavaleiros:

Servo fiel, mas de seu senhor algoz, filho de Pesperto, Snawmana veloz.

A relva cresceu alta e verde sobre o Túmulo de Snawmana, mas o chão onde acriatura foi queimada sempre permaneceu negro e árido.

Agora, devagar e triste, Merry caminhava ao lado dos homens que levavam osmortos, sem dar mais atenção à batalha. Estava cansado e cheio de sofrimento, e suaspernas tremiam como se ele estivesse com calafrios. Uma grande chuva chegou do Mar, e

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parecia que todos os seres choravam por Théoden e Éowyn, extinguindo as fogueiras daCidade com lágrimas cinzentas. Foi através de uma névoa que de repente o hobbit viu avanguarda dos homens de Gondor se aproximando. Imrahíl, Príncipe de Doí Amroth,dirigiu-se até eles e conteve seu cavalo.

- Que fardo carregam, Homens de Rohan? - gritou ele.- O Rei Théoden - responderam eles. - Está morto. Mas agora o Rei Éomer cavalga

para a batalha: aquele com a crista branca ao vento.Então o príncipe desceu do cavalo e se ajoelhou ao lado da maca, prestando

homenagem ao rei e ao seu grande ataque; e chorou. Levantando-se, olhou então paraÉowyn e ficou surpreso.

- Temos aqui uma mulher, com certeza? - disse ele. - Será que até mesmo asmulheres dos rohirrim vieram para a guerra em nosso auxilio?

- Não! Apenas uma - responderam eles. - Esta é a Senhora Éowyn, irmã de Éomere não sabíamos nada sobre sua vinda até esta hora, o que lamentamos muito.

Então o príncipe, vendo a beleza dela, embora o rosto estivesse pálido e frio,tocou-lhe a mão no momento em que se debruçou para olhar mais de perto.

- Homens de Rohan! - gritou ele. - Não há médicos entre vocês? Ela está ferida,talvez mortalmente, mas acho que ainda vive. - Aproximou o metal polido que protegiaseu braço dos lábios frios dela e, para a surpresa de todos, uma pequena névoa se formounele, quase invisível.

- Agora precisamos de pressa! - disse ele, enviando um homem de volta à Cidadepara buscar ajuda. Mas ele, curvando-se diante dos mortos, disse-lhes adeus, e montandode novo cavalgou para a batalha.

A fúria da luta aumentava agora nos campos do Pelennor; e o ruído doentrechoque das armas subia aos céus, acompanhado pelos gritos dos homens e pelorelinchar dos cavalos. Soavam cornetas e trombetas zurravam, e os múmakil urravam aoserem fustigados para a guerra. Sob as muralhas ao sul da Cidade, os homens de Gondorsem montarias agora atacavam as legiões de Morgul que ainda estavam ali reunidas,resistindo. Mas os cavaleiros se dirigiram para o leste, em auxílio de Éomer: Húrin, oAlto, Guardião das Chaves, e o Senhor de Lossarnach; Hirluin das Colinas Verdes; oPríncipe Imrahil, o Belo, com seus cavaleiros em toda a sua volta.

O auxilio aos rohirrim não chegou demasiado cedo; a sorte se voltara contraÉomer, e sua fúria o traíra. A grande ira de seu ataque tinha derrotado inteiramente adianteira do inimigo, e as grandes cunhas de seus Cavaleiros haviam penetrado fundo nasfileiras dos sulistas, derrubando seus cavaleiros e vitimando os que iam a pé. Mas, ondequer que surgissem os múmakil, por ali os cavalos não passavam, recuando e desviando;os grandes monstros continuavam invictos, e erguiam-se como torres de defesa; osharadrim se agrupavam em volta deles. Se os rohirrim, no inicio de seu ataque,totalizaram um número três vezes menor que os haradrim sozinhos, logo as coisaspioraram para eles, pois uma nova força despejava-se agora nos campos, vinda deOsgiliath. Haviam sido reunidos lá, para saquear a cidade e violar Gondor, aguardando ochamado de seu Capitão. Ele agora estava destruido, as Gothmog, o tenente de Morgul, osenviara para a luta: orientais com machados, e variags de Khand; sulistas de vermelho e,provenientes do Extremo Harad, homens negros semelhantes a semi-trolls , com olhosbrancos e línguas vermelhas. Alguns ainda corriam na retaguarda dos rohirrim, outros semantinham no oeste, para afastar as forças de Gondor e evitar que elas se juntassem às deRohan.

Foi exatamente quando o dia começava a se voltar contra Gondor, e sua esperançavacilava, que um novo grito subiu na Cidade, no meio da manhã, com um vento forte

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soprando, a chuva se dirigindo para o norte e o sol brilhando Naquele ar claro os vigiasdas muralhas divisaram ao longe uma nova visão de terror, e perderam as últimasesperanças. Pois o Anduin, a partir da curva do Harlond, corria de maneira que da Cidadeos homens conseguiam avistar sua extensão por algumas léguas, e os que enxergavammelhor podiam ver qualquer navio que se aproximasse. Olhando naquela direção,gritavam desesperados; negra contra a água reluzente eles divisaram uma frota trazidapelo vento: dromundas e navios de grande calado com muitos remos, com velas negrasenfunadas ao vento.

- Os Corsários de Umbar! - gritavam os homens. - Os Corsários de Umbar! Olhem!Os Corsários de Umbar estão chegando. Então Belfalas foi tomada, e também Ethir eLebennin. Os Corsários estão nos atacando! É o último golpe do destino!

E alguns, num movimento desordenado, pois não se achava ninguém paracomandá-los na Cidade, tocaram os sinos e soaram o alarme; outros tocaram as cornetassinalizando a retirada.

- De volta para as muralhas! - gritavam eles. – De volta para as muralhas! Voltempara a Cidade antes que todos sejam esmagados! - Mas o vento que impelia os navioscarregou para longe todo o seu clamor.

Na verdade, os rohirrim não precisaram de avisos ou alarme.Podiam ver muito bem por si mesmos os navios negros. Pois agora Éomer estava a

menos de uma milha do Harlond, e uma grande tropa de seus primeiros inimigos sepostava entre ele e o porto, enquanto novos inimigos vinham avançando num turbilhãopela retaguarda, isolando-o do Príncipe. Agora Éomer olhava para o Rio, e a esperançamorreu em seu coração, e chamava de maldito o vento que antes abençoara.

Os exércitos de Mordor, por sua vez, sentiam-se encorajados, e cheios de umanova gana e fúria avançaram gritando para o ataque. Éomer agora recuperara aausteridade e pensava com clareza.

Mandou tocar as cornetas para reunir sob a sua bandeira todos os homens quepudessem chegar até ali; planejava fazer uma grande parede de escudos no final, e resistir,lutando no chão até que todos caíssem, realizando feitos dignos de canções nos camposdo Pelennor, mesmo que não sobrasse nenhum homem no oeste para relembrar o últimoRei da Terra dos Cavaleiros. Cavalgou então até um montículo verde e ali fincou suabandeira, e o Cavalo Branco corria, ondulando ao vento.

Trocando a dúvida, trocando o dúbio pelo dia raiando,Vim cantando ao sol, espada a brandirCheguei ao fim da esperança, o coração partido:Agora é por raiva, agora é por ruína e um crepúsculo de fogo!

Pronunciou esses versos, porém riu enquanto os dizia. Pois mais uma vez o desejoda batalha corria em suas veias, e ele ainda estava ileso, e era jovem, e era rei: senhor deum povo cruel. E eis que, exatamente no momento em que ria do desespero, olhou denovo para os navios negros, e brandiu a espada desafiando-os.

Então foi tomado de surpresa, e de uma grande alegria; jogou a espada para os aresà luz do sol e exultou ao apanhá-la de novo. Todos os olhos seguiram seu olhar e, desúbito, no navio que vinha à frente, uma grande bandeira se desenrolou, e o vento a exibiuno momento em que o navio virava na direção do Harlond. Ali florescia uma ArvoreBranca, representando Gondor; mas havia Sete Estrelas ao redor dela, e em cima uma altacorôa, os símbolos de Elendil, que nenhum senhor portara por anos incontáveis. E asestrelas flamejavam à luz do sol, pois foram feitas com pedras preciosas por Arwen, filha

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de Elrond; a corôa luzia na manhã, pois era feita de mithril e ouro.Assim chegou Aragorn, filho de Arathorn, Elessar, herdeiro de Isildur, vindo das

Sendas dos Mortos, trazido pelo vento que vinha do Mar até o reino de Gondor, e aalegria dos rohirrim foi uma torrente de riso e um clarão de espadas, e o contentamento ea surpresa da Cidade foi uma música de trombeta e um badalar de sinos. Mas os exércitosde Mordor ficaram atônitos, e lhes parecia um grande feitiço que seus próprios naviosestivessem cheios de seus inimigos; foram tomados de um terror negro, percebendo que amaré do destino se voltava contra eles, e seu fim estava próximo.

Os cavaleiros de Doí Amroth cavalgaram para o leste, empurrando o inimigo à suafrente: homens-trolls e variags e orcs que odiavam a luz do sol. Éomer avançou para osul e os homens fugiram diante dele, ficando presos entre o martelo e a bigorna. Poisagora homens saltavam dos navios para os desembarcadouros do Harlond e avançavampara o norte como uma tempestade. Lá vinham Legolas e Gimli, brandindo seu machado;Halbarad com a bandeira; e Elladan e Elrohir com estrelas na fronte, junto com osdúnedain de mãos inclementes. Guardiões do norte, conduzindo uma grande tropa dovaloroso povo de Lebennin e Lamedon e dos feudos do sul. Mas à frente de todos vinhaAragorn, com a Chama do Oeste, Andúril, como um novo fogo aceso, Narsil reforjada,letal como antigamente, e em sua testa brilhava a Estrela de Elendil.

Por fim então Aragom e Éomer encontraram-se em meio á batalha e debruçaram-sesobre suas espadas e olharam um para o outro e ficaram felizes.

- Assim nos encontramos de novo, embora todos os exércitos de Mordorestivessem entre nós - disse Aragorn. - Não foi o que eu disse, no Forte da Trombeta?

- Foi o que disse - falou Éomer -, mas a esperança muitas vezes engana, e eu nãosabia que você era um homem com capacidade de ler o futuro. Mas o auxílio que chegasem ser esperado é duplamente abençoado, e nunca um reencontro de amigos foi tãoalegre. - Apertaram as mãos.

- Na verdade, nem poderia ser mais oportuno - disse Éomer. - Sua chegada não foinada precoce, meu amigo. Muitas perdas e tristezas já nos aconteceram.

- Então vamos vingá-las, antes de falarmos nelas! – disse Aragorn, e os doisvoltaram juntos para a batalha.

Ainda tiveram uma luta dura e muito trabalho, pois os sulistas eram homensdestemidos e obstinados, e cruéis no desespero; os orientais eram fortes e endurecidospela guerra, e não pediam trégua. Dessa forma, aqui e acolá, perto de celeiros ou casasincendiadas, sobre monte ou barranco, sob muralhas ou nos campos, eles ainda sereuniam e se reagrupavam, lutando até o fim do dia. Então o sol finalmente se pôs atrásdo Mindolluin e encheu todo o céu com um grande incêndio, de modo que as montanhas eas colinas ficaram tingidas de sangue; o fogo reluzia no Rio, e a grama do Pelennor jaziarubra ao cair da noite. E naquela hora a grande Batalha do campo de Gondor terminava, enenhum inimigo vivo foi deixado dentro do circuito da Rammas. Todos foram mortos,exceto aqueles que fugiram para morrer, ou para se afogar na espuma vermelha do Rio.

Poucos conseguiram se dirigir para o leste, para Morgul ou Mordor, e à terra dosharadrim chegou apenas uma história de um lugar longínquo: um rumor da ira e do terrorde Gondor.

Aragorn, Éomer e Imrahil cavalgaram de volta na direção do Portão da Cidade;não sentiam alegria nem tristeza, apenas cansaço. Esses três estavam ilesos, tão grandeseram sua sorte e habilidade e o poder de seus braços; na realidade, na hora de sua ira,poucos tiveram a ousadia de resistir a eles ou encará-los. Mas muitos outros estavamferidos, mutilados ou mortos sobre o campo. Forlong fora atingido pelos machados

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enquanto lutava, sozinho e sem cavalo; Duilin de Morthond e seu irmão foram pisoteadosaté a morte quando atacavam os múmakil, trazendo seus arqueiros para mais perto, a fimde que atirassem nos olhos dos monstros. Nem

Hirluin, o Belo, voltaria para Pinnath Gelin, nem Grimbold para Grimslade;também não retornaria para as Terras do Norte Halbarad, guardião de mãos inclementes.

Não poucos haviam perecido, renomados ou desconhecidos, capitães ou soldados;pois foi uma grande batalha e nenhuma história contou um relato completo dela. Assim,depois de muito tempo, um poeta de Rohan disse em sua canção sobre os Túmulos deMundburg:

Notamos das trompas o eco nas colinas, o esplendor das espadas no Reino do Sul.Corcéis galopavam para PetroterraLá caiu Théoden, poderoso Thengling, ao dourado palácio e verdes pastagens nos campos do norte sem jamais retornar; senhor de seu exército.Harding e Guthláf Dúnhere e Déorwine, o valente Grimbold,Herefara e Herubrand, Horn e Fastred, lutaram e tombaram em terra tão distante: em tumbas de Mundburgjazem sob o chão com colegas coligados, os senhores de Gondor.Nem Hirluin, o Belo, às colinas junto ao mar; nem Forlong, o Velho, aos seus vales em flor jamais para Arnach, sua terra natal, retornaram em triunfo; nem os altos arqueiros, Derufin e Duilin, ás suas águas escuras, lagos de Morthond sob a sombra das montanhas.A morte de manhã e no final do dia levou nobres e pobres.Há muito agora dormem sob a grama de Gondor junto ao Grande Rio.Águas como lágrimas, rebrilhando cor de prata ou vermelhas borbulhavam roncando em tumulto: espuma tinta de sangue em chama ao pôr-do-sol; quais faróis as montanhas queimavam noite adentro; o orvalho era vermelho em Rammas Echor

CAPÍTULO VIIA PIRA DE DENETHOR

No momento em que a sombra escura se afastou do Portão, Gandalf ainda estavasentado sobre o cavalo, imóvel. Mas Pippin levantou-se, como se tivesse se livrado de umgrande peso; parou para escutar as cornetas, e teve a impressão de que seu coraçãoexplodiria de felicidade. E nunca mais, nos anos que se seguiram, pôde ele ouvir o soar de

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uma corneta á distância sem que seus olhos se enchessem de lágrimas. Mas de repentelembrou de sua missão e correu à frente. Naquela hora Gandalf se mexeu, disse algumacoisa a Scadufax e já ia saindo pelo Portão.

- Gandalf, Gandalf! - gritou Pippin, e Scadufax parou.- O que está fazendo aqui? - disse Gandalf. - Não mandam as leis da Cidade que

aqueles vestidos de negro e prata fiquem na Cidadela, a não ser que seu senhor lhespermita que se ausentem?

- Ele me deu permissão - disse Pippin. - Mandou-me embora. Mas fiquei commedo. Algo terrível pode acontecer lá em cima. O Senhor está fora de si, eu acho.

Receio que vá se matar, e matar Faramir também. Você não pode fazer algumacoisa?

Gandalf olhou através do Portão escancarado, e ouviu nos campos o som dabatalha que já se formava. Crispou as mãos.

- Preciso ir – disse ele. - O Cavaleiro Negro está à solta, e logo trará a destruição.Não tenho tempo.

- Mas Faramir! - gritou Pippin. Ele não está morto, e vão queima-lo vivo, seninguém os impedir.

- Queimá-lo vivo? - disse Gandalf. - Que história é essa? Seja rápido!- Denethor foi para as Tumbas - disse Pippin -, levou Faramir, e diz que todos

vamos morrer queimados, que ele não vai esperar, e que seus homens devem fazer umapira e sobre ela queimá-lo, junto com Faramir. E mandou homens buscarem lenha e óleo.Eu contei isso a Beregond, mas o que pode ele fazer, de qualquer forma? Assim Pippindespejou sua história, esticando os braços para o alto e tocando o joelho de Gandalf commãos trêmulas. - Você não pode salvar Faramir?

- Talvez eu possa - disse Gandalf. - Mas, se fizer isso, outros morrerão, receio eu.Bem, devo ir até ele, uma vez que ninguém mais poderá ajudá-lo. Mas disso resultarãocoisas ruins e tristes. No próprio coração de nossa fortaleza o Inimigo tem forças para nosatacar: pois é a sua vontade que está em ação.

Tomada a decisão, ele agiu com rapidez, e, apanhando Pippin, colocou-o à suafrente no cavalo; a uma palavra sua, Scadufax se virou. Os cascos foram batendo contra ochão íngreme das ruas de Minas Tirith, enquanto o barulho da guerra crescia atrás deles.Em todos os cantos havia homens recuperando-se do desespero e do terror, pegando suasarmas e gritando: "Rohan chegou!" Capitães gritavam, companhias se agrupavam; muitosjá marchavam na direção do Portão. Encontraram o Príncipe Imrahil, e ele os interpelou:

- Para onde agora, Mithrandir? Os rohirrim estão lutando nos campos de Gondor!Precisamos reunir toda a força que pudermos encontrar.

- Você vai precisar de todos os homens e mais ainda - disse Gandalf - apresse-seao máximo. Irei quando puder. Mas tenho uma missão para o Senhor Denethor que nãopode esperar. Assuma o comando na ausência do Senhor!

Passaram adiante e, ao subirem e se aproximarem da Cidadela, sentiram o vento norosto, e avistaram na distância o reluzir da manhã, uma luz crescendo no céu do sul. Masisso lhes trouxe pouca esperança, pois não sabiam que mal os aguardava, e temiam chegartarde demais.

- A escuridão está passando - disse Gandalf-, mas ainda paira pesada sobre estaCidade.

No portão da Cidadela não encontraram nenhum guarda. – Então Beregond foipara lá - disse Pippin mais esperançoso. Viraram-se e foram depressa ao longo da estradaque conduzia à Porta Fechada. Esta estava totalmente aberta, e o porteiro jazia diantedela. Estava morto e a chave lhe fora tomada.

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- Trabalho do Inimigo! - disse Gandalf. - Ele gosta dessas coisas: amigoguerreando contra amigo; lealdade dividida na confusão dos corações. - Desmontou eordenou que Scadufax voltasse ao estábulo. Pois, meu amigo - disse ele -, você e eudeveríamos ter cavalgado para os campos há muito tempo, mas outros assuntos me detém.Contudo, venha depressa se eu chamar! Entraram pela Porta e desceram a rua íngreme esinuosa. A luz crescia; e as altas colunas e as figuras esculpidas ao longo do caminhopassavam lentamente como fantasmas cinzentos.

De repente o silêncio foi quebrado, e eles ouviram lá embaixo gritos e o tinir deespadas: tais sons não se ouviam nos lugares sagrados desde a construção da Cidade. Porfim chegaram à Rath Dínen e correram para a Casa dos Regentes, que assomava na meia-luz sob sua grande abóbada.

- Parem! Parem! - gritou Gandalf, saltando na direção da escada de pedra diante daporta. - Parem com esta loucura!

Pois lá estavam os servidores de Denethor empunhando espadas e tochas; massozinho, no vestíbulo, no degrau mais alto, estava Beregond, vestido no uniforme negro eprata da Guarda; segurando a porta e impedindo que eles entrassem. Dois já tinham caídosob os golpes de sua espada, manchando de sangue o recinto sagrado; os outros oamaldiçoavam, chamando-o de criminoso e traidor do seu mestre.

No momento em que Gandalf e Pippin avançaram, ouviram a voz de Denethorgritar de dentro da casa dos mortos:

- Depressa, depressa! Façam como ordenei! Matem esse renegado! Ou será que eumesmo terei de faze-lo? - Então a porta que Beregond mantinha fechada com a mãoesquerda foi escancarada, e atrás dela postava-se o Senhor da Cidade, alto e cruel, comuma luz de fogo nos olhos, empunhando uma espada.

Mas Gandalf, num salto, subiu os degraus, e os homens recuaram cobrindo osolhos, pois sua chegada foi como a luz branca que irrompe num lugar escuro, e eleavançou furioso. Levantou a mão e, no instante em que Denethor desferia o golpe, aespada voou pelos ares e caiu atrás dele, nas sombras da casa; o Regente recuou diante deGandalf, atônito.

- O que é isso, meu senhor? - disse o mago. - As casas dos mortos não são lugarpara os vivos. E por que há homens lutando aqui, no Recinto Sagrado, quando já existeguerra o suficiente diante do Portão? Ou será que nosso Inimigo conseguiu até mesmochegar à Rath Dínen?

- Desde quando o Senhor de Gondor te deve explicações? - disse Denethor. - Ouserá que não posso comandar meus servidores?

- Você pode - disse Gandalf - Mas outros podem contestar sua vontade, se ela sevoltar para a loucura e a maldade. Onde está Faramir, seu filho?

- Está deitado lá dentro - disse Denethor , queimando, já está queimando. Atearamfogo à sua carne. Mas em breve todos estarão queimando. O oeste fracassou. Tudo irápelos ares numa grande fogueira, e tudo estará terminado. Cinzas! Cinzas e fumaçacarregadas pelo vento!

Então Gandalf, percebendo a loucura que tomava conta do Regente, receou que elejá tivesse feito alguma maldade, e forçou a passagem, seguido por Beregond e Pippin,enquanto Denethor foi recuando para dentro, até ficar ao lado da mesa. Mas láencontraram Faramir, ainda delirando de febre, deitado sobre a mesa. Embaixo dela haviafeixes de lenha, que também se erguiam em pilhas altas por toda a volta, e tudo estavaencharcado de óleo, até mesmo as roupas e as cobertas de Faramir; mas ainda não seateara fogo ao combustível. Então Gandalf revelou a força que nele se ocultava, mesmoquando a luz de seu poder se escondia sob seu manto cinzento.

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Saltou por cima dos feixes, e erguendo o enfermo com delicadeza desceu de novo,levando-o na direção da porta. Mas nesse momento Faramir gemeu e chamou pelo pai, emmeio ao seu delírio.

Denethor fez um movimento brusco, como alguém que acorda de um transe; ofogo morreu em seus olhos, e ele chorou; depois disse:

- Não me tomem meu filho! Ele está me chamando.- Está sim - disse Gandalf-, mas você ainda não pode se aproximar dele. Pois ele

precisa buscar a cura já no limiar da morte, e talvez não a encontre. Enquanto isso vocêdeve sair para a batalha de sua Cidade, onde talvez a morte o aguarde. No fundo, vocêsabe disso.

- Ele não acordará de novo - disse Denethor. - A batalha é inútil. Por quedeveríamos desejar viver por mais tempo? Por que não deveríamos nos encaminhar para amorte lado a lado?

- A autoridade não lhe foi dada, Regente de Gondor, para ordenar a hora de suamorte - respondeu Gandalf - E apenas os reis bárbaros, sob o domínio do Poder Escuro,fizeram isso, matando-se por orgulho e desespero, assassinando seus parentes para aliviara própria morte. - Então, passando pela porta, levou Faramir da casa mortal e o deitou nacama em que fora trazido, que agora jazia no vestíbulo. Denethor o seguiu e parou,trêmulo, olhando com ansiedade para o rosto do filho.

E por um instante, enquanto todos estavam quietos e imóveis, assistindo ao Senhorem sua agonia, Denethor vacilou.

- Venha - disse Gandalf. - Há quem precise de nós. Ainda há muita coisa que vocêpode fazer.

Denethor então riu de repente. Erguia-se alto e garboso outra vez, e com passadasrápidas foi até a mesa e tirou dela o travesseiro no qual sua cabeça estivera deitada.Depois, dirigindo-se para a porta, retirou fora a fronha e eis que entre suas mãos estavaum palantír. Ergueu-o, e aqueles que olharam o globo tiveram a impressão de que elecomeçou a reluzir com uma chama interna, de tal modo que o rosto magro do Senhor seacendeu num fogo rubro, e parecia esculpido em pedra, bem definido com sombrasescuras, nobre, altivo e terrível. Seus olhos faiscaram.

- Orgulho e desespero! - gritou ele. -Tu pensaste que os olhos da Torre Brancaestavam cegos? Não, vi mais do que sabes, Tolo Cinzento. Pois tua esperança é apenasfruto da ignorância. Então vai e trabalha na cura! Avança e luta! Vaidade. Por poucotempo pode-se triunfar no campo, por um dia. Mas contra o Poder que agora se levantanão há vitória. Esta Cidade só foi atingida pelo dedo mínimo da mão dele. Todo o leste semobiliza. E neste momento o vento de tua esperança te ilude e traz pelo Anduin umaesquadra de navios negros. O oeste fracassou. Todos os que não quiserem ser escravosdevem agora partir.

- Tais conselhos realmente farão da vitória do Inimigo uma certeza - disse Gandalf. - Pois continua alimentando esperanças! - disse rindo Denethor. - Então não te

conheço, Mithrandir? Tua esperança é governar em meu lugar, ficar atrásde todos os tronos, do norte, do sul ou do oeste. Li tua mente e suas políticas.

Achas que não sei que tu ordenaste a este Pequeno que ficasse calado? Que tu o trouxesteaqui para ser um espião em meu próprio aposento? Apesar disso, em nossa conversa eusoube os nomes e os propósitos de todos os teus companheiros. Eu sei! Com a mãoesquerda tu me usarias por um tempo como um escudo contra Mordor, enquanto com amão direita trarias este Guardião do Norte para me suplantar.

- Mas eu te digo, Gandalf Mithrandir, não serei teu brinquedo! Sou um Regente daCasa de Anárion. Não vou me rebaixar para ser o camareiro caduco de um arrivista.

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Mesmo que a reivindicação dele se mostrasse autêntica, ainda assim ele apenas pertence álinhagem de Isildur. Não me curvaria diante desse sujeito, o último representante de umacasa destruída, há muito tempo desprovida de realeza e dignidade.

- Então, o que escolheria você - disse Gandalf-, se seu desejo pudesse serrealizado?

- Eu escolheria as coisas como elas sempre foram em todos os dias de minha vida -respondeu Denethor - e nos dias de meus antepassados que me precederam: ser o Senhordesta Cidade em paz, e deixar meu lugar para um filho depois de mim, um filho que fossedono da própria vontade, e não o pupilo de um mago. Mas, se o destino me nega isso,então não quero nada: nem a vida diminuída, nem o amor pela metade, nem a honraabalada.

- A mim não pareceria que um Regente que com fidelidade entrega seu cargo ficadiminuído em amor ou em honra - disse Gandalf. - E pelo menos você não privaria seufilho do poder de escolha, enquanto ainda há dúvidas sobre sua morte.

Àquelas palavras, os olhos de Denethor se inflamaram de novo e, levando a pedradebaixo do braço, ele sacou uma faca e deu largas passadas na direção da cama. MasBeregond saltou à frente e se interpôs entre o Regente e Faramir.

- Então! - gritou Denethor. - Tu já roubaste metade do amor de meu filho. Agoraroubas também os corações de meus cavaleiros, de modo que por fim eles me roubaminteiramente o meu filho. Mas pelo menos nisto tu não desafiarás minha vontade: nãodecidirás sobre o meu próprio fim.

- Venham até aqui! - gritou ele para os servidores. - Venham, se não forem todoscovardes! - Então dois deles subiram correndo os degraus na direção do Senhor.

Denethor rapidamente apanhou uma tocha da mão de um deles e voltou correndopara o interior da casa. Antes que Gandalf pudesse impedi-lo, jogou a tocha em meio álenha, que imediatamente crepitou e rugiu em chamas.

Então Denethor saltou para cima da mesa, e parando ali, envolvido em fogo efumaça, pegou o cajado de sua regência que estava aos seus pés e quebrou-o contra ojoelho. Jogando os pedaços nas chamas, curvou-se e se deitou na mesa, agarrando aopeito com as duas mãos o palantír. E conta-se que, depois desse momento, qualquer umque olhasse dentro da Pedra, a não ser que tivesse uma grande força capaz de dirigir aprópria vontade para um outro propósito, veria apenas duas mãos idosas crispando-se nofogo. Gandalf , desolado e aterrorizado, virou o rosto e fechou a porta. Por um tempoficou parado no limiar, pensando, sem dizer nada, enquanto os que tinham ficado do ladode fora ouviam o rugido do fogo lá dentro. Então Denethor deu um enorme grito, e depoisnão falou mais nada, nem foi visto de novo por nenhum mortal.

-Assim se vai Denethor, filho de Ecthelion - disse Gandalf. Então voltou-se paraBeregond e os servidores do Senhor, que se mantinham imóveis e horrorizados.

- E assim se vão também os dias da Gondor que vocês conheceram; para o bem oupara o mal, eles estão terminados. Atos de maldade foram feitos aqui, mas agora deixemque toda a inimizade que existe entre vocês seja afastada, pois tudo isso foi tramado peloInimigo e põe em funcionamento a sua vontade. Vocês foram capturados numa teia deordens antagônicas, teia esta que não foi tecida por vocês. Mas pensem, servidores doSenhor, cegos em sua obediência, que, se não fosse pela traição de Beregond, Faramir,Capitão da Torre Branca, também teria queimado até a morte.

- Levem deste lugar infeliz seus companheiros caídos. E nós levaremos Faramir,Regente de Gondor, a um lugar onde ele possa dormir em paz, ou morrer, se este for o seudestino.

Então Gandalf e Beregond, erguendo a cama, levaram-na para as Casas de Cura,

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enquanto Pippin ia atrás deles, de cabeça baixa. Mas os servidores do senhor continuavamimóveis, olhando aterrorizados para a casa dos mortos, e no momento em que Gandalfatingia o fim da Rath Dinen ouviu-se um enorme estrondo. Olhando para trás, eles virama abóbada da casa se partindo e fumaça saindo pelas brechas; então, com umaprecipitação e um estrondo de pedras, a abóbada ruiu numa rajada de fogo; mesmo assim,persistentes, as chamas dançavam e faiscavam em meio aos escombros. Os servidores,amedrontados, correram e seguiram Gandalf.

Depois de algum tempo chegaram de volta á Porta do Regente, e Beregond olhoucom tristeza para o porteiro.

- Este feito eu sempre lamentarei - disse ele -; mas eu estava tomado de uma pressaalucinada, e ele não quis ouvir, sacando a espada contra mim. - Então, pegando a chaveque tomara do homem morto, fechou a porta, trancando-a. - Deve ser entregue agora aoSenhor Faramir – disse ele.

- O Príncipe de Doí Amroth está no comando, na ausência do Senhor - disseGandalf -; mas, já que ele não está aqui, devo me responsabilizar por ela. Peço-lhe queguarde a chave num lugar seguro, até que a Cidade esteja em ordem outra vez.

Agora finalmente entravam nos altos círculos da Cidade, e na luz matinal foramfazendo seu caminho na direção das Casas de Cura, eram casas belas, destinadas aotratamento daqueles que estavam seriamente enfermos, mas agora estavam preparadaspara o tratamento de homens feridos na batalha ou agonizantes.

Não ficavam longe da Cidadela, no sexto círculo, próximas à muralha sul, e aoredor delas havia um jardim e um gramado com árvores; era o único estabelecimento dogênero na Cidade.

Ali moravam as poucas mulheres ás quais fora permitido permanecer emMinas Tirith, uma vez que eram habilidosas na cura ou no auxilio aos curadores.Mas, no momento em que Gandalf e seus companheiros chegaram carregando a

cama á porta principal das Casas, ouviram um grande grito subindo do campo diante doPortão, que foi ficando agudo e passou trespassando o céu, extinguindo-se no vento. Foium grito tão terrível que por um momento todos ficaram paralisados; mas, quando passou,de repente todos os corações se enlevaram numa esperança que não sentiam desde que aescuridão viera do leste, e tiveram a impressão de que a luz ficava mais clara e que o solaparecia por entre as nuvens.

Mas o rosto de Gandalf estava grave e triste e, ordenando a Beregond e Pippin quelevassem Faramir para as Casas de Cura, ele subiu nas muralhas e ali, como uma figuraesculpida em branco, sob a luz do sol novo, olhou para fora. E com a visão que lhe foradada viu tudo o que ocorrera; quando Éomer se afastou da dianteira de sua tropa e parouao lado daqueles que haviam caido no campo, suspirou e, cobrindo-se com a capa,abandonou as muralhas. Quando saíram, Beregond e Pippin encontraram-no parado,pensativo, diante da porta das Casas.

Olharam para ele, que por um tempo ficou em silêncio. Por fim falou.- Meus amigos - disse ele -, e todos vocês, povo desta cidade e das terras do oeste!

Acontecimentos muito tristes e importantes se passaram. Devemos chorar ou nos alegrar?Além de qualquer esperança, o Capitão de nossos inimigos foi destruido, e vocês ouviramo eco de seu último desespero. Mas ele não partiu sem antes deixar muito sofrimento eperdas amargas. E isso eu poderia ter evitado, não fosse pela loucura de Denethor. Tãopoderoso foi o alcance de nosso Inimigo! É triste, mas agora percebo como sua vontadeconseguiu penetrar o próprio coração da

Cidade.- Embora os Regentes considerassem que esse segredo era sabido apenas por eles

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próprios, há muito tempo desconfiei de que aqui, na Torre Branca, pelo menos uma dasSete Pedras Videntes era preservada. Em seus dias de sabedoria, Denethor não pretendiausá-la, nem desafiar Sauron, sabendo os limites da própria força. Mas sua sabedoriafracassou, e receio que no momento em que o perigo de seu reino cresceu ele tenhaolhado dentro da Pedra, sendo ludibriado: muitas vezes, suponho eu, desde que Boromirpartiu. Ele era grande demais para se submeter à vontade do Poder do Escuro, mas ele sóvia as coisas que o Poder lhe permitia ver. O conhecimento que obteve, sem dúvida,muitas vezes lhe foi útil; apesar disso, a visão do grande poder de Mordor que lhe foirevelada alimentou o desespero de seu coração até subjugar sua mente.

- Agora entendo o que me parecia tão estranho! – disse Pippin, estremecendo aofalar de suas recordações. - O Senhor saiu da sala onde Faramir estava, e foi só quandoretornou que percebi pela primeira vez que ele estava alterado, envelhecido e destruido.

- Foi exatamente na hora em que Faramir foi trazido para a Torre que muitos denós vimos uma estranha luz no cômodo mais alto – disse Beregond. - Mas já vimos a luzantes, e corriam havia muito tempo rumores na Cidade de que o Senhor ás vezes lutavaem pensamento contra seu Inimigo.

- Então infelizmente minhas suposições estavam corretas – disse Gandalf. - Foidessa forma que a vontade de Sauron penetrou em Minas Tirith; e dessa forma eu medemorei aqui. E aqui ainda serei forçado a permanecer, pois logo terei outros encargos,além de Faramir.

- Agora preciso descer ao encontro daqueles que chegam. Vi uma cena no campoque me dói muito no coração, e uma tristeza maior ainda pode sobrevir. Venha comigo,Pippin! Mas você, Beregond, deve retornar à Cidadela e contar ao chefe da Guarda de lá oque aconteceu. Receio que será dever dele expulsá-lo da Guarda; mas diga a ele que, seeu puder dar a minha opinião, você deveria ser enviado para as Casas de Cura, para ser oguarda e o servidor de seu capitão, e estar por perto quando ele despertar - se isso vier aacontecer de novo. Pois foi você quem o salvou do fogo. Vá agora! Eu voltarei logo.

Dizendo isso ele se virou e desceu com Pippin na direção da cidade baixa. E, nomomento em que se apressavam no caminho, o vento trouxe uma chuva cinzenta, e todasas fogueiras se apagaram, e uma grande fumaça subiu diante deles.

CAPÍTULO VIII AS CASAS DE CURA

Uma névoa de lágrimas e cansaço cobria os olhos de Merry quando eles seaproximaram das ruínas do Portão de Minas Tirith. Pouca atenção dava ele aos escombrose sinais do massacre que se espalhavam por toda a volta. Havia fogo, fumaça e um cheiroforte no ar; muitas máquinas haviam sido incendiadas ou jogadas nas trincheiras de fogo,como também muitos dos mortos, ao passo que aqui e ali jaziam muitas carcaças dosgrandes monstros dos sulistas, semicarbonizados ou destruídos por pedras arremessadas,ou ainda alvejados no meio dos olhos pelas flechas dos valorosos arqueiros de Morthond.A rajada de chuva cessara por um tempo e o sol reluzia alto no céu, mas toda a cidademais baixa ainda estava envolta num vapor fétido.

Homens já trabalhavam abrindo um caminho através dos destroços da batalha;agora, do Portão, chegavam algumas macas. Com toda a delicadeza, deitaram Éowyn

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sobre travesseiros macios; mas cobriram o corpo do rei com um grande tecido dourado, eo acompanharam carregando tochas, cujas chamas, pálidas à luz do sol, tremulavam aovento.

Foi assim que Théoden e Éowyn chegaram á Cidade de Gondor, e todos que osviam descobriam as cabeças e faziam reverência; os dois passaram através das cinzas e dafumaça do circulo queimado, e continuaram subindo ao longo das ruas de pedra. Merryteve a impressão de que a subida durou uma eternidade, uma viagem sem sentido numsonho odioso, que avançava sempre e sempre para algum fim obscuro que a memória nãopode reter.

Lentamente as luzes das tochas á sua frente bruxulearam e se extinguiram, e Merrycaminhava numa escuridão, ao pensar: "Isto é um túnel que conduz a um túmulo; lápermaneceremos para sempre." Mas de súbito, em seu devaneio, surgiu uma voz viva.

- Merry! Ainda bem que o encontrei!Ergueu os olhos, e a névoa em seus olhos se dissipou um pouco. Lá estava Pippin!

Estavam cara a cara numa passagem estreita que, a não ser pelos dois, estava vazia. Merryesfregou os olhos.

- Onde está o rei? - disse ele. - E Éowyn? – Então tropeçou e caiu sentado nasoleira de uma porta, rompendo outra vez em pranto.

- Eles subiram para a Cidadela - disse Pippin. - Acho que você adormeceu andandoe pegou o caminho errado. Quando descobrimos que você não estava com eles, Gandalfme mandou procurá-lo. Pobre Merry! Como me alegro em vê-lo outra vez! Mas você estáexausto, e não vou incomodá-lo com conversas. Mas, diga-me, está ferido ou machucado?

- Não - disse Merry. - Bem, pelo menos acho que não. Mas não consigo mexer obraço direito, Pippin, desde quando o golpeei. E minha espada se consumiu em chamas,como um pedaço de madeira. O rosto de Pippin estava aflito. - Bem, é melhor vir comigoo mais depressa possível - disse ele. - Gostaria de poder carregá-lo. Você não está emcondições de continuar andando. De forma alguma deveriam ter permitido que vocêandasse, mas deve perdoá-los. Coisas tão terríveis aconteceram na Cidade, Merry, queum pobre hobbit retornando da batalha pode facilmente passar despercebido.

Nem sempre é uma infelicidade passar despercebido - disse Merry. - Foi o queaconteceu comigo agora há pouco, quando não fui visto pelo.. não, não, não consigo falardisso. Ajude-me, Pippin! Está ficando tudo escuro outra vez, e meu braço está tão frio.

-Apóie-se em mim, Merry, meu rapaz! - disse Pippin. -Vamos agora. passo apasso. Não é longe. Você vai me sepultar? - disse Merry.

- Claro que não! - disse Pippin, tentando parecer alegre, embora tivesse o coraçãoangustiado pelo medo e pela pena. - Não, você vai para as Casas de Cura.

Saíram do caminho que avançava por entre casas altas e a muralha externa doquarto circulo, retomando a rua principal que subia para a Cidadela. Avançaram passo apasso, enquanto Merry cambaleava e murmurava como alguém que está dormindo.

"Nunca conseguirei levá-lo até lá", pensou Pippin. "Não há ninguém que possa meajudar? Não posso deixá-lo aqui." Bem nesse momento, para a surpresa do hobbit, ummenino chegou correndo às suas costas, e no instante em que passou Pippin reconheceuBergil, o filho de Beregond.

- Olá - Bergil! - chamou ele. - Aonde está indo? Fico feliz em revê-lo, e aindavivo!

- Estou a serviço dos Curadores - disse Bergil. – Não posso ficar.- Não estou pedindo isso! - disse Pippin. - Mas diga-lhes lá em cima que trago

comigo um hobbit doente, um perian, veja bem, que chega do campo de batalha. Achoque ele não aguenta chegar até lá andando. Se Mithrandir estiver lá, ficará feliz em

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receber a mensagem. - Bergil saiu correndo."É melhor esperar aqui", pensou Pippin. Então colocou Merry suavemente na

calçada, num trecho ensolarado, sentando-se ao lado e deitando no colo a cabeça doamigo. Apalpou seu corpo e suas pernas com delicadeza, e segurou-lhe as mãos entre assuas. A direita estava fria como gelo.

Não demorou muito para que Gandalf em pessoa viesse ao encontro deles.Abaixou-se sobre Merry e acariciou-lhe a fronte; então ergueu-o cuidadosamente. - Eledeveria ter sido carregado com todas as honras para esta cidade - disse ele - Sem dúvidacorrespondeu à minha confiança; se Elrond não tivesse cedido à minha solicitação,nenhum de vocês dois teria partido; então os males deste dia teriam sido muito maislamentáveis. - O mago suspirou.

- Apesar disso, tenho um outro encargo em minhas mãos, e durante todo essetempo a batalha permanece indecisa.

Finalmente Faramir, Éowyn e Meriadoc foram colocados em leitos nas Casas deCura e lá foram bem cuidados. Pois, embora naqueles últimos tempos todo oconhecimento tivesse decaído em relação aos Dias Antigos, a arte de cura de Gondorainda era competente, habilidosa nos cuidados com os feridos, e no trato de todas asdoenças que pudessem acometer os homens mortais a leste do Mar. Exceto a idadeavançada. Para isso não haviam encontrado cura; de fato a longevidade daquele povodiminuíra, ficando pouco maior que a dos outros homens; eram poucos os queultrapassavam com vigor a conta de cinco vintenas de anos, a não ser nas casas de sanguemais puro. Mas agora sua arte e seu conhecimento se quedavam perplexos, pois haviamuitos doentes de uma enfermidade que não podia ser curada; chamavam-na de SombraNegra, pois vinha dos nazgúl. Aqueles acometidos por ela caiam lentamente num sonhocada vez mais profundo, entrando então no silêncio e numa frieza mortal, e assimmorriam.

Parecia aos que cuidavam dos feridos que essa enfermidade se manifestara demaneira grave no Pequeno e na Senhora de Rohan. Ainda algumas vezes, no final damanhã, eles chegaram a falar alguma coisa, murmurando em seus sonhos; os quecuidavam deles escutavam tudo o que diziam, na esperança de talvez aprender algumacoisa que lhes possibilitasse entender-lhes os ferimentos. Mas logo começaram a cair naescuridão, e quando o sol se aproximava do oeste uma sombra cinzenta cobriu os rostosdos doentes. Mas Faramir queimava numa febre que não cedia.

Gandalf ia de um leito para o outro cheio de preocupação, e os atendentes lhecontavam tudo o que tinham conseguido escutar. Assim passou-se o dia, enquanto agrande batalha continuava lá fora em meio a esperanças inconstantes e estranhas noticias;e Gandalf ainda esperava e vigiava, sem sair de perto; finalmente um ocaso rubro cobriutodo o céu, e a luz que vinha das janelas bateu nos rostos cinzentos dos enfermos. Entãoos que estavam por perto tiveram a impressão de que naquela luz um rubor espalhou-senos rostos, como se a saúde estivesse retornando, mas aquilo era apenas um arremedo deesperança. Então uma senhora idosa, Ioreth, a mais velha das mulheres que trabalhavamnaquela casa, olhando no belo rosto de Faramir, chorou, pois todo o povo o amava. E eladisse:

- Ai de nós se ele morrer! Ah, se houvesse reis em Gondor, como contam quehavia outrora! Pois diz a sabedoria que as mãos dos reis são sempre as mãos de umcurador. Dessa maneira sempre se sabia quem era o verdadeiro rei.

E Gandalf, que estava ao lado, disse:- Talvez os homens se recordem de suas palavras por muito tempo, Ioreth! Pois

nelas há esperança. Talvez um rei realmente tenha retornado a Gondor; ou será que você

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não ouviu as estranhas noticias que chegaram à Cidade?- Tenho estado por demais ocupada com uma coisa e outra para dar atenção a todos

os gritos e clamores - respondeu ela. - Tudo o que espero é que esses demônios assassinosnão venham até esta Casa perturbar os enfermos.

Então Gandalf saiu apressado, e o fogo no céu já estava se extinguindo, e ascolinas em brasa se apagavam, enquanto uma noite de cinzas cobria os campos.

Agora que o sol se punha, Aragorn, Éomer e Imrahil se aproximavam da Cidadecom seus capitães e cavaleiros; quando chegaram diante do Portão, Aragorn disse:

- Vejam o sol que se põe num grande fogo! Isto é o sinal do fim e da queda demuitas coisas, e de uma mudança nas marés do mundo. Mas esta Cidade e este reinopermaneceram por muitos longos anos nas mãos dos Regentes, e receio que, entrando semser convidado, eu desperte dúvidas e controvérsias, que não deveriam surgir enquantodurar a guerra. Não entrarei, nem farei qualquer reivindicação, até que se saiba quem seráo vencedor, nós ou Mordor. Os homens devem montar minhas tendas no campo, e aquiaguardarei as boas-vindas do Senhor da Cidade.

Mas Éomer disse:- Você já ergueu a bandeira dos Reis e exibiu os símbolos da casa de Elendil. Vai

permitir que sejam contestados"?- Não - disse Aragorn. - Mas acho que ainda é cedo, e não desejo disputas, a não

ser com nosso Inimigo e seus servidores.E o Príncipe Imrahil disse:- Se alguém que é parente do Senhor Denethor puder aconselhá-lo nesta questão,

digo-lhe, senhor, que suas palavras são sábias. Ele é um homem obstinado e altivo, mastambém é velho; sua disposição tem estado estranha desde que o filho foi atacado. Apesardisso, não gostaria que ficasse como um mendigo na porta.

- Não como um mendigo - disse Aragorn. - Diga como um capitão dos guardiões,que não estão acostumados a cidades e casas de pedra. - Ordenou então que sua bandeirafosse recolhida, e retirou a Estrela do Reino do Norte, deixando-a aos cuidados dos filhosde Elrond.

Então o Príncipe Imrahil e Éomer de Rohan o deixaram, atravessando a Cidade e otumulto do povo, subindo para a Cidadela; chegaram ao Salão da Torre, procurando oRegente. Mas encontraram vazia a sua cadeira, e diante do estrado jazia em câmaraardente Théoden, Senhor da Terra dos Cavaleiros; doze tochas erguiam-se ao redor de seucorpo, e doze homens o guardavam, cavaleiros de Rohan e de Gondor. Os ornamentos doleito de morte eram verdes e brancos, mas o rei fora coberto até o peito com um grandetecido dourado, sobre o qual repousava a espada desembainhada, e aos pés estava oescudo. A luz das tochas reluzia em seus cabelos brancos como o sol contra o jato de umafonte, mas o rosto era belo e jovem; apesar disso, expressava uma paz além do alcance dajuventude; o rei parecia estar dormindo.

Após terem ficado em silêncio por um tempo ao lado dele, Imrahil disse:- Onde está o Regente? E onde está Mithrandir"?Um dos guardas respondeu:- O Regente de Gondor está nas Casas de Cura.Mas Éomer disse:- Onde está a Senhora Éowyn, minha irmã? Certamente deveria estar deitada ao

lado do rei, merecendo as mesmas honras. Onde a puseram?E Imrahil disse:- Mas a Senhora Éowyn ainda estava viva quando a trouxeram para cá. Você não

sabia?

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Um alento inesperado chegou tão de repente ao coração de Éomer, e com ele afisgada da preocupação e do medo renovados, que ele não disse mais nada, e deixouapressado o salão. O Príncipe o seguiu. Quando saíram, a noite já caíra e viam-se muitasestrelas no céu. E lá vinha Gandalf a pé, acompanhado de alguém envolto numa capacinzenta; encontraram-se diante das portas das Casas de Cura.

Saudaram Gandalf e disseram:- Estamos á procura do Regente, e disseram que ele está nesta Casa. Ele está

ferido? E a Senhora Éowyn, onde está ela?Gandalf respondeu:- Ela está lá dentro e ainda está viva, mas ás portas da morte. Mas o Senhor

Faramir foi ferido por uma flecha maligna, como ouviram falar, e ele agora é o Regente;Denethor partiu, e de sua casa só restam cinzas.

- Os dois se encheram de surpresa e dor ao ouvir tal relato.Mas Imrahil disse:- Então a vitória carece de alegria, e pagamos por ela um preço amargo, se num só

dia Gondor e Rohan ficaram privadas de seus senhores. Éomer governa os rohirrim.Quem deverá governar a Cidade enquanto isso? Não devemos agora mandar chamar oSenhor Aragorn?

O homem coberto com a capa disse:- Ele já chegou. - Então os outros perceberam, no momento em que ele se

aproximou da luz da lamparina perto da porta, que se tratava de Aragorn, envolto na capacinzenta de Lórien que cobria sua armadura, trazendo como insígnia apenas a pedra verdede Galadriel. –Vim porque Gandalf me pediu - disse ele. - Mas por enquanto sou apenas oCapitão dos Dúnedain de Amor; e o Senhor de Doí Amroth deverá governar a Cidade atéque Faramir desperte. Mas tenho a opinião de que Gandalf deveria nos governar a todosnos dias que se seguirem em nossas negociações com o inimigo.

- Todos concordaram com isso.Então Gandalf disse:- Não fiquemos parados aqui na porta, pois o tempo urge. Vamos entrar! Pois só

com a chegada de Aragom haverá esperança para os enfermos que jazem na Casa. Poisassim falou Ioreth, mulher sábia de Gondor: As mãos do rei são as mãos de um curador, edessa forma o verdadeiro rei será conhecido.

Aragorn entrou primeiro e os outros o seguiram. À porta estavam dois guardas,vestidos com o uniforme da Cidadela: um era alto, mas o outro mal atingia a altura de ummenino; este último, quando os viu, gritou de alegria e surpresa.

- Passolargo! Esplêndido! Sabe, achei que era você nos navios negros. Masestavam todos gritando corsários, e não quiseram me ouvir. Como fez aquilo?

Aragorn riu e segurou a mão do hobbit.- É realmente bom encontrá-lo! - disse ele. - Mas ainda não é hora de contar

histórias de viajantes.Mas Imrahil disse a Éomer:- É assim que dirigimos a palavra a nossos reis? Mas talvez ele assuma a corôa sob

um outro nome!E Aragorn, ouvindo aquilo, voltou-se e disse: - Realmente, pois na língua nobre de

antigamente sou Elessar, a Pedra Élfica, e Envinyatar, o Renovador: - ergueu então apedra que repousava sobre o peito. - Mas "Passolargo" será o nome de minha casa, se estavier a se estabelecer. Na língua nobre, o nome não soará tão mal, e serei Telcontar, assimcomo todos os herdeiros de meu corpo.

Com isso entraram na Casa e, enquanto iam em direção aos quartos onde os

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enfermos estavam sendo cuidados, Gandalf contou os feitos de Éowyn e Meriadoc. - Pois- disse ele - fiquei um longo tempo ao lado deles, e no inicio falavam muito em seussonhos, antes de mergulharem na escuridão mortal. Além disso, foi-me concedido o poderde ver muitas coisas distantes.

Aragorn foi primeiro ver Faramir, depois a Senhora Éowyn e por último Merry.Após olhar os rostos dos enfermos e examinar seus ferimentos, suspirou.

- Aqui devo exercer todo o poder e a habilidade que me foram concedidos – disseele. - Como queria que Elrond estivesse conosco, pois ele é o mais velho de nossa raça, epossui os maiores poderes.

E Éomer, vendo como ele estava infeliz e cansado, disse:- Primeiro precisa descansar, com certeza, e no mínimo comer alguma coisa.Mas Aragom respondeu:- Não, pois para estas três pessoas, principalmente para Faramir, o tempo está se

esgotando. Precisamos de toda a rapidez.Então chamou Ioreth e disse:- Há nesta Casa algum estoque das ervas de cura?- Sim, senhor - respondeu ela -; mas acho que não temos o suficiente para todos os

que necessitam. Mas não tenho idéia de onde poderemos encontrar mais; falta tudo nestesdias terríveis, por causa dos fogos e incêndios, do reduzido número de meninosmensageiros, e das estradas bloqueadas. Já faz dias sem conta que um transportador queum transportador veio de Lossarnach com provisões! Mas fazemos o possível nesta Casacom o que possuímos, como tenho certeza que Vossa

Senhoria verá.- Julgarei quando vir - disse Aragorn. - Uma coisa também está escassa, tempo

para conversas. Você tem athelas?- Essa eu não conheço, senhor - respondeu ela -, pelo menos não por esse nome.

Vou perguntar ao nosso mestre-de-ervas; ele conhece todos os nomes antigos.- Também é chamada folha-do-rei - disse Aragorn -; talvez você a conheça por

esse nome, pois assim as pessoas do campo a chamam nestes últimos tempos.- Ah, essa! - disse Ioreth. - Bem, se Vossa Senhoria tivesse mencionado esse nome

primeiro, eu poderia ter-lhe dito antes. Não, não temos nem um pouco, com certeza. Ora,nunca ouvi dizer que essa erva tivesse grandes poderes de cura; na verdade disse váriasvezes a minhas irmãs quando a encontrávamos na floresta: "Folha-do-rei", dizia eu,"nome esquisito, e fico pensando o motivo desse nome; pois, se eu fosse um rei, teriaplantas mais belas em meu jardim." Mas ela exala um cheiro doce quando é esmagada,não é mesmo? Se "doce" for a palavra certa: talvez seja mais correto dizer "saudável".

- Realmente saudável - disse Aragorn. - E agora, dama, se você ama o SenhorFaramir, vá com a mesma agilidade de sua língua e me traga folha-do-rei, nem que hajauma só folha na Cidade.

- E se não houver - disse Gandalf - vou a Lossarnach a cavalo com Ioreth nagarupa, e ela me levará até a floresta, mas não até as irmãs dela. E Scadufax poderáensinar-lhe o que significa pressa.

Depois que Ioreth partiu, Aragorn pediu que as outras mulheres providenciassemágua quente. Então tomou a mão de Faramir nas suas, e pousou a outra mão na fronte doenfermo. Estava molhada de suor, mas Faramir não se moveu nem fez qualquer sinal; malparecia estar respirando.

- Ele está quase morto - disse Aragorn voltando-se para Gandalf. - Mas não é porcausa do ferimento. Veja! Está cicatrizando. Se Faramir tivesse sido golpeado por algumdardo dos nazgúl, como você pensou, teria morrido na mesma noite. Esse ferimento foi

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feito por alguma flecha dos sulistas, suponho eu. Quem a retirou? Ela foi guardada?- Eu a retirei - disse Imrahil - e estanquei o sangue. Mas não guardei a flecha, pois

tínhamos muito a fazer. Pelo que recordo, era um dardo do tipo usado pelos sulistas. Masachei que tinha vindo das Sombras do alto, pois caso contrário não haveria como entendera doença e a febre, já que o ferimento não foi profundo nem mortal. Como entãointerpreta o fato?

- Cansaço, tristeza pela disposição do pai, um ferimento, e acima de tudo o HálitoNegro - disse Aragorn. - Faramir é um homem de vontade firme, pois já chegara perto daSombra antes mesmo de partir para a batalha nas muralhas externas. A escuridão deve ter-se apossado lentamente dele, no momento em que lutava e se esforçava para proteger seuposto avançado. Ah, se eu pudesse ter chegado aqui mais cedo!

Logo em seguida entrou o mestre-de-ervas.- Vossa Senhoria solicitou a folha-do-rei, como os rústicos a chamam - disse ele -,

ou athelas na língua nobre, ou ainda para aqueles que conhecem um pouco da língua deValinor...

- Eu a conheço - disse Aragorn -; e não quero saber se você a chama deaséaaranion ou folha-do-rei, contanto que tenha um pouco.

- Desculpe-me, senhor! disse o homem. - Percebo que é um mestre na tradição, enão simplesmente um capitão de guerra. Mas lamento, senhor, nós não guardamos essacoisa nas Casas de Cura, onde cuidamos apenas dos que estão gravemente enfermos ouferidos. Pois essa erva não possui nenhum poder que conheçamos, talvez apenas o desuavizar um ar pestilento, ou afastar alguma aflição passageira. A não ser, é claro, que sedê importância às rimas de dias antigos, que as mulheres como nossa boa Ioreth aindarepetem sem entender:

Quando o sopro negro descee a sombra da morte crescee toda a luz se desfaz,vem athelas! vem athelas!Vida dos que morrendo estão,Que o rei detém em sua mão.

Não passam de antigos versos mal feitos, receio eu, deturpados na memória dasmulheres velhas. O significado, se realmente existir algum, deixo para que o senhor ojulgue. Mas as pessoas velhas ainda usam uma infusão da erva contra dores de cabeça.

- Então, em nome do rei, vá procurar algum velho de menos tradição e maissabedoria, que tenha um pouco da erva em sua casa! - gritou Gandalf

Agora Aragorn estava de joelhos ao lado de Faramir, com uma mão sobre suafronte. Os que observavam sentiam que alguma grande luta estava acontecendo. Pois orosto de Aragorn ficou cinzento de tanto cansaço; de vez em quando, chamava o nome deFaramir, mas sua voz saia cada vez mais fraca, como se o próprio Aragorn estivesse longedali, vagando em algum vale escuro e distante, chamando alguém que tivesse perdido.

E finalmente Bergil entrou correndo, trazendo seis folhas num pano.-É folha-do-rei, Senhor - disse ele mas receio que não esteja fresca. Deve ter sido

colhida no mínimo há duas semanas. Espero que sirva, Senhor.Então, olhando para Faramir, o menino rompeu em lágrimas.Mas Aragorn sorriu.-Vai servir - disse ele. - Agora o pior já passou. Fique e tranquilize-se! - Então,

pegando duas folhas, colocou-as nas mãos e soprou nelas, amassando-as em seguida;

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imediatamente um frescor de vida encheu o quarto, como se o próprio ar tivessedespertado e estremecido, faiscando de alegria. Depois Aragorn jogou as folhas nastigelas de água fumegante que lhe foram trazidas, e na mesma hora todos os coraçõesficaram mais leves. A fragrância que atingiu cada um era como uma lembrança demanhãs orvalhadas, de sol sem sombras, em alguma ter a cujo próprio mundo de belezaprimaveril é apenas uma memória fugidia. Aragorn se levantou reconfortado, e seus olhossorriram no momento em que aproximou a tigela do rosto dormente de Faramir.

-Veja só! Você acreditaria nisto? - disse Ioreth a uma mulher que estava ao seulado. - A erva é melhor do que eu pensava. Faz-me lembrar das rosas de Imloth Melui,quando eu era uma menina, e nenhum rei poderia exigir erva melhor.

De repente Faramir se mexeu, e abriu os olhos, fitando Aragorn que se debruçavasobre ele; uma luz de consciência e amor se acendeu em seu olhar, e ele falou numa vozbaixa.

- O Senhor me chamou. Estou aqui. Qual é a ordem do rei?- Deixe de caminhar nas sombras, e desperte! – disse Aragorn. - Você está exausto.

Descanse um pouco e coma alguma coisa; esteja pronto quando eu retornar.- Farei isso, senhor - disse Faramir. - Pois quem ficaria deitado sem fazer nada

quando o rei está de volta?- Então até logo! - disse Aragorn. - Devo ver outros que precisam de mim. -

Deixou então o quarto com Gandalf e Imrahil; mas Beregond e o filho ficaram, incapazesde conter a alegria que sentiam. Indo atrás de Gandalf e fechando a porta, Pippin ouviuIoreth exclamar:

- Rei! Você ouviu isso? Que foi que eu disse? As mãos de um curador, foi isso queeu disse. - E logo da Casa propagou-se a noticia de que o rei verdadeiramente estava entreeles, e depois da guerra trouxera a cura, e as novas se espalharam pela Cidade.

Mas Aragorn aproximou-se de Éowyn e disse:- Temos aqui um ferimento grave; foi um golpe forte. O braço quebrado foi

cuidado com a devida habilidade, e vai se recuperar com o tempo, se ela tiver forças paraviver. É o braço do escudo que foi ferido, mas o maior mal está no braço da espada.Parece não haver vida nele, apesar de estar inteiro.

- É lamentável! Ela enfrentou um inimigo acima das forças de sua mente e corpo.E aqueles que erguem uma arma contra tal inimigo devem ser mais inflexíveis que o aço,para que o próprio choque não os destrua. Foi um destino cruel que a colocou nessecaminho. Pois é uma linda donzela, a mais bela senhora de uma casa de rainhas. Apesardisso, não sei como devo falar dela. A primeira vez que a vi, percebi sua infelicidade;pareceu-me uma flor branca erguendo- se ereta e altiva, esbelta como um lírio, e mesmoassim sabia que era rígida, como se esculpida em aço por artesãos élficos. Ou será queuma geada havia transformado sua seiva em gelo, e assim ela se erguia, doce e amarga,ainda bela de se olhar, mas ferida, prestes a cair e morrer? A doença de Éowyn começoumuito antes deste dia, não é, Éomer?

- Surpreende-me que me pergunte isso, senhor – respondeu ele. - Pois considero-osem culpa nesse assunto, e em tudo mais; apesar disso, não sabia que Éowyn, minha irmã,havia sido tocada por qualquer geada até a primeira vez em que o viu. Ela sentia medo epreocupação, e os partilhava comigo. Nos dias de Língua de Cobra, quando o rei estavaenfeitiçado; cuidava do rei com uma preocupação crescente. Mas isso não a trouxe paraeste caminho!

- Meu amigo! - disse Gandalf-, você tinha cavalos, e ação armada, e campos livres;mas ela, nascida com o corpo de uma donzela, tinha um espírito e uma coragem nomínimo à altura dos seus. Apesar disso, estava fadada a servir a um velho, a quem amava

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como a um pai, e a observá-lo cair numa senilidade desonrosa e miserável; seu papel lheparecia mais ignóbil do que o do bastão no qual ele se apoiava.

- Você acha que Língua de Cobra envenenava apenas os ouvidos de Théoden?Velho caduco! O que é a casa de Eorl a não ser um estábulo com teto de palha, onde osbandidos bebem em meio ao mau cheiro, e seus fedelhos rolam pelo chão junto com oscachorros? Nunca ouviu essas palavras antes? Quem as disse foi Saruman, o professor deLíngua de Cobra. Mas não duvido que Língua de Cobra, em casa, tenha adornado seusignificado com termos mais astuciosos. Meu senhor, se o amor que sua irmã lhedevotava, juntamente com sua determinação em cumprir seu dever, não lhe tivessemcerrado os lábios, você até poderia ter ouvido palavras semelhantes a essas escapandodeles. Mas quem pode saber o que ela falava para a escuridão, sozinha, nas amargasvigílias noturnas, quando toda a sua vida parecia estar se contraindo, e as paredes de seuaposento se fechando à sua volta, uma gaiola para trancafiar algum ser selvagem?

Éomer ficou então em silêncio, olhando para a irmã, como se ponderasse outra veztodos os dias de sua vida que passara junto a ela. Mas Aragom disse:

- Eu também vi o que você viu, Éomer. Dentre todos os acasos cruéis deste mundo,poucas tristezas trariam mais amargura e vergonha para o coração de um homem do queobservar o amor de uma senhora tão bela e corajosa que não pode ser correspondido. Atristeza e a pena me seguiram desde que a deixei, desesperada, no Templo da Colina ecavalguei para as Sendas dos Mortos, e nenhum temor esteve tão presente naquelecaminho quanto o que eu sentia pelo que poderia acontecer a ela. Mesmo assim, Éomer,digo-lhe que ela o ama mais verdadeiramente do que a mim; pois você ela ama e conhece;mas em mim ela ama apenas uma sombra e um pensamento: uma esperança de glória egrandes feitos, e de terras distantes dos campos de Rohan.

- Talvez eu tenha o poder de curar-lhe o corpo, e de resgatá-la do vale escuro. Maspara o que ela despertará: para a esperança, para o esquecimento ou para o desespero, nãoposso saber. Se for para o desespero, então morrerá, a não ser que lhe apareça uma outracura que não posso trazer. Lamento, pois seus feitos a colocaram entre as rainhas degrande renome.

Então Aragorn abaixou-se e olhou no rosto de Éowyn, que realmente estava brancocomo um lírio, frio como a geada, e rígido como se esculpido em pedra. Mas ele seinclinou e a beijou na testa, e a chamou suavemente, dizendo:

- Éowyn, filha de Éomund, desperte! Seu inimigo foi-se embora!Ela não se mexeu, mas agora começava outra vez a respirar fundo, de modo que

seu peito subia e descia sob o linho branco do lençol. Mais uma vez Aragorn esmagouduas folhas de athelas e as jogou na água fumegante; banhou então a testa da enfermacom a infusão, como também o braço esquerdo, gelado e imóvel sobre a coberta.

Então, talvez porque Aragorn tivesse realmente algum esquecido poder doPonente, talvez pelo efeito causado pelas palavras ditas sobre a Senhora Éowyn, todos oscircunstantes tiveram a impressão de que, á medida que a doce influência da erva seespalhava pelo quarto, um vento penetrante soprava através da janela, sem trazerfragrância alguma, mas era um ar inteiramente fresco, limpo e jovem, como se nuncativesse sido inspirado por qualquer criatura viva, e tivesse acabado de sair diretamente demontanhas cheias de neve, altas sob uma abóbada de estrelas, ou de praias de pratadistantes, banhadas por mares de espuma.

- Desperte, Éowyn, Senhora de Rohan! - disse Aragorn de novo, tomando-lhe amão direita com a sua e sentindo-a quente, voltando á vida. - Desperte! A sombra se foi eestamos livres da escuridão! – Depois pousou a mão da Senhora na de Éomer e deixou oquarto. - Chame-a! – disse ele e saiu do quarto em silêncio.

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- Éowyn, Éowyn! - chamou Éomer em meio às lágrimas.Mas ela abriu os olhos e disse:- Éomer! Que ventura é esta? Pois disseram que estava morto. Mas não, essas

foram apenas as vozes escuras no meu sonho. Quanto tempo fiquei sonhando?- Não muito tempo, minha irmã - disse Éomer. - Mas não pense mais nisso!- Estou sentindo um cansaço estranho - disse ela. – Preciso descansar um pouco.

Mas, diga-me, o que aconteceu com o Senhor da Terra dos Cavaleiros? Ai de mim! Nãome diga que foi um sonho, pois sei que não foi. Ele está morto como havia previsto.

- Ele está morto disse Éomer -, mas me pediu que em seu nome dissesse adeus aÉowyn, a quem queria mais que a uma filha. Jaz agora com grandes honras na Cidadelade Gondor.

- Isso é triste - disse ela. - No entanto, é melhor que tudo o que ousei esperar nosdias escuros, quando parecia que a Casa de Eorl tinha caído em desonra, atingindo umnível inferior ao da choupana de um pastor. E o escudeiro do rei, o Pequeno? Éomer, vocêdeve nomeá-lo cavaleiro da Terra dos Cavaleiros, pois ele é valoroso.

- Ele repousa nesta Casa, aqui perto, e eu vou vê-lo - disse Gandalf - Éomer ficaráaqui por um tempo. Mas ainda não falem de guerra ou inimigo, até que você se recuperecompletamente. É uma grande alegria vê-la despertar outra vez para a saúde e aesperança, você que é uma senhora tão corajosa.

- Para a saúde? disse Éowyn. - Pode ser que sim. Pelo menos enquanto houver asela vazia de algum Cavaleiro caído que eu possa ocupar, e feitos a cumprir. Mas para aesperança? Não sei.

Gandalf e Pippin foram para o quarto de Merry, onde encontraram Aragorn em péao lado do leito. Pobre Merry! - exclamou Pippin, correndo para perto do amigo, pois tevea impressão de que ele estava pior, com um tom cinzento no rosto, como se um peso deanos de tristeza o oprimisse; de súbito foi tomado por um medo de que Merry pudessemorrer.

- Não tenha medo - disse Aragorn. Cheguei a tempo, e chamei-o de volta. Agoraestá cansado, e triste, além de ter sofrido um ferimento como o da Senhora Éowyn,quando ousou atacar aquela criatura mortal. Mas esses males podem ser reparados, numespírito tão forte e alegre como o dele. Não poderá se esquecer de sua tristeza, porém essesentimento não vai escurecer o coração dele, mas trazer-lhe sabedoria.

Então Aragorn colocou a mão na cabeça de Merry e, acariciando suavemente oscachos castanhos, tocou as pálpebras. chamando-o pelo nome.

E quando a fragrância de athelas se espalhou pelo quarto, como o aroma depomares e de urzais ao sol, cheios de abelhas, de repente Merry acordou e disse:

- Estou com fome. Que horas são?- Já passou da hora da ceia - disse Pippin -; mas arrisco dizer que poderia lhe trazer

alguma coisa, se me permitirem.- Com certeza permitirão - disse Gandalf. - E qualquer outra coisa que este

Cavaleiro de Rohan possa desejar, se puder ser encontrada em Minas Tirith, onde seunome se cobre de honra.

- Bom! - disse Merry. - Então vou querer uma ceia primeiro, e depois disso umcachimbo. - Ao dizer isso, seu rosto ficou consternado. - Não, cachimbo não. Acho quenunca vou fumar outra vez.

- Por que não? - disse Pippin.- Bem - respondeu Merry devagar. Ele está morto. Tudo voltou à minha memória.

Disse que sentia muito por nunca mais poder ter uma chance de conversar sobre atradição das ervas comigo. Praticamente a última coisa que disse. Nunca mais conseguirei

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fumar de novo sem pensar nele e naquele dia, Pippin, quando ele cavalgava para Isengarde foi tão delicado.

- Então, fume, e pense nele! - disse Aragorn. - Pois ele era um coração gentil e umgrande rei, que cumpria seus juramentos; saiu das sombras para uma bela manhãderradeira. Embora o tempo em que o serviu tenha sido tão breve, deveria ser umalembrança alegre e honrosa até o fim de seus dias.

Merry sorriu. - Então está bem disse ele. Se Passolargo providenciar o necessário, vou fumar e

pensar. Eu tinha um pouco do melhor fumo de Saruman em minha mochila, mas o que foifeito dela na batalha, com certeza eu não sei.

- Mestre Meriadoc - disse Aragorn -, se você acha que eu atravessei montanhas e oreino de Gondor, com fogo e espada, para trazer fumo para um soldado descuidado quejoga fora seus pertences, está muito enganado. Se sua mochila não for encontrada, entãovocê deve mandar chamar o mestre de ervas desta Casa. E ele vai lhe dizer que não sabiaque a erva que você deseja tinha algum poder, mas que ela é vulgarmente chamada deerva-do-homem-do-oeste, enquanto os nobres a chamam de galenas; vai também dizeroutros nomes em outras línguas mais eruditas, e depois de acrescentar algumas rimassemi-esquecidas lamentará informar que não existe dessa erva na Casa, e o deixarárefletindo sobre a história das línguas.

E é isso que preciso fazer agora. Pois não durmo num leito como este desde queparti do Templo da Colina, e também não comi nada desde a escuridão antes da aurora.

Merry apertou-lhe a mão e a beijou. - Lamento terrivelmente - disse ele. - Vá agora mesmo! Desde aquela noite em

Bri, temos sido um incômodo para você. Mas é o costume de meu povo usar palavrasleves em tempos como estes, dizendo menos do que sentimos. Tememos revelar demais.Quando uma brincadeira é fora de hora, faltam-nos as palavras corretas.

Sei muito bem disso, ou não lidaria com você como faço – disse Aragorn. - Que oCondado possa viver para sempre incólume! – Beijando Merry, saiu, acompanhado porGandalf.

Pippin ficou no quarto. - Nunca houve uma pessoa como ele – disse o hobbit. -Com a exceção de Gandalf, é claro. Acho que os dois são aparentados. Meu querido asno,sua mochila está ao lado da cama, e você a trazia nas costas quando o encontrei. Ele sabiadisso o tempo todo, obviamente. E, de qualquer forma, tenho um pouco do meu. Vamoslá! É Folha do Vale Comprido. Encha o cachimbo enquanto eu vou correndo buscaralguma comida. E vamos relaxar um pouco. Puxa! Nós, os Túks e Brandebuques, nãoconseguimos viver muito tempo nos lugares altos.

- Não mesmo - disse Merry. - Eu não consigo, pelo menos ainda não. Mas nomínimo, Pippin, agora podemos vê-los e honrá-los. Acho que primeiro é melhor amaraquilo que temos condições de amar: deve-se começar em algum lugar e criar algumasraízes, e o solo do Condado é profundo. Mas ainda há coisas mais profundas e mais altas,e nenhum feitor conseguiria cuidar de seu jardim no que ele chama de paz se não fossepor elas, quer ele as conheça ou não. Fico feliz em saber sobre elas, saber um pouco. Masnão sei por que estou falando desse jeito. Onde está o fumo? E pegue o cachimbo emminha mochila, se ele não estiver quebrado.

Às portas das Casas muitos já se juntavam para ver Aragorn, e o seguiram; quandofinalmente ele terminou de cear, vieram homens rogando-lhe que curasse seus parentes ouamigos da Sombra Negra. Aragorn levantou-se e saiu ; mandou chamar os filhos deElrond, e juntos trabalharam até tarde da noite. E o rumor se espalhou pela Cidade: "ORei realmente voltou outra vez." Chamaram-no de Pedra Élfica, por causa da pedra verde

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que usava; e assim o nome que ao seu nascimento previram que usaria foi escolhido paraele pelo seu próprio povo.

Quando não conseguia mais trabalhar, cobriu-se com a capa e saiu sorrateiramenteda Cidade, indo para sua tenda um pouco antes da aurora, para dormir um pouco. E pelamanhã a bandeira de Doí Amroth, um navio branco em forma de cisne sobre águas azuis,esvoaçava no alto da Torre, e os homens erguiam os olhos e imaginavam se a chegada doRei não passara de um sonho.

Aragorn e Gandalf foram até o Diretor das Casas de Cura e lhe disseram queFaramir e Éowyn deveriam permanecer internados e ainda inspirariam atenção por muitosdias.

- A Senhora Éowyn - disse Aragorn - logo vai querer levantar-se e partir, mas nãodeve permitir que faça isso, se puder impedi-la de alguma maneira, até que pelo menosdez dias tenham se passado.

- Quanto a Faramir - disse Gandalf -, logo deverá saber que seu pai está morto.Mas a história completa sobre a loucura de Denethor não deverá chegar-lhe aos ouvidos,até que esteja bem curado e tenha tarefas a desempenhar. Cuide para que Beregond e operian que presenciaram a cena não comentem tais coisas com ele por enquanto!

- E o outro perian, Meriadoc, que está sob meus cuidados, que me dizem dele? -perguntou o Diretor.

- É provável que amanhã esteja bom para se levantar, por um tempo curto disseAragorn. - Permita que o faça, se ele assim quiser. Pode caminhar um pouco sob oscuidados dos amigos.

- São uma raça notável - disse o Diretor, balançando a cabeça. - De fibra muitoforte, julgo eu.

CAPÍTULO IX O ÚLTIMO DEBATE

Chegou a manhã após o dia de batalha, uma manhã bela com leves nuvens e ovento se virando para o oeste. Legolas e Gimli sairam logo cedo, e pediram permissãopara subirem até a Cidade, pois estavam ansiosos para ver Merry e Pippin.

- É bom saber que ainda estão vivos - disse Gimli -, pois nos custaram muitosofrimento em nossa marcha através de Rohan, e eu não gostaria que todo esse sofrimentofosse desperdiçado.

Juntos, elfo e anão entraram em Minas Tirith, e as pessoas que passavam por elesse assombravam ao verem tais companheiros, pois Legolas tinha no rosto uma beleza queultrapassava a medida dos homens, e cantava uma canção élfica com voz clara aocaminhar pela manhã; mas Gimli vinha atrás dele andando empertigado, cofiando a barbae fitando tudo ao redor.

- Há um bom trabalho feito em pedra aqui - disse ele, olhando para as muralhas -;mas também há trabalhos piores, e as ruas podiam ter sido mais bem planejadas. QuandoAragorn assumir seu posto, vou lhe oferecer o serviço dos artesãos da Montanha, e vamosfazer desta uma cidade de que se possa sentir orgulho.

- Eles precisam de mais jardins - disse Legolas. – As casas não têm vida, e aqui hápouquíssima coisa que cresce e alegra. Se Aragorn assumir seu posto, o povo da Floresta

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lhe trará pássaros que cantam e árvores que não morrem.Finalmente chegaram á presença do Príncipe Imrahil; Legolas, olhando para ele,

fez uma grande reverência, pois viu que realmente ele tinha nas veias o sangue dos elfos.- Salve, senhor! - disse ele. Já faz muito tempo que o povo de Nimrodel deixou as

florestas de Lórien, e mesmo assim ainda se pode ver que nem todos partiram do porto deAmroth, navegando para o oeste.

- Assim conta a tradição de minha terra - disse o Príncipe -; mas há anos sem contanão se vê aqui alguém do belo povo. E fico maravilhado em deparar com um deles aquiagora, em meio à tristeza e á guerra. O que procura?

- Sou um dos Nove Companheiros que partiram com Mithrandir de Imíadris - disseLegolas -; e com este anão, meu amigo, vim com o Senhor Aragorn. Mas agora desejamosver nossos amigos, Meriadoc e Peregrin, que estão sob sua proteção, pelo que ouvimosfalar.

- Vão encontrá-los nas Casas de Cura, e vou levá-los até lá - disse- Basta que peça para alguém nos guiar, senhor- disse Legolas. - Pois Aragorn lhe

envia esta mensagem: no momento, ele não deseja entrar outra vez na Cidade. Mas épreciso que os capitães se reúnam imediatamente, e ele pede que o senhor e Éomer deRohan desçam até suas tendas o mais cedo possível. Mithrandir já está lá.

- Nós iremos - disse Imrahil; despediram-se com palavras corteses.- Aí está um belo senhor e um grande capitão de homens - disse Legolas. - Se

Gondor ainda tem homens assim atualmente, na sua decadência, grande deve ter sido suaglória nos dias de ascensão.

- E sem dúvida o trabalho em pedra que é de boa qualidade é o mais antigo, e foifeito na primeira construção - disse Gimli. – É sempre assim com as coisas que os homenscomeçam; há uma geada na primavera, ou uma praga no verão, e suas promessasfracassam.

- Mas raramente fracassa sua semente - disse Legolas. - Esta fica na poeira e naruína, para germinar de novo em tempos e lugares inesperados. Os feitos dos homenssobreviverão a nós, Gimli. - Apesar disso, na minha opinião, no fim não sobra nada alémdo que "poderia ter sido" - disse o Anão.

- Para isso os elfos não têm a resposta - disse Legolas.Nessa hora o servidor do Príncipe veio e os conduziu até as Casas de Cura; lá

viram seus amigos no jardim, e foi um feliz encontro. Por um tempo, caminharam econversaram, regozijando-se durante um breve lapso de paz e descanso matinal, lá emcima, nos círculos da Cidade batidos pelo vento. Então, quando Merry ficou cansado,foram se sentar sobre a muralha, diante do gramado das Casas de Cura; mais distante aosul, à frente deles, o Anduin brilhava ao sol, correndo para longe, fora do alcance da visãoaté mesmo de Legolas, entrando nas amplas planícies e na névoa verde de Lebennin eIthilien do Sul.

Legolas estava agora em silêncio, enquanto os outros continuavam a conversar.Olhava contra o sol, vendo os brancos pássaros marítimos subindo o Rio.

- Olhem! - gritou ele. -Gaivotas! Estão avançando para aterra. São uma maravilhapara os meus olhos, e um distúrbio para meu coração. Nunca as tinha visto em toda aminha vida até chegarmos a Pelargir, e lá as ouvi gritando no ar quando cavalgamos paraa batalha dos navios. Então fiquei quieto, esquecendo-me da guerra na Terra-média, poissuas vozes dolentes falavamme do Mar. O Mar! Ai de mim! Nunca o contemplei ainda.Mas no fundo dos corações de todo o meu povo existe uma saudade do Mar que éperigoso despertar. Ai, as gaivotas! Nunca terei paz outra vez, sob a faia ou sob o olmo.

- Não fale isso! - disse Gimli. - Ainda existem inúmeras coisas para se ver na

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Terra-média, e grandes trabalhos a fazer. Mas, se todo o belo povo for para os Portos, omundo será mais monótono para aqueles fadados a ficar.

- Monótono e terrível, realmente! - disse Merry. - Não deve ir para os portos,Legolas. Sempre haverá pessoas, grandes ou pequenas, e até mesmo alguns anões sábioscomo Gimli, que precisam de você Pelo menos espero que seja assim. Embora sinta dealguma forma que o pior desta guerra ainda está por vir. Como gostaria que estivesse tudoacabado, e bem acabado!

- Não seja tão melancólico! - exclamou Pippin. - O sol está brilhando, e aquiestamos nós juntos, pelo menos por um ou dois dias. Quero ouvir mais sobre todos vocês.Vamos lá, Gimli! Você e Legolas já mencionaram sua estranha viagem com Passolargocerca de umas doze vezes esta manhã. Mas não me contaram nada sobre ela.

- O sol pode brilhar aqui - disse Gimli -, mas hà lembranças daquela estrada quenão quero evocar da escuridão. Se soubesse o que me esperava, acho que por amizadealguma teria caminhado nas Sendas dos Mortos.

- As Sendas dos Mortos? - disse Pippin. - Ouvi Aragorn dizer esse nome, e fiqueipensando o que poderia significar. Não vai nos contar mais um pouco?

- Não de bom grado - disse Gimli. - Pois naquela estrada fui exposto à vergonha:Gimli, filho de Glóin, que se considerara mais corajoso que os homens, e mais resistentesob a terra que qualquer elfo. Mas não me saí nem uma coisa nem outra, e só continuei naestrada por causa da vontade de Aragorn.

- E também pelo amor que sente por ele - disse Legolas. – Pois todos aqueles quevêm a conhecê-lo acabam amando-o á sua própria maneira, até mesmo a donzela fria dosrohirrim. Foi no início da manhã anterior ao dia em que você chegou lá, Merry, que nóspartimos do Templo da Colina, e todo o povo estava dominado por tamanho medo queninguém assistiu à nossa partida, exceto a Senhora Éowyn, que agora está ferida na Casalá embaixo. Houve tristeza na despedida, e eu fiquei pesaroso ao assistir à cena.

-Ai de mim! Só tinha pensamentos para minha própria pessoa - disse Gimli. - Não!Não vou falar daquela viagem!

Ficou em silêncio, mas Pippin e Merry estavam tão ávidos por noticias quefinalmente Legolas disse:

- Vou contar-lhes o suficiente para que fiquem em paz, pois eu não senti o terror, enão temi as sombras dos homens, que considerei frágeis e desprovidas de poder.

Rapidamente o elfo contou sobre a estrada assombrada sob as montanhas, e sobreo obscuro encontro em Erech, e a grande cavalgada que partiu de lá, noventa e três léguas,até Pelargir sobre o Anduin.

- Quatro dias e quatro noites, mais o inicio de um quinto dia, cavalgamos partindoda Pedra Negra - disse ele. - E eis que na escuridão de Mordor minha esperançaaumentou, pois então o exercito de Sauron tem ficado mais forte e mais terrível de seolhar. Alguns eu vi cavalgando, alguns andando a passo largo, mas todos se movendo namesma grande velocidade. Eram silenciosos, mas tinham um brilho nos olhos. Nas terrasaltas de Lamedon alcançaram nossos cavalos, espalharam-se à nossa volta e nos teriamultrapassado, se Aragorn não os tivesse proibido. - A uma ordem sua recuaram. "Atémesmo as sombras dos homens são

obedientes à vontade dele", pensei eu. "Elas ainda lhe podem serúteis!"Cavalgamos num dia de luz, e então veio a manhã sem aurora, e ainda continuamosavançando, cruzando Ciril e Ringló; no terceiro dia chegamos a Linhir, sobre a foz doGilrain. E lá os homens de Lamedon disputavam os vaus com o povo cruel de Umbar eHarad, que tinha subido o rio navegando. Mas tanto os defensores como os inimigosdesistiram da batalha e fugiram quando chegamos, gritando que o Rei dos Mortos os

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estava atacando. Apenas Angbor, Senhor de Lamedon, teve a coragem de nos esperar;Aragorn então pediu que ele reunisse seu povo e nos seguisse, se eles ousassem, depoisque o Exército Cinzento tivesse passado. - "Em Pelargir o Herdeiro de Isildur precisará devocê", disse ele. - Assim atravessamos o Gilrain, fazendo com que os aliados de Mordorfugissem em debandada à nossa frente; depois descansamos um pouco. Mas logo Aragomlevantou-se, dizendo: "Vejam, Minas Tirith já está sendo atacada. Receio que caia antesque cheguemos em seu socorro." Assim montamos de novo antes que a noite tivessepassado e avançamos sobre a planície de Lebennin com toda a velocidade que nossoscavalos puderam suportar.

Legolas fez uma pausa e suspirou; voltando os olhos para o sul, cantou em vozbaixa:

Em prata fluem os rios de Celos até EruiNos verdes campos de Lebennin!Lá a grama cresce alta. Ao vento que vem do marOs brancos lírios dançam,E os sinos dourados balançam de maílos e alflrinNos verdes campos de Lebennin,Ao vento que vem do Mar

- Verdes são aqueles campos nas canções de meu povo; mas naquela hora estavamescuros, vastidões cinzentas no negrume diante de nós. E naquela imensa região,pisoteando sem qualquer cuidado a grama e as flores, caçamos nossos inimigos duranteum dia e uma noite, até que a duras penas chegamos finalmente ao Grande Rio.

- Então pensei comigo mesmo que estávamos próximos do Mar, pois o rio eralargo na escuridão, e inúmeros pássaros marítimos gritavam nas margens. Ai, o lamentodas gaivotas! A Senhora não tinha me dito para tomar cuidado com elas? E agora nãoposso esquecê-las.

- De minha parte, não lhes dei atenção - disse Gimli - pois então havíamosfinalmente chegado ao momento de travar uma batalha a sério. Lá em peíargir estava aprincipal frota de Umbar, cinquenta navios grandes e inúmeros outros barcos menores.Muitos daqueles que perseguíramos haviam chegado aos portos na nossa frente, levandoconsigo o medo; alguns dos navios tinham partido, procurando escapar descendo o Rio oualcançar a margem oposta, e muitos dos barcos menores estavam em chamas.

Mas os haradrim, acossados até a margem, viraram-se contra nós furiosos em seudesespero; riram-se quando nos observaram, pois ainda formavam uma grande armada.

- Mas Aragom parou e gritou numa voz forte: "Venham agora! Pela Pedra Negraeu os conclamo!" E de repente o Exército da Sombra, que ficara na retaguarda, noinstante supremo avançou como uma onda cinzenta, varrendo tudo o que encontrava pelafrente. Ouvi gritos fracos, e toques indistintos de cornetas, e o murmúrio de incontáveisvozes distantes: era como o eco de alguma batalha esquecida dos Anos Escuros deoutrora. Espadas pálidas apareceram; mas não sei se as lâminas ainda mordiam, pois osMortos não precisavam de outra arma além do medo.

Ninguém lhes ofereceu resistência. Tomaram todos os navios que estavamalinhados para a batalha, e depois passaram sobre as águas para aqueles que estavamancorados; todos os marinheiros foram dominados por uma loucura de terror e saltarampara a água, exceto os escravos acorrentados aos remos. Avançamos impávidos em meioaos nossos inimigos em fuga, varrendo-os como folhas, até chegarmos à margem. E entãoAragorn designou, para cada um dos navios que restavam, um dos dúnedain, que

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consolaram os cativos que estavam a bordo, ordenando-lhes que afastassem o medo e seconsiderassem livres.

- Antes do final do dia escuro, não restava ninguém do exército inimigo para nosoferecer resistência; todos estavam afogados, ou então fugindo para o sul na esperança deatingirem suas próprias terras a pé Achei estranho e surpreendente o fato de que osdesígnios de Mordor devessem ser frustrados por tais espectros de medo e escuridão.Com suas próprias armas o inimigo foi derrotado!

- É realmente estranho - disse Legolas. - Naquele momento, olhei para Aragom epensei em que grande e terrível Senhor ele poderia ter-se tornado mediante a força de suavontade, se tivesse tomado o Anel para si. Não é à toa que Mordor o teme. Mas seuespírito é mais nobre que o entendimento de Sauron; pois não é ele um descendente deLúthien? Essa linhagem nunca se extinguirá, embora os anos possam se alongar além daconta.

- Essas previsões estão além do alcance dos olhos dos anões - disse Gimli. -MasAragorn foi realmente poderoso naquele dia. Vejam bem. Toda a frota negra estava emsuas mãos, e ele escolheu para si o maior navio, e nele embarcou. Então mandou tocar umgrande conjunto de trombetas, tomadas do inimigo, e o Exército de Sombra se retirou paraa margem. Ali ficaram em silêncio, quase invisíveis, a não ser por um brilho vermelhonos olhos, que refletiam o clarão dos barcos em chamas.

E Aragorn dirigiu-se numa voz alta aos Homens Mortos, dizendo:- Ouçam agora as palavras do Herdeiro de Isildur! O juramento que fizeram está

cumprido. Partam então e não voltem a perturbar os vales de novo! Vão e fiquem empaz!"

E então o Rei dos Mortos apresentou-se à frente do exército, quebrou sua lança e ajogou no chão. Depois fez uma grande reverência e virou-se; rapidamente todo o exércitocinzento se retirou e desapareceu como uma névoa que é varrida por um vento repentino;tive a impressão de ter acordado de um sonho.

- Naquela noite descansamos enquanto outros trabalhavam. Pois havia muitoscativos que foram libertados, e muitos escravos, agora livres, que eram pessoas deGondor, aprisionadas em ataques; e logo também se formou um grande ajuntamento dehomens de Lebennin e do Ethir, e Angbor de Lamedon veio com todos os cavaleiros quepôde reunir. Agora que o medo dos Mortos passara, vinham para nos ajudar e para ver oHerdeiro de Isildur, pois o rumor desse nome se espalhara como fogo na escuridão. Eagora chegamos perto do fim da história. Durante a noite e a madrugada muitos naviosforam preparados e guarnecidos com homens; pela manhã a frota partiu. Agora pareceque tudo aconteceu há muito tempo, e apesar disso foi apenas na manhã do dia anterior aontem, o sexto desde que partimos do Templo da Colina.

Mas ainda assim Aragorn estava tomado pelo receio de que o tempo fosse curtodemais.

- "São quarenta e duas léguas do Pelargir até o cais de Harlond", dizia ele. "Mesmoassim precisamos chegar ao Harlond amanhã ou teremos falhado completamente."

- Agora os remos eram empunhados por homens livres, que trabalhavamvalentemente; apesar disso, subimos o Grande Rio com lentidão; lutávamos contra acorrente, e, embora ela não seja forte no sul, nós não tínhamos a ajuda do vento. Meucoração teria ficado pesado, apesar de toda a nossa vitória nos portos, se Legolas nãotivesse soltado uma risada de repente.

- "Levante essa barba, filho de Durin!" - disse ele. "Pois assim diz o ditado: Aesperança talvez nasça, quando tudo é desgraça."

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Mas que esperança enxergava ao longe ele não disse. Quando a noite chegou, sófez aprofundar a escuridão, e nossos corações estavam fervendo, pois na distância aonorte vimos um clarão vermelho sob a nuvem, e Aragorn disse:

- "Minas Tirith está em chamas."- Mas á meia-noite a esperança realmente renasceu. Marinheiros do Ethir, olhando

para o sul, falaram de uma mudança chegando com um vento forte vindo do Mar. Muitoantes de o dia raiar, os navios com mastros içaram as velas, e nossa velocidade aumentou,até que a aurora branqueasse a espuma em nossas proas. E foi assim, vocês sabem, quechegamos na terceira hora da manhã com um belo vento e o sol descoberto, edesfraldamos o grande estandarte na batalha. Foi um grande dia e uma grande hora, nãoimporta o que possa acontecer depois.

- Venha o que vier, grandes feitos não ficam diminuídos em seu valor - disseLegolas. - Foi um grande feito a cavalgada das Sendas dos Mortos, e grande continuarásendo, mesmo que não reste ninguém em Gondor para cantá-lo nos dias que virão.

- E isso pode muito bem acontecer - disse Gimli. - Pois os rostos de Aragorn eGandalf estão graves. Penso muito em que resoluções estarão tomando nas tendas láembaixo. De minha parte, como Merry, gostaria que com a nossa vitória a guerraestivesse agora terminada. Mas, no que quer que ainda haja por fazer, espero ter umaparte, pela honra do povo da Montanha Solitária.

- E eu pelo povo da Grande Floresta - disse Legolas -, e por amor do Senhor daArvore Branca.

Então os companheiros se calaram, mas por um tempo ficaram ali sentadosnaquele lugar alto, cada um ocupado com seus próprios pensamentos, enquanto osCapitães debatiam.

Quando o Príncipe Imrahil despediu-se de Legolas e Gimli, mandouimediatamente chamar Éomer; os dois desceram juntos da Cidade, e foram para as tendasde Aragorn que estavam armadas no campo, não muito longe do local onde o rei Théodentombara. E ali tomaram decisões, junto com Gandalf, Aragorn e os filhos de Elrond.

- Meus senhores - disse Gandalf-, ouçam as palavras que disse o Regente deGondor antes de morrer: Vocês podem triunfar nos campos do Pelennor por um dia, mascontra o Poder que agora surgiu não há vitória. Não estou pedindo que se desesperem,como fez ele, mas para que ponderem a verdade dessas palavras.

- Pedras-videntes não mentem, e nem mesmo o Senhor de Barad-dûr pode fazê-lasmentir. Talvez ele possa, com sua vontade, escolher que coisas serão vistas por mentesmais fracas, ou fazê-las interpretar erroneamente o significado do que vêem. Nãoobstante, não se pode duvidar de que, quando Denethor viu grandes forças reunidascontra ele em Mordor, e mais Outras se reunindo, ele viu o que realmente é.

- Nossa força mal conseguiu vencer o primeiro grande assalto. O próximo serámaior. Esta guerra não nos oferece esperança final, como Denethor percebeu. A vitórianão pode ser conseguida por meio de armas, quer vocês permaneçam aqui e suportemcerco após cerco, quer saiam em marcha para serem derrotados além do Rio. Vocês têmapenas uma escolha entre os males, e a prudência deveria aconselhá-los a reforçaremtodas as fortalezas que possuírem, e lá esperarem o ataque; dessa forma, o tempo antes deseu fim poderá ficar um pouco mais longo.

- Então você aconselha que nos retiremos para Minas Tirith ou Doí Amroth oupara o Templo da Colina, e que fiquemos nesses lugares sentados como crianças sobrecastelos de areia, quando a maré está subindo? - disse Imrahil.

- Isso não seria nenhum conselho inédito disse Gandalf. - Não foi isso o quefizeram, ou pouco mais que isso, nos dias de Denethor? Mas não! Eu disse que isso seria

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prudente. Não aconselho a prudência. Disse que a vitória não poderia ser conquistada pormeio de armas. Ainda alimento a esperança na vitória, mas não através de armas. Pois emmeio a todas essas estratégias está o Anel de Poder, o alicerce de Barad-dûr, e a esperançade Sauron. Em relação a essa coisa, meus senhores, agora todos vocês sabem o suficientepara o entendimento da nossa situação, e da de Sauron. Se ele a conseguir de volta, avalentia de vocês será inútil, e a vitória dele será rápida e completa: tão completa queninguém pode prever o fim dela enquanto durar o mundo. Se ela for destruída, então elecairá, e sua queda será tão grande que ninguém pode prever a possibilidade de que jamaisvenha a ascender de novo. Pois perderá a melhor parte da força que nasceu junto com ele,e tudo o que foi feito ou começado com esse poder ruirá, e ele ficará mutilado parasempre, transformando-se num simples espírito maligno que se corrói nas sombras, masque não pode crescer ou tomar forma outra vez. E assim desaparecerá um grande maldeste mundo.

- Outros males existem que poderão vir; pois o próprio Sauron é apenas umservidor ou emissário. Todavia não é nossa função controlar todas as marés do mundo,mas sim fazer o que pudermos para socorrer os tempos em que estamos inseridos,erradicando o mal dos campos que conhecemos, para que aqueles que viverem depoistenham terra limpa para cultivar. Que tempo encontrarão não é nossa função determinar.Agora Sauron sabe de tudo isso, e sabe que essa coisa preciosa que perdeu foi encontradanovamente; mas ainda não sabe onde está, ou pelo menos assim esperamos. E, portanto,agora ele está numa grande dúvida. Pois, se nós encontramos a coisa, há alguns entre nóscom força suficiente para controlá-la. Isso ele também sabe. Pois não estou certo,Aragorn, quando suponho que você se mostrou a ele na Pedra de Orthanc?

- Fiz isso antes de partir do Forte da Trombeta – respondeu Aragom.- Julguei que o tempo chegara, e que a Pedra viera até mim apenas com esse

propósito. Fazia então dez dias que o Portador do Anel partira de Rauros para o leste, e eupensei que o Olho de Sauron deveria ser atraído para fora de sua própria terra.Pouquíssimas vezes ele foi desafiado depois que retornou para sua Torre. No entanto, seeu tivesse previsto a velocidade do contra-ataque, talvez não tivesse ousado me revelar.Sobrou-me pouco tempo para vir em sua ajuda.

- Mas como fica isso? - perguntou Éomer. Você diz que tudo é inútil se ele tiver oAnel. Por que não deveria ele julgar inútil nos atacar, se nós o tivermos?

- Ele ainda não tem certeza - disse Gandalf , e não construiu seu poder esperandoaté que seus inimigos estivessem seguros, como fizemos nós. Além disso, nós nãopoderíamos aprender como controlar todo o poder num único dia. Na verdade, o Anel sópode ser usado por um único mestre, e não por muitos; ele vai aguardar uma hora dediscórdia, antes que um dos grandes entre nós se faça senhor e se coloque acima dosoutros. Nessa hora o Anel pode ajudá-lo, se ele for rápido.

- Ele está vigiando. Vê muito e muito escuta. Seus nazgúl ainda estão à solta.Passaram sobre este campo antes de o sol nascer, embora poucos dos que estavamcansados ou dormindo se tenham dado conta disso. Ele estuda os sinais: a Espada que lheroubou o tesouro reforjada; os ventos da fortuna virando a nosso favor, e a inesperadaderrota em seu primeiro ataque, a queda de seu grande Capitão.

- Sua dúvida está crescendo, neste exato momento em que estamos falando aqui.Seu Olho está agora perscrutando em nossa direção, praticamente cego para tudo o maisque se move. Assim devemos mantê-lo. Aí está toda a nossa esperança. Este, então, é omeu conselho: não possuímos o Anel. Por sabedoria, ou por uma grande loucura, nós oenviamos para longe para ser destruido, e para evitar que nos destruísse. Sem o Anel, nãopodemos pela força destruir a força de Sauron. Mas devemos a todo custo manter seu

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Olho longe do verdadeiro perigo que o ameaça. Não podemos conquistar a vitória pormeio das armas, mas por meio das armas podemos dar ao Portador do Anel sua únicaoportunidade, por mais frágil que seja.

- Como Aragorn começou, assim devemos continuar. Devemos empurrar Sauronpara seu último lance. Devemos atrair sobre nós sua força oculta, de modo que esvazieseus domínios. Devemos marchar ao encontro dele imediatamente. Devemos transformar-nos em iscas, embora suas mandíbulas possam se fechar sobre nós. Ele aceitará essa isca,cheio de esperança e avidez, pois em tamanha audácia julgará estar vendo o orgulho donovo Senhor do Anel, e dirá: "Isso! Ele estica seu pescoço muito cedo e quer chegarmuito longe. Deixarei que avance, e eis que o pegarei numa armadilha da qual não poderáescapar. Ali vou esmagá-lo, e o que me tomou em sua insolência será meu outra vez, parasempre."

- Devemos caminhar de olhos abertos em direção a essa armadilha, com coragem,mas com pouca esperança para nós mesmos. Pois, meus senhores, pode muito bemacontecer que literalmente tombemos numa batalha negra longe das terras viventes, demodo que mesmo se Barad-dûr for destruída não viveremos para ver uma nova era. Masconsidero que esta é nossa tarefa. E isso é melhor do que perecer, de qualquer forma –como certamente acontecerá, se ficarmos aqui parados - e saber na hora de nossa morteque não vai haver uma nova era.

Ficaram em silêncio por um tempo. Finalmente, Aragorn falou.- Como já comecei, vou continuar. Chegamos agora exatamente à beira do abismo,

onde a esperança é parente do desespero. Hesitar é cair. Que ninguém agora recuse osconselhos de Gandalf, cujos longos trabalhos contra Sauron finalmente serão testados. Senão fosse por ele, tudo estaria perdido há muito tempo. Não obstante, ainda não queroimpor minha vontade a ninguém. Que os outros escolham como preferirem.

Então Elrohir disse:- Viemos do norte com esse propósito, e de Elrond, nosso pai, trouxemos

exatamente esse conselho. Não recuaremos.- Quanto a mim - disse Éomer -, tenho pouco conhecimento dessas questões

profundas, mas não preciso dele. Disso eu sei, e para mim é o suficiente: da mesma formaque meu amigo Aragorn socorreu a mim e ao meu povo, agora, quando ele me chama,vou ajudá-lo. Eu irei.

- Quanto a mim - disse Imrahil -, considero o Senhor Aragorn meu rei, quer elereivindique o título ou não. Um desejo seu é uma ordem. Também irei. Apesar disso, porum tempo ocupo o lugar do Regente de Gondor é meu dever pensar primeiro em seupovo. Devemos ainda dar alguma itenção à prudência. Pois devemos estar preparadospara todas as possibilidades, as boas e as más. Agora, pode ser que triunfemos, e enquantohouver alguma esperança nesse sentido Gondor deve ser protegida. Eu não gostaria quevoltássemos vitoriosos para uma Cidade em ruínas e com uma terra devastada atrás denós. E já sabemos pelos rohirrim que há um exército no nosso flanco norte, contra o qualainda não se lutou.

- Isso é verdade - disse Gandalf - Não aconselho que deixem a Cidadecompletamente desguarnecida. Na verdade, a força que conduzirmos para o leste nãoprecisa ser grande o suficiente para um assalto real contra Mordor, contanto que sejagrande o suficiente para provocar uma batalha. deve se mover com rapidez. Portanto,pergunto aos Capitães: que força poderíamos reunir e conduzir no prazo máximo de doisdias? Recomendo que essa força deve ser formada por homens corajosos que partem porsua própria vontade, conhecendo o perigo que correm.

- Todos estão cansados, e muitos têm ferimentos, leves ou graves - disse Éomer. -

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E sofremos muitas perdas de cavalos, e isso é difícil suportar. Se devemos partir logo,então não posso ter esperanças de liderar nem sequer dois mil homens, e deixar o mesmonúmero na defesa da Cidade.

- Não devemos contar apenas com aqueles que lutaram neste campo - disseAragorn. - Novas forças dos feudos do sul estão a caminho, agora que as costas foramlibertadas. Enviei quatro mil homens marchando de Pelargir através de Lossarnach hádois dias; Angbor, o destemido, cavalga á frente deles. Se partirmos em dois dias, elesestarão próximos antes de nossa partida. Além disso, pedi a muitos que me seguissemsubindo o Rio, em qualquer embarcação que conseguissem arranjar; com este vento, logoestarão perto; na verdade vários barcos já chegaram ao Harlond. Julgo que poderíamospartir com sete mil homens a pé e a cavalo, e ao mesmo tempo deixar a Cidade com umadefesa melhor do que a que tinha quando começou o ataque.

- O Portão está destruido - disse Imrahil -, e onde agora poderemos encontrar ahabilidade para reconstruí-lo e erguê-lo novamente?

- Em Erebor, no reino de Dáin, está tal habilidade – disse Aragorn -; e, se todas asesperanças não fracassarem, então haverá tempo para que eu envie Gimli, filho de Glóin,para buscar a ajuda dos artesãos da Montanha. Mas homens são melhores que portões, enenhum portão resistirá ao Inimigo se for abandonado pelos homens.

Esse então foi o fim do debate dos senhores: que eles partiriam na segunda manhãapós aquele dia com sete mil homens, se pudessem reuni-los; a maior parte dessa forçairia a pé, por causa das terras malignas nas quais entrariam. Aragorn deveria encontrarmais dois mil homens entre aqueles que havia reunido junto a si no sul; Imrahil deveriaencontrar três mil e quinhentos; Éomer reuniria quinhentos dos rohirrim que estavamdesmontados mas eram competentes na guerra, e ele mesmo deveria liderar quinhentos deseus melhores Cavaleiros; haveria uma outra companhia de quinhentos cavaleiros, entreos quais estariam os filhos de Elrond com os dúnedain e os cavaleiros de Doí Amroth: nototal, seis mil a pé e mil a cavalo. Mas a força principal dos rohirrim que ainda possuíamontarias e era capaz de lutar, cerca de três mil homens sob o comando de Elfhelm,deveria vigiar a Estrada oeste contra o inimigo que estava em Anórien. Imediatamentecavaleiros velozes com a missão de reunir todas as notícias que pudessem foram enviadospara o norte, como também para o oeste, partindo de Osgiliath e da estrada de MinasMorgul. E, quando tinham calculado todas as suas forças e ponderado sobre que viagensdeveriam fazer e que estradas escolheriam, Imrahil de súbito deu uma risada.

- Certamente - exclamou ele -, esta será a maior piada em toda a história deGondor, cavalgaremos com sete mil homens, que mal somam o número da vanguarda deseu exército nos tempos de sua força, para atacarmos as montanhas e o impenetrávelportão da Terra Negra! Da mesma forma uma criança poderia ameaçar um cavaleirocoberto por uma armadura com um arco feito de barbante num ramo de salgueiro verde!Se o Senhor do Escuro sabe tanto quanto você diz, Mithrandir, será que não vai sorrir aoinvés de temer, e com seu dedo mínimo nos esmagar como um mosquito que tenta picá-lo?

- Não, ele vai tentar prender o mosquito e retirar-lhe o ferrão - disse Gandalf. - Ehá homens entre nós que valem cada um mais que mil cavaleiros vestindo armaduras.Não, ele não sorrirá.

- Nós também não - disse Aragorn. - Se isso for uma piada, então é amarga demaispara causar riso. Não, é o último lance numa situação de grande risco, que trará, para umlado ou para o outro, o fim do jogo. - Então sacou Andúril e ergueu-a faiscante ao sol. -Você não será desembainhada outra vez ate que se trave a última batalha - disse ele.

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CAPÍTULO X O PORTÃO NEGRO SE ABRE

Dois dias mais tarde o exército do oeste estava todo reunido no Pelennor. A tropade orcs e orientais retornara de Anórien, mas acossados e dispersados pelos rohirrim elestinham fugido, derrotados, quase sem resistir, na direção de Cair Andros; com essaameaça afastada e com novas forças chegando do sul, a Cidade ficou tão bem guarnecidaquanto possível. Batedores reportaram que não restava nenhum inimigo nas estradas doleste até a altura da Encruzilhada do Rei Caído. Tudo agora estava pronto para o últimogolpe. Legolas e Gimli cavalgariam juntos outra vez na companhia de Aragom e Gandalf,que iam na vanguarda com os dúnedain e os filhos de Elrond. Mas Merry, para a suavergonha, não deveria ir com eles.

- Você não está em condições de fazer uma viagem dessas - disse- lhe Aragom. -Mas não tenha vergonha. Se não fizer mais nada nesta guerra, já terá conquistado umagrande honra. Peregrin irá representando o povo do Condado; não lhe inveje aoportunidade de perigo, pois, embora tenha feito o que a sorte lhe permitiu, ele ainda nãorealizou um feito à altura do seu. Mas, na verdade, todos correm o mesmo risco. Emborapossa ser nossa função ir ao encontro de um fim mais amargo diante do Portão deMordor, se isso acontecer, vocês também chegarão a um confronto final, seja aqui ou emqualquer lugar onde a maré negra venha a alcançá-los. Adeus!

Assim, desalentado, Merry ficou assistindo à concentração do exército. Bergilestava ao lado dele, também amuado, pois seu pai deveria marchar liderando umacompanhia de homens da Cidade: porém estava impedido de retomar seu posto na Guardaaté que seu caso fosse julgado. No mesmo grupo deveria partir Pippin, como um soldadode Gondor. Merry podia enxergá-lo, não muito distante: um vulto pequeno porém eretoentre os homens altos de Minas Tirith.

Finalmente as trombetas soaram e o exército começou a se mover. Tropa a tropa,companhia a companhia, faziam uma conversão e partiam para o leste. Muito tempodepois que todos tinham sumido de vista descendo a grande estrada para o Passadiço,Merry ficou ali parado. O último brilho do sol da manhã faiscara sobre lança e elmo e seperdera, e ainda ele permanecia ali, com a cabeça curvada e o coração pesado, sentindo-sesolitário e sem amigos. Todos os que lhe eram caros haviam partido para dentro daescuridão que pairava sobre o céu distante do leste, e restavam-lhe pouquíssimasesperanças de que um dia voltasse a ver qualquer um deles.

Como se despertada pelo seu estado de desespero, a dor em seu braço retornara, eele se sentia fraco e velho, e a luz do sol parecia tênue. Acordou com o toque da mão deBergil.

- Venha, mestre Perian! - disse o menino. -Você ainda sente dores, estou vendo.Vou acompanhá-lo de volta até os Curadores. Mas não tenha medo! Eles voltarão.

Os homens de Minas Tirith nunca serão derrotados. E agora contam com o SenhorPedra Élfica, e também com Beregond da Guarda.

Antes do meio-dia, o exército chegou a Osgiliath. Ali os trabalhadores e operáriosdisponíveis estavam todos ocupados. Alguns reforçavam as balsas e as pontes flutuantesque o inimigo fizera e em parte destruíra na fuga; alguns reuniam suprimentos e produtosde saques; outros, do lado leste do Rio, erguiam defesas improvisadas.

A vanguarda atravessou as ruínas da Velha Gondor e o amplo Rio, subindo a longae estreita estrada que nos dias de apogeu fora feita para conduzir da bela Torre do Sol atéa alta Torre da Lua, que agora era Minas Morgul em seu vale maldito. Pararam cinco

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milhas além de Osgiliath, terminando o primeiro dia de marcha. Mas os cavaleiroscontinuaram avançando, e antes do inicio da noite chegaram á Encruzilhada e ao grandecirculo de árvores, onde tudo estava quieto. Não viram sinais do inimigo, nem ouviramqualquer grito ou chamado, nenhuma lança viera voando de alguma rocha ou maciço deárvores pelo caminho; apesar disso, quanto mais avançavam, mais se sentiam observados.Pedra e árvore, folha e capim pareciam estar escutando atentamente. A escuridão sedissipara, e na distância a oeste o sol se punha sobre o Vale do Anduin, e os picos brancosdas montanhas se ruborizavam no ar azul; mas uma sombra e um desalento pesavamsobre os Ephel Dúath.

Aragorn postou então trombeteiros em cada uma das quatro estradas que saiam docirculo de árvores, e eles tocaram uma grande fanfarra, e os arautos gritaram em vozesimponentes:

- Os Senhores de Gondor retornaram, e estão tomando posse desta terra que lhespertence. -A hedionda cabeça de orc que estava fincada sobre a figura esculpida foiderrubada e partida em pedaços, e a velha cabeça do rei foi erguida e colocada de voltaem seu lugar, ainda coroada com as flores douradas e brancas: e os homens trabalharamlavando e raspando todos os garranchos horríveis que os orcs haviam desenhado sobre apedra.

Agora, num debate, alguns opinaram que Minas Morgul deveria ser atacadaprimeiro e, se conseguissem tomá-la, deveria ser completamente destruída.

- E talvez - disse Imrahil - a estrada que conduz de lá até a passagem acima sejaum acesso mais fácil para atacarmos o Senhor do Escuro do que o Portal Norte.

Mas Gandalf imediatamente reprovou a idéia, por causa do mal que morava novale, onde as mentes dos homens vivos se voltariam para a loucura e o terror, e tambémpor causa das notícias que Faramir trouxera. Pois, se o Portador do Anel tivesse realmentetentado aquele caminho, então, acima de tudo, deveriam desviar o Olho de Mordor de lá.Portanto, no dia seguinte, após a chegada do exército principal, montaram uma forteguarda na Encruzilhada para garantir alguma defesa, no caso de Mordor enviar uma forçapela passagem de Morgul, ou trazer mais homens do sul. Para essa guarda escolheram namaioria arqueiros que conheciam os caminhos de Ithilien e que ficariam escondidos nasflorestas e veredas nas imediações do encontro dos caminhos. Mas Gandalf e Aragorncavalgaram com a vanguarda até a entrada do Vale Morgul para observar a cidademaligna. Estava escura e sem vida, pois os orcs e as criaturas inferiores de Mordor queoutrora moravam lá haviam sido destruídos em batalha, e os nazgúl estavam fora. Mesmoassim, o ar do vale estava carregado de medo e hostilidade. Então destruíram a pontemaligna, espalharam chamas rubras pelos campos nocivos e partiram.

No dia seguinte, o terceiro após a partida de Minas Tirith, o exército iniciou suamarcha rumo ao norte seguindo a estrada. Por aquele caminho era cerca de cem milhas daEncruzilhada até o Morannon, e o que lhes poderia acontecer até que chegassem láninguém sabia. Avançavam abertamente, mas com cautela, com batedores montados àfrente, outros a pé dos dois lados, especialmente no flanco leste, pois ali havia maciçosescuros de árvores, e um terreno irregular de estreitos vales rochosos e penhascos, atrásdos quais as compridas e sinistras encostas dos Ephel Dúath se amontoavam. O clima domundo permanecia belo, continuava a soprar o vento oeste, mas nada conseguia dispersara melancolia e a névoa triste que pairava ao redor das Montanhas da Sombra; atrás delas,ás vezes grandes porções de fumaça subiam e ficavam suspensas nos ventos mais altos.

De quando em quando, Gandalf mandava tocar as trombetas, e os arautosgritavam:

- Os Senhores de Gondor chegaram! Que todos deixem esta terra ou se rendam!

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Mas Imrahil disse:-Não digam Os Senhores de Gondor. Digam O Rei Elessar. Pois esta é uma

verdade, mesmo que ele ainda não tenha assumido o trono; isso fará o Inimigo preocupar-se mais, se os arautos usarem esse nome.

E depois disso, três vezes ao dia, os arautos proclamavam a chegada do ReiElessar. Mas ninguém respondia ao desafio. Não obstante, embora marchassem numa pazaparente, os corações de todo o exército, dos postos mais altos até os mais baixos,estavam pesados, e a cada milha que avançavam ao norte um mau presságio cresciadentro deles. Foi perto do fim do segundo dia desde que partiram em marcha daEncruzilhada que encontraram, pela primeira vez, uma ocasião de batalha. Um poderosogrupo de orcs e orientais tentou aprisionar a companhia que vinha à frente numaemboscada, exatamente no local onde Faramir tinha atocaiado os homens de Harad, noponto em que a estrada entrava num corte profundo através de uma saliência das colinas aleste. Mas os Capitães do Oeste foram devidamente advertidos por seus batedores,homens habilidosos de Henneth Annún, liderados por Mablung; dessa forma, os quepreparavam a emboscada acabaram presos nela. Cavaleiros deram uma grande volta nosentido oeste e vieram atacando o flanco do inimigo e sua retaguarda, e os orcs e orientaisforam destruídos ou rechaçados para o leste, na direção das colinas. Mas a vitória poucoencorajou os corações dos capitães.

- É apenas uma simulação - disse Aragorn - e seu principal propósito, julgo eu, foimais nos levar a uma suposição errada sobre o ponto fraco de nosso Inimigo do que noscausar muito mal, por enquanto. - E daquela noite em diante os nazgúl vieram e passarama seguir cada movimento do exército. Ainda voavam alto, e fora do alcance da visão, anão ser para Legolas; mesmo assim, sua presença podia ser sentida, na forma de umadensamento das sombras e um obscurecimento do sol, e, embora os Espectros do Anelainda não estivessem dando vôos rasantes sobre seus inimigos e se mantivessem emsilêncio, sem soltar nenhum grito, não se podia afastar o terror que causavam.

Assim foi passando o tempo e a viagem desesperada. No quarto dia posterior ápassagem pela Encruzilhada, o sexto depois da partida de Minas Tirith, chegaram por fimao término das terras viventes, e começaram a penetrar na desolação que se alastravadiante dos portões da Passagem de Cirith Gorgor; conseguiam divisar os pântanos e odeserto que se estendia ao norte e a oeste dos Emyn Muil. Tão desoladas eram aquelasparagens, e tão profundo o horror que pairava sobre elas, que alguns homens do exércitosentiram-se acovardados, não conseguindo avançar mais, a pé ou cavalgando, em direçãoao norte.

Aragorn olhou para eles, e seus olhos se encheram de pena, e não de ira, poisaqueles eram jovens de Rohan, do distante Folde Ocidental, lavradores de Lossarnach, epara eles, desde a infância, Mordor tinha sido um nome maligno, e apesar disso irreal,uma lenda que não fazia parte de suas vidas simples; e eles caminhavam como homensnum sonho hediondo que se tornara realidade, sem entender aquela guerra nem por que odestino os levava para tal paragem.

- Podem ir! - disse Aragorn. - Mas mantenham a honra que puderem. E nãocorram! Há uma tarefa que podem tentar para assim não se sentirem tão envergonhados.Façam seu caminho pelo sudoeste até chegarem a Cair Andros, e, se a ilha ainda estiverdominada pelos inimigos, como eu suspeito, então reconquistem-na, se puderem, emantenham-na até o fim em defesa de Gondor e Rohan!

Então alguns, envergonhados diante de tal demência, superaram o medo econtinuaram avançando, e os outros ganharam novas esperanças, ouvindo a menção deum feito corajoso à altura deles a que podiam se dedicar, e partiram. Dessa forma, sendo

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que muitos homens já haviam sido deixados na Encruzilhada, foi com menos de seis milhomens que os Capitães do Oeste chegaram finalmente para desafiar o Portão Negro e opoder de Mordor.

Agora avançavam devagar, esperando a cada hora uma resposta para o seu desafio;mantinham-se juntos, já que seria desperdício de soldados enviar batedores ou grupospequenos à frente do exército principal. Ao cair da noite do quinto dia de marcha desde oVale Morgul, acamparam pela última vez, fazendo fogueiras com a madeira morta e comas urzes secas que conseguiram encontrar. Passaram as horas da noite acordados,percebendo muitos seres parcialmente visíveis que andavam e espreitavam por toda avolta; ouviram também uivos de lobos. O vento cessara e todo o ar parecia parado.Podiam ver pouca coisa, pois, embora não houvesse nuvens e a lua crescente já tivessequatro dias, havia fumaça e vapores que subiam da terra e o luar branco se escondia nasnévoas de Mordor.

Ficou frio. Quando chegou a manhã, o vento começou a se agitar outra vez, masagora vinha do norte, e logo se amainou numa brisa crescente. Todos os seres notívagostinham-se ido, e a terra parecia vazia. Ao norte, em meio aos seus buracos fétidos jaziamos primeiros grandes outeiros e amontoados de escória, rocha quebrada e terra arruinada,o vômito dos vermes que habitavam Mordor; mas ao sul, agora já próxima, assomava agrande fortaleza de Cirith Gorgor, com o Portão Negro no meio, tendo ao lado as duasTorres dos Dentes, altas e escuras. Pois em sua última marcha os Capitães tinhamdesviado da estrada principal no ponto em que ela se curvava para o leste, evitando operigo das colinas à espreita, e agora aproximavam-se do Morannon pelo noroeste, domesmo modo que Frodo fizera.

As duas enormes portas de ferro do Portão Negro sob seu arco sinistro estavammuito bem fechadas. Sobre a ameia nada se via. Estava tudo quieto, mas persistia asensação de vigilância. Tinham chegado ao derradeiro estágio de sua loucura e pararam,abandonados e sentindo frio, na luz cinzenta do início do dia, diante de torres e muralhasque seu exército não podia atacar com esperanças, nem mesmo se tivessem levado até lámáquinas muito poderosas, e se as tropas inimigas fossem para guarnecer a muralha e oportão. Mas eles sabiam que todas as colinas e rochas ao redor do Morannon estavamcheias de inimigos ocultos, e o sombrio desfiladeiro mais além era perfurado e cheio detúneis apinhados de ninhadas de seres malignos. E ali parados eles viram todos os nazgúlreunidos, pairando como abutres sobre as Torres dos Dentes, sabendo que estavam sendovigiados. Mas ainda assim o Inimigo não dava qualquer sinal.

Não lhes restava outra escolha além de desempenhar o seu papel até o fim.Portanto Aragom agora colocara o exército na melhor formação que pôde planejar: elesforam reunidos em dois grandes montes de pedra arruinada e terra que os orcs tinhamacumulado em anos de trabalho. Diante deles, na direção de Mordor, jazia como um fossoum grande pântano de lama fétida e poças putrefatas. Quando tudo estava ordenado, osCapitães cavalgaram á frente na direção do Portão Negro com uma grande guarda decavaleiros levando a bandeira, acompanhados dos arautos e dos trombeteiros. Lá iaGandalf como o principal arauto, Aragom com os filhos de Elrond, Éomer de Rohan elmrahil; a Legolas, Gimli e Peregrin foi solicitado que também fossem, de modo quetodos os inimigos de Mordor tivessem uma testemunha.

Chegaram perto do Morannon, e desfraldaram a bandeira, tocando as trombetas; osarautos avançaram e fizeram suas vozes soar por sobre a muralha de Mordor.

- Apareça! - gritaram eles. - Que o Senhor da Terra Negra apareça! Justiça seráfeita para com ele. Pois agiu mal travando guerra contra Gondor e roubando suas terras.Portanto o Rei de Gondor ordena que ele repare seus erros e depois parta para sempre.

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Apareça!Fez-se um longo silêncio, e não se ouviu nenhum som em resposta, da muralha ou

do portão. Mas Sauron já fizera seus planos, e tinha em mente primeiro brincarcruelmente com aqueles camundongos antes de iniciar a matança. Foi assim que,exatamente quando os Capitães estavam prestes a virar as costas, o silêncio foisubitamente quebrado. Veio um longo retumbar de grandes tambores, como trovões nasmontanhas, e então um zurrar de cornetas que fez tremer as próprias pedras e feriu osouvidos dos homens. E então a porta do meio do Portão Negro se abriu com um grandeclangor, e de lá saiu uma embaixada da Torre Escura. Como seu líder veio cavalgando umvulto maligno, montado num cavalo negro, se aquilo era um cavalo, pois era enorme ehediondo, e sua cara uma máscara horripilante, mais parecendo um crânio que umacabeça viva, e das covas de seus olhos e de suas narinas saía fogo. O cavaleiro estavatodo vestido de negro, e negro era seu elmo imponente; mas este não era um Espectro doAnel, e sim um homem vivo. Era o Tenente da Torre de Barad-dûr, e seu nome não élembrado em história alguma, pois ele próprio o esquecera, e ele disse: - Sou a Boca deSauron. - Mas conta-se que ele foi um renegado, que vinha da raça daqueles que eramchamados de numenorianos negros, pois eles estabeleceram suas moradias na Terra-média durante os dias do domínio de Sauron. e o adoraram, enamorados peloconhecimento do mal. E ele havia entrado para o serviço da Torre Escura quando esta seergueu de novo pela primeira vez, e por causa de sua esperteza foi crescendo cada vezmais nos favores do Senhor; aprendeu grandes feitiçarias, e sabia muito da mente deSauron; era mais cruel que qualquer orc. Era ele que agora saia pelo portão, e com elevinha apenas uma pequena companhia de soldados arreados de negro, e uma únicabandeira, negra e estampada com o vermelho do Olho Maligno. Parando agora a algunspassos dos Capitães do Oeste, ele os olhou de cima a baixo e riu.

- Há alguém nesse bando que tem autoridade para dirigir-se a mim? - perguntouele. - Ou mesmo com capacidade de me entender? Não tu, pelo menos! – caçoou ele,voltando-se para Aragorn com desprezo. - Para se fazer um rei, é preciso mais que umpedaço de vidro élfico, ou uma gentalha dessas. Ora, qualquer bandido das colinas podeexibir tal sequela!

Aragorn não disse nada em resposta, mas fixou os olhos do outro e sustentou oolhar, e por um momento os dois lutaram assim; mas logo, embora Aragorn não semovesse nem dirigisse a mão para qualquer arma, o outro vacilou e recuou, como setivesse sido ameaçado por um golpe.

- Sou um arauto e um embaixador, e não posso ser atacado! - gritou ele.- Onde rezam tais leis - disse Gandalf - também é costume dos embaixadores

usarem menos insolência. Mas ninguém o ameaçou. Não tem nada a temer de nós, até quesua missão seja cumprida. Mas, a não ser que seu mestre tenha adquirido mais sabedoria,então você, juntamente com todos os servidores, estará em grande perigo.

- Então! - disse o Mensageiro. - Este é o porta-voz, velho barba-cinzenta? Será quenão ouvimos sobre ti algumas vezes, e de tuas andanças, sempre armando planos etraições a distância? Mas desta vez esticaste o teu nariz longe demais, mestre Gandalf, everás o que acontece para aquele que tece suas tolas teias diante dos pés de Sauron, oGrande. Tenho provas que me mandaram mostrar a ti - a ti especialmente, se tu ousassesaparecer. - Acenou para um dos guardas, e este veio à frente, carregando um pacoteembrulhado em tecido negro.

O Mensageiro desembrulhou o pacote, e ali, para a surpresa e frustração de todosos Capitães, ele ergueu primeiro a pequena espada que Sam carregara, e depois uma capacinzenta com um broche élfico, e finalmente o colete de mithril que Frodo usara,

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embrulhado em suas vestes rasgadas. Uma escuridão se formou diante dos olhos deles, etiveram a impressão de que num momento o mundo se paralisara, mas seus coraçõesestavam mortos e sua última esperança desaparecera. Pippin, que estava atrás do PríncipeImrahil, saltou à frente com um grito de dor.

- Silêncio! - disse Gandalf num tom severo, empurrando-o para trás; o Mensageirosoltou uma alta risada.

- Então você ainda tem outro desses moleques! - exclamou ele. – Que utilidade vêneles não posso adivinhar, mas mandá-los como espiões para Mordor superou até suacostumeira loucura. De qualquer forma, agradeço a ele, pois está claro que pelo menosesse pirralho já viu esses símbolos antes, e agora seria inútil você negar.

- Não desejo negar nada - disse Gandalf. - Na verdade, conheço-os, e toda a suahistória, e apesar de seu desdém, nojenta Boca de Sauron, você não pode dizer o mesmo.Mas por que os traz aqui?

- Casaco de anão, capa de elfo, espada do oeste tombado, e espião daquela pequenaterra-de-ratos que é o Condado - não, não se assuste! Sabemos muito bem aqui estão asmarcas de uma conspiração. Agora, pode ser que aquele que carregava essas coisas fosseuma criatura que vocês não sentissem perder, ou pode ser o contrário: alguém que lhes eracaro, talvez? Se for assim, tome resoluções rápidas com a pouca esperteza que lhe resta.Pois Sauron não gosta de espiões, e o destino dessa criatura depende agora de sua escolha.

Ninguém respondeu, mas ele viu todos os rostos pálidos de medo e o horror emseus olhos, e riu outra vez, pois pareceu-lhe que sua brincadeira ia bem.

- Bem, bem! - disse ele. - Ele lhes era querido, estou vendo. Ou quem sabe suamissão era de tal ordem que vocês não queriam que fracassasse? Pois fracassou. E agoraele deverá suportar o lento tormento de anos, tão longo e lento quanto as artes da GrandeTorre podem conceber; nunca será libertado, a não ser talvez quando estiver mudado edestruído, de modo que possa vir até vocês, para que vejam o que fizeram. Issocertamente acontecerá - a não ser que vocês aceitem os termos de meu Senhor.

- Diga quais são os termos - disse Gandalf numa voz severa, mas os que estavamperto viram a angústia em seu rosto, e agora ele parecia um homem velho e mirrado,esmagado, finalmente vencido. Ninguém duvidava de que ele fosse aceitar.

- Os termos são estes - disse o Mensageiro, sorrindo e encarando-os um a um-: agentalha de Gondor e seus iludidos aliados devem retirar-se imediatamente para além doAnduin, não sem primeiro prestarem juramento de nunca mais atacar Sauron, o Grande,aberta ou secretamente. Todas as terras a leste do Anduin deverão pertencer a Sauron parasempre, e unicamente a ele. A região a oeste do Anduin, até as Montanhas Sombrias e oDesfiladeiro de Rohan, deverá pagar tributo a Mordor, e os homens de lá não poderãoportar armas, mas terão permissão para governar seus próprios assuntos. No entanto,deverão ajudar a reconstruir Isengard, a qual destruíram por capricho, e essa região seráde Sauron, e lá seu tenente deverá morar: não Saruman, mas alguém mais digno deconfiança.

Olhando nos olhos do Mensageiro, todos leram seu pensamento. Seria ele aqueletenente que reuniria tudo o que restasse do oeste sob seu controle seria tirano e eles osseus escravos.

Mas Gandalf disse:- Isso é exigir muito pela entrega de um servidor: que seu Mestre deva receber em

troca o que de outra forma lhe custaria muitas guerras! Ou será que o campo de Gondordestruiu sua esperança na guerra, e ele agora deu para barganhar? E, se realmentedéssemos tanto valor ao prisioneiro? Que garantia teremos de que Sauron, o MestreMáximo da Traição, manterá sua parte no acordo? Onde está esse prisioneiro? Que o

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tragam aqui para que o vejamos, e então consideraremos essas exigências.Gandalf, atento, olhando para ele como alguém empenhado em esgrimir com um

inimigo mortal, teve a impressão de que, pelo tempo de um suspiro, o Mensageiro ficouperdido; mas rapidamente ele riu outra vez.

- Não seja tão insolente a ponto de discutir com a Boca de Sauron! - gritou ele.-Você pede garantias! Sauron não dá nenhuma. Se você implora por sua demência, deveprimeiro fazer o que ele ordena. Estes são os seus termos. É pegar ou largar!

- Vamos pegar! - disse Gandalf de repente. Jogou para o lado a capa e uma luzbranca brilhou como uma espada naquele lugar escuro.

Diante da mão erguida do mago, o Mensageiro recuou, e Gandalf, avançando,agarrou e tirou dele as provas: casaco, capa e espada.

- Vamos pegar estes em memória de nosso amigo – gritou ele. - Mas, quanto aosseus termos, nós os rejeitamos completamente. Vá embora, pois sua embaixada terminoue a morte se aproxima de você. Não viemos até aqui para desperdiçar palavras fazendotratos com Sauron, traiçoeiro e maldito, e muito menos com um de seus escravos. Sumadaqui! Então o Mensageiro de Mordor não voltou a rir. Seu rosto se contorcia deestupefação e ódio, semelhante ao de um animal selvagem que, ao pular sobre sua presa, éferido no focinho por um ferrão. Tomado de raiva, a boca babando, emitiu sonsestrangulados, sem nexo e cheios de fúria. Mas olhou nos rostos cruéis dos Capitães e emseus olhos fatais, e o medo que sentiu derrotou a ira.

Soltou um enorme grito e, virando-se, saltou sobre o cavalo e com sua companhiagalopou alucinadamente de volta para Cirith Gorgor. Mas, enquanto se distanciavam, seussoldados tocaram as cornetas num sinal há muito combinado, e mesmo antes quechegassem ao portão Sauron acionou sua armadilha.

Tambores retumbaram e fogos subiram aos ares. As grandes portas do PortãoNegro se escancararam. Delas saiu como uma onda um grande exército, com a mesmarapidez das águas rodopiantes quando uma comporta se abre.

Os Capitães montaram de novo e recuaram, e do exército de Mordor subiu umgrito de escárnio. A poeira se ergueu sufocando o ar, pois de um ponto próximo dali veiomarchando uma tropa de orientais que estivera esperando pelo sinal nas sombras de EredLithui, além da Torre mais distante. As colinas dos dois lados do Morannon despejavaminúmeros orcs. Os homens do oeste estavam encurralados, e logo, por toda a volta dosmontes cinzentos onde eles estavam, forças dez vezes maiores e ainda mais numerosasque isso os cercariam num mar de inimigos. Sauron tinha mordido a isca com mandíbulasde aço.

Sobrou pouco tempo para que Aragorn ordenasse a sua batalha.Sobre um monte estavam ele e Gandalf, e ali, bela e desesperada, erguia-se a

bandeira da Árvore e das Estrelas. Sobre o outro monte ao lado erguiam-se as bandeirasde Rohan e Doí Amroth, Cavalo Branco e Cisne de Prata; em torno de cada monte foiformado um circulo que vigiava em todas as direções, eriçado de lanças e espadas. Masna frente, na direção de Mordor, onde o primeiro e terrível assalto viria, estavam os filhosde Elrond à esquerda, com os dúnedain ao redor deles, e á direita o Príncipe Imrahil comos homens de Doí Amroth, altos e belos, além de soldados escolhidos da Torre da Guarda.

O vento soprou, as trombetas cantaram, flechas zuniram; mas o sol. agora subindoem direção ao sul, foi velado pelos vapores de Mordor, e através de uma névoaameaçadora ele reluzia, remoto, num vermelho morto, como se fosse o final do dia, outalvez o fim de todo o mundo de luz. E das trevas que se adensavam os nazgúl vieramcom suas vozes frias, gritando palavras de morte; então toda esperança se extinguiu.

Pippin se curvara, esmagado pelo terror contra o chão, quando ouviu Gandalf

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recusar os termos e condenar Frodo ao tormento da Torre, mas conseguira controlar-se, eagora estava ao lado de Beregond, na primeira fileira de Gondor, com os homens deImrahil. Pois parecia-lhe melhor morrer logo e deixar a amarga história de sua vida, umavez que tudo estava arruinado.

- Gostaria que Merry estivesse aqui - ouviu sua própria voz dizer, e pensamentosvelozes passaram-lhe pela mente, no momento em que via o inimigo avançando para oataque. - Bem, bem, agora pelo menos entendo o pobre Denethor um pouco mais.Poderíamos morrer juntos, Merry e eu, já que devemos morrer de qualquer forma, não émesmo? Bem, como ele não está aqui, espero que encontre um fim mais fácil. Mas agorapreciso dar o melhor de mim.

Sacou a espada e a contemplou, e as figuras entrelaçadas, vermelhas e douradas; eas letras fluentes de Númenor brilharam como fogo sobre a lâmina. "Esta espada foi feitajustamente para uma hora como esta", pensou ele. "Se pelo menos eu pudesse golpearcom ela o Mensageiro nojento, então quase empataria com o velho Merry. Bem, vougolpear alguém deste bando de animais antes do fim. Gostaria de poder ver um sol frescoe a relva verde outra vez."

Então, no momento em que o hobbit pensava em tais coisas, o primeiro ataquechocou-se contra eles. Os orcs, impedidos pelos pântanos que se espalhavam diante dosmontes, pararam e derramaram suas flechas contra as fileiras de defesa. Mas em meio aeles chegou, a largas passadas, rugindo como animais, uma grande companhia de trollsdas montanhas, vinda de Gorgoroth. Eram mais altos e mais encorpados que homens, eestavam vestidos apenas com malhas justas de escamas resistentes; mas carregavamescudos redondos, enormes e negros, e brandiam pesados martelos em suas mãosencaroçadas. Temerários, mergulharam nas poças e atravessaram-nas andando, urrandoenquanto se aproximavam. Como uma tempestade caíram sobre a fileira dos homens deGondor, batendo sobre elmo e cabeça com arma e escudo, como um ferreiro que malha oferro quente e flexível. Ao lado de Pippin, Beregond caiu, subjugado e aturdido; o grandechefe dos trolls que o derrubara debruçou-se sobre ele, esticando uma garra sufocante,pois essas cruéis criaturas costumavam morder as gargantas daqueles que derrubavam.

Então Pippin deu um golpe para cima, e a espada com as letras do Ponenteperfurou o couro e penetrou fundo nas entranhas do troll, cujo sangue negro jorrou aosborbotões. A criatura cambaleou para a frente e foi ao chão, desmoronando como umapedra, enterrando os que estavam embaixo. Negrume, fedor e uma dor esmagadoradominaram Pippin, e sua mente caiu numa grande escuridão. "Assim tudo termina comoeu suspeitara", disse seu pensamento, no instante em que se perdia; riu um pouco aindadentro de si mesmo antes de fugir, parecia quase alegre por estar afastando finalmentetoda a dúvida, a preocupação e o medo. E então, no momento em que o pensamentovoava para dentro do esquecimento, ouviu vozes, que pareciam estar gritando de algummundo esquecido lá em cima:

- As Águias estão chegando! As Águias estão chegando!Por mais um momento o pensamento de Pippin perdurou.- Bilbo! - disse ele. - Mas não! Isso aconteceu na história dele, há muito e muito

tempo. Esta é minha história, e agora está terminada. Adeus! - E seu pensamento vooupara longe; seus olhos não viram mais nada.

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LIVRO VI

CAPÍTULO I A TORRE DE CIRITH UNGOL

Sam levantou-se do chão com muito esforço. Por um momento perguntou-se ondeestava, e então toda a desgraça e o desespero retornaram á sua mente. Estava numaescuridão profunda do lado de fora do portão inferior da fortaleza dos orcs, as portas debronze estavam fechadas. Certamente ele caíra sem sentidos quando arremessou o corpocontra elas, mas quanto tempo ficara ali deitado não sabia dizer.

Naquela hora estivera fervendo, desesperado e furioso; agora tremia de frio.Arrastou-se até as portas e colou o ouvido contra elas. De um ponto distante lá dentroconseguia escutar vozes de orcs gritando, mas logo cessaram ou ficaram fora do alcancede seus ouvidos, e tudo era silêncio. A cabeça lhe doía, e os olhos viam luzesfantasmagóricas na escuridão, mas ele lutava para se firmar e pensar. De qualquermaneira, estava claro que não havia esperança de entrar na fortaleza dos orcs por aqueleportão; ele poderia ficar ali aguardando durante dias antes que se abrisse, e não haviatempo para esperar; o tempo era desesperadamente precioso. Sam não tinha mais dúvidassobre o seu dever: deveria resgatar seu mestre ou perecer na tentativa.

- É mais provável que eu pereça, e de qualquer modo vai ser bem mais fácil - disseele num ar severo para si mesmo, recolocando Ferroada na bainha e dando as costas paraas portas de bronze. Devagar foi tateando o caminho de volta no escuro ao longo do túnel,sem coragem de usar a luz élfica; enquanto avançava, tentava recapitular osacontecimentos desde que Frodo e ele haviam partido da Encruzilhada. Perguntava-se quehoras seriam. Algum ponto entre um dia e o próximo, supunha ele; mas até mesmo dosdias ele perdera a conta. Estava numa terra de escuridão, onde os dias do mundo pareciamesquecidos e onde todos os que entravam também eram esquecidos.

- Queria saber se em algum momento eles pensam em nós - disse ele -, e o que estáacontecendo lá longe. Acenou com a mão no ar num gesto vago, mas agora na verdadeestava virado para o sul, voltando ao túnel de Laracna, e não para o oeste. No mundo láfora, no lado oeste aproximava se o meio-dia do décimo quarto dia de março, de acordocom o Registro do Condado, e nesse momento Aragorn conduzia a frota negra saindo dePelargir, e Merry cavalgava com os rohirrim, descendo o Vale das Carroças de Pedra,enquanto em Minas Tirith subiam as chamas e Pippin observava a loucura crescendo nosolhos de Denethor. Apesar disso, em meio a todas as preocupações e temores, ospensamentos de seus amigos voltavam-se constantemente para Frodo e Sam. Eles nãotinham sido esquecidos. Mas estavam fora do alcance de qualquer ajuda, e nenhumpensamento poderia trazer qualquer socorro para Samwise, filho de Hamfast; por isso, eleestava completamente sozinho.

Por fim chegou de volta à porta de pedra do corredor dos orcs, e ainda sem poderdescobrir a tranca ou o ferrolho que a mantinha fechada, arrastou-se por cima da mesmaforma que antes e deixou-se cair delicadamente no chão. Então avançou furtivamente atéa saída do túnel de Laracna, onde os farrapos de sua grande teia ainda balançavam novento frio. Pois frio lhe parecia o vento, depois da escuridão desagradável que deixarapara trás. Mas o seu sopro fez o hobbit reviver.

Arrastou-se com cautela para fora.Tudo estava funestamente quieto. A luz não passava daquela que se tem no

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crepúsculo ao fim de um dia escuro. A enorme quantidade de vapor que subia em Mordore ia flutuando em direção ao oeste ia passando baixo, uma grande onda de fumaça enuvens agora iluminada outra vez embaixo por um vermelho sombrio.

Sam ergueu os olhos para a torre dos orcs, e de repente, das estreitas janelas, luzesespiaram como pequenos olhos vermelhos. Pensou se aquilo não era algum sinal. O medoque sentira dos orcs, esquecido por um tempo em sua ira e desespero, agora retornava.Pelo que podia ver, havia um único caminho possível a tomar: deveria ir em frentetentando achar a entrada principal da pavorosa torre; mas sentia os joelhos fracos, epercebeu que estava tremendo. Desviando os olhos da torre e dos chifres da fenda diantedele, forçou seus pés relutantes a lhe obedecerem e, devagar, escutando com a máximaatenção, espiando para dentro das densas sombras das rochas ao lado do caminho, refezseus passos, passando pelo lugar onde Frodo caíra, onde ainda perdurava o fedor deLaracna, e depois foi adiante e para cima, até chegar de novo exatamente na fenda ondecolocara o Anel e vira passar a companhia de Shagrat. Então parou e sentou-se. Por ummomento não conseguiu forçar-se a avançar mais. Sentia que, se transpusesse o topo dapassagem e se realmente desse um passo descendo e penetrando a terra de Mordor, essepasso seria irrevogável. Nunca mais poderia voltar. Sem qualquer propósito claro, puxouo Anel e colocou-o de novo no dedo. Imediatamente sentiu o grande fardo de seu peso, esentiu de novo, agora mais forte e opressiva que nunca, a malícia do Olho de Mordor,perscrutando, tentando penetrar as sombras que fizera para a própria defesa, mas quenesta hora o atrapalhavam em sua inquietude e dúvida.

Como antes, Sam sentiu sua audição aguçada, enquanto para seus olhos as coisasdeste mundo pareciam tênues e vagas. As muralhas rochosas da trilha estavam pálidas,como se vistas através de uma névoa, mas ainda na distância Sam ouvia o borbulhar deLaracna em sua desgraça; e roucos e claros, parecendo estar bem próximos, ouviu o somde gritos e o entrechoque de metais. Saltou de pé e forçou o corpo contra a muralha quemargeava a trilha. Estava feliz por ter o Anel, pois ali já vinha outra companhia de orcsem marcha. Ou pelo menos foi assim que pensou a princípio. Então, de súbito, percebeuque não se tratava disso, e que sua audição o enganara: os gritos dos orcs vinham da torre,cujo chifre mais alto erguia-se agora bem diante dele, do lado esquerdo da Fenda.

Sam estremeceu e tentou forçar-se a avançar. Era claro que alguma maldade estavaacontecendo. Talvez, a despeito de todas as ordens, os orcs, dominados por sua crueldade,estivessem torturando Frodo, ou até mesmo partindo-o aos pedaços com selvageria. Ficouescutando, e teve um laivo de esperança. Não poderia haver muita dúvida: havia luta natorre, os orcs deviam estar lutando entre si, Shagrat e Gorbag haviam chegado ás vias defato. Apesar de ser uma esperança fugidia a que lhe trouxera a sua suposição, foi osuficiente para despertá-lo. Só poderia haver uma chance. Seu amor por Frodo se elevouacima de todos os outros pensamentos, e, esquecendo o perigo, Sam gritou:

- Estou chegando, Sr. Frodo!Correu para o topo da trilha ascendente e foi adiante. De súbito o caminho fez uma

curva para a esquerda e mergulhou vertiginosamente. Sam cruzara o limiar de Mordor.Retirou o Anel, movido talvez por alguma premonição profunda de perigo, emboraconsigo mesmo pensasse apenas que desejava enxergar mais claro.

- É melhor dar uma olhada no pior - murmurou ele. - Não adianta ir tropeçando naneblina!

Seu olhar deparou com uma terra dura, cruel e amarga. Diante de seus pés omaciço mais alto dos Ephel Dúath caía vertiginosamente em grandes penhascos, paradentro de uma grande vala, que do outro lado subia num outro maciço, muito mais baixo,com uma borda chanfrada e denteada, com rochedos semelhantes a presas que se

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sobressaíam negras contra um fundo de luz vermelha: era o sinistro Morgai, o circulointerno das fronteiras da terra. Muito além dele, mas quase em linha reta, através de umamplo lago de escuridão salpicado por pequenas fogueiras, havia um grande clarão defogo; dele subia em enormes colunas uma fumaça em torvelinhos, de um vermelhoempoeirado na parte inferior, negra na parte de cima, onde se misturava à abóbadaondulada que toldava toda aquela terra maldita.

Sam estava olhando para Orodruin, a Montanha de Fogo. De vez em quando, asfornalhas bem abaixo de seu pico de cinzas despejavam, em meio a grandes ondas econvulsões, rios de rocha fundida, saídos de fendas em suas encostas. Alguns corriamreluzindo na direção de Barad-dûr por grandes canais; outros traçavam um caminhosinuoso e entravam na planície de pedra, até se resfriarem e se deitarem como formasretorcidas de dragões, o vômito da atormentada terra. Sam avistou a Montanha daPerdição, e a sua luz, escondida pelo alto escudo dos Ephel Dúath dos olhos daqueles quesubiam pela estrada do oeste, agora brilhava contra as rígidas encostas rochosas, de modoque pareciam estar banhadas de sangue.

Naquela luz aterrorizante Sam parou atônito, pois agora, olhando à esquerda, eleconseguia divisar a Torre de Cirith Ungol em toda a sua força. O chifre que vira do outrolado era apenas o torreão mais alto. Seu lado leste projetava-se em três grandes patamaressobre uma saliência na encosta da montanha lá embaixo; sua parte posterior dava para umgrande penhasco, do qual saíam baluartes pontiagudos, um sobre o outro, que iam -diminuindo ao subirem, com laterais perpendiculares de habilidosa alvenaria com facespara o nordeste e o sudeste. Ao redor do patamar mais baixo, sessenta metros abaixo deonde estava Sam, havia uma parede com ameia que contornava um pequeno pátio. Seuportão, que ficava na encosta sudeste, abria-se para uma estrada larga, cujo parapeitoexterno corria sobre a borda de um precipício, até virar-se para o sul e continuar numadescida sinuosa na escuridão, para unir-se à estrada que vinha da Passagem de Morgul.Por ela então atravessava uma fissura denteada no Morgai e saía para o vale de Gorgorothe para Barad-dûr. O estreito caminho superior no qual Sam estava saltava rapidamentepara baixo através de degraus e de uma trilha íngreme, até encontrar a estrada principalsob as muralhas sinistras próximas ao Portão da Torre.

Olhando tudo aquilo Sam de repente entendeu, quase tendo um choque, que aquelafortaleza não fora construída para manter os inimigos fora de Mordor, mas para prendê-los lá dentro. Na realidade era um dos trabalhos realizados muito tempo atrás por Gondor,um posto avançado das defesas de Ithilien no leste, feito quando, depois da ÚltimaAliança, os homens do Ponente passaram a vigiar a terra maligna de Sauron, onde suascriaturas ainda rondavam. Mas como aconteceu com Narchost e Carchost, as Torres dosDentes, aqui também a vigilância fracassara, e a traição entregara a Torre para o Senhordos Espectros do Anel, e agora por longos anos ela estivera sob a posse de seresmalignos. Desde seu retorno a Mordor, Sauron a considerara útil, pois ele tinha poucosservidores mas muitos escravos do terror, e

o principal escopo da torre era ainda, como sempre, evitar a fuga de Mordor. Casoum inimigo fosse tão temerário a ponto de tentar entrar naquela terra secretamente, a torreentão era também um último guarda que nunca dormia, vigiando qualquer um quepudesse burlar a vigilância de Morgul e de Laracna.

Sam percebeu muito claramente como seria sem esperança a sua tentativa de searrastar sob aquelas paredes de muitos olhos e passar pelo portão vigilante. E, mesmo queconseguisse, não poderia avançar muito na estrada vigiada: nem mesmo as sombrasnegras, que pairavam nas profundezas onde o brilho vermelho não alcançava, poderiamprotegê-lo por muito tempo dos orcs e de seus olhos noturnos. Mas, mesmo que a estrada

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não oferecesse esperanças, sua tarefa agora era muito pior; não se tratava de evitar oportão e escapar, mas de entrar por ele, sozinho.

Seu pensamento voltou-se para o Anel, mas ali não havia consolo, só terror eperigo. Logo que conseguira avistar a Montanha da Perdição, queimando na distância,Sam percebeu uma mudança em seu fardo. A medida que se aproximava das grandesfornalhas onde, nas profundezas do tempo, o Anel fora forjado e moldado, seu podercrescia e ficava mais cruel, não podendo ser controlado a não ser que houvesse algumavontade poderosa. E no momento em que Sam parara ali, mesmo sem usar o Anel, tendo-o apenas pendurado ao pescoço, ele próprio se sentiu maior, como se estivesse vestindouma enorme sombra distorcida de si mesmo, uma ameaça enorme e ominosa parada sobreas muralhas de Mordor. O hobbit sentia que de agora em diante só tinha duas escolhas:abster-se do Anel, embora isso pudesse torturá-lo, ou reivindicá-lo, desafiando o poderque se sentava em seu escuro domínio além do vale de sombras. O Anel já o tentava,devorando sua vontade e raciocínio. Fantasias loucas despertavam em sua mente, e ele viaSamwise, o Forte, Herói do seu Tempo, caminhando a passos largos com uma espadaflamejante através da terra escurecida, e exércitos se arrebanhando a um chamado seu, nomomento em que marchava para derrotar Barad-dûr. E então todas as nuvens sedissipavam, e o sol branco brilhava, e a uma ordem sua o vale de Gorgoroth setransformava num jardim de flores e árvores que davam frutos. Ele só tinha de colocar oAnel e reivindicar a sua posse, e tudo isso podia acontecer.

Naquela hora de provação, foi o amor por seu mestre que mais o ajudou a manter-se firme; mas também, no fundo de seu ser, ainda vivia independente seu senso simplesde hobbit: sabia em seu coração que não era grande o suficiente para carregar tal fardo,mesmo que aquelas visões não fossem apenas uma mera ilusão para atraiçoá-lo. Opequeno jardim de um jardineiro livre era tudo o que desejava e de que precisava, não umjardim expandido em um reino; queria trabalhar com as próprias mãos, e não ter as mãosdos outros para comandar.

- E de qualquer forma todas essas sensações são apenas uma armadilha - disse elepara si mesmo. - Ele me acharia e me faria morrer de medo antes que conseguisse sequergritar. Ele me acharia bem rápido, se eu colocasse o Anel aqui em Mordor. Bem, tudo oque posso dizer é: as coisas parecem desastrosas como uma geada na primavera. Bem nahora em que estar invisível seria realmente útil, não posso usar o Anel! E, se conseguiravançar mais um pouco, ele não vai passar de um fardo e um peso a cada passo. Então,que devo fazer?

Na verdade, ele não estava em dúvida. Sabia que precisava descer até o portão enão ficar ali por mais tempo. Com um dar-de-ombros, como se quisesse afastar a sombrae livrar-se dos fantasmas, começou a descer lentamente. A cada passo tinha a impressãode que diminuía. Não tinha ido muito longe e já se via reduzido de novo ao tamanho deum hobbit bem pequeno e amedrontado. Estava agora passando sob as próprias muralhasda Torre, e os gritos e ruídos de luta podiam ser ouvidos sem a ajuda do Anel. Nomomento, o barulho parecia estar vindo do pátio que ficava atrás da muralha externa.

Sam estava no meio de sua descida pela trilha quando do portão escuro vieram doisorcs correndo, surgindo no clarão vermelho. Não se viraram para ele. Estavam sedirigindo para a estrada principal, mas enquanto corriam tropeçaram e caíram no chão,ficando imóveis. Sam não vira flechas. mas supunha que os orcs tinham sido feridos poroutros que estavam nas E ameias ou escondidos na sombra do portão. Avançou,encostando-se na muralha à esquerda. Um olhar para cima lhe revelara que não haviapossibilidade de escalá-la.

O trabalho em pedra se erguia a uma altura de nove metros, sem qualquer

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rachadura ou patamar, até atingir saliências que pareciam degraus invertidos. O portão erao único caminho.

Para a frente, e, enquanto avançava, perguntava-se quantos orcs viviam na Torrecom Shagrat, e quantos Gorbag tinha, e qual seria o motivo de sua discussão, se era isso oque estava acontecendo. Tivera a impressão de que a companhia de Shagrat era compostade quarenta elementos, e a de Gorbag lhe parecia mais de duas vezes maior; mas semdúvida a patrulha de Shagrat representara apenas uma parte de sua guarnição. Era quasecerteza que estavam discutindo sobre Frodo e o espólio. Por um segundo Sam parou, poisde repente as coisas lhe pareceram claras, como se as tivesse visto com os próprios olhos.O casaco de mithril! Era claro, Frodo o estava vestindo, e eles o achariam. E, pelo queSam pudera ouvir, Gorbag o cobiçava. Mas as ordens da Torre Escura eram agora a únicaproteção de Frodo, e, se fossem ignoradas, ele poderia ser morto a qualquer momento.

-Vamos lá, seu preguiçoso miserável! exclamou Sam para si mesmo.- Agora,vamos! - Sacou Ferroada e correu na direção do portão aberto. Mas, no momento em queestava prestes a passar embaixo do grande arco, sentiu um choque: como se tivesse batidocontra alguma teia como a de Laracna, mas desta vez invisível. Não conseguia enxergarobstáculo algum. mas algo forte demais para que pudesse superar pela força de suavontade barrava-lhe o caminho. Olhou ao redor, e então dentro da sombra do portão viuas Duas Sentinelas.

Eram como grandes figuras sentadas em tronos. Cada uma tinha três corposunidos, e três cabeças olhando para fora, e para dentro, e através do portão. As cabeçastinham caras de abutres, e em seus grandes joelhos descansavam mãos em forma degarras. Pareciam ter sido entalhadas em enormes blocos de pedra, imóveis, e apesar dissoestavam vigilantes: algum espírito terrível de vigilância maligna morava nelas.Conheciam quem era um inimigo. Visível ou invisível, ninguém poderia passardespercebido. Proibiriam sua entrada, ou sua fuga.

Forçando sua disposição, Sam lançou o corpo outra vez para a frente, e parou comum solavanco, cambaleando como se tivesse levado um murro na cabeça e no peito.Então, com enorme ousadia, porque não conseguia pensar em mais nada, respondendo aum pensamento repentino que lhe ocorreu, puxou lentamente o frasco de Galadriel e oergueu. Rápido a luz branca ganhou vida, e as sombras sob o arco escuro fugiram. Asmonstruosas Sentinelas continuavam ali sentadas, frias e imóveis, reveladas em toda a suaforma hedionda. Por um momento Sam capturou um faiscar nas pedras negras de seusolhos, cuja própria malícia o fez vacilar; mas lentamente sentiu que a vontade delastitubeava e desmoronava de medo. Passou por elas num salto, mas no momento em quefazia isso, escondendo o frasco de volta em seu peito, percebeu nitidamente, como se umabarra de aço tivesse descido de súbito atrás dele, que a vigilância fora renovada. Edaquelas cabeças malignas veio um grito agudo que ecoou nas altas muralhas diante dele.Lá em cima, como um sinal em resposta, um sino estridente emitiu um único toque.

- Tudo acabado! - disse Sam. - Agora toquei a campainha da porta da frente! Bem,que alguém apareça! - gritou ele. - Digam ao Capitão Shagrat que o grande GuerreiroÉlfico está aqui, e veio com sua espada élfica!

Não houve resposta. Sam avançou a passos largos. Ferroada emanava um brilhoazul em sua mão. O pátio estava envolto em sombras, mas ele podia ver que a calçadaestava coberta de corpos. Bem aos seus pés estavam dois arqueiros-orcs com facasenfiadas nas costas. Mais além jaziam muitas outras formas; algumas sozinhas, poishaviam sido golpeadas ou flechadas, outras em pares, uma ainda agarrada à outra, mortasem meio ao espasmo de golpear, esganar, morder. As pedras, borrifadas com sangueescuro, estavam escorregadias.

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Sam notou dois uniformes, um marcado com o Olho Vermelho, o outro com umaLua desfigurada, representando um rosto fantasmagórico de morte; mas ele não paroupara olhar mais atentamente. Do outro lado do pátio, uma grande porta ao pé da Torreestava entreaberta, e uma luz vermelha escapava por ela; um grande orc jazia morto nolimiar. Sam saltou por sobre o corpo e entrou; depois olhou em volta, perdido. Umcorredor largo e retumbante conduzia da porta para a encosta da montanha. Estavaparcamente iluminado com tochas de chamas trêmulas presas a suportes nas paredes, masseu fim distante se perdia na escuridão. Podiam-se ver muitas portas e aberturas dos doislados, mas o corredor estava vazio, a não ser por mais dois ou três corpos esparramadosno chão. Pelo que ouvira da conversa do capitão, Sam sabia que, vivo ou morto, Frodopoderia mais provavelmente ser encontrado num cômodo bem em cima do torreãosuperior, mas poderia levar um dia de buscas antes que Sam achasse o caminho.

- Suponho que fique perto dos fundos - murmurou Sam. - Toda a Torre sobeinclinando-se para trás. E, de qualquer forma, é melhor que eu siga essas luzes.

Avançou pelo corredor, mas agora devagar, cada passo mais relutante que oanterior. O terror estava começando a dominá-lo outra vez. Não se ouvia qualquer som,exceto a batida de seus pés, que parecia aumentar num barulho ecoante, como o estapearde grandes mãos sobre as rochas. Os cadáveres, o vazio, a umidade das paredes negrasque à luz das tochas parecia sangue escorrendo, o medo de uma morte súbita espreitandoem alguma porta ou sombra, e atrás de tudo em sua mente a malícia vigilante e atenta noportão: tudo aquilo quase ultrapassava o que ele podia forçar-se a enfrentar. Sam teriapreferido uma luta - não com muitos inimigos de uma só vez àquela hedionda e crescenteincerteza. Fez um esforço para pensar em Frodo, acorrentado, sofrendo ou morto emalgum ponto daquele lugar aterrorizante. Continuou a avançar. Já ultrapassara além da luzdas tochas, quase chegando a uma grande porta em arco no fim do corredor, o ladointerno do portão inferior, como corretamente supusera, quando ouviu lá de cima umguincho horrível e estrangulado.

Parou de repente. Então ouviu passos se aproximando. Alguém estava correndo auma grande velocidade, descendo por uma escada ecoante acima de onde Sam estava. Suaforça de vontade foi muito fraca e lenta para impedir-lhe o movimento da mão, quebuscou a corrente e agarrou o Anel. Mas Sam não o colocou no dedo, pois, no momentoem que o agarrava junto ao peito, um orc veio descendo aos trambolhões. Saltando de umburaco escuro à direita, correu na direção de Sam. Já estava a menos de seis passosquando, erguendo a cabeça, viu o hobbit, e Sam pôde ouvir sua respiração entrecortada ever o brilho em seus olhos injetados de sangue. A criatura parou de repente, aterrorizada,pois o que viu não foi um hobbit pequeno e amedrontado que tentava empunhar umaespada com firmeza: diante de seus olhos estava um grande vulto silencioso, coberto poruma sombra cinzenta, assomando contra a luz vacilante atrás de si; em uma mão seguravauma espada, cuja própria luz já representava uma dor terrível, e a outra estava fechadacontra o peito, mas escondia alguma inominável ameaça de força e destruição.

Por um momento o orc ficou agachado, e depois, com um grito hediondo de medo,virou-se e fugiu correndo por onde viera. Diante daquela fuga inesperada, Sam sentiu-semais encorajado do que qualquer cachorro quando vê o inimigo virar as costas e correrapavorado. Com um grito correu ao encalço dele.

- Sim, o Guerreiro Élfico está à solta! - gritou ele. – Estou chegando. você memostra o caminho até lá em cima, ou vou arrancar-lhe a pele!

Mas o orc estava em seus próprios domínios, era ligeiro e bem- nutrido. Sam eraum forasteiro, faminto e cansado. Os degraus eram muitos, íngremes e sinuosos. Samcomeçou a ter dificuldades para respirar. O orc logo sumiu de vista, e agora mal se

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ouviam as fracas batidas de seus pés em fuga para o alto. As vezes dava um grito, cujoeco percorria as paredes. Mas lentamente todo o ruído silenciou.

Sam avançava a duras penas. Sentia que estava no caminho certo, e sua disposiçãomelhorara bastante. Guardou o Anel e apertou o cinto.

- Bem, bem! – disse ele. - Se pelo menos todos eles sentirem por mim e minhaFerroada uma aversão semelhante, isso pode acabar melhor do que eu esperava. E, dequalquer forma, parece que Shagrat, Gorbag e companhia já fizeram quase todo otrabalho por mim. Com a exceção daquele pequeno rato apavorado, acho que não restaninguém vivo no lugar! - ao dizer isso parou, de súbito, como se tivesse batido a cabeçacontra a parede de pedra. O pleno significado do que dissera surpreendeu-o como ummurro. Não resta ninguém vivo! De quem fora aquele horrível grito agudo de morte?

- Frodo, Frodo! Mestre! - gritou ele aos soluços. - Se eles o mataram, que farei?Bem, estou chegando finalmente, exatamente ao topo, e verei o que houver para ser visto.

Foi subindo sem parar. Estava escuro, a não ser por uma tocha ocasional,bruxuleando numa curva, ou ao lado de alguma abertura que conduzia para os níveissuperiores da Torre. Sam tentou contar os degraus, mas depois de duzentos perdeu aconta. Agora se movia sem fazer ruido, pois tinha a impressão de poder ouvir o som devozes conversando, ainda bem acima. Restava mais de um rato vivo, ao que parecia.

De repente, quando sentia que não poderia mais respirar, e que seus joelhos já nãoteriam forças para se dobrar de novo, a escada terminou.

Sam ficou imóvel. As vozes agora soavam altas e próximas. Espiou ao redor.Tinha subido direto para o teto plano do terceiro e mais alto patamar da Torre: um espaçoaberto, de cerca de vinte metros de largura, com um parapeito baixo. Ali a escada eracoberta por um cômodo pequeno e abobadado no meio do teto, com portas baixas quedavam para o leste e para o oeste. A leste Sam conseguia enxergar a planície de Mordor,vasta e escura lá embaixo, e a montanha incandescente na distância. Um novo tumultoestava começando em seus profundos poços, e os rios de fogo reluziam com tanta forçaque mesmo numa distância de muitas milhas a sua luz iluminava o topo da torre com umclarão vermelho. A oeste a visão ficava bloqueada pela base do grande torreão que seerguia atrás deste pátio superior, e projetava seu chifre bem acima da borda das colinascircundantes. Uma luz vinha da fenda de uma janela. A porta ficava a menos de dezmetros de onde se encontrava Sam. Estava aberta mas escura, e de suas sombras vinhamas vozes.

No inicio Sam não prestou atenção; afastou-se um passo da porta leste e olhou aoredor. Imediatamente viu que lá em cima a luta fora acirradíssima. Todo o pátio estavaabarrotado de orcs mortos, ou ainda de cabeças e pernas decepadas. O lugar fedia a morte.Um rosnado seguido de um golpe e um grito mandou Sam de volta para seu esconderijofeito flecha. Uma voz de orc se ergueu furiosa, e Sam a reconheceu na hora, rouca, brutal,fria. Era Shagrat, o Capitão da Torre, falando.

- Está dizendo que não vai outra vez? Maldito Snaga, seu pequeno verme! Se achaque estou tão machucado que você pode zombar de mim, está errado. Venha aqui, e vouarrancar seus olhos, como acabei de fazer com Radbug. E, quando outros rapazes vierem,vou cuidar de vocês: vou enviá-los para Laracna.

- Eles não virão, não antes que você esteja morto, de qualquer forma - respondeuSnaga zangado. - Eu lhe disse duas vezes que os porcos de Gorbag chegaram ao portãoprimeiro, e nenhum dos nossos voltou de lá. Lagduf e Muzgash atravessaram correndo,mas foram alvejados. Vi de uma janela, estou lhe dizendo. E eles eram os últimos.

- Então você deve ir. Eu preciso ficar aqui, de qualquer forma. Mas estou ferido.Que os Abismos Negros recebam aquele rebelde nojento do Gorbag!

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- A voz de Shagrat começou a enfileirar uma série de palavrões e pragas.- Dei-lhe mais do que recebi, mas ele me apunhalou, aquele estrume, antes que eu

o estrangulasse. Você deve ir, ou vou devorá-lo. As noticias devem chegar a Lugbúrz, ounós dois acabaremos nos Abismos Negros. É sim, você também. Não vai escapar seescondendo aqui.

- Não vou descer esses degraus de novo - rosnou Snaga -, seja você capitão ou não.Não! Tire as mãos de sua faca, ou vou enfiar uma flecha em suas tripas. Você não serácapitão por muito tempo quando Eles ouvirem sobre tudo o que aconteceu. Lutei pelaTorre, contra aqueles ratos fedorentos de Morgul, mas vocês dois, os capitães, fizeramuma bela bagunça lutando pelo espólio.

- Já chega! - rosnou Shagrat. - Eu tinha ordens a cumprir. Foi Gorbag quemcomeçou, tentando pegar aquela bela camisa. Bem, foi você quem o deixou com raiva,com esse jeito orgulhoso e superior. E ele teve mais senso que você, de qualquer forma.Ele disse mais de uma vez que o mais perigoso desses espiões ainda estava à solta, e vocênão quis ouvir. E não quer ouvir agora. Eu lhe digo, Gorbag estava certo. Há um grandelutador por aí, um desses elfos de mãos sanguinárias, ou um dos tarks imundos. Estávindo para cá, estou lhe dizendo. Você ouviu o sino. Ele já passou pelas Sentinelas, e issoé serviço de tark. Ele está na escada. E, até que esteja longe, não vou descer. Nem quevocê fosse um nazgúl eu desceria.

- Então é assim? - gritou Shagrat. Você vai fazer isso, não vai fazer aquilo? E,quando ele vier, vai sair correndo e me deixar? Ah, não vai não! Antes disso vou fazer emsua barriga uns buracos vermelhos como fazem os vermes.

O orc menor saiu correndo pela porta do torreão. Atrás dele veio Shagrat, um orcgrande com braços compridos que, correndo ele agachado, alcançavam o chão. Mas umbraço estava ferido e parecia sangrar; o outro segurava um grande fardo preto. No clarãovermelho Sam, encolhendo-se atrás da porta da escadaria, viu de relance seu rosto mau,quando ele passou: parecia que garras cortantes o haviam rasgado, e estava sujo desangue; pingava baba de suas presas pontudas; rosnava como um animal.

Pelo que Sam pôde perceber, Shagrat perseguiu Soaga ao redor da cobertura, atéque, agachando-se e despistando-o, o orc menor arremessou-se com um grito para dentroda torre outra vez e desapareceu. Então Shagrai parou. Da porta leste Sam podia vê-loagora próximo ao parapeito, resfolegando, sua garra esquerda abrindo-se e fechando-sesem forças. Colocou o fardo no chão e com a garra direita sacou uma longa faca vermelhae cuspiu nela. Indo até o parapeito, debruçou-se, examinando o pátio externo lá embaixo.Gritou duas vezes, mas não veio nenhuma resposta.

De repente, no momento em que Shagrai se abaixava sobre a ameia, com as costaspara o topo do telhado, Sam viu surpreso que um dos corpos espalhados estava semexendo. Arrastava-se. Esticou uma garra e pegou o fardo. Levantou-se com dificuldade.Na outra mão segurava uma lança de ponta larga e haste curta quebrada.

Estava preparado para dar um golpe certeiro. Mas nesse exato momento um chiadoescapou-lhe pelos dentes, um resfolegar de dor ou ódio. Rápido como uma serpente,Shagrat deslizou para o lado, virou-se e enfiou sua faca na garganta do inimigo.

- Te peguei, Gorbag! - gritou ele. - Não está bem morto, hein? Betu agora vouterminar meu trabalho. - Saltou sobre o corpo caído e começou a pisoteá-lo e esmagá-loem sua fúria, abaixando-se vez por outra para furar e rasgar com a faca. Finalmentesatisfeito, jogou a cabeça para trás e emitiu um horrível grito gorgolejante de triunfo.Depois lambeu a faca, colocando-a em seguida entre os dentes.

Pegando então o fardo, veio mancando na direção da porta mais próxima que davapara a escadaria.

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Sam não teve tempo para pensar. Poderia ter escapado pela outra porta, mas seriapraticamente impossível não ser visto; por outro lado, não poderia brincar de esconde-esconde com aquele orc hediondo por muito tempo. Fez o que provavelmente foi amelhor coisa que poderia ter feito. Saltou contra Shagrat com um grito.

Não estava mais segurando o Anel, mas ele estava lá, um poder oculto, umaameaça assustadora para os escravos de Mordor; e em sua mão levava Ferroada, cuja luzferiu os olhos do orc como o brilho das estrelas cruéis das terríveis terras dos elfos:sonhar com aquelas estrelas já incutia um gélido terror em toda a sua espécie. E Shagratnão conseguia lutar e segurar seu tesouro ao mesmo tempo. Parou, rosnando, mostrandoas presas. Então, mais uma vez, á maneira dos orcs, saltou de lado, e, quando Sam pulousobre ele, o orc, usando o fardo pesado como escudo e arma, arremessou-o com força norosto do inimigo. Sam cambaleou e, antes que pudesse se recuperar, Shagrat passou porele como um dardo, descendo a escada.

Sam correu atrás dele, praguejando, mas não chegou muito longe. Logo opensamento em Frodo retornou-lhe á mente, e ele se lembrou de que o outro orc tinhavoltado para dentro do torreão. Ali estava outra escolha terrível, e não restava tempo paraponderar. Se Shagrat escapasse, logo conseguiria ajuda e voltaria. Mas, se Sam operseguisse, talvez o outro orc fizesse alguma coisa horrível lá em cima. E, de qualquermodo, Shagrat poderia escapar de Sam ou matá-lo. Virou-se depressa e subiu correndo aescada.

- Errado de novo, eu acho! - disse ele suspirando. - Mas meu serviço é ir primeirodiretamente para o topo, não importa o que aconteça depois.

Lá embaixo Shagrat continuou descendo a escada, saindo para o pátio e passandoatravés do portão, com seu fardo precioso. Se Sam o tivesse visto e percebido a dor quetal fuga traria, poderia ter vacilado. Mas agora sua mente estava fixa na última etapa desua procura. Chegou cautelosamente até a porta do torreão e entrou.

A porta se abria para a escuridão. Mas logo seus olhos perscrutadores perceberamuma luz fraca á direita. Vinha de uma abertura que conduzia a outra escadaria, escura eestreita: parecia ir subindo em caracol pelo torreão, ao longo do interior de sua paredeexterna, que era redonda. Uma tocha bruxuleava em algum ponto mais acima.

Sam começou a subir sem fazer ruido. Chegou até a tocha gotejante, presa acimade uma porta à esquerda, que dava para a abertura de uma janela sobre o oeste: um dosolhos vermelhos que Frodo e ele haviam visto lá debaixo, perto da boca do túnel.Depressa Sam passou pela porta e correu para o segundo pavimento, temendo a qualquerinstante ser atacado e sentir dedos estranguladores agarrarem-lhe a garganta por trás.Chegou perto de uma janela que dava para o leste e de uma outra tocha acima da porta deum corredor que passava pelo meio do torreão. A porta estava aberta e O corredor escuro,a não ser pelo brilho da tocha e o clarão vermelho lá de fora, filtrados pela fenda dajanela. Mas a escada terminava ali, e não subia mais. Sam voltou para o corredor. De cadalado havia uma porta baixa; ambas fechadas e trancadas. Não se ouvia nada.

- Beco sem saída - murmurou Sam -; e depois de tanta escalada! Este não pode sero topo da torre. Mas que posso fazer agora?

Correu de volta para o pavimento inferior e forçou a porta, que não cedeu. Correupara cima de novo, e o suor começou a escorrer-lhe pelo rosto. Sentia que os minutoseram preciosos, mas escapavam um a um, e não havia nada que pudesse fazer. Não seimportava mais com Shagrat ou Snaga ou qualquer outro orc que jamais fora parido nomundo. Só pensava em seu mestre, desejando uma visão de seu rosto ou um toque de suamão. Por fim, sentindo-se exausto e de uma vez por todas derrotado, sentou-se numdegrau abaixo do nível do corredor e curvou a cabeça, apoiando-a nas mãos. Estava tudo

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quieto, num silêncio horrível. A tocha, que já tinha um fogo baixo quando ele chegara,crepitou e se extinguiu, e Sam sentiu a escuridão cobri-lo como uma onda.

Depois, suavemente, para a sua própria surpresa, lá no remoto fim de sua longajornada e de sua tristeza, movido por um pensamento em seu coração que não sabiadistinguir, Sam começou a cantar. Sua voz soava fraca e vacilante na torre fria e escura: avoz de um hobbit exausto e desolado que nenhum orc á escuta poderia confundir com ocanto cristalino de um Senhor Élfico. Sam murmurava velhas toadas infantis do Condado,e trechos das rimas do Sr. Bilbo que lhe vinham à mente Como cenas passageiras de suaterra natal. E então, de repente, uma nova força nasceu dentro dele, e sua voz soou firme,enquanto palavras de sua Própria autoria chegaram, sem terem sido chamadas, paraencaixar-se na melodia simples.

Pode o oeste ao sol que brilhaem primavera estar,no verde em flor, do rio na trilha,o tentilhão cantarOu lá talvez em noites claras,estrelas de elfos, jóias raras,exibam seus apelos.

Embora aqui, jornada finda,tu, escuridão, me afluas,além das altas torres aindae das montanhas rijas,além das sombras vai o sole estrelas há nos céus.E não direi: "Morreu o sol"e nem direi adeus.

- Além das altas torres ainda - começou ele outra vez, e então parou de repente.Teve a impressão de ouvir uma voz fraca respondendo à sua. Mas agora não ouvia maisnada. Sim, podia ouvir alguma coisa, mas não uma voz.

Passos se aproximavam. Agora uma porta estava sendo aberta com todo o cuidadono corredor acima; as dobradiças rangeram. Sam se agachou e ficou escutando. A porta sefechou com um ruido abafado, e então soou uma voz rosnante de orc.

- Olá! Você ai em cima, seu rato estrumeiro! Pare de guinchar ou vou cuidar devocê. Está ouvindo?

Não houve resposta.- Tudo bem - rosnou Snaga. - Mas vou até ai dar uma olhada em você de qualquer

jeito, e ver o que você está aprontando.As dobradiças rangeram de novo e Sam, agora espiando por cima do canto do

limiar do corredor, viu uma faisca de luz vinda de uma porta aberta, e a forma apagada deum orc saindo por ela. Parecia estar carregando uma escada. Num lampejo, Sam percebeua resposta: para chegar ao cômodo mais alto era necessário passar por um alçapão no tetodo corredor. Snaga empurrou a escada para cima, firmou-a, e depois subiu por ela atésumir de vista. Sam ouviu um ferrolho sendo puxado. Depois ouviu a voz hediondafalando de novo.

- Deite-se ai e fique quieto, ou pagará por isso! Acho que não lhe resta muitotempo para viver em paz, mas, se não quiser que a diversão comece já, mantenha sua

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matraca fechada, está ouvindo? Aí vai um lembrete, para que não se esqueça!Fez-se um ruido como o de uma chicotada.Ao ouvir isso, o ódio ardeu no coração de Sam, transformando-se numa fúria

repentina. Saltou de pé, correu e subiu pela escada como um gato. Sua cabeça surgiu nomeio do chão de um grande cômodo redondo. Uma lâmpada vermelha pendia do teto; afenda da janela que dava para o oeste era alta e escura. Alguma coisa jazia no solo pertoda parede sob a janela mas sobre ela escarranchado aparecia o vulto negro de um orc.

Levantou o chicote uma segunda vez, mas o golpe nunca foi desferido. Com umgrito Sam saltou cruzando o chão, empunhando Ferroada. O orc virou-Se, mas antes quepudesse fazer qualquer gesto Sam decepou-lhe a mão que segurava o chicote. Uivando dedor e medo, mas enfurecido, o orc avançou sobre ele com a cabeça baixa. O próximogolpe de Sam passou longe e, perdendo o equilíbrio, ele caiu para trás, agarrando-se noorc no momento em que este tropeçava sobre seu corpo. Antes de conseguir ficar de pé,Sam ouviu um grito e um baque. O orc, em sua pressa louca, tropeçara na ponta da escadae caíra pela abertura do alçapão. Sam deixou de pensar nele. Correu para a figuraencolhida no chão. Era Frodo. Estava nu e parecia desmaiado, jazendo sobre um monte detrapos imundos: seu braço estava erguido, protegendo a cabeça, e através de seu flancodesenhava-se a feia marca de uma chicotada.

- Frodo! Sr. Frodo, meu querido! - gritou Sam, com as lágrimas quase a cegá-lo. -É Sam, eu cheguei! - Soergueu o corpo do mestre, apertando-o contra o peito. Frodo abriuos olhos.

- Ainda estou sonhando? - murmurou ele. - Mas os outros sonhos foram terríveis.- O senhor não está sonhando de jeito nenhum, Mestre – disse Sam. - É verdade.

Sou eu. Eu cheguei.- Mal posso acreditar - disse Frodo, agarrando-o. – Havia um orc com um chicote,

e então ele se transforma em Sam! Então afinal de contas eu não estava sonhando quandoescutei alguém cantando lá embaixo e tentei responder? Era você?

- Era sim, Sr. Frodo. Tinha perdido as esperanças, quase. Não conseguia encontrá-lo.

- Bem, agora conseguiu, Sam, querido Sam - disse Frodo, recostando-se nos braçosdelicados do amigo, fechando os olhos, como uma criança que descansa depois que ostemores da noite são afastados por alguma voz ou mão amada.

Sam sentia que poderia ficar ali sentado numa felicidade interminável, mas issonão era permitido. Não era suficiente que encontrasse seu mestre; tinha ainda de tentarsalvá-lo. Beijou a testa de Frodo.

- Vamos! Acorde, Sr. Frodo! - disse ele, tentando imprimir à voz o mesmoentusiasmo que costumava ter quando abria as cortinas em Bolsão numa manhã de verão.

Frodo suspirou e recostou-se.- Onde estamos? Como vim parar aqui? - perguntou ele.- Não há tempo para histórias, até chegarmos a algum outro lugar, Sr. Frodo - disse

Sam. - Mas o senhor está no topo daquela torre que nós dois vimos de lá de baixo, pertodo túnel, antes que orcs o capturassem. Quanto tempo faz eu não sei. Mais que um dia, euacho.

- Só isso? - disse Frodo. - Parecem semanas. Você precisa me contar tudo, setivermos uma chance. Alguma coisa me atingiu, não foi? E eu cai na escuridão e emsonhos ruins; depois acordei e vi que acordar foi pior. Um monte de orcs ao meu redor.Acho que tinham acabado de despejar alguma bebida horrível e ardente pela minhagarganta abaixo. Minha cabeça clareou, mas eu estava cansado e sentindo dores.Despiram-me de tudo, e então dois grandes brutos vieram me interrogar, interrogaram-me

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até que achei que ia enlouquecer, vinham por cima de mim, olhando-me com avidez,acariciando as facas. Nunca vou esquecer aqueles olhos e aquelas garras.

- Não vai mesmo, se ficar falando neles, Sr. Frodo - disse Sam. - E, se nãoquisermos vê-los de novo, quanto mais cedo sairmos daqui, melhor. Consegue andar?

- Consigo sim - disse Frodo, levantando-se devagar. - Não estou ferido, Sam. Sóme sinto muito cansado, e tenho uma dor aqui. - Colocou a mão no pescoço, acima doombro esquerdo. Ficou de pé, e Sam teve a impressão de que ele estava vestindo chamas:sua pele nua estava escarlate á luz da lamparina. Duas vezes cruzou o recinto.

- Assim está melhor! - disse ele, um pouco mais animado. - Eu não ousava memexer quando era deixado sozinho, ou um dos guardas chegava. Até que a gritaria e a lutacomeçaram. Os dois grandes brutamontes: discutiram, eu acho. Sobre mim e meuspertences. Fiquei aqui apavorado. E então tudo ficou num silêncio mortal, e isso foi pior.

- É, eles discutiram, ao que parece - disse Sam. – Devia haver umas duzentasdessas criaturas imundas neste lugar. Uma encomenda grande demais para Sam Gamgi,como diria o senhor. Mas eles mesmos se mataram. Foi um golpe de sorte, mas não hátempo para fazer uma canção sobre o acontecido, até que estejamos longe daqui. Agora,que devemos fazer"? O senhor não pode sair caminhando pela Terra Escura nu em pêlo,Sr. Frodo.

- Eles levaram tudo, Sam - disse Frodo. - Tudo o que eu tinha. Você estáentendendo? Tudo! - Agachou-se no chão de novo com a cabeça curvada, pois suaspróprias palavras lhe trouxeram a totalidade do desastre, e o desespero o dominou. - ADemanda fracassou, Sam. Mesmo que consigamos sair daqui, não poderemos escapar. Sóos elfos podem escapar. Para longe, longe da Terra-média, do outro lado do Mar. Mesmoassim, só se o Mar for vasto o suficiente para manter a Sombra longe.

- Não, nem tudo, Sr. Frodo. E a Demanda não fracassou, ainda não. Eu o peguei,Sr. Frodo, com as suas desculpas. E guardei-o a salvo. Esta em volta do meu pescoçoagora, e é um fardo terrível, sem dúvida. - Sam tateou o peito buscando o Anel nacorrente. - Mas suponho que o senhor deve pegá-lo de volta. - Agora que tinha chegado ahora, Sam relutava em desfazer-se do Anel e sobrecarregar seu mestre com ele de novo.

- Você está com ele? - disse Frodo otegante. - Esta com ele aqui. Sam, você é umprodígio! - Então o tom de sua voz mudou de forma rápida e estranha.

- Passe-o para mim! - gritou ele, levantando-se e estendendo uma mão trêmula. -Passe-o para cá imediatamente! Não pode ficar com ele!

- Está bem, Sr. Frodo - disse Sam, bastante surpreso. – Aqui esta! - Lentamentepuxou o Anel e passou a corrente sobre a cabeça. – Mas o senhor está agora na terra deMordor e, quando sair daqui, verá a Montanha de Fogo e tudo mais. Vai perceber que oAnel ficou muito perigoso agora, e muito difícil de carregar. Se for um trabalho dificil,posso dividi-lo com o senhor, quem sabe?

- Não, não! - gritou Frodo, arrebatando o Anel e a corrente das mãos de Sam. –Nada disso, seu ladrão! - Ofegante, fixava Sam com olhos esbugalhados de medo ehostilidade. Então, de repente, fechando o Anel em uma das mãos, ficou horrorizado.Uma névoa pareceu se dissipar de seus olhos, e ele passou a outra mão sobre a testa, quelhe doía. A visão hedionda lhe parecera tão real, a ele que ainda estava meio perturbadodevido ao ferimento e ao medo. Sam se transformara diante de seus olhos num orc, numorc esperto que tateava seu corpo em busca de seu tesouro, uma pequena criatura sujacom olhos ávidos e boca salivante. Mas agora a visão passara. Ali estava Sam, ajoelhadodiante dele, com o rosto contorcido de dor, como se tivesse sido apunhalado no coração;lágrimas brotavam-lhe dos olhos.

- Oh Sam! - exclamou Frodo. - Que foi que eu disse? Que foi que fiz? Perdoe-me!

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Depois de tudo o que fez. É o poder horrível do Anel. Gostaria que nunca, nunca eletivesse sido encontrado. Mas não se importe comigo, Sam. Devo carregar o fardo até ofim. Isso não se pode mudar. Você não pode intervir entre mim e esse destino.

- Está tudo bem, Sr. Frodo - disse Sam, limpando os olhos com a manga da camisa.- Eu entendo. Mas ainda posso ajudar, não posso? Preciso tirá-lo daqui. Imediatamente!Mas primeiro o senhor precisa de umas roupas, e depois de alguma comida. As roupasserão o mais fácil. Como estamos em Mordor, é melhor nos vestirmos á maneira deMordor; de qualquer forma não há escolha. Terá de ser coisa de orc para o senhor, Sr.Frodo, receio eu. E para mim também. Se vamos juntos, é melhor estarmos vestidos domesmo jeito. Agora, ponha isso em volta do corpo.

Sam abriu a capa cinzenta e jogou-a sobre os ombros de Frodo. Depois,desafivelando a mochila, colocou-a no chão. Sacou Ferroada da bainha. Mal se via umfaiscar em sua lâmina.

- Estava me esquecendo disso, Sr. Frodo – disse ele. - Não, eles não levaram tudo!O senhor me emprestou Ferroada, se pode se lembrar, e o cristal da Senhora. Ainda ostenho Comigo. Mas empreste-os por mais um pouco de tempo, Sr. Frodo. Preciso ir ver oque posso encontrar. O senhor fica aqui. Caminhe um pouco pelo quarto e descance aspernas. Não vou demorar muito.

- Tome cuidado, Sam! - disse Frodo. - E seja rápido. Pode haver orcs ainda vivos,esperando à espreita.

- Preciso arriscar - disse Sam. Dirigiu-se até o alçapão e começou a descer aescada. Num minuto sua cabeça reapareceu. Jogou uma faca comprida no chão.

- Aí está algo que pode ser útil - disse Sam. - Ele está morto: aquele que ochicoteou. Quebrou o pescoço, ao que parece, em sua pressa. Agora o senhor puxe aescada, se conseguir, Sr. Frodo; e não a desça até me ouvir dando a senha. ChamareiElbereth. O que dizem os elfos. Nenhum orc diria isso.

Frodo ficou por um tempo sentado, tremendo; medos terríveis surgiam uns atrásdos outros em sua mente. Depois levantou-se, passou a capa élfica ao redor do corpo e,para manter a mente ocupada, começou a caminhar de um lado para o outro,esquadrinhando e espiando todos os cantos da prisão. Não demorou muito tempo, emborao medo fizesse parecer que no mínimo uma hora se passara, até que ouvisse a voz de Samchamando baixinho lá de baixo: Elbereth, Elbereth. Frodo desceu a leve escada. Samsubiu, bufando, carregando um enorme fardo na cabeça. Deixou-o cair com um baquesurdo.

- Depressa agora, Sr. Frodo! - disse ele. - Tive de procurar muito atê encontraralguma coisa pequena o suficiente para pessoas como nós. Vamos ter de adaptar. Masprecisamos nos apressar. Não encontrei nada vivo, e também não vi nada, mas não estoutranquilo. Acho que este lugar está sendo vigiado. Não posso explicar, mas veja: tenhouma sensação de que um daqueles infames Cavaleiros voadores estava por perto, lá emcima na escuridão, onde não pode ser visto.

Abriu o fardo. Frodo olhou enojado para o conteúdo, mas não havia nada a fazer:tinha de vestir aquelas coisas, ou ir pelado. Havia culotes compridos e peludos da pele dealgum animal impuro, e uma túnica de couro imundo. Vestiu-os. Sobre a túnica ia umcasaco resistente de malha metálica, curto para um orc grande, mas comprido e pesadodemais para Frodo. Em volta dele prendeu um cinto, do qual pendia uma bainha curta quesegurava uma espada de lâmina larga. Sam trouxera vários capacetes de orcs. Um delesserviu bem na cabeça de Frodo, uma touca negra com aba de ferro, e arcos de ferrocobertos de couro sobre os quais estava pintado em vermelho o Olho maligno, acima deuma bicuda proteção para o nariz.

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- As coisas de Morgul, as roupas de Gorbag, eram melhores e mais bem feitas -disse Sam -, mas acho que não daria certo ficar andando em Mordor com os símbolosdele, depois do que aconteceu aqui. Bem, aí está, Sr. Frodo. Um perfeito orczinho se mepermite o atrevimento - pelo menos seria, se cobrisse o rosto com uma máscara, tivessebraços mais compridos e as pernas arqueadas. Isso vai esconder algumas marcascaracterísticas. – colocou uma grande capa negra em volta dos ombros de Frodo. - Agorao senhor está pronto! Pode apanhar um escudo no caminho.

- E você, Sam? - disse Frodo. - Nós não vamos nos vestir de forma parecida?- Bem, Sr. Frodo, estive pensando - disse Sam. - É melhor que eu não deixe nada

de minhas coisas para trás, e não podemos destruí-las. E não posso usar armadura de orcem cima de todas as minhas roupas, posso? Só preciso me cobrir.

Ajoelhou-se e com cuidado dobrou sua capa élfica, que se transformou numvolume surpreendentemente pequeno. Colocou-o na mochila que estava no chão.Levantando-se,ajeitou-a nas costas, e jogou outra capa negra nos ombros. - Pronto! -

disse ele. -Agora estamos vestidos de forma praticamente igual. E precisamos sairdaqui!

- Não posso fazer o caminho todo correndo, Sam - disse Frodo com um sorrisoforçado. - Espero que tenha tomado informações sobre estalagens ao longo da estrada! Ouvocê se esqueceu da comida e da bebida?

- Desculpe-me, mas realmente me esqueci - disse Sam. Soltou um assobio dedesânimo. - Puxa vida, Sr. Frodo, mas agora o senhor me fez sentir uma fome e uma sedeterríveis! Não sei quando foi a última vez que alguma gota ou petisco passou pelos meuslábios. Tinha esquecido, tentando encontrá-lo. Mas deixe-me pensar! A última vez queolhei, eu tinha uma quantidade suficiente de pão de viagem, e, das coisas que o CapitãoFaramir nos deu, o suficiente para me manter de pé por algumas semanas, se fossenecessário. Mas não resta mais que uma gota em minha garrafa. Não vai ser o suficientepara dois, de jeito nenhum. Os orcs não comem, e não bebem? Ou será que vivem de arsujo e veneno?

- Não, eles comem e bebem, Sam. A sombra que os criou só pode arremedar, nãopode criar: nada realmente novo que se origine dela mesma. Não acho que lhes tenhadado vida, apenas os arruinou e deformou; e, se eles tiverem de viver, precisam vivercomo as outras criaturas. Ingerem carnes pútridas e águas sujas, se não conseguirem coisamelhor, mas veneno não. Alimentaram-me, e por isso estou em melhores condições quevocê. Deve haver comida e bebida por aqui em algum lugar.

- Mas não há tempo para procurar - disse Sam.- Bem, as coisas estão um pouco melhor do que você pensa - disse Frodo. - Tive

um bocado de sorte enquanto você estava longe. É verdade que não levaram tudo.Encontrei meu saco de comida em meio a uns trapos no chão. É claro que elesvasculharam tudo. Mas acho que odiaram a mera visão e o cheiro do lembas, mais aindaque Gollum. Está tudo espalhado e alguns estão pisados e quebrados, mas juntei ospedaços. Não é muito menos do que você tem. Mas levaram a comida de Faramir, erasgaram minha garrafa de água.

- Bem, não há mais nada a dizer - disse Sam. - Temos o suficiente para começar acaminhada. Mas a água vai ser um problema. Mas venha, Sr. Frodo. Vamos! Casocontrário um lago inteiro não nos adiantará de nada!

- Não até você ter comido alguma coisa, Sam - disse Frodo. - Não vou dar umpasso. Aqui, pegue esse bolo élfico, e beba o último gole de sua garrafa! A coisa toda émuito desesperadora, então não adianta preocupasse com o amanhã. O amanhãprovavelmente não virá.

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Finalmente partiram. Desceram pela escada, que depois Sam recolheu e deitou nocorredor, ao lado do corpo amontoado do orc morto. A escadaria estava escura, mas noteto ainda se podia ver o clarão da Montanha, embora estivesse morrendo num vermelhoapagado. Apanharam dois escudos para completar o disfarce e depois avançaram. Foramdescendo aos tropeços a grande escadaria. O alto cômodo da torre lá atrás, onde se tinhamencontrado de novo, pareceu-lhes quase aconchegante: agora estavam novamente noespaço aberto, e o terror corria ao longo das paredes. Todos poderiam estar mortos naTorre de Cirith Ungol, mas ela continuava cheia de terror e maldade.

Finalmente chegaram á porta que se abria para o pátio externo, e pararam. Mesmodo ponto onde estavam podiam sentir na pele a malícia das Sentinelas, figuras negras esilenciosas dos dois lados do portão, através das quais o clarão de Mordor palidamente semostrava. Á medida que iam fazendo o caminho em meio aos corpos hediondos dos orcs,cada passo se tornava mais dificil. Antes mesmo que atingissem o arco, fizeram umaparada. Avançar um centímetro era um sofrimento e um cansaço que lhes afetava avontade e as pernas.

Frodo não tinha forças para aquela batalha. Caiu no chão.- Não posso continuar, Sam - murmurou ele. - Vou desmaiar. Não sei o que está

acontecendo comigo.- Eu sei, Sr. Frodo. Aguente firme agora! É o portão. Há algum feitiço ali. Mas eu

entrei, e vou sair. Não pode ser mais perigoso que antes. Agora vamos.Sam puxou o cristal élfico de Galadriel de novo. Como se para fazer jus à sua

coragem, e agraciar com esplendor sua fiel mão morena de hobbit que realizara tantosfeitos, o cristal brilhou de repente, de forma que todo o pátio sombrio se iluminou numairradiação ofuscante como a de um relâmpago; mas a luminosidade continuou, e não seextinguiu.

- Gilthoniel, A Elebereth! - gritou Sam. Pois, sem que ele entendesse por quê, seupensamento saltou de volta para os elfos no Condado, e para a canção que afastou oCavaleiro Negro no bosque.

- Aiya elenion ancalima! - gritou Frodo outra vez depois dele.A vontade das Sentinelas foi destruída repentinamente, como o romper-se de uma

corda, e Frodo e Sam avançaram aos trambolhões. Depois correram. Atravessaram oportão e passaram pelas grandes figuras sentadas com seus olhos faiscantes. Abriu-se umafissura.

A pedra principal do arco se quebrou, quase caindo sobre seus calcanhares, e aparede acima desmoronou, caindo em ruínas. Escaparam por um triz. Um sino tocou, edas Sentinelas subiu um gemido agudo e aterrorizante. Lá em cima na escuridão ele teveresposta. Do céu negro veio descendo como um raio uma figura alada, rasgando asnuvens com um guincho pavoroso.

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CAPÍTULO II A TERRA DA SOMBRA

Restou a Sam juízo suficiente para enfiar o frasco de volta no peito.- Corra, Sr. Frodo! - gritou ele. - Não, por ai não! Há um abismo do outro lado da

parede. Siga-me!Fugiram descendo a estrada que saía do portão. Em cinquenta passos, fazendo uma

curva fechada ao redor de uma saliência pontuda do penhasco, o caminho os levou parafora do campo de visão da Torre. Por enquanto, tinham escapado. Agachando-se contra arocha, tomaram fôlego, pondo a mão no peito. Empoleirado na muralha ao lado do portãoem ruínas, o nazgúl emitia seus gritos mortais, que ecoavam em todos os penhascos.

Aterrorizados, os dois avançaram aos tropeços. Logo a estrada fez uma curvafechada para o leste outra vez, e os expôs, durante um momento aterrorizante, á visão daTorre. Ao atravessarem correndo, deram uma olhada para trás e viram o grande vultonegro sobre a ameia; depois mergulharam entre duas altas muralhas de pedra, num corteque descia vertiginosamente para encontrar a estrada de Morgul. Chegaram à confluênciados caminhos. Ainda não havia sinal dos orcs, nem de uma resposta ao grito do nazgúl,mas eles sabiam que o silêncio não duraria muito. A qualquer momento, começaria acaçada.

- Isso não vai dar certo, Sam - disse Frodo. - Se fôssemos orcs de verdade,deveríamos estar correndo para a Torre, e não fugindo dela. O primeiro inimigo queencontrarmos nos reconhecerá. Precisamos sair desta estrada de algum jeito.

- Mas não podemos - disse Sam. - Não sem asas.As encostas orientais dos Ephel Dúath eram mais íngremes, caindo em penhascos e

precipícios para o fosso negro que se abria entre eles e a cadeia interna.Um pouco além da confluência de caminhos, depois de outra subida íngreme,

havia uma ponte suspensa de pedra que saltava sobre o abismo e unia a estrada com ooutro lado, penetrando as encostas irregulares e os vales do Morgai. Num esforçodesesperado, Frodo e Sam correram pela ponte; mas mal tinham atingido o lado opostoquando ouviram a gritaria começar. Atrás deles, agora bem lá em cima sobre a encosta damontanha, assomava a Torre de Cirith Ungol, com suas pedras de brilho baço. De repenteseu sino rouco tocou outra vez, e então irrompeu num ribombar estilhaçante.

Cornetas soaram. E agora do fim da ponte chegavam gritos em resposta. Enfiadosno abismo escuro, isolados do brilho decrescente do Orodruin, Frodo e Sam nãoconseguiam enxergar adiante, mas já ouviam o pisar de pés de pés calçados com sola deferro, e na estrada já soavam rápidas batidas de cascos.

- Rápido, Sam! Vamos pular! - gritou Frodo. Os dois treparam no parapeito baixoda ponte. Felizmente não houve mais nenhuma queda horrenda para dentro do abismo,pois as encostas do Morgai já tinham se elevado quase até o nível da estrada; mas estavaescuro demais para que eles pudessem adivinhar a altura da queda.

- Bem, lá vou eu, Sr. Frodo - disse Sam. - Adeus!Saltou. Frodo pulou atrás. No momento da queda, ouviram o tropel dos cavaleiros

velozes atravessando a ponte, e a batida dos pés dos orcs vindo logo atrás.Mas, se ousasse tanto, Sam teria dado uma risada. Meio receosos de estarem

mergulhando em rochas que não conseguiam ver, os hobbits, depois de uma queda demenos de quatro metros, aterrissaram com um baque e um rangido sobre a última coisaque esperariam: um emaranhado de arbustos espinhosos. Ali Sam ficou deitado e quieto,chupando em silêncio o sangue da mão arranhada.

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Quando o som de cascos e passos tinha cessado, aventurou-se a sussurrar algo.- Que o senhor me perdoe, Sr. Frodo, mas não sabia que alguma coisa podia

crescer em Mordor! Mas, se soubesse, era exatamente isso que teria procurado. Essesespinhos devem ter uns trinta centímetros de comprimento, a julgar pelas espetadas;perfuraram tudo o que estou vestindo. Gostaria de poder ter vestido aquela camisa demalha metálica!

- As malhas dos orcs não protegem contra esses espinhos - disse Frodo. - Nemmesmo um gibão de couro faria qualquer efeito.

Foi dificil saírem da moita. Os espinheiros eram duros como ferro, e prendiamcomo garras. As capas já estavam rasgadas e estraçalhadas antes de conseguiremfinalmente se libertar.

- Agora, para baixo, Sam - sussurrou Frodo. - Vamos descer depressa para o vale, edepois virar para o norte, o mais depressa possível.

O dia chegava mais uma vez no mundo lá fora, e bem distante da escuridão deMordor o sol escalava a borda leste da Terra-média; mas ali onde estavam tudo ainda eraescuro feito noite. A Montanha se apagou e suas chamas se extinguiram. O clarãodesapareceu dos penhascos. O vento leste que estivera soprando desde que os dois hobbitspartiram de Ithilien agora parecia morto. Com lentidão e sofrimento, foram descendo,tateando, tropeçando, cambaleando em meio a pedras, espinheiros e madeiras mortas nassombras cegas, cada vez mais para baixo, até que não conseguiram mais avançar.

Por fim pararam,sentando-se lado a lado, recostados num bloco de pedra. Ambosestavam suando. - Se Shagrat em pessoa me oferecesse um

copo de água, eu aceitaria apertar-lhe a mão - disse Sam.- Não mencione tais coisas! - disse Frodo. - Isso só piora tudo. - Depois

espreguiçou-se, atordoado e exausto, e ficou sem dizer nada por um tempo. Finalmente,com um esforço, levantou-se de novo. Para seu espanto, viu que Sam adormecera.

- Acorde, Sam! - disse ele. - Vamos, já é hora de fazermos um outro esforço.Sam levantou-se com dificuldade. - Nunca me aconteceu isso! - disse ele. - Devo

ter caído no sono. Faz muito tempo, Sr. Frodo, que não durmo de forma adequada, e meusolhos simplesmente se fecharam sozinhos.

Agora Frodo ia na frente, tentando da melhor maneira possível adivinhar ocaminho para o norte, em meio a rochas e blocos de pedra que se amontoavam no fundodo precipício. Mas de repente parou de novo.

- Não adianta, Sam - disse ele. - Não consigo. Esta camisa de malha, quero dizer.Não no meu estado atual. Até mesmo meu casaco de míthril parecia pesar quando euestava cansado. Isto aqui é muito mais pesado. E para que serve? Não vamos conseguirabrir caminho lutando.

- Mas pode ser que precisemos lutar um pouco - disse Sam.- E há facas e flechas perdidas. Aquele Gollum não está morto, para começo de

conversa. Não gosto de pensar no senhor sem mais nada além de um pedaço de couroentre o corpo e uma punhalada no escuro.

- Olhe aqui, Sam, meu rapaz - disse Frodo. – Estou cansado, exausto e não meresta nenhuma esperança. Mas preciso continuar tentando chegar à Montanha, enquantopuder me mover. Mas não ache que sou mal-agradecido. Odeio pensar no serviço sujo quevocê deve ter tido em meio aos corpos para achar esta malha de orc para mim.

- Não fale nisso, Sr. Frodo. Por favor! Eu o carregaria nas costas, se pudesse. Tireentão a malha. Frodo colocou de lado a capa e tirou a malha de orc, jogando-a longe.Tremeu um pouco.

- O que preciso na verdade é de alguma coisa quente - disse ele. - Ficou frio, ou

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então peguei um resfriado.- Pode usar minha capa, Sr. Frodo - disse Sam. Tirou das costas a mochila e puxou

dela a capa élfica. - Que tal, Sr. Frodo? - disse ele. - O senhor se embrulha com o farrapode orc e o prende com o cinto. Depois pode vestir a capa em cima de tudo. Não se parecemuito com roupa de orc, mas vai mantê-lo mais aquecido, e arrisco ainda dizer que vaiprotegê-lo bem mais que qualquer outra coisa. Foi feito pela Senhora.

Frodo pegou a capa e fixou o broche.-Assim está melhor! – disse ele.- Sinto-me muito mais leve. Agora posso continuar. Mas estaescuridão cega parece estar penetrando em meu coração. Enquanto estava deitado

na prisão, Sam, eu tentava me lembrar do Brandevin, e de Ponta do Bosque, e do Águapassando pelo moinho na Vila dos Hobbits. Mas agora não consigo visualizá-los.

- Olhe lá, Sr. Frodo, desta vez é o senhor quem está falando em água! - disse Sam.- Se pelo menos a Senhora pudesse nos ver ou nos ouvir, eu diria a ela: "Minha Senhora,tudo o que queremos é luz e água: apenas água limpa e a luz de um dia claro, coisasmelhores que qualquer jóia, com as devidas desculpas." Mas estamos muito longe deLórien. - Sam suspirou e acenou a mão na direção das alturas dos Ephel Dúath, que agorasó se podiam adivinhar como um negrume mais profundo contra o céu negro.

Partiram de novo. Não tinham ido muito longe quando Frodo parou.- Há um Cavaleiro Negro acima de nós - disse ele. - Posso sentir. É melhor

ficarmos parados por um tempo.Escondendo-se sob um grande bloco de pedra, os dois se sentaram virados para o

oeste, e ficaram sem falar por algum tempo. Depois Frodo deu um suspiro de alivio. -Passou - disse ele. Levantaram-se e então ambos olharam assombrados. Mais ao longe, àesquerda, ao sul, contra um céu que ia se acinzentando, os picos e as altas cadeias dagrande cordilheira começavam a surgir escuros e negros em formas definidas. A luzestava crescendo atrás deles. Devagar avançava na direção do norte. Uma batalha estavaacontecendo lá em cima, nos altos espaços do ar. As nuvens pesadas de Mordor estavamsendo varridas para trás, suas bordas se rasgando á medida que um vento que chegava domundo vivo ia afastando a fumaça e o vapor na direção da terra escura de onde tinhamsurgido. Sob as orlas daquele dossel melancólico que se erguia, uma luz fraca se infiltravapara dentro de Mordor como uma manhã pálida através da janela encardida de umaprisão.

- Olhe, Sr. Frodo! -, disse Sam. - Olhe lá! O vento mudou. Alguma coisa estáacontecendo. Nem tudo está acontecendo exatamente como Ele quer. Sua escuridão estáse rompendo no mundo lá fora. Gostaria de ver o que está se passando!

Era a manhã do décimo quinto dia de março, e sobre o Vale do Anduin o sol subiaacima da sombra do leste, e o vento sudoeste soprava. Théoden jazia agonizante nosCampos do Pelennor.

Naquele momento em que Sam e Frodo pararam para observar, a faixa de luz seespalhou ao longo de toda a cadeia dos Ephel Dúath, e então os dois viram uma sombra,movendo-se a uma grande velocidade e vindo do oeste, a princípio apenas um pontonegro contra a tira reluzente acima dos topos das montanhas, mas crescendo sempre, atémergulhar como um raio dentro do dossel negro e passar muito acima deles. Quandoavançou, emitiu um longo grito agudo, a voz de um nazgúl; mas aquele grito não tevemais qualquer efeito de terror sobre eles: era um grito de aflição e assombro, más noticiaspara a Torre Escura. O Senhor dos Espectros do Anel encontrara seu fim.

- Que foi que eu disse? Alguma coisa está acontecendo! – exclamou Sam. -Shagrat disse: "A guerra está indo bem"; mas Gorbag não estava tão certo. E nesse ponto

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ele também tinha razão. As coisas estão melhorando, Sr, Frodo. Agora o senhor não temalguma esperança?

- Bem, não muita, Sam - suspirou Frodo. - Aquilo está acontecendo lá longe, alémdas montanhas. Estamos indo para o leste, não para o oeste. E estou tão cansado! E oAnel pesa tanto, Sam. E começo a vê-lo em minha mente todo o tempo, como uma granderoda de fogo.

O entusiasmo de Sam voltou a arrefecer imediatamente. Olhou para seu mestrecheio de ansiedade, e tomou-lhe a mão.

- Vamos, Sr. Frodo - disse ele. - Consegui uma coisa que desejava: um pouco deluz. O suficiente para nos ajudar, mas suponho que também seja perigosa. Tente avançarum pouco mais, e então vamos deitar perto um do outro e descansar um pouco. Mas comaalguma coisa agora, um pouco da comida dos elfos; pode trazer-lhe mais coragem.

Dividindo um bolo de lembas, e mastigando-o da melhor maneira possível comsuas bocas ressecadas, Frodo e Sam continuaram aos tropeços. A luz, embora fosse fracacomo a de um crepúsculo cinzento, era agora suficiente para permitir que os dois vissemque estavam afundados no vale entre as montanhas. A encosta subia suavemente rumo aonorte, e no fundo passava o leito de um riacho, que agora estava seco e morto. Além deseu curso pedregoso eles viram um caminho batido que corria sinuoso sob os pés dospenhascos a oeste. Se soubessem, poderiam ter chegado até ali mais rápido, pois tratava-se de uma trilha que abandonava a estrada principal de Morgul na extremidade ocidentalda ponte e ia descendo através de uma longa escada cortada na pedra até o fundo do vale.Era usada por patrulhas ou por mensageiros que precisavam chegar rápido a postos efortalezas secundários que ficavam mais ao norte, entre Cirith Ungol e os estreitos daBoca Ferrada, as mandíbulas de ferro de Carach Angren.

Usar tal trilha era perigoso para os hobbits, mas eles precisavam de rapidez, eFrodo sentia que não conseguiria enfrentar o esforço de descer por entre os blocos depedra ou pelos vales sem trilhas do Morgai. E ele achava que o caminho do norte era,talvez, o que os perseguidores julgariam menos provável para eles dois. O inimigovasculharia com todo o cuidado a estrada ao leste para a planície, ou a passagem quevoltava para o Oeste. Só quando estivesse bem ao norte da Torre é que ele pretendiamudar de rumo e procurar algum caminho que os levasse para o leste, na última e maisdesesperada etapa de sua jornada. Por isso, eles agora atravessaram o leito pedregoso etomaram a trilha dos orcs, e por algum tempo avançaram ao longo dela. Os penhascos àesquerda projetavam-se para a frente, e os dois hobbits não podiam ser vistos de cima;mas a trilha fazia muitas curvas, e a cada curva eles levavam a mão até o punho de suasespadas e avançavam com toda a cautela.

A luz não ficou mais forte, pois o Orodruin ainda expelia uma grande quantidadede vapor que, chocando-se lá no alto com os ares em sentido contrário, subia cada vezmais, até atingir uma região acima do vento onde se espalhava num teto incomensurável,cujo pilar central subia das sombras além do limite da visão. Já tinham se arrastado pormais de uma hora quando ouviram um som que os fez parar. Inacreditável, masinconfundível. Água correndo. Por uma fenda do lado esquerdo, tão profunda e estreitaque parecia que o penhasco negro tinha sido partido por um enorme machado, a águapingava: as últimas sobras, talvez, de alguma chuva suave recolhida de maresensolarados, mas que tivera o mau destino de cair finalmente sobre as muralhas da TerraNegra e de escorrer infrutífera para desaparecer em meio á poeira. Naquele ponto ela saíada rocha num pequeno filete, que depois de um salto atravessava a trilha, e virando-separa o sul fugia veloz para se perder em meio ás pedras mortas.

Sam saltou na direção da água.

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-Se algum dia eu encontrar a Senhora de novo, direi a ela! - gritou ele. - Luz, eagora água! – Então parou. - Deixe-me beber primeiro, Sr. Frodo - disse ele.

- Está certo, mas há espaço suficiente para os dois.- Não quis dizer isso - disse Sam. - Quero dizer: se for venenosa, ou alguma coisa

que logo mostrará seu efeito maligno, bem, antes eu que o senhor, mestre, se o senhor meentende.

- Entendo. Mas acho que vamos confiar em nossa sorte juntos, Sam; ou em nossabênção. Mesmo assim, tenha cuidado agora; talvez esteja gelada demais!

A água estava fresca, mas não fria como gelo, e tinha um gosto desagradável, aomesmo tempo amargo e oleoso, ou pelo menos era isso que os dois teriam dito lá em casa.Aqui a água parecia estar acima de qualquer elogio, e além do medo ou da prudência.Beberam á vontade, e Sam reabasteceu a garrafa.

Depois disso Frodo se sentiu melhor, e eles continuaram por várias milhas, até queo alargamento da estrada e a presença de uma parede áspera ao longo da borda osadvertiram de que estavam chegando perto de alguma outra fortaleza orc.

- É aqui que mudamos de rumo, Sam - disse Frodo. – E devemos virar para o leste.- Suspirou ao olhar para as cordilheiras lúgubres do outro lado do vale. - Só me restamforças suficientes para procurar algum buraco lá em cima. Depois preciso descansar umpouco.

Agora o leito do rio estava um pouco abaixo da trilha. Desceram até ele, ecomeçaram a atravessar. Para a surpresa dos dois, depararam com poças escuras,alimentadas por fios de água que vinham descendo de alguma fonte nas encostas do vale.Nas bordas externas, sob as montanhas a oeste, Mordor era uma terra agonizante, mas queainda não morrera. E ali as coisas ainda cresciam, ásperas, retorcidas, amargas, lutandopela vida. Nas fendas do Morgai, do outro lado, árvores baixas e raquíticas sependuravam à espreita, touceiras de capim grosso e cinzento lutavam com as pedras queeram cobertas de musgos esbranquiçados; por todo lado espalhavam-se grandesemaranhados de sarças retorcidas. Algumas tinham espinhos longos e cortantes, outrasexibiam farpas em forma de gancho que rasgavam como facas. As folhas sombrias emurchas de um ano anterior pendiam delas, rangendo e rilhando nos ares tristes, mas seusrebentos habitados por vermes estavam apenas se abrindo. Moscas, pardas, cinzentas ounegras, marcadas como os orcs com uma mancha no formato de um olho vermelho,zumbiam e picavam; sobre os maciços de urzais, nuvens de mosquitos famintosrodopiavam e dançavam.

- Roupa de orc não adianta - disse Sam, abanando os braços. - Gostaria de tercouro de orc.

Por fim Frodo não conseguia avançar mais. Os dois tinham escalado uma gargantaestreita e inclinada, mas ainda havia um longo caminho para percorrer antes mesmo quepudessem avistar a última cordilheira escarpada.

- Preciso descansar agora, Sam, e dormir, se puder - disse Frodo.Olhou ao redor, mas naquela terra desolada parecia não haver lugar algum onde

mesmo um animal pudesse se aconchegar. Finalmente, exaustos, os dois se esconderamsob uma cortina de sarças que pendiam como um tapete por sobre uma encosta rochosabaixa. Ali se sentaram e fizeram a refeição que lhes foi possível.

Reservando o precioso lembas para os dias penosos à frente, comeram metade daprovisão de Faramir que restara na mochila de Sam: um pouco de fruta seca, e uma fatiafina de carne defumada; beberam também uns goles de água. Tinham bebido outra vez aágua nas poças do vale, mas estavam muito sedentos de novo. Havia um resquício amargono ar de Mordor que ressecava a boca. Quando Sam pensava em água, até mesmo seu

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espírito cheio de esperança fraquejava. Além do Morgai deveriam atravessar aaterrorizante planície de Gorgoroth.

- Agora o senhor dorme primeiro, Sr. Frodo - disse ele. – Está ficando escuro denovo. Calculo que este dia esteja quase terminado.

Frodo suspirou e adormeceu quase antes de Sam terminar suas palavras. Samlutava contra o próprio cansaço, e segurou a mão de Frodo, e assim, sentado, até que anoite profunda caiu. Então, por fim, para manter se acordado, saiu do esconderijo e ficouobservando. A região parecia cheia de estalos, rangidos e ruídos dissimulados, mas nãohavia som de vozes ou passos. Bem acima dos Ephel Dúath, no oeste, o céu noturnoestava Pálido e baço. Lá, espiando por entre os restos de nuvens sobre uma rochapontiaguda nas montanhas, Sam viu uma estrela branca reluzir por uns momentos. Suabeleza arrebatou-lhe o coração, quando desviou os olhos da terra desolada, e ele sentiu aesperança retornar. Pois como um raio, cristalino e frio, invadiu-o o pensamento de queafinal de contas a Sombra era apenas uma coisa pequena e passageira: havia luz e umabeleza nobre que eram eternas e estavam além do alcance dela. A canção que cantara natorre fora mais um desafio que uma esperança, pois naquela hora pensara em si mesmo.Agora, por um momento, sua própria sorte, e até a de seu mestre, deixaram de preocupá-lo. Sam voltou às sarças e se deitou ao lado de Frodo, e, deixando de lado todo o medo,mergulhou num sono profundo e despreocupado.

Acordaram juntos, de mãos dadas. Sam estava quase refeito, pronto para um outrodia, mas Frodo suspirava. Dormira um sono inquieto, cheio de sonhos com fogo, eacordar não lhe trouxe consolo algum. Mesmo assim, seu sono não deixara de ter umpoder restaurador: sentia-se mais forte, mais apto a suportar seu fardo na próxima etapa.Os dois não sabiam que horas eram, nem por quanto tempo tinham dormido; mas, depoisde um bocado de comida e um gole de água, continuaram subindo a garganta, até que elaterminou numa ladeira íngreme cheia de entulho e pedras escorregadias. Nesse ponto osúltimos seres vivos desistiram de sua luta; os topos do Morgai eram desprovidos devegetação, pontiagudos, nus como uma lousa.

Depois de muito vagar e procurar, encontraram um caminho pelo qual poderiamsubir, e com mais uns trinta metros de escalada usando mãos e pés estavam lá em cima.Atingiram uma fenda entre dois rochedos escuros, e passando no meio viram-seexatamente na borda da última divisa de Mordor. Abaixo, no fundo de um precipício decerca de quatrocentos e cinquenta metros, jazia a planície interna, espalhando-se numaescuridão disforme que sumia de vista. O vento do mundo soprava agora do oeste, e asgrandes nuvens subiam alto, flutuando para o leste; mas mesmo assim apenas uma luzcinzenta chegava aos campos desolados de Gorgoroth.

Ali a fumaça subia do chão e espreitava nas concavidades; vapores escapavam dasfissuras da terra.

Ainda distante, pelo menos a quarenta milhas, os dois viram a Montanha daPerdição, com seus pés ancorados em ruínas de cinza, seu enorme cone subindo a umaaltura impressionante, onde sua cabeça estava envolta em densas nuvens. Suas chamasestavam agora enfraquecidas, e a Montanha parecia dormir num sono sem fogo,ameaçadora e perigosa como uma fera adormecida. Atrás dela pairava uma sombra vasta,ominosa como um céu de trovoada; eram os véus de Barad-dûr que agora surgia nadistância, sobre um longo espinhaço das Montanhas Cinzentas que se projetava do norte.O poder Escuro estava afundado em pensamentos, e o Olho se voltava para dentro,ponderando acontecimentos que traziam dúvida e medo: uma espada brilhante, um rostosevero de rei, eram o que ele via, e por um tempo deu pouca atenção às outras coisas; etoda a sua grande fortaleza, portão sobre portão, e torre sobre torre, estava envolta numa

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escuridão crescente.Frodo e Sam observaram toda aquela terra odiosa num misto de repugnância e

espanto. Entre eles e a montanha fumegante, e ao redor dela ao norte e ao sul, tudoparecia arruinado e morto, um deserto queimado e sufocado. Ficaram imaginando como oSenhor daquele reino conseguia manter e alimentar seus escravos e exércitos. Pois eletinha exércitos. Até onde a vista alcançava, ao longo das bordas do Morgai e mais além,ao sul, havia acampamentos, alguns feitos de tendas, e outros organizados como pequenascidades. Uma das maiores estava bem abaixo deles. A menos de uma milha de distânciana planície, ela se amontoava como um enorme ninho de insetos, com ruas retas e áridascheias de barracos e longos prédios baixos e sem cor. Pela cidade o chão estava apinhadode gente indo de um lado para o outro; uma estrada larga saía do povoado em direção aosudeste para encontrar o caminho de Morgul, e ao longo dela corriam muitas fileiras depequenas figuras negras.

- Não gosto nem um pouco da aparência das coisas – disse Sam. - Bastantedesesperadoras, eu diria a não ser pelo fato de que um bando de gente assim deve terpoços ou água, para não falar em comida. E estes são homens, não orcs, ou meus olhosestão completamente enganados.

Nem ele nem Frodo sabiam coisa alguma sobre os grandes campos de trabalhoescravo mais ao sul daquele vasto reino, além da fumaça da Montanha, próximos às águasescuras e tristes do Lago Núrnen; nem das grandes estradas que corriam para o leste epara o sul, levando a terras que pagavam tributo a Mordor, das quais os soldados da Torretraziam longos comboios de carroças com mercadorias, produtos de saques e novosescravos. Ali, nas regiões do norte, havia minas e forjas, e a concentração de tropas parauma guerra longamente planejada; ali o Poder Escuro, movendo Seus exércitos comopeças num tabuleiro, os estava reunindo. Seus primeiros movimentos, seus primeirostestes de força, haviam sido feitos sobre a linha ocidental, ao norte e ao sul. Agora osretirara, trazendo novas forças, preparando ao redor de Cirith Gorgor um golpe vingador.E, se também fosse o seu propósito defender a Montanha contra qualquer aproximação,dificilmente poderia ter feito trabalho melhor.

- Bem" - continuou Sam. - O que quer que eles tenham para comer e beber, nãopodemos consegui-lo. Pelo que posso ver, não há caminho para descermos.

E nós não poderíamos atravessar toda aquela terra aberta infestada de inimigos,ainda que conseguíssemos descer.

- Mesmo assim precisamos tentar - disse Frodo. - Não é pior do que eu esperava.Nunca tive esperanças de atravessar. E não consigo ver qualquer esperança agora. Masainda preciso fazer o melhor que puder. No momento isso significa evitar ser capturadoenquanto for possível. Então acho que ainda precisamos rumar para o norte, e ver como éali, onde a planície aberta é mais estreita.

- Acho que sei como vai ser - disse Sam. - Onde é mais estreita os orcs e homensestarão mais amontoados. O senhor vai ver, Sr. Frodo.

- Arrisco dizer que vou, se conseguirmos ir tão longe – disse Frodo, virando-se.Logo viram que era impossível avançar por sobre a crista do Morgai, ou em

qualquer ponto ao longo dos níveis mais altos, que eram sem trilhas e cheios de fissurasprofundas. No fim foram forçados a descer de volta para o precipício que tinham escaladoe a procurar um caminho ao longo do vale. Foi uma caminhada árdua, pois eles não searriscaram a atravessar até a trilha na encosta oeste. Depois de uma milha ou mais os doisviram, abrigada numa concavidade ao pé do penhasco, a fortaleza orc que jáadivinhavam estar bem próxima: uma muralha e um aglomerado de casebres de pedra,espalhados ao redor da boca escura de uma caverna. Não se via movimento algum, mas os

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hobbits passaram por ela com toda a cautela, mantendo-se o mais perto possível dosarbustos espinhosos que cresciam densos nesse ponto, ao longo dos dois lados do velhocurso de água. Avançaram mais duas ou três milhas, e a fortaleza orc se escondeu atrásdeles; mas mal tinham recomeçado a respirar com mais liberdade quando ouviram vozesde orcs, altas e rudes. Rapidamente se esgueiraram para um esconderijo atrás de umarbusto escuro e atrofiado. As vozes se aproximaram. De repente dois orcs surgiram. Umestava vestido em farrapos castanhos e armado com um arco de chifre: era de uma raçapequena, tinha a pele negra e vinha farejando com as largas narinas: evidentemente algumtipo de batedor. O outro era um grande orc lutador, parecido com os da companhia deShagrat, ostentando o símbolo do Olho. Também trazia um arco nas costas e carregavauma lança curta de cabeça larga. Como de costume, estavam discutindo, e, sendo de raçasdiferentes, usavam a Língua Geral à sua maneira. A menos de vinte passos de onde oshobbits estavam á espreita o orc pequeno estacou.

- Agora! - rosnou ele. - Vou para casa. – Apontou através do vale para a fortalezaorc. - Não adianta mais ficar gastando meu nariz em pedras. Não resta nenhum vestígio,estou dizendo. Perdi o rastro seguindo o que você falou. O rastro subiu pelas colinas, nãofoi ao longo do vale, estou dizendo.

- Vocês, farejadorezinhos, não servem para muita coisa - disse o orc grande. -Acho que olhos são melhores que seu nariz ranhento.

- Então o que você viu com eles? - rosnou o outro. - Besteira! Você nem sabe oque está procurando.

- E de quem é a culpa? -disse o soldado. - Minha é que não. Isso vem Lá de Cima.Primeiro dizem que é um grande elfo vestido com armadura brilhante, depois é um tipopequeno de homem-anão, depois deve ser um bando de uruk-hai rebelde; ou ainda podeser tudo isso junto.

- Ah! - disse o batedor. - Eles perderam a cabeça, isso é que é. E alguns dos chefesvão perder a pele também, eu acho, se o que ouvi for verdade: Torre atacada e tudo mais,e centenas de seus rapazes assassinados, e prisioneiro que fugiu. Se é assim que vocêsfazem, não me admira que haja más notícias sobre as batalhas.

- Quem disse que há más notícias? - gritou o soldado.- E quem disse que não?- Isso é conversa dos malditos rebeldes, e vou perfurá-lo, se não calar a boca, está

entendendo?- Está certo! Está certo! - disse o batedor. - Não vou dizer mais nada e vou

continuar pensando. Mas o que o ladrão preto tem a ver com tudo isso? Aquele comilãodas mãos chatas?

- Não sei. Nada, talvez. Mas ele não está metido em coisa boa, xeretando por aí, euaposto. Maldito! Foi só ele ter escapado de nós e fugido e chegaram ordens dizendo que oquerem vivo, e depressa.

- Bem, espero que o encontrem vivo, e o façam passar um mau pedaço - rosnou obatedor. - Ele confundiu o rastro lá atrás, pegando aquele casaco de malha que achoujogado no chão, e chapinhando por todo o lugar antes que eu chegasse lá.

- Isso lhe salvou a vida, de qualquer forma - disse o soldado. - Veja bem, antes desaber que o queriam eu atirei nele, um golpe certeiro, a cinquenta passos,

bem no meio das costas, e ele continuou correndo.- Bobagem! Você errou a pontaria - disse o batedor. – Primeiro você golpeia ao

léu, depois corre muito devagar, e só depois manda chamar os pobres batedores. Estoucheio de você. - Ao dizer isso, disparou a correr.

-Volte aqui - gritou o soldado-, ou vou denunciar você!

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- Para quem? Não para o seu precioso Shagrat. Ele não vai mais ser capitão.- Vou dar seu nome e número para os nazgúl - disse o soldado, abaixando a voz

num chiado. - Um deles é o encarregado da Torre agora.O outro parou, e sua voz se encheu de medo e ódio.- Seu maldito espião, delator, ladrão! - gritou ele. - Não consegue fazer o seu

serviço, e nem ser leal ao seu próprio povo. Vá para os seus Guinchadores sujos, e queeles arranquem sua pele! Se o inimigo não o pegar primeiro. Ouvi dizer que assassinaramo Número Um, e espero que seja verdade!

O orc grande, de lança na mão, correu atrás dele. Mas o batedor, saltando de trásde uma pedra, enterrou uma flecha no olho do soldado que vinha correndo, e que a seguircaiu com um baque. O outro fugiu através do vale e desapareceu.

Por um tempo os hobbits continuaram em silêncio. Por fim Sam se manifestou.- Bem, isso é o que eu chamo de golpe certeiro - disse ele. - Se esse espírito de

amizade se espalhasse em Mordor, metade de nossos problemas estariam terminados.- Quieto, Sam - sussurrou Frodo. - Pode haver outros por aí. É evidente que

escapamos por pouco, e a caçada estava mais perto de nosso rastro do que imaginávamos.Mas este é o espírito de Mordor, Sam; está espalhado em todos os seus cantos. Os orcssempre se comportam assim quando estão sozinhos, pelo menos é o que contam ashistórias. Mas você não pode alimentar muita esperança a partir desse fato. Eles nosodeiam muito mais, todos eles e o tempo todo. Se aqueles dois nos tivessem visto, teriamsuspendido a discussão até estarmos mortos.

Fez-se outro longo silêncio. Sam o interrompeu de novo, desta vez com umsussurro.

- O senhor ouviu o que eles falaram sobre aquele comilão, Sr. Frodo? Eu lhe disseque Gollum ainda não estava morto, não disse?

- Sim, eu me lembro. E fiquei me perguntando como você sabia - disse Frodo.- Bem, vamos lá! Acho que é melhor não sairmos daqui enquanto não estiver bem

escuro. Então você pode me contar como é que sabe, e tudo o que aconteceu. Isso se nãofizer muito barulho.

- Vou tentar - disse Sam -, mas, quando penso naquele Fedegoso, fico com tantaraiva que poderia gritar.

Lá ficaram os hobbits sentados sob a proteção do arbusto espinhoso, enquanto aluz desolada de Mordor desaparecia devagar dentro de uma noite profunda e sem estrelas.Sam contou aos ouvidos de Frodo, com as melhores palavras que pôde encontrar, tudosobre o ataque traiçoeiro de Gollum, sobre o horror de Laracna, e suas próprias aventurascom os orcs. Quando terminou, Frodo não disse nada, mas tomou-lhe a mão e a apertou.Finalmente se moveu.

- Bem, suponho que precisamos continuar outra vez - disse ele. Fico pensandoquanto tempo levará até que realmente sejamos capturados e termine todo o esforço e anecessidade de nos escondermos, em vão. - Levantou-se. – Está escuro, e não podemosusar o cristal da Senhora.

Guarde-o em segurança para mim, Sam. Não tenho onde guardá-lo agora, a não serem minha mão, e vou precisar das duas mãos nesta noite cega. Quanto a Ferroada, ela ésua. Tenho uma espada de orc, mas não acho que será meu papel desferir qualquer golpeoutra vez.

Foi dificil e perigoso para os dois avançar durante a noite naquela terra sem trilhas,mas lentamente e á custa de muitos tropeços eles conseguiram prosseguir com esforçopara o norte, hora após hora, ao longo da borda leste do vale pedregoso. Quando surgiuuma luz cinzenta sobre as montanhas ocidentais, muito depois de o dia se abrir nas terras

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distantes, esconderam-Se de novo e dormiram um pouco, revezando-se. Nas horas devigília Sam se ocupava pensando em comida. Por fim, quando Frodo despertou e falou emcomer e se preparar para mais um esforço, ele fez a pergunta que mais preocupava suamente.

- Com as minhas desculpas, Sr. Frodo - disse ele -, mas o senhor tem alguma noçãode quanto ainda teremos de caminhar?

- Não, não tenho nenhuma noção clara, Sam - respondeu Frodo. – Em Valfenda,antes de partirmos, mostraram-me um mapa de Mordor que foi feito antes de o Inimigoretornar para cá, mas só me lembro dele vagamente. O que recordo com mais clareza éque havia um lugar no norte onde a cordilheira ocidental e a do norte projetavamcontrafortes que quase se encontravam. Isso deve ficar no mínimo a vinte léguas da pontelá atrás, perto da Torre. Pode ser um bom ponto para atravessarmos. Mas, é claro, sechegarmos lá, estaremos mais longe da Montanha do que estávamos, a umas sessentamilhas dela, eu acho. Suponho que já nos afastamos doze léguas da ponte, rumando parao norte. Mesmo que tudo corra bem, eu não conseguiria chegar á montanha em menos deuma semana. Temo, Sam, que o fardo fique muito pesado, e que eu avance cada vez maisdevagar à medida que formos nos aproximando.

Sam suspirou.- Era exatamente isso que eu temia - disse ele. - Para não falar em água, temos de

comer menos, Sr. Frodo, ou então avançar um pouco mais rápido, pelo menos enquantoainda estivermos aqui neste vale. Mais um bocado e a comida estará terminada, tirando opão de viagem dos elfos.

- Vou tentar ser um pouco mais rápido, Sam - disse Frodo, respirando fundo. -Vamos, então! Vamos começar uma outra marcha.

Ainda não estava bem escuro. Avançaram com dificuldade noite adentro. As horasse passaram numa marcha cansativa e penosa, com algumas poucas paradas. Aosprimeiros sinais de luz cinzenta sob as bordas do dossel de sombra, eles se esconderamoutra vez numa concavidade escura, abaixo de uma saliência rochosa.

Lentamente a luz aumentou, até ficar mais clara do que nunca. Um vento fortesoprava do oeste e varria dos ares mais altos a fumaça de Mordor. Não demorou muitopara que os hobbits conseguissem visualizar o formato da terra no raio de algumas milhas.O fosso entre as montanhas e o Morgai diminuíra cada vez mais durante a subida, e aborda interna agora não passava de um patamar nas encostas íngremes dos Ephel Dúath;mas a leste a queda para o Gorgoroth era abrupta como sempre. À frente o curso de águaterminava em degraus quebrados de pedra; da cordilheira principal lançava-se umcontraforte alto e nu, que avançava para o leste como uma muralha. Para encontrá-lo ali,vindo da enevoada cordilheira norte de Ered Lirhui, um longo braço pontudo se estendia;entre as extremidades havia um desfiladeiro estreito: Carach Angren, a Boca Ferrada,além da qual ficava o profundo vale de Udún. Naquele vale atrás do Moratmon estavamos túneis e os depósitos de armas que os servidores de Mordor haviam feito para a defesado Portão Negro; e ali agora o seu Senhor estava reunindo às pressas grandes forças paraenfrentar o ataque dos Capitães do Oeste. Sobre os contrafortes salientes, fortes e torreshaviam sido construídos, e ali queimavam fogueiras de acampamento; através de todo odesfiladeiro fora erguida uma muralha de terra, e fora escavada uma trincheira funda quesó podia ser atravessada por uma única ponte.

Algumas milhas ao norte, lá em cima, no ângulo onde o contraforte ocidental sedestacava da cordilheira principal, ficava o velho castelo de Durthang, agoratransformado numa das muitas fortalezas orcs que se aglomeravam ao redor do vale deUdún. Uma estrada, já visível na luz crescente, vinha descendo dele numa trilha sinuosa,

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até que, a apenas uma ou duas milhas de onde os hobbits estavam, ela se virava para oleste e corria ao longo de um patamar cortado na encosta do contraforte, e assim desciaaté a planície, para prosseguir até a Boca Ferrada. Olhando aquilo, os hobbits tiveram aimpressão de que toda a viagem para o norte fora inútil. A planície à direita era escura eesfumaçada, e ali não conseguiram ver nem acampamentos nem tropas em movimento;mas toda aquela região estava sob a vigilância dos fortes de Carach Angren.

- Chegamos a um beco sem saída, Sam - disse Frodo. – Se avançarmos, sóchegaremos àquela torre ore, mas a única estrada que podemos tomar é a que desce dela -a não ser que voltemos. Não podemos escalar para o oeste, nem descer para o leste.

- Então vamos tomar a estrada, Sr. Frodo - disse Sam. - Devemos tomá-la e testarnossa sorte, se é que existe alguma sorte em Mordor. Ficar vagando ou tentar voltar seriao mesmo que nos entregarmos. Nossa comida não vai durar muito. Temos de ir até lá, erápido!

- Certo, Sam - disse Frodo. - Conduza-me! Enquanto lhe restar alguma esperança.A minha não existe mais. Mas não posso ir rápido, Sam. Só vou segui-lo a passadaslentas.

- Antes que comece qualquer passada lenta, o senhor precisa dormir e comer, Sr.Frodo. Venha e faça essas duas coisas como puder!

Deu água a Frodo, e mais um naco do pão-de-viagem, e fez um travesseiro comsua capa para deitar a cabeça do mestre. Frodo estava cansado demais para discutir aquestão, e Sam não lhe disse que ele bebera a última gota da água, e comera a parte dacomida que cabia a Sam, além da sua própria parte. Quando Frodo adormeceu, Sam sedebruçou sobre ele, para escutar sua respiração e examinar-lhe o rosto. Estava fino emarcado, mas enquanto dormia parecia alegre e sem temores.

- Bem, lá vou eu, Mestre! - Sam murmurou consigo mesmo. - Preciso abandoná-lopor um tempo e confiar na sorte. Precisamos de água, ou não conseguiremos ir maislonge.

Sam se arrastou para fora do esconderijo e, avançando de pedra em pedra com umcuidado que era exagerado até para um hobbit, desceu até o curso de água, chegando aosdegraus de pedra onde havia muito tempo, sem dúvida, sua fonte viera jorrando numapequena cachoeira. Tudo agora parecia seco e quieto; mas, combatendo o desespero, Samse agachou à escuta, e para seu deleite captou o som de água correndo. Descendo algunsdegraus encontrou um riacho pequeno de água escura que saía da encosta da colina, eenchia uma pequena poça exposta, da qual se derramava de novo, para desaparecer sobreas pedras nuas. Sam experimentou a água, que lhe pareceu suficientemente boa. Entãobebeu bastante, reabasteceu a garrafa e virou-se para voltar. Nesse momento viu derelance uma forma negra ou uma sombra correndo por entre as pedras próximas aoesconderijo de Frodo. Contendo um grito, saltou da fonte e correu, pulando de pedra empedra. Era uma criatura cautelosa, difícil de enxergar, mas Sam tinha poucas dúvidas arespeito dela: desejava colocar-lhe as mãos no pescoço. Mas a criatura o ouviu chegandoe fugiu depressa. Sam teve a impressão de vê-la uma última vez, espiando por sobre aborda do precipício oriental, antes de se abaixar e desaparecer.

- Bem, a sorte não me abandonou - murmurou Sam -, mas foi por pouco. Já nãobasta termos orcs aos milhares sem aquele vilão malcheiroso xeretando por aqui? Gostariaque tivessem atirado nele! - Sentou-se ao lado de Frodo e não o acordou, mas não ousoudormir. Por fim, quando já sentia seus olhos se fechando e percebeu que sua luta para semanter acordado não poderia prosseguir por muito tempo, acordou Frodo com delicadeza.

- Aquele Gollum está rondando de novo, receio eu, Sr. Frodo - disse ele. - Namelhor das hipóteses, se não era ele, então existem dois idênticos. Saí um pouco para

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procurar água e o vi farejando por aí bem na hora em que estava voltando. Acho que nãoé seguro nós dois dormirmos ao mesmo tempo, e, com as suas desculpas, não consigomais manter meus olhos abertos.

- Bendito Sam! - disse Frodo. - Deite-se e aproveite bem a sua vez! Mas eu prefiroGollum aos orcs. De qualquer jeito, ele não nos entregará a eles - a não ser que ele mesmoseja capturado.

- Mas ele pode praticar um bocado de roubos e assassinatos por conta própria -resmungou Sam. - Mantenha os olhos abertos, Sr. Frodo. Há uma garrafa cheia de água.Beba. Podemos enchê-la de novo quando partirmos.

- Dizendo isso, Sam mergulhou no sono.A luz estava sumindo quando ele acordou. Frodo estava sentado, apoiando as

costas na pedra, mas adormecera. A garrafa de água estava vazia. Não havia sinal deGollum.

A escuridão de Mordor retornara, e as fogueiras de acampamento nas montanhasqueimavam fortes de novo, quando os hobbits partiram na etapa mais perigosa de suaviagem. Primeiro foram até o pequeno riacho, e depois, subindo com cautela, chegaram àestrada no ponto onde ela se virava para o leste na direção da Boca Ferrada, que ficava avinte milhas dali. Não era uma estrada larga, não tinha parede ou parapeito nas margens, eá medida que avançava a queda íngreme de sua borda aumentava mais e mais. Os hobbitsnão ouviam qualquer movimento, e, depois de ficarem escutando por um tempo, partiramrumo ao leste num passo continuo.

Depois de percorrerem cerca de doze milhas, pararam. Um pouco atrás. a estradavirara em direção ao norte, e o trecho que haviam percorrido estava agora escondido. Oresultado disso foi desastroso. Descansaram por alguns minutos e então avançaram. Masnão tinham dado muitos passos quando, de repente, na quietude da noite, ouviram o somque o tempo todo haviam temido em segredo: o ruido de pés marchando. Ainda estavam aalguma distância atrás deles, mas, virando-se, os dois puderam ver o piscar de tochasfazendo a curva a cerca de uma milha de distância, e estavam se aproximando depressa:depressa demais para que Frodo pudesse escapar correndo ao longo da estrada.

- Era isso o que eu temia, Sam - disse Frodo. - Confiamos na sorte, e ela nosabandonou. Estamos encurralados. - Olhou alucinado para a parede enrugada, onde osantigos construtores da estrada haviam cortado a rocha num ângulo reto por muitosmetros acima de suas cabeças. Correu para o outro lado e olhou por sobre a borda numpoço de escuridão. - Finalmente estamos encurralados! – disse ele. Foi se abaixando até ochão ao pé da muralha de pedra e curvou a cabeça.

- Parece que sim - disse Sam. - Bem, não há nada a fazer, exceto esperar para ver. -E com isso sentou-se ao lado de Frodo sob a sombra do penhasco.

Não tiveram de esperar muito. Os orcs vinham num passo rápido. Os que estavamnas primeiras colunas traziam tochas. Vinham avançando chamas rubras no escuro,crescendo rapidamente. Agora Sam também curvara a cabeça, na esperança de esconder orosto quando as tochas os alcançassem; colocou os escudos diante dos joelhos paraesconder seus pés. "Se pelo menos estiverem com pressa e deixarem em paz um par desoldados cansados, avançando em sua marcha!", pensou ele.

E assim pareceu que fariam. Os orcs que vinham à frente avançavam num trote,ofegantes, com as cabeças baixas. Era um bando das raças menores, sendo levados contraa vontade para as guerras do Senhor do Escuro; só se preocupavam em terminar a marchae escapar do chicote. Ao lado, subindo e descendo a fila, iam dois da raça cruel e grandedos uruks, estalando açoites e gritando. Coluna após coluna passou, e a luz denunciadoradas tochas já estava um pouco à frente. Sam segurou a respiração. Agora mais da metade

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da fila já tinha passado. Então, de repente, um dos condutores de escravos enxergou asduas figuras à margem da estrada. Aplicou-lhes uma chicotada e gritou:

- Ei, vocês! Levantem-se! - Eles não responderam, e com um grito ele deteve todaa companhia.

-Vamos, suas lesmas! - gritou ele. - Não é hora de vagabundear. - Deu um passo nadireção deles, e mesmo no escuro reconheceu os símbolos de seus escudos.

- Desertando, hein? - rosnou ele. - Ou pensando no assunto? Todo o seu povodeveria estar dentro de Udún antes da noite de ontem. Vocês sabem disso. De pé e atrásde mim, ou vou pegar seus números e denunciá-los.

Com um esforço os dois hobbits ficaram de pé, e mantendo-se curvados, mancandocomo se fossem soldados de pés feridos, arrastaram-se até o fim da fila.

- Não, não lá atrás - gritou o condutor de escravos. - Três colunas á frente. Efiquem lá, ou vão se ver comigo, quando eu chegar ao fim da fila! - Lançou o longo açoiteestalando sobre suas cabeças, e então com um outro estalo e um grito ordenou que acompanhia continuasse marchando num trote forçado.

Foi dificil para o pobre Sam, cansado como estava; mas para Frodo foi umtormento, que logo se transformou num pesadelo. Travou os dentes e tentou deixar depensar, esforçando-se para avançar. O fedor dos ores suados ao seu redor era sufocante, eele começou a ofegar de sede. Foram avançando sempre, e ele colocava toda a suadeterminação em respirar e manter os pés em movimento, sem ousar pensar para que finalmaligno se dirigia, suportando tudo aquilo. Não havia esperança de escapar sem ser visto.De vez em quando o condutor recuava e zombava deles.

- Olhem lá! - dizia ele rindo, ameaçando chicotear-lhes as pernas. - Onde há umaçoite há um aceite, suas lesmas. Aguentem firmes! Eu daria um refresco para vocêsagora, mas vocês vão levar tantas chicotadas quantas suas peles puderem suportar quandochegarem atrasados ao acampamento. Vai fazer bem. Não sabem que estamos em guerra?

Tinham avançado algumas milhas, e a estrada finalmente descia uma longa ladeirapara entrar na planície. quando a força de Frodo começou a desaparecer e sua vontadevacilou. Ele se arrastava e tropeçava. Desesperado, Sam tentava ajudá-lo e mantê-lo depé, embora sentisse que ele próprio mal conseguiria aguentar aquele passo por muito maistempo: seu mestre cairia ou desmaiaria, e tudo seria descoberto; e seus duros esforçosteriam sido em vão. "Pelo menos vou pegar aquele

condutor grande". pensou ele.Então, no momento em que estava levando a mão ao punho da espada, chegou um

alivio inesperado. Estavam agora na planície, chegando perto da entrada de Udún.Um pouco à frente, antes do portão na extremidade da ponte, a estrada do oeste

convergia com outras que vinham do sul e de Barad-dûr. Ao longo de todas as estradastropas se moviam, pois os Capitães do Oeste estavam avançando e o Senhor do Escuroapressava suas forças na direção do norte. Foi assim que várias companhias seencontraram na encruzilhada, na escuridão além da luz das fogueiras de acampamentosobre as muralhas. Imediatamente houve um grande tropel e xingamentos, pois cada tropaqueria chegar primeiro ao portão e terminar a marcha. Embora os condutores gritassem eaplicassem os chicotes, irromperam brigas e espadas foram sacadas. Uma tropa de uruksbem armados de Barad-dûr atacou uma fileira de Durthang, criando confusão. comoestava de dor e cansaço, Sam despertou, agarrou depressa a sua chance, e jogou-se nochão, arrastando Frodo consigo. Orcs

caíram sobre os dois, rosnando e xingando, até que finalmente, sem serem notados,os dois pularam por sobre a borda oposta da estrada. Ali havia um meio-fio alto pelo qualos condutores de tropas podiam se guiar na noite escura ou no nevoeiro, e que subia um

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pouco acima do nível da região aberta. Ficaram quietos por um tempo. Estava escurodemais para procurar um esconderijo, se é que havia algum por ali. Mas Sam sentiu queprecisavam no mínimo se distanciar um pouco mais das estradas e ficar fora do alcance daluz das tochas.

- Venha, Sr. Frodo! sussurrou ele. Rasteje mais um pouco, e depois o senhor podedescansar em paz.

Num último esforço desesperado, Frodo se levantou usando as mãos e lutou portalvez mais uns vinte metros. Então mergulhou num poço raso que se abriuinesperadamente diante deles, e lá ficou deitado feito morto.

CAPÍTULO IIIA MONTANHA DA PERDIÇÃO

Sam colocou a capa esfarrapada de orc sob a cabeça do mestre, cobrindo-se com omanto cinzento de Lórien; enquanto isso acontecia, seus pensamentos fugiram paraaquele belo lugar, e para os elfos, esperando que o tecido feito por aquelas mãos pudesseter alguma virtude de mantê-los escondidos superando qualquer esperança naqueledeserto de medo. Ouviu as brigas e os gritos diminuindo, enquanto as tropas avançavamatravés da Boca Ferrada. Parecia que na confusão e na mistura de várias companhias pãohaviam dado pela falta deles, pelo menos não por enquanto. Sam tomou um gole de água,mas forçou Frodo a beber, e, quando seu mestre tinha melhorado um pouco, deu-lhe umnaco inteiro do precioso pão de viagem e o fez comer. Então, exaustos demais até parasentirem muito medo, os dois se esticaram no chão. Dormiram um pouco, num sonosobressaltado, pois o suor esfriava-lhes os corpos, as pedras machucavam e eles tremiam.Lá do norte, da direção do Portão Negro através de Cirith Gorgor, vinha sussurrandojunto ao chão uma aragem tênue e fria.

Pela manhã uma luz cinzenta apareceu de novo, pois nas altas regiões o VentoOeste ainda soprava; mas lá embaixo nas pedras, atrás das fronteiras da Terra Negra, o arparecia quase morto, frio e ao mesmo tempo sufocante. A terra ao redor era desolada,plana e pardacenta. Nada se movia agora nas estradas próximas, mas Sam temia os olhosvigilantes na muralha da Boca Ferrada, a menos de duzentos metros ao norte. No sudeste,distante como uma sombra escura e vertical, assomava a Montanha. Despejava fumaça, e,enquanto a porção que subia mais alto se distanciava para o leste, grandes nuvens pesadasflutuavam descendo pelas suas encostas e se espalhavam sobre a terra. A algumas milhasao nordeste, os pés das Montanhas Cinzentas eram como sombrios fantasmas cor decinza, atrás dos quais as nevoentas montanhas do norte erguiam-se como uma fileira denuvens pouco mais escuras que o céu baixo.

Sam tentava adivinhar as distâncias e decidir que caminho deveriam tomar.- Parecem no mínimo cinquenta milhas - murmurou ele desanimado, fitando a

montanha ameaçadora -, e o que leva um dia vai levar uma semana com o Sr. Frodo nascondições em que está. Balançou a cabeça, e, enquanto calculava, um novo pensamentoescuro cresceu em sua mente. A esperança morrera por muito tempo em seu forte coração,e até agora ele Sempre conseguira pensar um pouco na volta para casa. Mas a amargaverdade chegara até ele por fim: na melhor das hipóteses, a provisão que tinham oslevaria até seu objetivo, e, quando a tarefa estivesse cumprida, então eles acabariam

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sozinhos, sem casa e sem comida no meio de um terrível deserto. Não poderia havervolta. "Então esse era o trabalho que eu senti que precisava desempenhar quando parti",pensou Sam: "ajudar o Sr. Frodo até o último passo e depois morrer junto com ele? Bem,se esse era o trabalho, é melhor que eu o faça. Mas eu gostaria imensamente de reverBeirágua, e Rosinha Villa e seus irmãos, e o Feitor e Calêndula e todos eles. Não possoconceber a idéia de que Gandalf tenha enviado o Sr. Frodo nessa missão se não houvessenenhum fiozinho de esperança de ele voltar algum dia. As coisas todas deram erradoquando ele caiu em Moria. Gostaria que aquilo não tivesse acontecido. Ele teria feitoalgo."

Mas no momento em que a esperança morria em Sam, ou parecia morrer, ela setransformou em uma nova força. O rosto simples do hobbit ficou austero, quase cruel, nomomento em que sua disposição se endureceu, e ele sentiu um frêmito percorrer-lhepernas e braços, como se tivesse se transformado em alguma criatura de pedra e aço, quenão poderia ser subjugada nem pelo desespero, nem pelo cansaço, nem por milhasinfindáveis de terra desolada. Com um novo senso de responsabilidade, trouxe os olhos devolta para a terra que o rodeava, estudando o próximo movimento. Quando a luzaumentou um pouco ele viu, para a sua surpresa, que o que a certa distância parecera umaplanície ampla e disforme era na realidade uma região irregular e esboroada. De fato, todaa superfície das planícies de Gorgoroth estava salpicada de grandes buracos, como se,quando ela ainda era uma região coberta de lama mole, tivesse sido atingida por umachuva de raios e pedras arrojadas por enormes fundas. Os buracos maiores eramcontornados por bordas de rocha quebrada, e largas fissuras corriam deles em todas asdireções. Era uma região onde seria possível se esgueirarem de esconderijo emesconderijo, sem que ninguém os visse, exceto os olhos mais atentos: possível pelo menospara quem fosse forte e não precisasse ter pressa. Para os famintos e exaustos, que tinhammuito a andar antes que a vida lhes faltasse, o lugar tinha uma aparência maligna.Pensando em todas essas coisas Sam voltou para o seu mestre. Não foi preciso acordá-lo.Frodo estava deitado de costas, com os olhos abertos, fitando o céu cheio de nuvens.

- Bem, Sr. Frodo - disse Sam -:" estive dando uma olhada por aqui, e pensando umpouco. Não há alma viva nas estradas, e é melhor nos mexermos enquanto ainda há umachance. O senhor consegue"?

- Consigo - disse Frodo. - Preciso conseguir.Partiram mais uma vez, esgueirando-se de concavidade em concavidade, correndo

atrás da proteção que conseguiam encontrar. mas sempre se movendo uma linha oblíquana direção dos pés da cordilheira norte. Mas, à medida que avançavam, a estrada queficava mais ao leste os seguia, até desaparecer, abraçando as fraldas das montanhas,entrando numa muralha de sombra negra bem adiante. Nem homens nem orcs se moviamagora ao longo de seus trechos planos e cinzentos, pois o Senhor do Escuro quasecompletara o movimento de suas forças, e mesmo na fortaleza de seu próprio reino elebuscava o sigilo da noite, temendo os ventos do mundo que haviam se virado contra ele,rasgando seus véus, e preocupado com notícias de arrojados espiões que tinhamatravessado suas fronteiras.

Os hobbits haviam caminhado algumas milhas difíceis quando pararam. Frodoparecia quase exausto. Sam percebeu que ele não conseguiria avançar muito daquelemodo, arrastando-se, agachando-se, por vezes tomando um caminho duvidoso com muitovagar, por vezes se apressando numa corrida aos trambolhões.

- Vou voltar para a estrada enquanto ainda perdura a luz, Sr. Frodo - disse ele. -Confiemos na sorte mais uma vez! Ela quase nos abandonou da última vez, mas foi sóquase. Um passo firme por mais algumas milhas, e depois descansamos.

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Ele estava assumindo um risco muito maior do que imaginava, mas Frodo estavapor demais ocupado com seu fardo e com a luta em sua mente para discutir, e quasedesesperado demais para se preocupar. Subiram até a estrada, e avançaram comdificuldade, descendo o caminho cruel que conduzia à própria Torre Escura. Mas a sorteos acompanhou, e pelo resto daquele dia eles não encontraram nada vivo ou emmovimento; quando a noite caiu, desapareceram dentro da escuridão de Mordor.

Toda a terra parecia se preparar agora para a chegada de uma tempestade: pois osCapitães do Oeste tinham passado pela Encruzilhada e ateado fogo nos campos mortais deImlad Morgul. Assim continuou a viagem desesperada, enquanto o Anel ia para o sul e asbandeiras dos reis cavalgavam para o norte. Para os hobbits, cada dia, cada milha, eramais amargo que o anterior, pois sua força diminuía e a terra se tornava mais maligna.Não encontraram inimigos durante o dia. As vezes, durante a noite, quando se escondiamou cochilavam inquietos em algum esconderijo á margem da estrada, escutavam gritos e oruido de muitos pés, ou a passagem veloz de algum cavalo conduzido impiedosamente.Mas muito pior que todos esses perigos era a ameaça cada vez mais próxima que incidiasobre eles enquanto avançavam: a ameaça terrível do Poder que esperava, concentrado empensamentos profundos e numa malícia sempre vigilante, atrás do véu escuro que protegiaseu Trono. Chegava cada vez mais perto, assomando mais negra, como o avanço de umamuralha de noite na última extremidade do mundo. Finalmente chegou um anoitecerterrível; no momento em que os Capitães do Oeste se aproximavam do fim das terrasviventes, os dois andarilhos depararam com uma hora de desespero cego. Já haviam sepassado quatro dias desde que tinham fugido dos orcs, mas o tempo se estendia atrásdeles como um sonho cada vez mais escuro. Durante todo esse último dia, Frodo nãodissera uma palavra, mas caminhara meio curvado, sempre tropeçando, como se seusolhos não enxergassem mais o caminho diante de seus pés. Sam achava que em meio atodas as dores ele suportava a pior, o peso crescente do Anel, um fardo sobre o corpo eum tormento para a mente. Ansioso, Sam notara como a mão esquerda do mestre semprese levantava, como se para desviar um golpe, ou para proteger seus olhos contrai dos doterrível Olho que procurava penetrá-los. E algumas vezes a mão direita se dirigia ao peito,agarrando, e depois devagar, quando o controle era recuperado, a mão se afastava outravez. Agora, quando o negrume da noite retornara, Frodo sentou-se, com a cabeça entre osjoelhos, os braços soltos, as mãos caídas no chão e crispando-se levemente. Sam oobservou, até que a noite cobriu ambos e os ocultou um do outro. Não conseguia maisencontrar palavra alguma para dizer, e voltou-se para os próprios pensamentos sombrios.Quanto a ele, embora estivesse exausto e sob uma sombra de medo, ainda lhe restavaalguma força. O lembas tinha uma virtude sem a qual os dois teriam há muito tempo sedeitado á espera da morte. Não satisfazia o desejo, e algumas vezes a mente de Sam seenchia com lembranças de comida, e o desejo de um simples pão e carnes. E, apesardisso, aquele pão-de-viagem dos elfos tinha um poder que aumentava à medida que osviajantes confiavam apenas nele, sem misturá-lo a outras comidas. Alimentava adisposição, e dava forças para resistir; e para dominar os tendões e os membros, umacapacidade que ia além da medida dos mortais. Mas agora uma nova decisão precisava sertomada. Não podiam mais seguir por aquela estrada, pois ela prosseguia rumo ao leste eentrava na grande Sombra, e a Montanha já assomava á direita, quase na direção do sul, eeles precisavam rumar para lá Mas diante dela ainda se estendia uma ampla região deterra fumegante, desolada, coberta de cinzas.

- Água, água! - murmurou Sam. - Privara-se de beber, e em sua boca ressecada alíngua parecia grossa e inchada. Apesar de todo o cuidado, agora lhes sobrava muitopouco, cerca de metade de sua garrafa, e talvez houvesse ainda dias à frente. Tudo teria

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terminado há muito tempo se eles não tivessem se arriscado pela estrada dos orcs. Pois, alongos intervalos na estrada, cisternas haviam sido construídas para o uso de tropasenviadas com urgência através das regiões secas. Numa delas Sam encontrara um resto deágua salobra, emporcalhada pelos orcs, mas que ainda serviu para o seu caso extremo.Mas isso já fora há um dia. Não havia esperanças de encontrarem mais.

Por fim, exausto pela preocupação, Sam cochilou, deixando o amanhã para quandoo amanhã chegasse; não podia fazer mais nada. Sonho e vigília se misturaram num sonosobressaltado. Sam via luzes como olhos que exultavam numa satisfação maligna, eformas escuras a espreita; ouvia ruídos de animais selvagens ou os gritos aterrorizantes deseres torturados; acordava então para ver o mundo todo escuro e apenas um negrumevazio ao redor. Apenas uma vez, quando se levantou e olhou alucinado á sua volta,pareceu-lhe que, embora estivesse acordado, ainda podia ver luzes pálidas como olhos,mas logo elas piscaram e desapareceram.

A noite odiosa passou devagar e relutante. A luz do dia seguinte era fraca, pois ali,à medida que a Montanha se aproximava, o ar era sempre tenebroso, enquanto vindos daTorre Escura insinuavam-se os véus de Sombra que Sauron tecia ao redor de si. Frodoestava deitado de costas, imóvel. Sam parou ao lado dele, relutando em falar, e ao mesmotempo sabendo que a palavra agora era sua: precisava animar a vontade do mestre paramais um esforço. Por fim, abaixando-se e acariciando a testa de Frodo, falou-lhe aoouvido.

- Acorde, Mestre! - disse ele. - É hora de partirmos de novo.Como se despertado de repente por uma campainha, Frodo acordou apressado e

levantou-se, olhando para o sul; mas, quando seus olhos contemplaram a Montanha e odeserto, ele fraquejou de novo.

- Não consigo, Sam - disse ele. - É um peso tão grande para carregar, tão grande.Sam já sabia antes de falar que seria em vão, e que tais palavras poderiam causar

mais mal que bem, mas em sua pena não conseguiu se manter calado.- Então deixe-me carregá-lo um pouco para o senhor, Mestre - disse ele. - O senhor

sabe que eu faria isso, de bom grado, enquanto me restassem forças.Uma luz selvagem se acendeu nos olhos de Frodo.- Afaste-se! Não me toque! - gritou ele. - Ele é meu, estou dizendo. Saia daqui! -

Sua mão procurou o punho da espada. Mas então, de súbito, sua voz se alterou de novo. -Não, não, Sam - disse ele com tristeza. - Mas você precisa me entender. O fardo é meu, eninguém mais pode carregá-lo. Agora é tarde demais, Sam, meu querido. Você não podeme ajudar dessa forma outra vez. Agora estou quase totalmente dominado pela força dele.Não conseguiria me desfazer dele, e se você tentasse tomá-lo eu enlouqueceria.

Sam concordou com a cabeça.- Eu compreendo - disse ele. – Mas estive pensando, Sr. Frodo, há outras coisas

das quais podemos nos privar. Por que não tornar o fardo um pouco mais leve? Estamosindo para lá agora, o mais direto possível. - Apontou para a Montanha. - Não adiantalevarmos coisa alguma sem termos certeza de que precisaremos dela.

Frodo olhou de novo na direção da Montanha.- Não - disse ele -, não vamos precisar de muita coisa naquela estrada. E no fim

não precisaremos de nada. - Pegando o escudo de orc, jogou-o fora, e o capacete foi emseguida. Então, despindo a capa cinzenta, desafivelou o cinto pesado e o deixou cair nochão, juntamente com a espada na bainha. Rasgou os trapos da capa preta, jogando-osfora também.

- Pronto, não serei mais um orc - exclamou ele - e não carregarei mais armaalguma, fina ou feia. Que eles me peguem, se quiserem.

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Sam fez a mesma coisa, e deixou de lado sua roupa de orc; tirou também todas ascoisas de sua mochila. De certa forma, apegara-se a cada uma delas, mesmo que fosseapenas por tê-las carregado até agora com tanto esforço. O mais dificil foi se separar deseu equipamento de cozinha. Lágrimas minaram-lhe nos olhos quando pensou em jogá-lofora.

- O senhor se lembra daquela porção de coelho, Sr. Frodo? – disse ele. - E donosso lugar sob o abrigo quente do barranco na terra do Capitão Faramir, no dia em quevi um olifante?

- Não, receio que não, Sam - disse Frodo. - Pelo menos, sei que essas coisasaconteceram, mas não consigo vê-las em minha mente. Nem sentir o gosto de comida,nem a sensação da água, nem ouvir o som do vento. nem me lembrar de árvore ou gramaou flor, nenhuma imagem de lua ou estrela me resta. Estou nu no escuro, Sam, e nenhumvéu se coloca entre mim e a roda de fogo. Começo a vê-la até com os olhos despertos, etodo o resto desaparece.

Sam se aproximou e beijou-lhe a mão.- Então, quanto mais cedo nos livrarmos dela, mais cedo descansaremos - disse ele

com hesitação, sem encontrar palavras melhores. - Falar não vai melhorar nada -murmurou ele consigo mesmo, enquanto reunia todas as coisas que os dois haviamseparado para jogar fora. Não estava disposto a deixá-las jazendo desprotegidas nodeserto, para que quaisquer olhos as vissem. - Fedegoso pegou aquela camisa de orc, aoque parece, e não vai juntar nenhuma espada a ela. Suas mãos já são más o suficientequando vazias. E ele não vai emporcalhar minhas panelas! - Com isso ele carregou todo oequipamento até uma das fissuras que recortavam a paisagem e jogou-as lá dentro. Abatida das preciosas panelas caindo no escuro soou como um dobre fúnebre em seucoração. Voltou para perto de Frodo, e de sua corda élfica cortou um pequeno pedaçopara servir de cinto ao mestre, e amarrou a capa cinzenta firmemente em volta de suacintura. Enrolou a sobra cuidadosamente, tornando a guardá-la. Junto com a cordaguardou apenas o que restava do pão de viagem e a garrafa de água; Ferroada aindapendia-lhe do cinto, e escondidos bolso da túnica próximo ao peito estavam o frasco deGaladriel e a pequena caixa que ela lhe dera.

Agora, por fim, viraram o rosto para a Montanha e partiram, sem mais pensaremem se esconder, concentrando o cansaço e a vontade fraquejante apenas na única tarefa deprosseguir. Naquele dia desolado e escuro, poucos seres poderiam tê-los espionado,mesmo naquela terra de vigilância, a não ser que estivessem bem próximos.

De todos os escravos do Senhor do Escuro, apenas os nazgúl poderiam tê-loadvertido do perigo, pequeno mas indomável, que se esgueirava para dentro do própriocoração de seu vigiado reino. Mas os nazgúl com suas asas negras estavam longe emoutra missão. Estavam reunidos num ponto distante, cobrindo de sombras a marcha dosCapitães do Oeste, e para lá também o pensamento da Torre Escura se dirigia.

Naquele dia, Sam teve a impressão de que seu mestre encontrara alguma forçanova, mais do que se poderia explicar pela pequena diminuição do peso que tinham decarregar. Nas primeiras marchas, os dois avançaram mais e com maior velocidade do queele esperara. A terra era acidentada e hostil, e apesar disso eles fizeram muito progresso, ea Montanha se aproximava cada vez mais. Mas, quando o dia foi terminando eprecocemente a luz fraca começou a se apagar, Frodo se abaixou de novo e começou acambalear, como se o esforço renovado tivesse exaurido as forças que lhe restavam. Naúltima parada, ele foi ao chão e disse:

- Estou com sede, Sam - e não falou mais nada.Sam lhe deu um gole de água; agora só restava mais um gole. Ele mesmo ficou

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sem, e agora, quando mais uma vez a noite de Mordor se fechava sobre eles, atravessandotodos os seus pensamentos lhe chegava a lembrança de água, e cada riacho ou rio ou fonteque vira na vida, sob as sombras verdes de salgueiros ou faiscando ao sol, dançava e seencrespava para seu tormento atrás da cegueira de seus olhos. Sentia a lama fresca nospés que chapinhavam no lago em Beirágua, com Jolly Villa, Tom e Nibs, e a irmã deles,Rosinha. – Mas isso foi há anos – suspirou ele. - E num lugar muito longe. O caminho devolta, se houver algum, passa pela Montanha. Não conseguiu dormir, e discutia consigomesmo. - Bem, vamos agora, fizemos melhor do que você esperava - disse ele comfirmeza. - Pelo menos começamos bem. Calculo que tenhamos vencido metade dadistância antes de pararmos. Mais um dia e terminaremos. - E então parou. - Não sejatolo, Sam Gamgi - chegou-lhe uma resposta na sua própria voz. - Ele não conseguiráprosseguir mais um dia desse jeito, se é que vai conseguir se mover. E você não podecontinuar por muito tempo dando-lhe toda a água e a maior parte da comida.

- Ainda posso caminhar um longo trecho, e é o que vou fazer.- Para onde?- Para a Montanha, é claro.- Mas e depois, Sam Gamgi, e depois? Quando você chegar lá, o que vai fazer? Ele

não vai ser capaz de fazer coisa alguma por si mesmo. Para sua decepção, Sam percebeuque não tinha uma resposta para isso. Não tinha nenhuma idéia clara. Frodo não lhedissera muito sobre sua missão, e Sam só sabia vagamente que o Anel precisava dealguma forma ser atirado ao fogo. - As Fendas da Perdição - murmurou ele, com o velhonome surgindo em sua mente. - Bem, se o Mestre sabe como encontrá-las, eu não sei.

-Aí está! - veio a resposta. - É tudo inútil. Ele mesmo o disse. Você é o tolo,continuando a ter esperanças e se esforçando. Vocês poderiam ter-se deitado e dormidojuntos há muitos dias, se você não tivesse sido tão teimoso. Mas vai morrer do mesmojeito, ou em condições piores. É melhor se deitar e desistir de tudo. Nunca vai chegar aotopo, de qualquer forma.

- Vou chegar lá, mesmo que deixe tudo, exceto meus ossos, para trás - disse Sam. -E eu mesmo vou carregar o Sr. Frodo, mesmo que isso arrebente minhas costas e meucoração. Então, pare de discutir!

Nesse momento, Sam sentiu um tremor no chão sob seus pés, e ouviu ou sentiu umretumbar profundo e remoto, como o de um trovão aprisionado na terra. Acendeu-se umachama breve e rubra, que faiscou sob as nuvens e se extinguiu. A

Montanha também dormia um sono inquieto.Chegou a última etapa da viagem para Orodruin, que foi um tormento maior do

que Sam jamais sonhara poder suportar. Sentia dores, e sua boca estava tão ressecada queele não conseguia sequer engolir um bocado de comida. Tudo continuava escuro, nãoapenas por causa da fumaça da Montanha: parecia haver uma tempestade se aproximando,e na distância a sudeste havia um faiscar de relâmpagos sob os céus negros. Pior de tudo,o ar estava cheio de vapores; respirar era difícil e doloroso, e os dois foram dominadospor uma tontura, de modo que cambaleavam e freqüentemente caíam. E mesmo assim suaforça de vontade não cedeu, e eles avançavam com esforço.

A Montanha espreitava cada vez mais de perto até que, se eles levantassem ascabeças pesadas, ela encheria toda a sua visão, assomando vasta diante deles: uma enormemassa de cinza e lava e pedra queimada, da qual um cone de lados íngremes se erguia atéas nuvens. Antes que terminasse o crepúsculo que durara todo um dia, e a verdadeiranoite chegasse, eles já tinham chegado aos arrastões e tropeções aos próprios pés daMontanha.

Ofegante, Frodo se jogou no chão. Sam sentou-se ao lado dele. Para a sua surpresa,

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sentiu-se cansado, mas mais leve, e sua cabeça pareceu desanuviar-se de novo. Já nenhumdebate perturbava-lhe a mente. Ele agora conhecia todos os argumentos do desespero enão estava disposto a lhes dar ouvidos. Deixara de sentir necessidade ou vontade dedormir, e só desejava ficar acordado, vigiando. Sabia que todos os perigos e riscosconvergiam agora para um mesmo ponto. O dia seguinte seria um dia decisivo, o dia doesforço ou do desastre final, do último arranque. Mas quando chegaria? A noite pareciainfinita e atemporal, minuto após minuto caindo morto, sem se somar à passagem dashoras, sem trazer qualquer mudança. Sam começou a se perguntar se uma segundaescuridão não começara, impedindo o reaparecimento de qualquer outro dia. Por fimtateou procurando a mão de Frodo. Estava fria e trêmula. Seu mestre estava tiritando.

- Não deveria ter deixado meu cobertor para trás - murmurou Sam; e deitando-setentou confortar Frodo com os braços e o corpo. Então o sono o arrebatou, e a luz apagadado último dia de sua Demanda os encontrou lado a lado. O vento amainara no dia anteriorao se deslocar do oeste, e agora vinha do norte e começava a aumentar; lentamente a luzdo sol invisível se infiltrava nas sombras onde estavam deitados os hobbits.

-Agora vamos! Agora, para o último arranque! -disse Sam, esforçando-se para selevantar. Inclinou-se sobre Frodo, despertando-o com delicadeza. Frodo resmungou, mascom um grande esforço de vontade levantou-se vacilante; em seguida caiu sobre osjoelhos outra vez. Ergueu os olhos com dificuldade até as escuras encostas da Montanhada Perdição que assomava acima dele, e então penosamente começou a avançararrastando-se com pés e mãos.

Sam olhou para ele e chorou em seu intimo, mas nenhuma lágrima chegou-lhe aosolhos secos e ardidos. - Eu disse que o carregaria, mesmo que arrebentasse as costas -murmurou ele -, e é isso que vou fazer!

- Venha, Sr. Frodo! - gritou ele. - Não posso carregar a coisa em seu lugar, masposso carregá-lo junto com ela. Então vamos subir! Venha, Sr. Frodo, meu querido! Samvai lhe dar uma carona. É só dizer para onde ir, e ele irá.

Assim que Frodo agarrou-se às suas costas, deixando os braços com folga ao redordo seu pescoço, e prendendo as pernas com firmeza sob seus braços, Sam levantou-secom dificuldade; então, para seu espanto, sentiu que o fardo era leve. Temera mal terforças para carregar apenas o mestre, e além disso esperara precisar dividir o terrível pesodo maldito Anel. Mas não foi assim. Talvez porque Frodo estivesse tão exausto por suaslongas dores, pelo ferimento de faca, e pelo ferrão venenoso, além da tristeza do medo ede tanto tempo vagando sem um lar, ou talvez porque algum dom de força final lhe foraconcedido, Sam levantou Frodo tão facilmente como se estivesse carregando de cavalinhouma criança hobbit, em alguma brincadeira nos prados ou campos de feno do Condado.Respirou fundo e partiu.

Tinham atingido o pé da Montanha pelo seu flanco norte, um pouco a oeste; alisuas grandes encostas cinzentas, embora irregulares, não eram íngremes. Frodo nadadizia, e assim Sam avançava lutando da melhor maneira possível, sem ter qualquer outroguia a não ser sua própria disposição de escalar até a maior altura que conseguisse, antesque sua força cedesse e sua vontade fosse destruída. Lutava e seguia em frente, subindo esubindo, tomando um ou outro caminho para suavizar a subida, várias vezes tropeçandopara a frente e por fim arrastando-se como um caramujo que carrega um fardo pesado nascostas. Quando sua vontade não pôde levá-lo mais adiante, e suas pernas fraquejaram,parou e deitou o mestre no chão suavemente.

Frodo abriu os olhos e respirou fundo. Era mais fácil respirar lá em cima, sobre osvapores pestilentos que se enrolavam e flutuavam mais embaixo.

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- Obrigado, Sam - disse ele num sussurro falho. - Quanto caminho ainda resta?- Não sei - disse Sam , porque não sei para onde estamos indo.Olhou para trás, e depois para cima; ficou espantado ao ver a distância que

percorrera naquele último esforço. A Montanha, erguendo-se ominosa e solitária, pareceramaior do que na verdade era. Sam via agora que era menos alta do que os altos passadiçosdos Ephel Dúath, que ele e Frodo haviam escalado. As encostas confusas e irregulares desua enorme base subiam cerca de novecentos metros acima da planície, e acima destassubia por cerca de metade dessa altura o grande cone central, como um vasto forno ouchaminé coroado por uma cratera denteada. Mas Sam já estava quase a meio caminho dabase, e a planície de Gorgoroth aparecia escura lá embaixo, envolta em fumaça e sombra.Ao olhar para cima Sam poderia ter dado um grito, se sua garganta ressecada lhepermitisse, pois, em meio ás corcovas e encostas desiguais acima, ele viu claramente umatrilha ou estrada. Subia do oeste como um cinturão, e ziguezagueava ao redor daMontanha como uma cobra até que, antes de sumir de vista, atingia o pé do cone no ladoleste.

Sam não conseguia ver o caminho imediatamente acima dele, na sua parte maisbaixa, pois uma encosta íngreme subia de onde estava; mas ele calculava que, seconseguisse lutar e subir só um pouco mais, os dois atingiriam a trilha. Um fulgor deesperança retornou-lhe ao coração. Ainda podiam conquistar a Montanha.

- Que coisa, deve ter sido colocada lá de propósito! - disse ele para si mesmo. - Senão estivesse lá, eu teria de dizer que fui derrotado no final.

A trilha não fora colocada lá para os propósitos de Sam. Ele não sabia, mas estavaolhando para a Estrada de Sauron, que ia de Barad-dûr até os Sammath Naur, as Câmarasde Fogo. Saindo do enorme portão oeste da Torre Escura, a estrada passava sobre umabismo profundo através de uma ampla ponte de ferro e depois, entrando na planície,continuava por cerca de uma légua entre duas fendas fumegantes, e assim atingia umlongo passadiço inclinado que conduzia até a encosta leste da Montanha. Depois, fazendouma curva e contornando toda a circunferência de sul a norte, ela finalmente subia, alta nocone superior, mas ainda longe do topo cheio de vapores, até uma entrada escura que davapara o leste, diretamente na direção da janela do Olho na fortaleza de Sauron, envolta emsombra. Frequentemente bloqueada ou destruída por tumultos nos fornos da Montanha,essa estrada era sempre consertada e limpa pelo trabalho de incontáveis orcs.

Sam respirou fundo. Havia uma trilha, mas como subir a encosta para chegar atéela ele não sabia. Primeiro precisava aliviar a dor nas costas. Estirou-se ao lado de Frodopor um tempo. Nenhum dos dois dizia palavra. Devagar a luz aumentou. De repente,acometeu-o um senso de urgência que ele não entendia. Era quase como se Sam tivessesido chamado: "Agora, agora, ou será tarde demais!" Apoiou-se e se levantou. Frodotambém parecia ter ouvido o chamado. Num esforço se pôs de joelhos.

- Vou rastejar, Sam - disse ele ofegante.Assim, passo a passo, como pequenos insetos cinzentos, eles se arrastaram encosta

acima. Chegaram á trilha e descobriram que era larga, pavimentada com cascalhofragmentado e cinza batida. Frodo subiu até ela e então, como se movido por algumacompulsão, virou lentamente o rosto para o leste. Distantes pairavam as sombras deSauron mas rasgadas por alguma rajada de vento vinda do mundo, ou quem sabeimpelidas por algum intenso abalo interior, as nuvens que tudo cobriam rodopiaram, e porum momento se afastaram; então ele viu, erguendo-se negros, mais negros e escuros queas vastas sombras em meio às quais estavam, os cruéis pináculos e a corôa de ferro datorre mais alta de Barad-dôr. Durante um momento fugaz, como se emitida de algumagrande janela incomensuravelmente alta, cortou o céu ao norte uma chama vermelha, o

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faiscar de um olho penetrante; depois as sombras se adensaram de novo e a terrível visãofoi removida. O Olho não estava voltado para eles: olhava para o norte, onde os Capitãesdo Oeste estavam encurralados, e para lá voltava agora toda a sua maldade, enquanto opoder se movia para desferir seu golpe mortal; mas Frodo, diante daquela rápida visão,sentiu-se como alguém golpeado mortalmente. Sua mão procurou a corrente em volta dopescoço.

Sam se ajoelhou ao lado dele. Fraco, quase inaudível, ele ouviu o sussurro deFrodo:

- Me ajude, Sam! Me ajude! Segure minha mão! Não posso detê-la. – Sam tomouas mãos do mestre e as uniu, palma com palma, beijando-as; depois as seguroudelicadamente entre as suas. De súbito lhe ocorreu o pensamento: "Ele nos achou! Estátudo acabado, ou logo estará! Agora, Sam Gamgi, este é o fim de todos os fins."

Mais uma vez levantou Frodo e puxou as mãos dele até o próprio peito, deixandoque as pernas do mestre ficassem pendentes. Depois abaixou a cabeça e se esforçou aolongo da estrada que subia. Não era um caminho tão fácil como parecera a princípio. Porsorte, os fogos que se derramaram nos grandes abalos quando Sam estava sobre CirithUngol tinham descido principalmente pela encosta sul e pela oeste, e a estrada deste ladonão estava bloqueada. Mesmo assim, em vários pontos tinha desmoronado ou eraatravessada por largas fendas. Depois de escalar por algum tempo em direção ao leste, aestrada se inclinava sobre si mesma num ângulo fechado e rumava para o oeste por umtrecho. Ali, naquela curva, a estrada era um corte fundo através de um velho rochedodesgastado pelo tempo, outrora vomitado dos fornos da Montanha. Ofegando sob suacarga, Sam fez a curva, e no momento em que o fazia, pelo canto do olho, viu de relancealguma coisa caindo do rochedo, como um pequeno pedaço de pedra preta que se tivessedesprendido no momento em que ele passava.

Um peso súbito o golpeou e ele caiu para a frente, raspando as costas das mãos queainda seguravam as do mestre. Então percebeu o que acontecera, pois acima dele,enquanto estava no chão, ouviu uma voz odiada.

- Messstre malvado! - chiou a voz. - Messstre malvado nos engana; enganaSméagol, gollum Não deve ir por ali. Não deve machucar o Precioso! Dê ele paraSméagol, ssim, dê ele para nóss!

Num repelão Sam levantou-se. Imediatamente puxou a espada, mas nada pôdefazer. Gollum e Frodo estavam atracados. Gollum, furioso, estraçalhava a roupa de Frodo,tentando agarrar a corrente e o Anel. Essa era provavelmente a única coisa que teriadespertado as brasas agonizantes do coração e da vontade de Frodo: um ataque, umatentativa de arrancar-lhe o tesouro à força. Ele lutou com uma fúria súbita que assombrouSam, e também Gollum. Mesmo assim as coisas poderiam ter acontecido de forma muitodiferente, se Gollum não estivesse mudado; mas os misteriosos caminhos, aterrorizantes esolitários, que ele trilhara, sem comida e sem água, movido por um desejo devorador e ummedo terrível, haviam deixado nele marcas atrozes. Gollum era agora uma criatura magra,faminta, desfigurada, feita apenas de ossos e pele esticada e embranquecida. Uma luzselvagem queimava em seus olhos, mas sua malícia já não estava associada à antiga forçaque tinha nas mãos. Frodo se desvencilhou dele, jogando-o de lado, e levantou-setremendo.

- Largue-me! Largue-me! - disse ele ofegante, com a mão agarrada ao peito, demodo que debaixo da proteção de sua camisa de couro segurava o Anel. - Largue-me, suacoisa rastejante, e saia de meu caminho! Seu tempo chegou ao fim. Agora você não podeme trair ou me matar.

Então, de repente, como antes sob as bordas das Emyn Muil, Sam viu aqueles dois

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rivais de uma outra maneira. Uma figura humilhada, que mal passava da sombra de umser vivo, uma criatura agora completamente arruinada e derrotada, e mesmo assim cheiade ira e de um desejo hediondo; e diante dela erguia-se austero, imune agora à compaixão,um vulto vestido de branco, mas que segurava em seu peito uma roda de fogo. Do fogofalava uma voz imperiosa.

- Vá embora, e não me perturbe mais! Se voltar a me tocar de novo, você mesmoserá jogado dentro do Fogo da Perdição.

A figura humilhada recuou, o terror enchendo-lhe os olhos, que ao mesmo tempopiscavam num desejo insaciável. Então a visão passou e Sam viu Frodo de pé, com a mãono peito, respirando em grandes haustos, e Gollum aos pés dele, apoiado nos joelhos, comas largas mãos achatadas contra o chão.

- Cuidado! - gritou Sam. - Ele vai pular! - Deu um passo à frente, brandindo aespada. - Rápido, Mestre! - disse ele ofegando. - Siga em frente! Siga em frente! Não hátempo a perder Eu cuido dele. Siga em frente!

Frodo olhou para ele como se olha para alguém que está distante.- Sim, preciso continuar - disse ele. - Adeus, Sam! Chegamos ao fim. Sobre a

Montanha da Perdição, a perdição cairá. Adeus! -Virou-se e partiu, caminhando devagar,mas ereto, subindo a trilha inclinada.

- Agora! - disse Sam. - Finalmente vou cuidar de você! - Saltou á frente, com aespada na mão, pronto para a luta. Mas Gollum não pulou. Caiu no chão estatelado,choramingando.

- Não mate nóss - chorava ele. - Não machuque nóss com aço cruel e mau! Deixenós viver, é sim, viver um pouco mais. Perdidos, perdidos! Estamos perdidos.

E quando o Precioso se for vamos morrer, é sim, morrer na poeira ssuja. -Levantou um pouco das cinzas da trilha com os dedos longos e descarnados. - Sssuja! –chiou ele.

A mão de Sam vacilou. Sua mente fervia com o ódio e com a lembrança do mal.Seria justo matar essa criatura traiçoeira, assassina, justo e muitas vezes merecido; alémdisso parecia a única coisa segura a fazer Mas no fundo de seu coração havia algo que oimpedia: ele não podia atacar aquela coisa caída na poeira, abandonada, arruinada,absolutamente desgraçada. Ele mesmo, embora apenas por pouco tempo, tinha carregadoo Anel, e agora adivinhava vagamente a agonia da mente e do corpo murchos de Gollum,escravizados por aquele Anel, incapazes de algum dia encontrarem outra vez paz oualívio na vida. Mas Sam não tinha palavras para explicar o que sentia.

- Oh, maldita seja, sua criatura nojenta! - disse ele. –Vá embora! Fora daqui! Nãoconfio em você, não enquanto ainda possa chutá-lo; mas fora daqui! Ou eu vou machucá-lo, vou sim, com aço cruel e mau.

Gollum ficou de quatro, recuou vários passos e então virou-se, e, no momento emque Sam fazia menção de chutá-lo, fugiu descendo pela trilha. Sam não lhe deu maisatenção. De repente se lembrou de seu mestre. Ergueu os olhos para a trilha e nãoconseguiu vê-lo. Na maior velocidade possível, foi subindo a estrada. Se tivesse olhadopara trás, poderia ter visto Gollum se virar outra vez não muito abaixo, e, depois, vir comum brilho alucinado nos olhos, rápido mas com cautela, arrastar-se atrás dele uma sombrafurtiva em meio ás pedras.

A trilha continuava subindo. Logo fazia outra curva e num último trecho ao lesteentrava num corte ao longo da face do cone e chegava á porta escura na encosta daMontanha, a porta das Sammath Naur. Distante, agora erguendo-se em direção ao sul, osol, perfurando a fumaça e a névoa, queimava ominoso, um disco vermelho opaco eofuscado; mas toda Mordor jazia ao redor da Montanha como uma terra morta, silenciosa,

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envolta em sombras, aguardando algum golpe terrível.Sam atingiu a boca escancarada e espiou lá dentro. Estava escuro e quente, e um

ribombar profundo agitava o ar.- Frodo! Mestre! – chamou ele.Não houve resposta. Por um momento ficou ali parado, seu coração batendo com

temores alucinados, e então mergulhou na escuridão. Uma sombra o seguiu.Num primeiro momento, não conseguiu ver nada. Em sua extrema necessidade,

puxou mais uma vez o frasco de Galadriel, mas ele estava pálido e frio em sua mãotrêmula, e não jogava luz alguma naquela escuridão sufocante. Sam chegara ao coraçãodo reino de Sauron, e ás forjas de seu antigo poder, as maiores da Terra-média; ali todosos outros poderes eram subjugados. Temeroso, ele deu alguns passos incertos no escuro, eentão, de repente, veio um clarão vermelho que se ergueu nos ares, e atingiu o alto tetonegro. Então Sam viu que estava numa longa caverna ou túnel que fora cavado dentro docone fumegante da Montanha. Mas, apenas um pouco adiante, seu chão e as paredes dosdois lados se abriam numa grande fissura, da qual saia o clarão vermelho, que ora seerguia e ora se extinguia na escuridão; e todo o tempo, lá embaixo, havia um rumor e umaagitação como de grandes máquinas pulsando e trabalhando.

A luz irrompeu outra vez, e lá, na borda da fissura, na própria Fenda da Perdição,estava Frodo, negro contra o clarão, tenso, ereto, mas imóvel como se tivesse sidotransformado em pedra.

- Mestre! - gritou Sam.Então Frodo se mexeu e falou com uma voz clara, na realidade com uma voz mais

clara e poderosa do que Sam jamais o ouvira usar, e que se erguia acima da pulsação edos abalos da Montanha da Perdição, retumbando no teto e nas paredes.

- Cheguei - disse ele. - Mas agora minha escolha é não fazer o que vim aqui parafazer. Não vou realizar este feito. O Anel é meu! – E de repente, colocando-o no dedo,desapareceu da visão de Sam. Sam abriu a boca assombrado, mas não pôde gritar, poisnaquele momento muitas coisas aconteceram.

Alguma coisa golpeou-o violentamente pelas costas, suas pernas ficaram presaspor baixo e ele foi jogado de lado, batendo a cabeça contra o chão de pedra; uma sombraescura pulou sobre ele. Sam ficou deitado e imóvel, e por um tempo tudo ficou escuro.

E lá bem distante, no momento em que Frodo colocou o Anel e o reivindicou parasi mesmo, exatamente ali, nas Sammath Naur, o próprio coração de seu reino, o poder deBarad-dûr sofreu um abalo, e a Torre tremeu dos alicerces até o topo orgulhoso e cruel.De repente o Senhor do Escuro percebeu a presença do hobbit, e seu Olho, penetrandotodas as sombras, atravessou a planície na direção da porta que ele fizera; e a magnitudede sua própria loucura revelou-se a ele num clarão cegante, e todas as estratégias de seusinimigos foram finalmente desnudadas diante de seus olhos. Então sua ira incandesceu-senuma chama devoradora, mas seu medo ergueu-se como uma vasta fumaça para sufocá-lo. Pois ele sabia do perigo mortal que estava correndo, e percebia o fio pelo qual estavaagora pendurado seu destino. De todas as suas estratégias e teias de medo e traição, detodos os seus estratagemas e guerras sua mente se libertou, e todo o seu reino foiatravessado por um tremor, seus escravos vacilaram, seus exércitos pararam e seuscapitães, subitamente sem liderança, desprovidos de vontade, hesitaram e sedesesperaram. Pois foram esquecidos. Toda a mente e o propósito do Poder que oscontrolava concentravam-se agora com uma força arrasadora na Montanha. A umchamado seu, rodopiando com um grito lancinante, numa última corrida desesperadavoaram, mais rápidos que os ventos, os nazgúl, os Espectros do Anel, e com umatempestade de asas arremessaram-se em direção ao sul para a Montanha da Perdição.

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Sam levantou-se. Estava zonzo, e o sangue que jorrava de sua cabeça pingava-lhesobre os olhos. Avançou tateando e então viu uma cena estranha e terrível.

Gollum, na beira do abismo, lutava como um ser ensandecido contra um inimigoinvisível. Tombava para a frente e para trás, algumas vezes chegando tão perto da bordaque quase caía lá dentro, outras recuando, caindo ao chão, levantando-se e caindo denovo. Durante todo o tempo chiava, mas não dizia palavra alguma.

Os fogos embaixo despertaram irados, o clarão vermelho incandesceu-se, e toda acaverna ficou repleta de luminosidade e calor.

De repente Sam viu as longas mãos de Gollum se erguerem até a boca; suas presasbrancas brilharam, e se fecharam numa mordida. Frodo deu um grito, e lá estava ele,caído de joelhos, na beira do abismo. Mas Gollum, dançando como um louco, erguia oanel, com um dedo ainda enfiado no circulo, que agora brilhava como se realmente fossefeito de fogo vivo.

- Precioso, precioso, precioso! - gritava Gollum. - Meu Precioso! Ó, meu Precioso!- E assim, no momento em que erguia os olhos para se regozijar com sua presa, deu umpasso grande demais, tropeçou, vacilou por um momento na beirada, e então com umgrito agudo caiu. Das profundezas chegou seu último gemido, Precioso, e então ele se foi.

Houve um rugido e uma grande confusão de sons. Labaredas se alçavam elambiam o teto. A pulsação cresceu num grande tumulto, e a montanha tremeu. Samcorreu até Frodo, e levantando-o carregou-o até a porta. E ali, na soleira escura dasSammath Naur, bem acima das planícies de Mordor, tal estupefação e terror sobrevieramque ele ficou parado, esquecido de todo o resto, imóvel como alguém que foitransformado em pedra. Teve uma visão rápida de nuvens rodopiando, e no meio delastorres e ameias, altas como colinas, fundadas sobre um poderoso trono de montanhaacima de abismos incomensuráveis; grandes pátios e calabouços, prisões sem olhos,íngremes como penhascos, e portões escancarados feitos de ferro e pedra adamantina: eentão tudo acabou. Torres caíram e montanhas deslizaram; paredes desmoronaram ederreteram, esboroando-se; enormes espirais de fumaça e jatos de vapor subiam, subiam ese espalhavam, até formarem um teto semelhante a uma onda ameaçadora, e sua cristaalucinada se crispou e veio descendo e cobrindo tudo, espumando sobre a terra. E então,por fim, através das milhas da planície chegou um ribombo, crescendo até se tornar umestrondo e um rugido ensurdecedores; a terra tremeu, a planície arfou, abriu-se embrechas e o Orodruín cambalcou. Chamas se lançavam de seu topo fendido. Os céusexplodiram em trovão, cortados por relâmpagos. Como chicotes açoitando caiu umatorrente de chuva negra. E no coração da tempestade, com um grito que atravessava todosos outros sons, rasgando as nuvens, os nazgúl vieram, caindo como raios em chamas,como se estivessem presos na destruição da montanha e do céu, e no fogo estalaram,murcharam e se apagaram.

Bem, este é o fim, Sam Gamgi disse uma voz ao seu lado. E ali estava Frodo,pálido e exausto, e apesar disso era Frodo novamente; agora em seus olhos só havia paz;nem luta de vontade, nem loucura, nem qualquer temor. Seu fardo fora levado. Ali estavao querido mestre dos doces dias no Condado. - Mestre! - gritou Sam, caindo de joelhos.Em meio a toda aquela ruína do mundo, naquele momento ele só sentiu alegria, umagrande alegria.

O fardo se fora. Seu mestre se salvara; voltara a si de novo, estava livre. E entãoSam viu a mão mutilada, sangrando.

- Sua pobre mão! - disse ele. E não tenho nada que sirva como atadura, ou quepossa confortá-la. Eu preferiria dar-lhe uma das minhas mãos inteira. Mas agora ele sefoi, e está além de qualquer alcance. Ele se foi para sempre.

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- Sim - disse Frodo. Mas você se lembra das palavras de Gandalf: Até mesmoGollum pode ter ainda algo afazer? Se não fosse por ele, Sam, eu não poderia terdestruido o Anel. A Demanda teria sido em vão, no fim de tanta amargura. Então vamosperdoá-lo! Pois a Demanda está terminada, e com sucesso, e tudo está acabado. Estoucontente por tê-lo comigo. Aqui, no fim de todas as coisas, Sam.

CAPÍTULO IV O CAMPO DE CORMALLEN

Por todos os flancos das colinas atacavam os exércitos de Mordor. Os Capitães doOeste soçobravam num mar crescente. O sol brilhava rubro, e sob as asas dos nazgúl assombras de morte caiam escuras cobrindo a terra. Aragorn, sob a sua bandeira, estavasilencioso e austero, como alguém perdido em pensamentos de coisas distantes ou hámuito passadas; mas seus olhos reluziam como estrelas que ficam mais brilhantes àmedida que a noite se aprofunda. No topo da colina estava Gandalf, branco e impassível,e nenhuma sombra o cobria. O ataque de Mordor explodiu como uma onda contra ascolinas sitiadas, vozes rugindo como vagas em meio à destruição e ao entrechoque dasarmas.

Como se a seus olhos fosse concedida uma visão súbita, Gandalf se mexeu; voltou-se, olhando para o norte, onde os céus estavam pálidos e limpos. Então levantou as mãose bradou numa voz que retumbou acima de todo o alarido: As Águias estão chegando! Emuitas vozes responderam, gritando: As Águias estão chegando! As Águias estãochegando! Os exércitos de Mordor olharam para cima, sem saber o que aquele sinal podiasignificar. Lá vinha Gwaihir, o Senhor dos Ventos, e Landroval, seu irmão, as maiores detodas as Águias do Norte, e os mais poderosos descendentes do velho Thorondor, queconstruíra seus ninhos nos picos inacessíveis das Montanhas Circundantes quando aTerra-média era jovem. Atrás deles vinham em longas e velozes fileiras todos os seusvassalos das montanhas do norte, cada vez mais rápidos num vento crescente. Caíramdireto sobre os nazgúl, descendo dos altos ares num súbito mergulho, e o ruflar de suasamplas asas passou como uma rajada de vento. Mas os nazgúl se viraram e fugiram,sumindo dentro das sombras de Mordor, respondendo a um chamado súbito e terrívelvindo da Torre Escura; e naquele momento todos os exércitos de Mordor estremeceram, adúvida oprimiu-lhes os corações, seu riso falhou, suas mãos tremeram e suas pernasbambearam. O Poder que os fazia avançar e os enchia de ódio e fúria estava vacilando,sua vontade afastava-se deles; agora, olhando nos olhos do inimigo, eles viam uma luzfatal, e sentiam medo. Todos os Capitães do Oeste clamaram em altos brados, pois seuscorações se encheram de uma nova esperança em meio à escuridão. Das colinas sitiadasavançaram contra os inimigos vacilantes os soldados de Gondor, os Cavaleiros de Rohan,os dúnedain do norte, companhias em fileiras cerradas penetrando a turba com estocadasde lanças enfurecidas. Mas Gandalf ergueu os braços e chamou mais uma vez numa vozlímpida:

- Parem, homens do oeste! Parem e esperem! Esta é a hora da condenação.E, no momento em que falava, a terra tremeu sob seus pés. Então, subindo

depressa, bem acima das Torres do Portão Negro, muito mais alta que montanhas, umavasta escuridão irrompeu nos céus, coruscando fogo. E a terra gemeu e estremeceu. As

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Torres dos Dentes balançaram, cambalearam e caíram; a poderosa fortificaçãodesmoronou, o Portão Negro se desfez em ruínas; e de longe, às vezes fraco, às vezescrescendo, outras ainda subindo até as nuvens, vinha um retumbar como o de tambores,um rugido, um ruído longo e turbulento de destruição.

- O reino de Sauron está terminado! - disse Gandalf. - O Portador do Anel cumpriusua Demanda. - E, quando os Capitães olharam para o sul na direção da Terra de Mordor,tiveram a impressão de que, negro contra a cortina de nuvens, erguia-se um enorme vultode sombra, impenetrável, coroado de relâmpagos, enchendo todo o céu. Enorme,levantava-se sobre o mundo, e estendia na direção deles uma grande mão ameaçadora,terrível mas impotente: pois no momento em que se debruçava sobre eles um forte ventoo arrebatou, e o vulto foi completamente varrido para longe, e passou; e então um silênciocaiu.

Os Capitães curvaram as cabeças; e, quando as ergueram de novo, eis que osinimigos estavam fugindo e o poder de Mordor se dispersava como poeira no vento.Como formigas que vagam sem destino e sem propósito, para depois morrerem exauridas,quando a morte golpeia o ser inchado e incubante que habita o formigueiro e a todasmantém sob controle, da mesma maneira as criaturas de Sauron, orcs ou trolls ou animaisescravizados por encantamento, corriam de um lado para o outro sem rumo; alguns sematavam ou se jogavam em abismos, ou ainda fugiam gemendo para se esconderem emburacos e lugares escuros e sem luz, distantes de qualquer esperança.

Mas os homens de Rhún e Harad, orientais e sulistas, viram a destruição de suaguerra e a grande majestade e glória dos Capitães do Oeste. E aqueles que havia maistempo estavam mais envolvidos na servidão maligna, odiando o oeste, e contudo eramhomens altivos e corajosos, por sua vez se ajuntaram numa resistência desesperada. Mas amaioria deles fugiu como pôde para o leste; alguns ainda jogaram suas armas ao chão eimploraram clemência.

Gandalf então, deixando todos esses assuntos de batalha e comando para Aragorn epara os outros senhores, subiu até o topo da colina e chamou; desceu até ele a grandeáguia, Gwaihir, o Senhor dos Ventos.

- Você me carregou duas vezes, Gwaihir, meu amigo – disse Gandalf. - Mais umaterceira e estaremos quites, se você estiver disposto. Você verá que não serei um fardomuito maior do que quando você me levou de Zirakzigil, onde minha vida antiga seconsumiu no fogo.

- Eu o carregaria - disse Gwaihir - para onde quisesse, mesmo que você fosse feitode pedra.

- Então venha, e permita que seu irmão nos acompanhe, e mais alguém de seupovo que seja velocíssimo! Pois necessitamos de uma velocidade maior do que a dequalquer vento, superior á das asas dos nazgúl.

- O Vento Norte está soprando, mas vamos ultrapassá-lo - disse Gwaihír. E,erguendo Gandalf, alçou num vôo rápido rumo ao sul, e com ele foram Landroval eMeneldor, jovem e veloz. Passaram sobre Udún e Gorgoroth e viram toda a terra em ruínae tumulto embaixo deles, e adiante a Montanha da Perdição incandescente, derramandoseu fogo.

- Estou feliz em tê-lo aqui comigo - disse Frodo. - Aqui, no fim de todas as coisas,Sam.

- Sim, estou com o senhor, Mestre - disse Sam, pousando delicadamente a mãoferida de Frodo sobre o peito. - E o senhor está comigo. E a viagem está terminada. Masdepois de ter vindo até aqui não quero desistir dela ainda. Não é do meu feitio, de certa

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forma, se o senhor me entende.- Talvez não, Sam - disse Frodo -; mas é do feitio de todas as coisas que existem

no mundo. As esperanças fracassam. Um fim chega. Agora só temos de esperar umpouco. Estamos perdidos na ruína e na destruição, e não há como escapar.

- Bem, Mestre, poderíamos pelo menos nos afastar deste lugar perigoso, destaFenda da Perdição, se esse é o nome. Não poderíamos? Vamos, Sr. Frodo, pelo menosvamos descer a trilha!

- Muito bem, Sam. Se você quer ir, eu vou - disse Frodo; e os dois se levantaram eforam descendo lentamente a estrada sinuosa; no momento em que atingiam os pés daMontanha em convulsão, uma grande nuvem de fumaça e vapor foi expelida pelasSammath Naur e a face do cone se abriu numa grande fenda, e um enorme vômito de fogorolou numa cascata lenta e tonitruante descendo a encosta leste.

Frodo e Sam não conseguiam avançar. As últimas forças de suas mentes e corposse extinguiam rapidamente. Tinham chegado a um montículo baixo de cinzas que seformara ao pé da Montanha; de lá não havia mais como escapar. Agora o montículo setransformara numa ilha, que não duraria muito em meio ao tormento do Orodruin.

Por toda a volta a terra se abria, e de fossos e poços profundos a fumaça e o vaporsubiam. Atrás deles a Montanha tinha convulsões. Grandes brechas se abriam em seusflancos.

Lentos rios de fogo desciam as encostas na direção deles. Logo seriam engolidos.Caía uma chuva de cinza quente. Agora estavam parados, e Sam, ainda segurando a mãodo mestre, a acariciava. Suspirou.

- Fizemos parte de uma grande história, Sr. Frodo, não foi mesmo? - disse ele. -Gostaria de poder ouvir alguém contando! O senhor acha que eles vão dizer: Agora vem ahistória de Frodo dos Nove Dedos e o Anel da Perdição? E então todo mundo farásilêncio, como fizemos quando em Valfenda nos contaram a história de Beren-Maneta e aGrande Jóia. Gostaria de poder escutar! E fico imaginando como a história contínua,depois da nossa parte. Mas no momento em que dizia isso, para afastar o medo até oúltimo instante, seus olhos vagaram para o norte, perscrutando o olho do vento, para ondeo céu distante estava claro, enquanto o vento frio, transformando-se numa rajada, varriapara longe a escuridão e a ruína das nuvens.

E foi assim que Gwaihír os viu com seus olhos penetrantes, enquanto descia emmeio ao forte vento, e desafiando o grande perigo dos céus fazia rondas no ar: doispequenos vultos escuros, abandonados, de mãos dadas, sobre uma pequena colina,enquanto o mundo tremia embaixo delas, e arfava, e rios de fogo se aproximavam.

E, no mesmo momento em que os encontrou e desceu num mergulho, viu-os cair,exaustos, ou sufocados pela fumaça e pelo calor, ou finalmente derrubados pelodesespero, escondendo os olhos da morte. Estavam deitados lado a lado, e Gwaihir veiovoando baixo, seguido por Landroval e Meneldor, o veloz; e num sonho, sem saber o quelhes estava acontecendo, os caminhantes foram erguidos e carregados para longe daescuridão e do fogo.

Quando Sam acordou, viu que estava deitado em alguma cama macia, mas sobreele balançavam suavemente grandes ramos de faia, e através das folhas jovens o solreluzia, verde e dourado. Todo o ar estava repleto de uma fragrância suave e adocicada.Lembrou-se daquele cheiro: a fragrância de Ithilien.

- Graças! - cismou ele. - Por quanto tempo estive dormindo? - Pois o cheiro ocarregara de volta ao dia em que ele acendera sua pequena fogueira sob o barrancoensolarado, e por um momento tudo o que se passara depois se apagou da memóriaconsciente. Espreguiçou-se e respirou fundo. - Puxa, que sonho eu tive! - murmurou ele. –

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Estou feliz por ter acordado! - Sentou-se e então viu que Frodo estava deitado ao lado,dormindo tranquilo, com uma mão atrás da cabeça, e a outra descansando sobre a coberta.Era a mão direita e faltava-lhe o terceiro dedo. Uma lembrança completa inundou-lhe amente, e Sam gritou: - Não foi um sonho! Então, onde estamos?

E uma voz suave falou atrás dele:- Na terra de Ithilien, sob a proteção do Rei; e ele aguarda vocês. - Dizendo isso,

Gandalf se postou diante deles, vestido de branco, sua barba agora reluzindo como nevepura no piscar da luz do sol por entre as folhas. - Bem, Mestre Samwise, como se sente? -perguntou ele.

Mas Sam caiu deitado de novo e ficou olhando de boca aberta; por um momento,dividido entre o espanto e uma grande alegria, não conseguiu responder. Por fim disseofegante:

- Gandalf Pensei que estava morto! Mas depois pensei que eu mesmo estava morto.Será que todas as coisas tristes vão acabar se desfazendo? O que aconteceu com omundo?

- Uma grande Sombra partiu - disse Gandalf, e depois riu, e o som de sua risadaera como música, ou como água correndo numa terra ressequida; ouvindo aquilo, Sampercebeu que perdera a conta dos dias em que não ouvira um riso, o puro som docontentamento. Chegava-lhe aos ouvidos como o eco de todas as alegrias que jáconhecera. Mas ele mesmo explodiu em lágrimas. Depois, como a chuva suave passa comum vento de primavera, e o sol volta a brilhar mais forte, suas lágrimas cessaram, e o risofoi aflorando, e rindo ele saltou da cama.

- Como me sinto? - gritou ele. - Bem, não sei dizer. Eu me sinto, eu me sinto -acenou com as mãos nos ares -, sinto-me como a primavera depois do inverno, com solnas folhas, e como trombetas e harpas e todas as músicas que jamais ouvi! - Parou e olhoupara seu mestre. - Mas como está o Sr. Frodo? Não é uma pena o que aconteceu com amão dele? Mas espero que quanto ao resto esteja tudo bem. Ele passou por dias cruéis.

- Sim, quanto ao resto tudo está bem comigo - disse Frodo, sentando-se e por suavez rindo também. - Adormeci de novo esperando você, Sam, seu dorminhoco. Já estavaacordado bem cedo hoje, e agora deve ser perto do meio-dia.

- Meio-dia? - disse Sam, tentando calcular. - Meio-dia de que dia? - O décimoquarto do Ano Novo - disse Gandalf-; ou, se você preferir, o oitavo dia de abril noRegistro do Condado. Mas em Gondor o Ano Novo sempre começará no dia vinte e cincode março, quando Sauron caiu, e quando vocês foram salvos do fogo e trazidos ao Rei.Ele cuidou de vocês, agora os aguarda. Vão comer e beber com ele. Quando estiveremprontos, vou conduzi-los à sua presença.

Nota1. Havia trinta dias em março (ou Louvoso) no calendário do Condado.

- O Rei? - disse Sam. - Que Rei, e quem é ele?- O Rei de Gondor, e Senhor das Terras do Oeste - disse Gandalf-; e ele voltou a

tomar posse de todo o seu antigo reino. Logo partirá para a coroação, mas estáaguardando vocês.

- O que vamos vestir? - disse Sam -; pois tudo o que conseguia ver eram as roupasvelhas e rasgadas com as quais tinham viajado, que estavam dobradas no chão ao lado dascamas.

- As roupas que usaram quando estavam indo para Mordor - disse Gandalf. - Atémesmo os farrapos de orc que você usou na terra negra, Frodo, serão preservados.

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Nenhuma seda ou linho, nem qualquer armadura ou escudo poderiam ser mais honrosos.Mas depois vou arranjar outras roupas, talvez. Então estendeu as mãos para os dois, e elesviram que uma delas brilhava com uma luz.

- O que você tem aí? - gritou Frodo. - Será...- Sim, eu trouxe seus dois tesouros. Estavam com Sam quando vocês foram

resgatados. Os presentes da Senhora Galadriel: seu cristal, Frodo, e sua caixa, Sam.Vão ficar felizes em guardá-los a salvo outra vez.Depois de se lavarem, vestirem a roupa e comerem uma refeição leve, os hobbits

seguiram Gandalf. Saíram do bosque de faias onde haviam repousado, e passaram paraum extenso gramado verde, que reluzia ao sol, margeado por imponentes árvores defolhas escuras, cobertas de flores escarlate. No fundo ouvia-se o som de água caindo, eum rio corria á frente deles entre margens floridas, até chegar a um bosque aos pés dogramado onde prosseguia sob um arco de árvores, através das quais se podia ver a águatremeluzindo na distância.

Chegando à entrada do bosque, ficaram surpresos ao verem cavaleiros emarmaduras brilhantes e altivos guardas vestidos de prata e negro, que os saudaram comhonras e lhes fizeram reverências. E então um deles tocou uma longa trombeta, e elescontinuaram avançando pelo corredor de árvores ao lado do rio cantante. Assim chegarama um lugar amplo e verde, além do qual havia um rio largo coberto de uma névoaprateada, da qual emergia uma longa ilha arborizada, com muitos navios atracados em suacosta. Mas no campo onde agora entravam havia um grande exército em formação, e suasfileiras e companhias brilhavam ao sol. E, quando os hobbits se aproximaram, espadasforam desembainhadas, lanças se agitaram, cornetas e trombetas cantaram, e os homensgritavam em muitas vozes e em muitas línguas:

"Vida longa aos Pequenos! Louvai-os com grande louvor!Cuio i Pheriain anann!Aglar"ni Pheríannath!Louvai-os com grande louvor, Frodo e Samwise!Daur a Berhael, Conin en Annún! Eglerio!Louvai-os!Eglerio!leita te. laita te!Andave laituvalmetlLouvai-os!Cormacolindor, a laita tórien na!Louvai-os! Os Portadores do Anel, louvai-os com grande louvor!"

E assim, com o sangue quente a corar-lhes as faces e os olhos brilhando desurpresa, Frodo e Sam avançaram e viram que em meio ao exército clamante estavam trêsaltos assentos feitos de turfa verde. Atrás do assento á direita pairava, branco sobre verde,um grande cavalo correndo solto; à esquerda havia uma bandeira, prata sobre azul, umnavio com proa em cisne vagando sobre o mar; mas atrás do trono mais alto, que ficavabem ao centro, um grande estandarte se abria na brisa, e nele uma árvore branca floriasobre um campo de sable, sob uma corôa reluzente e sete estrelas brilhantes. Sentado notrono estava um homem vestido de malha metálica, com uma grande espada sobre osjoelhos; mas em sua cabeça não havia elmo.

Quando os hobbits se aproximaram, ele se levantou. E então o reconheceram,mesmo mudado como estava, tão altivo e com uma expressão alegre no rosto, majestoso,senhor de homens, de cabelos escuros e olhos cinzentos.

Frodo correu ao encontro dele, e Sam foi logo atrás.

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- Ora, ora, mas isso corôa tudo! - disse ele. - Passolargo, ou então ainda estousonhando!

- Sim, Sam, Passolargo - disse Aragorn. - Estamos muito longe de Bri, onde vocênão gostou da minha aparência, não é mesmo? Todos nós estamos muito longe, mas a suaestrada foi a mais escura.

E então, para a surpresa e completo assombro de Sam, ele curvou os joelhos diantedeles; depois tomando-os pela mão, Frodo à direita e Sam á esquerda, conduziu-os até otrono e, fazendo-os sentar, virou-se para os homens e capitães que assistiam a tudo e,numa voz que ecoou por todo o exército, gritou:

- Louvai-os com grande louvor!E depois que o grito alegre cresceu e foi diminuindo de novo, completando de uma

vez por todas a satisfação de Sam e enchendo-o de pura alegria, um menestrel de Gondordeu um passo à frente, ajoelhou-se e pediu permissão para cantar. E eis que disse ele:

- Vejam, senhores, cavaleiros e homens de honra imaculada, reis e príncipes e belopovo de Gondor, Cavaleiros de Rohan e vós, filhos de Elrond, e dúnedain do norte, elfo eanão e valentes do Condado, e todas as pessoas livres do oeste, ouçam agora a minhabalada. Pois vou cantar para todos sobre Frodo dos Nove Dedos e o Anel da Perdição.

E, quando Sam ouviu aquilo, riu alto por puro deleite; levantando-se, gritou:- Ó grande glória e esplendor! E todos os meus desejos se realizaram! – E então

chorou.E todo o exército riu e chorou, e no meio desta alegria e destas lágrimas a voz

límpida do menestrel se ergueu como prata e ouro, e todos os homens silenciaram.E ele cantou, alternando a língua do elfos e a do oeste, até que seus corações,

feridos por doces palavras, transbordaram, numa alegria que se assemelhava a espadas, eeles passaram em pensamentos para regiões onde dor e prazer fluem juntos, e as lágrimassão o próprio vinho da felicidade.

Por fim, quando o sol do meio-dia foi caindo e as sombras das árvores sealongaram, o menestrel terminou. - Louvai-os com grande louvor! - disse ele ajoelhando-se.

E então Aragorn se levantou, e depois dele todo o exército, e eles passaram parapavilhões já preparados, onde iriam comer, beber e se alegrar enquanto durasse o dia.

Frodo e Sam foram conduzidos em separado para uma tenda, onde despiram suasvestes velhas, que apesar disso foram dobradas e guardadas com honra; roupas limpas delinho foram-lhes trazidas. Então veio Gandalf tendo nos braços, para a surpresa de Frodo,a espada, a capa élfica e o casaco de mithril que lhe foram tomados em Mordor. Para Samele trouxe um casaco de malha dourada, e a capa élfica completamente curada dosferimentos e manchas que sofrera; depois colocou diante deles duas espadas.

- Não desejo espada alguma - disse Frodo.- Pelo menos esta noite você deve usar uma – disse Gandalf.Então Frodo pegou a pequena espada que pertencera a Sam, e fora colocada ao seu

lado em Cirith Ungol.- Ferroada eu dei a você, Sam - disse ele.-Não, mestre! O Sr. Bilbo a deu ao senhor, e ela combina com o casaco prateado

dele; ele não gostaria que ninguém mais a usasse agora. Frodo concordou, e Gandalf,como se fosse o escudeiro dos hobbits, ajoelhou-se e cingiu-lhes os cintos com asespadas; depois, levantando-se, colocou diademas de prata em suas cabeças. E, quandoestavam paramentados, foram para o grande banquete; sentaram-se á mesa do Rei comGandalf, o Rei Éomer de Rohan, o Príncipe Imrahil e todos os principais capitães, alémde Gimli e Legolas. Mas quando, depois do Silêncio de Cerimônia, o vinho foi trazido,

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entraram dois escudeiros para servir os reis; pelo menos assim pareciam: um estavavestindo a prata e o negro dos guardas de Minas Tirith, e o outro trajava branco e verde.Mas Sam ficou curioso, pensando o que dois meninos tão jovens estariam fazendo emmeio a um exército de homens poderosos. Então, de repente, quando os dois seaproximaram e ele os pôde ver melhor, exclamou:

- Ora, ora, olhe, Sr. Frodo! Olhe aqui! Veja, se não é o Sr. Pippin. Quero dizer, oSr. Peregrin Túk, e o Sr. Merry! Como cresceram! Vejam só! Aposto que há maishistórias a contar além da nossa.

- É isso mesmo - disse Pippin virando-se para ele. - E vamos começar a conta-lasassim que este banquete terminar. No meio tempo vocês podem tentar com Gandalf Ele jánão é mais tão reservado como antes, embora nos últimos tempos esteja mais rindo do quefalando. Por enquanto Merry e eu estamos ocupados. Somos cavaleiros da Cidade e deRohan, como espero que você tenha observado.

Finalmente terminou o alegre dia, e, quando o sol se foi e a lua redonda subiudevagar acima das névoas do Anduin, tremeluzindo através das folhas farfalhantes, Frodoe Sam se sentaram sob árvores sussurrantes em meio à fragrância da bela Ithilien; foramnoite adentro conversando com Merry, Pippin e Gandalf, e depois de um tempo Legolas eGimli juntaram-se a eles. Então Frodo e Sam souberam grande parte do que acontecera àComitiva depois do rompimento da sociedade, naquele dia maligno no Parth Galen, pertoda Cachoeira de Rauros; mesmo assim, havia sempre mais a perguntar, e mais a contar.

Orcs, árvores falantes, léguas de relva, cavaleiros galopantes, cavernas cintilantes,torres brancas e palácios dourados, e batalhas, altos navios navegando, todas essas coisaspassaram diante da mente de Sam até que ele ficou confuso. Mas, em meio a todas essassurpresas, ele sempre retornava ao assombro que sentira ao ver o tamanho de Merry ePippin. Fez então com que cada um deles ficasse de pé e medisse sua altura com ele ecom Frodo, cada um de costas para o outro. Coçou a cabeça.

- Não posso entender isso nessa idade! - disse ele. - Mas é isto mesmo: os senhoresestão quase oito centímetros mais altos do que deveriam estar, ou eu sou um anão.

- Isso certamente você não é - disse Gimli. - Mas o que foi que eu disse? Osmortais não podem ficar bebendo bebida de ent e esperar apenas o mesmo efeito de umacaneca de cerveja.

- Bebida de ent? - disse Sam. - Lá vêm vocês com os ents de novo mas não consigoentender o que eles são. Acho que vai levar semanas até que tenhamos esclarecido todasessas coisas!

- Sem dúvida, semanas - disse Pippin. - E depois Frodo terá de ser trancado numatorre de Minas Tirith para escrever toda a história. Caso contrário vai esquecer metadedela, e o pobre e velho Bilbo ficará terrivelmente desapontado.

Por fim Gandalf se levantou.- As mãos do rei são mãos que curam, queridos amigos - disse ele. - Mas vocês

chegaram á beira da própria morte, antes que ele os resgatasse, usando todo o seu poder, eenviando-os para o doce esquecimento do sono. E, embora vocês tenham realmentedormido longa e tranquilamente, ainda assim é hora de dormirem outra vez.

- E não apenas para Frodo e Sam - disse Gimli -, mas você também, Pippin.Eu te amo, mesmo que seja apenas por causa de todos os sofrimentos que me custou, dosquais nunca me esquecerei. Muito menos esquecerei o momento em que o encontrei nacolina da última batalha. Se não fosse por mim, Gimli, o anão, você se teria perdidonaquela hora. Mas pelo menos agora eu conheço a aparência do pé de um hobbit, mesmoque seja a única coisa visível sob um monte de cadáveres. E, quando retirei a grandecarcaça de cima de você, tinha certeza de que estava morto. Teria apostado minha barba.

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E só faz um dia que você se levantou pela primeira vez, completamente recuperado. Paraa cama, já. E eu vou também.

- E eu - disse Legolas - vou andar na floresta desta bela terra, o que para mim édescanso suficiente. Em dias vindouros, se meu senhor élfico permitir, alguns de meupovo vão se mudar para cá; quando vierem será uma alegria completa, por um tempo. Porum tempo: um mês, uma vida, cem anos dos homens. Mas o Anduin está perto, e oAnduin leva até o Mar. Para o Mar!

Para o Mar, para o Mar! As gaivotas vão gritando,O vento está fluindo, branca espuma levantando.A oeste, oestembora, redondo o sol vai indo.Barco cinza, barco cinza, o chamado estás ouvindoDas vozes de meu povo, dos que não vejo mais?Vou deixar vou deixar os bosques maternais;nossos anos já vão indo, nossos dias terminando.Amplas águas vou cruzar, sozinho navegando.Na Praia Derradeira longas ondas vão quebrando,Naquela Ilha Perdida doces vozes vão clamando,Em Eresséa, em Casadelfos que mortal não viu presente,Onde as folhas jamais caem: lá meu povo eternamente.

E, quando ficou sabendo que no cerco de Gondor houvera um grande númerodesses animais, mas que eles haviam sido abatidos, considerou o fato uma triste perda.

- Bem, não se pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo, eu acho - disse ele.- Mas eu perdi muita coisa, ao que parece.

Enquanto isso o exército se preparava para o retorno a Minas Tirith. Os queestavam exaustos descansaram, os feridos foram curados. Pois alguns tinham trabalhado elutado muito com os últimos orientais e sulistas, até que todos foram subjugados. E, porúltimo, retornaram aqueles que tinham penetrado em Mordor e destruído as fortalezas aonorte daquela região.

Mas por fim, quando o mês de maio se aproximava, os Capitães do Oeste partiramde novo; foram de navio com todos os seus homens, e navegaram de Cair Andros peloAnduin até Osgiliath, e lá permaneceram por mais um dia; no dia seguinte chegaram aoscampos verdes do Pelennor e viram outra vez as torres brancas sob a alta Mindolluin, aCidade dos Homens de Gondor, última lembrança do Ponente, que atravessara a escuridãoe o fogo para atingir um novo dia. E lá, no meio dos campos, eles montaram seuspavilhões e aguardaram a chegada da manhã, pois era Véspera de Maio, e o Rei entrariapelos seus portões com o nascer do sol. E assim, cantando, Legolas saiu, descendo acolina.

Então os outros também saíram, e Frodo e Sam foram dormir. Pela manhãacordaram outra vez em meio à paz e á esperança; passaram muitos dias em Ithilien. Poiso Campo de Cormallen, onde o exército estava agora acampado, ficava perto de HennethAnnún, e o rio que corria de sua cachoeira podia ser ouvido na noite, quando passavadescendo através de seu portão de pedra, e atravessava os prados floridos, dirigindo-separa a correnteza do Anduin perto da Ilha de Cair Andros. Os hobbits andavam de umlugar para o outro, visitando outra vez os lugares pelos quais já tinham passado, e Samsempre alimentava a esperança de ver, em alguma sombra ou clareira secreta da floresta,talvez num momento fugaz, o grande Olifante.

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CAPÍTULO V O REGENTE E O REI

Sobre a cidade de Gondor pairava dúvida e grande medo. O bom tempo e o solclaro haviam parecido apenas um arremedo aos olhos de homens cujos dias continhampoucas esperanças, e que esperavam a cada manhã notícias de destruição. O senhordaquele povo estava morto e queimado, morto jazia o Rei de Rohan em sua Cidadela, e onovo rei, que chegara até eles durante a noite, partira outra vez para uma guerra contraforças por demais escuras e terríveis para que qualquer poder ou coragem pudessemvencê-las. E nenhuma noticia chegava. Depois que o exército partiu do Vale Morgul etomou a estrada que conduzia ao norte, sob a sombra das montanhas, nenhum mensageiroretornara, nem tampouco houvera qualquer boato sobre o que estava se passando no leste.

Apenas dois dias após a partida dos Capitães, a Senhora Éowyn ordenou às aiasque a assistiam que trouxessem suas roupas, e não se mostrou disposta a que acontradissessem: levantou-se da cama. E, quando a tinham vestido e colocado seu braçonuma tipóía de linho, ela se dirigiu ao Diretor das Casas de Cura.

- Senhor - disse ela -, estou muito ansiosa, e não posso ficar mais tempo nesserepouso indolente.

- Senhora - respondeu ele -, ainda não está curada, e foi- me ordenado que lhedispensasse cuidados especiais. Deveria repousar em sua cama por mais sete dias, ou pelomenos foi o que me recomendaram. Peço que retorne.

- Estou curada - disse ela -, pelo menos meu corpo está, a não ser apenas por meubraço esquerdo, e este está repousando. Mas vou adoecer de novo, se não houver nadaque eu possa fazer. Não há noticias da guerra? As aias não me dizem nada.

- Não há notícias - disse o Diretor -, exceto a de que os Senhores cavalgaram parao Vale Morgul, e os homens dizem que o novo capitão que veio do norte os lidera. Ele éum grande senhor, e um curador; e a mim me parece estranho que uma mão que cura devatambém brandir uma espada. Não é o que acontece em Gondor atualmente, emboraoutrora tenha sido assim, se as velhas histórias são verdadeiras. Mas por longos anos nós,os curadores, só estamos procurando remendar os rasgos feitos pelos espadachins. Apesardisso, ainda teríamos muito a fazer sem eles: o mundo já está cheio de feridas einfortúnios mesmo sem guerras para multiplicá-los.

- Só é necessário um inimigo para preparar uma guerra, e não dois, Mestre Diretor- respondeu Éowyn -, e aqueles que não têm espadas ainda podem morrer por meio delas.O senhor gostaria que o povo de Gondor ficasse apenas ajuntando ervas, quando o Senhordo Escuro ajunta exércitos? E não é sempre bom estar com o corpo curado. Nem é sempremau morrer em combate, mesmo com um sofrimento amargo. Se me fosse permitido,nesta hora escura eu teria escolhido a segunda opção.

O Diretor olhou para ela. Era altiva, os olhos brilhavam no rosto branco, sua mãocrispou-se no momento em que se virou e olhou pela janela que se abria para o leste. Elesuspirou e balançou a cabeça. Depois de uma pausa, ela se virou para ele outra vez.

- Não há nada a fazer? - disse ela. - Quem está no comando desta Cidade?- Não sei bem ao certo - respondeu ele. - Essas coisas não são responsabilidade

minha. Há um marechal comandando os Cavaleiros de Rohan, e o Senhor Húrin, pelo queouvi dizer, lidera os homens de Gondor. Mas o Senhor Faramir é por direito o Regente daCidade.

- Onde posso encontrá-lo?- Nesta casa, senhora. Ele foi seriamente ferido, mas agora já está a caminho da

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recuperação. Mas eu não sei...- Pode me levar até ele? Então saberá.O Senhor Faramir caminhava solitário no jardim das Casas de Cura; o sol o

aquecia, e ele sentia a vida correr renovada em suas veias; mas seu coração estavapesaroso, e ele olhava por sobre as muralhas na direção do leste. Ao chegar, o Diretorpronunciou seu nome, e ele se virou e viu a Senhora Éowyn de Rohan; ficou penalizado,pois viu que ela estava ferida, e seus olhos argutos perceberam a tristeza e a aflição queela sentia.

- Meu senhor - disse o Diretor-, aqui está a Senhora Éowyn de Rohan. Elacavalgou ao lado do rei e foi seriamente ferida, e agora está sob minha guarda. Mas elanão está satisfeita, e deseja falar com o Regente da Cidade.

- Não o entenda mal, senhor - disse Éowyn. - Não é a falta de cuidados que meentristece. Nenhuma casa poderia ser melhor para aqueles que desejam se curar. Mas nãoposso ficar indolente, ociosa, aprisionada. Na batalha, corri na direção da morte. Mas nãomorri, e a batalha ainda perdura.

A um aceno de Faramir, o Diretor fez uma reverência e saiu.– O que gostaria que eu fizesse, senhora? - perguntou Faramir. - Também eu sou

um prisioneiro dos curadores. - Olhou para ela, e, sendo um homem profundamentesuscetível à pena, teve a impressão de que a beleza de Éowyn, combinada com a tristezaque ela sentia,poderiam partir-lhe o coração. E ela, olhando para ele, viu a grave ternuraem seus olhos, e mesmo assim soube, pois fora criada entre homens guerreiros, que aliestava alguém a quem nenhum Cavaleiro de Rohan poderia superar em batalha.

- O que deseja? - disse ele outra vez. - Farei o que estiver ao meu alcance.- Gostaria que ordenasse a esse Diretor que me desse permissão para partir - disse

ela; mas, embora suas palavras ainda fossem cheias de orgulho, seu coração vacilou, epela primeira vez ela duvidou de si mesma. Pensou que aquele homem, ao mesmo tempoaustero e gentil, poderia considerá-la apenas geniosa, como uma criança que não tem afirmeza mental para executar uma tarefa enfadonha até o fim.

- Eu mesmo estou sob a guarda do Diretor - respondeu Faramir. - E também aindanão assumi minha função na Cidade. Mas, se já tivesse feito isso, ainda assim ouviria oconselho dele, e não o desautorizaria em assuntos de sua alçada, a não ser em caso deextrema necessidade.

- Mas não desejo ser curada - disse ela. - Desejo cavalgar para a guerra como meuirmão Éomer ou, melhor ainda, como o Rei Théoden, pois ele morreu, alcançando tanto ahonra como a paz.

- É tarde demais, senhora, para seguir os Capitães, mesmo que lhe restassem forças- disse Faramir. - Mas a morte em batalha pode ainda nos atingir a todos, quer adesejemos ou não. Estará mais bem preparada para enfrentá-la à sua própria maneira, sefizer como o Diretor ordenou enquanto ainda há tempo. A senhora e eu, ambos devemossuportar com paciência as horas de espera.

Éowyn não respondeu, mas observando-a Faramir teve a impressão de que algonela amoleceu, como se uma forte geada estivesse cedendo ao primeiro leve presságio deprimavera. Uma lágrima surgiu em seus olhos e caiu-lhe pelas faces como uma gotacintilante de chuva. Sua cabeça altiva abaixou-se um pouco.

Então, num tom suave, como se estivesse mais falando consigo própria do que comele, ela disse:

- Mas os curadores querem que eu fique de repouso por mais sete dias. E minhajanela não dá para o leste. - Sua voz agora era a de uma donzela jovem e triste.

Faramir sorriu, embora seu coração estivesse cheio de pena. - Sua janela não dá

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para o leste? - disse ele. - Isso pode ser solucionado.Nesse ponto darei ordens ao Diretor. Se ficar nesta casa sob nossos cuidados,

senhora, e guardar seu repouso, então poderá caminhar neste jardim ao sol quando bemquiser; e poderá olhar para o leste, para onde todas as nossas esperanças se dirigiram. Eaqui poderá me encontrar, caminhando e esperando, e também olhando para o leste.Suavizaria minha preocupação, se estivesse disposta a conversar comigo, ou às vezescaminhasse em minha companhia.

Então ela levantou a cabeça e olhou nos olhos dele de novo; um rubor tingiu-lhe orosto pálido. - Como eu poderia suavizar sua preocupação, meu senhor? - disse ela. - Eunão desejo conversar com homens vivos.

- Aceitaria uma resposta direta? - disse ele.- Sim.- Então, Éowyn de Rohan, digo-lhe que é linda. Nos vales de nossas colinas há

flores belas e cintilantes, e donzelas ainda mais bonitas; mas até agora não vi em Gondorflores ou mulheres tão encantadoras, nem tão cheias de tristeza. Pode ser que restemapenas alguns dias antes que a escuridão caia sobre nosso mundo, e quando chegar esperoenfrentá-la com firmeza; mas aliviaria meu coração se, enquanto o sol ainda brilha, euainda pudesse vê-la. Pois nós dois passamos sob as asas da Sombra, e a mesma mão nostrouxe de volta.

- Não eu, infelizmente, senhor - disse ela. - A Sombra ainda paira sobre mim. Nãome olhe em busca de cura! Sou uma escudeira e minhas mãos não são delicadas.

Mas pelo menos lhe agradeço por isso, por não precisar ficar em meu quarto. Voucaminhar ao ar livre pela graça do Regente da Cidade. - Então ela lhe fez um gesto cortêse voltou para a casa. Mas Faramir, por um longo tempo, caminhou sozinho no jardim, eseu olhar agora se voltava mais para a casa que para as muralhas ao leste.

Quando retornou ao seu quarto, mandou chamar o Diretor, e ouviu tudo o que estepôde lhe contar sobre a Senhora de Rohan.

- Não duvido, senhor - disse o Diretor -, de que teria mais informações seprocurasse o Pequeno que está conosco; pois ele esteve cavalgando junto com o rei, e aofinal com a Senhora, pelo que dizem.

E assim Merry foi enviado a Faramir, e enquanto o dia durou eles conversaramlongamente, e Faramir soube de muita coisa, mais até do que Merry colocou em palavras;agora ele julgava entender algo da tristeza e da inquietação de Éowyn de Rohan. E nobelo inicio de noite Faramir e Merry caminharam no jardim, mas ela não veio.

Mas pela manhã, quando Faramir veio das Casas, ele a viu sobre as muralhas,vestida toda de branco, reluzindo ao sol. E ele a chamou, e ela desceu, e os dois ficaramcaminhando na relva ou sentados juntos sob uma árvore verde, por vezes em silêncio, porvezes conversando. E a cada dia que se seguiu fizeram a mesma coisa. E o Diretor,olhando de sua janela, alegrou-se em seu coração, pois era um curador, e sua preocupaçãoficou menos pesada; e era certo que, por mais pesado que fossem o temor e os mauspresságios nos corações dos homens naqueles dias, mesmo assim esses dois pacientes sobseus cuidados prosperavam e cresciam em força a cada dia.

Assim chegou o quinto dia desde que a Senhora Éowyn encontrou-se com Faramirpela primeira vez; e os dois estavam juntos mais uma vez, olhando por sobre as muralhasda Cidade. Ainda nenhuma notícia chegara, e todos os corações estavam anuviados. Osdias também já não eram claros. Estava frio. Um vento que se erguera durante a noitesoprava agora do norte, cortante, e aumentava cada vez mais; mas as terras ao redorpareciam cinzentas e desoladas.

Trajavam roupas quentes e capas pesadas, e sobre tudo a Senhora Éowyn vestia um

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grande manto azul, da cor profunda de uma noite de verão, adomado com estrelasprateadas na barra e no pescoço. Faramir mandara buscar esse manto para agasalhá-la;achou que ela parecia bela e verdadeiramente majestosa ao lado dele. O manto foraconfeccionado para a sua mãe, Finduilas de Amroth, que morrera precocemente, e erapara ele apenas uma lembrança de encanto em dias distantes e de sua primeira tristeza: eesse manto lhe parecia uma roupa adequada á beleza e á tristeza de Éowyn.

Mas agora ela tremia sob o manto estrelado, e olhava para o norte, através dasterras cinzentas que a rodeavam, dentro do olho do vento frio onde, distante, o céu estavafirme e claro.

- O que está procurando, Éowyn? - perguntou Faramir.- O Portão Negro não fica naquela direção? - disse ela. - E ele não deve ter agora

chegado lá? Já faz sete dias que partiu- Sete dias - disse Faramir. - Mas não me leve a mal, se eu lhe disser: esses dias me

trouxeram ao mesmo tempo uma alegria e um sofrimento que jamais pensei conhecer.Alegria em vê-la; mas sofrimento, porque agora o medo e a dúvida destes temposmalignos realmente ficaram muito escuros. Éowyn, agora eu não gostaria que este mundoacabasse, ou que eu perdesse tão depressa o que encontrei.

- Perder o que encontrou, senhor? - respondeu ela; mas olhou para ele com um argrave, e seus olhos eram doces. - Não consigo pensar no que tenha encontrado nestes diasque pudesse perder. Mas venha, meu amigo, não vamos falar nisso! Não vamos falarnada! Estou à beira de um abismo maligno, e está totalmente escuro diante de meus pés,mas se há alguma luz atrás de mim não posso dizer. Pois ainda não posso me virar.Aguardo algum golpe do destino.

- Sim, nós dois aguardamos o golpe do destino - disse Faramir. E não disserammais nada, e tiveram a impressão, ali sobre a muralha onde estavam, de que o ventocessou, e a luz diminuiu e o sol foi ofuscado, e todos os sons na Cidade ou nas regiões aoredor silenciaram: nem vento, nem voz, nem canto de pássaro, nem farfalhar de folhas,nem sequer a própria respiração de ambos podia-se ouvir; a própria batida de seuscorações cessou. O tempo parou.

E, enquanto ficaram assim, suas mãos se encontraram e se entrelaçaram, sem queeles se dessem conta disso. Continuavam á espera sem saber do quê. Então, de repente,tiveram a impressão de que, acima das cordilheiras das distantes montanhas, uma outravasta montanha de escuridão se ergueu, assomando como uma onda que engoliria omundo, e em volta dela faiscavam relâmpagos; então um tremor percorreu a terra, e elessentiram as muralhas da Cidade estremecendo. Um som como um suspiro subiu de todasas terras ao redor, e de repente seus corações começaram de novo a bater.

- Isso me faz lembrar de Númenor - disse Faramir, surpreso ao ouvir o som daprópria voz.

- De Númenor? - perguntou Éowyn.- Sim - disse Faramir -, da terra do Ponente que soçobrou. e da grande onda escura

subindo acima das terras verdes e cobrindo as colinas, e avançando, uma escuridãoinescapável. Eu sempre sonho com isso.

- Então você acha que a Escuridão está chegando? - disse Éowyn. - A EscuridãoInescapável? - E de repente ela se aproximou mais dele.

- Não - disse Faramir, olhando no rosto dela. - Foi apenas uma imagem em minhacabeça. Não sei o que está acontecendo. A razão de minha mente consciente me diz queum grande mal aconteceu e que estamos no fim dos dias. Mas meu coração diz ocontrário, e todos os meus membros estão leves, e uma esperança e uma alegria quenenhuma razão pode negar se apoderam de mim. Éowyn, Éowyn, Senhora Branca de

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Rohan, nesta hora não acredito que qualquer escuridão possa perdurar! - Abaixou-se ebeijou-lhe a testa.

E assim ficaram sobre as muralhas da Cidade de Gondor, e um vento forte subiu esoprou, e seus cabelos, negros e dourados, esvoaçaram e se misturaram no ar. E a Sombrapartiu, e o sol foi descoberto, e a luz jorrou; e as águas do Anduin brilharam como prata, eem todas as casas da Cidade homens cantavam devido à alegria que lhes inundava oscorações, vinda de uma fonte que eles não conheciam.

E, antes que o sol tivesse descido do meio-dia, do leste chegou voando uma grandeÁguia, trazendo notícias dos Senhores do Oeste que superavam qualquer esperança,exclamando:

Cantai, ó povo da Torre de Anor,que o Reino de Sauron para sempre acabou,e a Torre Escura enfim ruiu.

Cantai e jubilai, ó povo da Torre da Guarda,que vossa vigília não foi em vão,e o Portão Negro foi quebrado,e vosso Rei já pôde passar em marcha triunfal.

Cantai e alegrai-vos, vós todos, filhos do oeste, que vosso Rei há de voltar outra vez, e ele habitará entre vós todos os dias de vossa vida.

E a Árvore que havia secado renovada será,e será plantada nos lugares altos,e a Cidade será abençoada.

Cantai todos, ó povo!

E o povo cantou em todos os caminhos da Cidade.Os dias que se seguiram foram dourados, e a primavera e o verão festejaram juntos

nos campos de Gondor. E agora chegavam noticias, trazidas de Cair Andros por velozescavaleiros, sobre tudo o que se passara, e a Cidade se preparava para a chegada do Rei.Merry foi convocado e partiu com as carroças que levaram suprimentos até Osgiliath,prosseguindo de lá para Cair Andros de navio; mas Faramir não foi, pois agora, estandorecuperado, reassumira sua função e a Regência, embora por pouco tempo, e seu deverera preparar tudo para alguém que iria substitui-lo.

E Éowyn não foi, embora seu irmão lhe tivesse enviado um recado, pedindo queela fosse até o campo de Cormallen. E Faramir se surpreendeu com isso, mas a via rarasvezes, ocupado com muitos assuntos; ela ainda estava nas Casas de Cura, e caminhavasozinha no jardim, e seu rosto empalidecera de novo, e parecia que em toda a Cidade elaera a única pessoa triste e doente. O Diretor das Casas ficou preocupado, e falou comFaramir.

Então Faramir foi procurá-la, e mais uma vez os dois ficaram sobre as muralhasjuntos, e ele lhe disse: - Éowyn, por que você continua aqui, e não vai aos festejos emCormallen além de Cair Andros, onde seu irmão a aguarda?

E ela disse: - Você não sabe?Mas ele respondeu: - Pode haver dois motivos, mas qual é o verdadeiro eu não sei.

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E ela disse: - Não quero brincar com enigmas. Fale mais claramente!- Então, se é esse o seu desejo, senhora - disse ele -: você não vai porque apenas

seu irmão a chamou, e contemplar o Senhor Aragorn, herdeiro de Elendil, em seu triunfonão lhe traria felicidade alguma. Ou então porque eu não vou, e você deseja ficar perto demim. E talvez seja por esses dois motivos, e você não está conseguindo escolher entreeles. Éowyn, você não me ama, ou não deseja me amar"?

- Desejava ser amada por outro, respondeu ela. - Mas não quero a comiseração denenhum.

- Isso eu sei - disse ele. - Você desejava ter o amor do Senhor Aragorn. Porque eleera nobre e pujante, e você queria ter renome e glória e ser elevada bem acima das coisasmesquinhas que se arrastam sobre a terra. E, como um grande capitão pode pareceradmirável para um jovem soldado, assim ele lhe pareceu. Pois é o que ele é, um senhorentre homens, o maior que existe atualmente. Mas, quando lhe ofereceu apenascompreensão e pena, então você não desejou mais nada, exceto uma morte corajosa embatalha. Olhe para mim, Éowyn!

E Éowyn olhou para Faramir firme e longamente; Faramir disse: - Não despreze acomiseração oferecida por um coração gentil, Éowyn! Mas eu não lhe ofereço minhacomiseração. Pois você é uma senhora nobre e valorosa, e obteve um renome que nãodeverá ser esquecido; e você é uma senhora bela, considero eu, e sua beleza está acimaaté do que a língua dos elfos pode descrever. E eu a amo. Já senti pena de sua tristeza.Mas agora, mesmo que você não sentisse tristeza alguma, nem medo, e não lhe faltassenada; fosse você a bem-aventurada Rainha de Gondor, ainda assim eu a amaria. Éowyn,você não me ama?

Naquele momento o coração de Éowyn mudou, ou então finalmente ela percebeu amudança. E de repente seu inverno passou e o sol brilhou para ela.

- Estou em Minas Anor, a Torre do Sol - disse ela -; e eis que a Sombra partiu!Não serei mais uma escudeira, nem competirei com os grandes Cavaleiros, e deixarei deme regozijar apenas com canções de matança. Serei uma curadora, e amarei todas ascoisas que crescem e não são estéreis. - Outra vez olhou para Faramir.

- Não desejo mais ser uma rainha - disse ela.Então Faramir sorriu com alegria. - Assim está bem - disse ele -; pois eu não sou

um rei. E mesmo assim me casarei com a Senhora Branca de Rohan, se ela assim odesejar. E, se ela :"quiser, então atravessaremos o Rio e em dias mais felizes iremosmorar na bela Ithilien, e lá faremos um jardim. Todas as coisas crescerão ali com alegria,se a Senhora Branca vier.

- Então devo deixar meu próprio povo, homem de Gondor? - disse ela. - E vocêgostaria que seu povo orgulhoso dissesse a seu respeito: "Lá vai um senhor que domouuma intrépida escudeira do norte! Não havia uma mulher da raça de Númenor para eleescolher?"

- Gostaria - disse Faramir. E tomando-a nos braços beijou- a sob o céu ensolarado,sem se preocupar se estavam sobre a muralha, num ponto alto, à vista de muitas pessoas.E realmente muitos viram os dois e a luz que brilhava ao redor deles quando desceram dasmuralhas e foram de mãos dadas até as Casas de Cura.

E ao Diretor das Casas Faramir disse: - Aqui está a Senhora Éowyn de Rohan, eagora ela está curada.

E o Diretor disse: - Então eu a dispenso de meus cuidados e digo-lhe adeus,desejando-lhe que jamais volte a ter qualquer doença ou sofrimento. Recomendo-a aoscuidados do Regente da Cidade, até que seu irmão retorne.

Mas Éowyn disse: - Apesar de agora eu ter permissão para partir, gostaria de ficar.

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Pois esta Casa se tornou para mim a mais feliz de todas as moradias.- E lá permaneceu até a chegada do Rei Éomer.Agora todas as coisas estavam prontas na Cidade, e havia um grande afluxo de

pessoas, pois as notícias tinham se espalhado por todos os cantos de Gondor, de Min-Rimmon até Pinnath Gelin e as distantes costas marítimas; todos os que puderam seapressaram em direção á Cidade. E a Cidade se encheu de novo de mulheres e lindascrianças que retornaram para seus lares carregadas de flores; e de Doí Amroth vieram osmelhores harpistas de toda a região, e havia também tocadores de violas, de flautas e decornetas de prata, e cantores de voz límpida vieram dos vales de Lebennin.

Por fim chegou o dia em que das muralhas podiam-se ver os pavilhões montadosno campo, e durante toda a noite as luzes arderam, enquanto os homens aguardavam aaurora. E quando o sol surgiu na manhã clara sobre as montanhas do leste, nas quais nãopairava mais sombra alguma, todos os sinos repicaram, e as bandeiras se abriramtremulando ao vento; sobre a Torre Branca da Cidadela o estandarte dos Regentes, pratabrilhante como neve ao sol, não trazendo emblema ou insígnia, foi hasteado sobre Gondorpela última vez.

Agora os Capitães do Oeste conduziam seu exército em direção à Cidade, e o povoos via avançar fileira após fileira, faiscando e reluzindo ao nascer do sol, ondulando comoprata. E assim eles chegaram diante do Pórtico e pararam a duzentos metros das muralhas.Até aquele momento, os portões ainda não haviam sido reconstruídos, e uma estacadafora construída atravessando a entrada da Cidade, e lá estavam homens armados vestindoprata e negro, erguendo longas espadas. À frente da estacada estavam o Regente Faramire Húrin, o Guardião das Chaves, juntamente com outros capitães de Gondor; a SenhoraÉowyn de Rohan com o Marechal Ellhelm e muitos de seus cavaleiros; e dos dois ladosdo Portão havia uma grande multidão de gente bonita vestida de muitas cores e levandoguirlandas de flores.

Havia agora um amplo espaço diante das muralhas de Minas Tirith rodeado pelossoldados e cavaleiros de Gondor e de Rohan, como também por todo o povo da Cidade ede todas as partes da região. Um silêncio caiu sobre todos quando do exército avançaramos dúnedain em prata e cinza; e à frente veio, caminhando devagar, o Senhor Aragorn.Estava vestindo uma malha metálica preta com um cinto prateado, e usava um longomanto completamente branco, preso ao pescoço por uma jóia verde que brilhava ao longe;mas em sua cabeça não havia nada, exceto uma estrela sobre a testa, presa por um finofilete de prata. Com ele vinham Éomer de Rohan, o Príncipe Imrahil e Gandalf, todovestido de branco, além de quatro pequenas figuras que a muitos causaram surpresa.

- Não, prima! Eles não são meninos - disse Ioreth á sua parente de Imloth Melui,que estava ao seu lado. - Aqueles são Periain, vindos da distante terra dos Pequenos, ondesão príncipes de grande renome, pelo que se conta. Eu sei, pois cuidei de um deles nasCasas. São pequenos, mas valorosos. Veja bem, prima, um deles foi para a Terra Negraacompanhado apenas de seu escudeiro, e lutou sozinho contra o Senhor do Escuro, earcou fogo à Torre dele, acredite se puder. Pelo menos é isso o que se conta na Cidade.Deve ser o que caminha com o nosso Pedra Élfica. São amigos íntimos, ouvi dizer.Agora, ele é um prodígio, o Senhor Pedra Élfica: não muito gentil em sua fala, note bem,mas tem um coração de ouro, como se diz por aí; e ele tem as mãos que curam. "As mãosdo rei são as mãos de um curador", disse eu; e foi assim que se descobriu tudo. EMithrandir me disse: "Ioreth, os homens se lembrarão por muito tempo de suas palavras",e...

Mas Ioreth não pôde continuar instruindo sua parente do interior, pois uma únicatrombeta soou, e fez-se silêncio profundo. Então vieram do Portão Faramir e Húrin das

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Chaves, desacompanhados de outros, exceto por quatro homens que caminhavam atrásdeles usando altos elmos e vestindo a armadura da Cidadela, carregando um grande cofrenegro de lebethron, adornado de prata.

Faramir foi ao encontro de Aragom no meio de todos ali reunidos, e ajoelhou-se,dizendo: - O último Regente de Gondor pede permissão para entregar seu oficio.

- E estendeu um bastão branco; mas Aragorn o tomou e o devolveu, dizendo:- Tal oficio não está terminado, e deverá ser teu e de teus herdeiros enquanto durar

minha linhagem. Desempenha agora o teu oficio!Então Faramir levantou-se e falou numa voz límpida: - Homens de Gondor, ouçam

agora o Regente deste Reino! Vejam! Finalmente chegou alguém para reivindicar o trono.Aqui está Aragorn, filho de Arathorn, chefe dos dúnedain de Amor, Capitão do Exércitodo Oeste, portador da Estrela do Norte, possuidor da Espada Reforjada, vitorioso embatalha, cujas mãos trazem a cura, o Pedra Élfica, Elessar da linhagem de Valandil, filhode Isildur, filho de Elendil de Númenor. Deve ele ser rei e entrar na Cidade para alimorar?

E todo o exército e todo o povo gritaram sim a uma só voz.E Ioreth disse à sua parente: - Isso é apenas uma cerimônia de nossa Cidade,

prima; pois ele já entrou, como eu estava lhe dizendo, e ele me disse... - então mais umavez ela foi obrigada a se calar, pois Faramir falou outra vez.

- Homens de Gondor, os mestres na tradição dizem que, conforme o costumeantigo, o rei deveria receber a corôa de seu pai antes que este morresse; e, se isso nãofosse possível, então ele deveria ir sozinho e tomá-la das mãos de seu pai no túmulo ondefoi depositado. Mas uma vez que as coisas devem ser feitas agora de modo diferente,usando a autoridade do Regente, eu hoje trouxe até aqui de Rath Dinen a corôa de Earnur,o último rei, cujos dias transcorreram no tempo de nossos remotos antepassados.

Então os guardas deram um passo à frente, e Faramir abriu o cofre, e ergueu umacorôa antiga. Tinha o formato dos elmos dos Guardas da Cidadela, mas era mais alta, etoda branca, e as asas dos dois lados eram feitas de pérolas e prata, a semelhança de asasde uma ave marítima, pois era o emblema dos reis que vieram pelo Mar; no aro da corôareluziam sete pedras, e na ponta uma única jóia, cuja luz subia como uma chama.

Então Aragorn pegou a corôa e a ergueu, dizendo: - Et Lârelio Endorenna utúlien. Sinome maruvan ar HiLdinyar tenn Ambar-metta!E essas foram as palavras que Elendil disse quando chegou do Mar nas asas do

vento: "Do Grande Mar vim para a Terra-média. Neste lugar vou morar, e também meusherdeiros, até o fim do mundo."

Então, para a surpresa de muitos, Aragorn não colocou a corôa sobre a própriacabeça, mas devolveu-a a Faramir, dizendo: - Pelo trabalho e pelo valor de muitos tomoposse do que é meu por herança. Em sinal disto gostaria que o Portador do Anel trouxessea corôa até mim, e que Mithrandir a colocasse sobre minha cabeça, se assim desejar; poisfoi ele o promotor de tudo o que foi realizado, e esta vitória lhe pertence.

Então Frodo veio à frente e tomou a corôa de Faramir e levou-a para Gandalf;Aragorn ajoelhou-se, e Gandalf colocou-lhe a corôa Branca sobre a cabeça, dizendo:

- Agora chegaram os dias do Rei, e que sejam bem-aventurados enquantoperdurarem os tronos dos Valar!

Mas quando Aragorn se levantou todos os que estavam presentes o contemplaramem silêncio, pois tiveram a impressão de que ele lhes estava sendo revelado pela primeiravez. Alto como os antigos reis dos mares, ele se ergueu acima de todos os que estavamperto; parecia velho em dias, mas na flor da virilidade; e a sabedoria ornava-lhe a fronte, ehavia força e cura em suas mãos, e uma aura de luz o envolvia.

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- Eis o rei!E nesse momento todas as trombetas soaram, o Rei Elessar avançou chegando até a

barreira, e Húrin das Chaves a afastou; em meio à música de harpas, violas e flautas, e docanto de vozes límpidas, o Rei passou pelas ruas cobertas de flores, chegando á Cidadela,e a adentrou; a bandeira da Arvore e das Estrelas foi desfraldada sobre o torreão maisalto, e iniciou-se o reinado do rei Elessar, do qual falaram muitas canções.

Em seu tempo a Cidade ficou mais bonita do que jamais fora, até mesmo mais doque nos dias de suas primeiras glórias; e encheu-se de árvores e fontes, e seus portõeseram confeccionados em mithril e aço, e suas ruas eram pavimentadas de mármorebranco, e o Povo da Montanha trabalhava nela, e o Povo da Floresta alegrava-se emvisitá-la; tudo foi sanado e melhorado, e as casas se encheram de homens e mulheres e doriso das crianças; nenhuma janela ficou fechada e nenhum pátio vazio; e após o términoda Terceira Era do mundo, entrando na nova era, a Cidade ainda preservava a lembrança ea glória dos anos passados.

Nos dias seguintes á sua coroação, o Rei sentou-se em seu trono no Palácio dosReis e pronunciou seus julgamentos. Embaixadas vieram de muitas terras e povos, doleste e do sul e das fronteiras da Floresta das Trevas, e da Terra Parda no oeste. E o reiperdoou os orientais que se haviam rendido e os mandou embora em liberdade, e fez aspazes com o povo de Harad; os escravos de Mordor ele libertou, dando-lhes todas asterras ao redor do Lago Núrnen, para que lhes pertencessem. E foram trazidas à suapresença muitas pessoas, para que recebessem seu elogio e recompensa por seu valor; porúltimo o capitão da Guarda lhe trouxe Beregond, para que fosse julgado.

E o Rei disse a ele: - Beregond, através de sua espada o sangue se espalhou nosFanos, onde isso não é permitido. Além disso, você abandonou seu posto sem a permissãodo Senhor ou do Capitão. Por essas coisas, antigamente, a pena era a morte. Portantoagora vou pronunciar sua sentença.

- Toda a pena fica remitida devido ao seu valor em batalha, e mais ainda porquetudo o que fez foi por amor ao Senhor Faramir. Não obstante, você deve deixar a Guardada Cidadela, e deve sair da Cidade de Minas Tirith.

Então o sangue sumiu do rosto de Beregond, que recebeu um golpe no coração ebaixou a cabeça. Mas o Rei disse:

- Deve ser assim, pois você foi designado para a Companhia Branca. a Guarda deFaramir, Príncipe de Ithilien, e você será capitão dele e irá viver em Emyn Arnen comhonra e paz, no serviço daquele por quem você arriscou tudo, para salvá-lo da morte.

E então Beregond, percebendo a justiça e a clemência do Rei, ficou feliz, eajoelhando-se beijou-lhe a mão, e partiu alegre e satisfeito. E Aragorn deu a FaramirIthilien, para que fosse seu principado, e pediu que ele morasse nas colinas de EmynArnen, à vista da Cidade.

- Pois - disse ele - Minas Ithil, no Vale Morgul, deverá ser completamentedestruída, e, embora em tempos vindouros ela possa ser purificada, nenhum homemdeverá morar lá antes que se passem muitos e longos anos.

E por último Aragorn cumprimentou Éomer de Rohan, e os dois se abraçaram eAragorn disse: - Entre nós não pode haver palavras de dar ou receber, nem derecompensa, pois somos irmãos. Foi uma hora feliz aquela na qual Eorl veio cavalgandodo norte, e nunca uma aliança de povos foi mais abençoada, de modo que nenhum dosdois nunca faltou ao outro, e nem faltará. Agora, como você sabe, deitamos Théoden, oRenomado, num túmulo nos Fanos, e lá ele deverá jazer para sempre entre os Reis deGondor, se esse for o seu desejo. Ou, se você quiser, iremos a Rohan e o levaremos devolta, para que descanse com seu próprio povo.

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E Éomer respondeu: - Desde o dia em que você surgiu diante de mim da verderelva das colinas afeiçoei-me a você, e essa afeição nunca irá se extinguir. Mas agorapreciso partir por um tempo para o meu próprio reino, onde há muito a sanar e pôr emordem. Mas, quanto ao Tombado, quando tudo estiver resolvido, retornaremos parabuscá-lo; mas deixemos que durma aqui por um tempo.

E Éowyn disse a Faramir: - Agora devo ir para minha própria terra, paracontemplá-la mais uma vez, e ajudar meu irmão em seu trabalho; mas, quando aquele aquem amei tanto tempo como a um pai for depositado em seu descanso final, retornarei.

Assim se passaram os dias alegres, e no oitavo dia de maio os Cavaleiros de Rohanaprontaram-se e partiram cavalgando pela Estrada Norte, e com eles foram os Filhos deElrond. Ao longo de toda a estrada se enfileiravam pessoas para homenageá-los e aplaudi-los, desde o Portão da Cidade até os Campos do Pelennor. Então, todos os outros quemoravam longe voltaram para seus lares cheios de alegria; mas na Cidade trabalharammuitos voluntários de mãos dispostas, reconstruindo e renovando e removendo todas ascicatrizes da guerra e a lembrança da escuridão.

Os hobbits ainda permaneceram em Minas Tirith, com Legolas e Gimli, poisAragorn relutava diante da idéia da dissolução da sociedade.

- Por fim todas essas coisas devem terminar - dizia ele -, mas eu gostaria que vocêsesperassem um pouco mais: pois o fim dos feitos dos quais vocês participaram ainda nãochegou. Aproxima-se um dia pelo qual esperei durante todos os anos de minhamaioridade, e quando chegar eu gostaria de ter meus amigos por perto. - Mas sobre tal diaele não estava disposto a dizer mais nada.

Durante esse tempo, os Companheiros do Anel moraram juntos numa bela casacom Gandalf, e eles iam e vinham com toda a liberdade. E Frodo disse a Gandalf:

- Você sabe que dia é esse sobre o qual Aragorn fala? Pois estamos felizes aqui, enão quero partir; mas os dias estão passando, e Bilbo está à espera, e o Condado é o meular.

- Quanto a Bilbo - disse Gandalf.-, ele está aguardando o mesmo dia, e sabe o queo prende aqui. Quanto á passagem dos dias, estamos apenas em maio, e o alto verão aindanem chegou, e, embora todas as coisas possam parecer mudadas, como se uma era domundo tivesse passado, ainda assim para as árvores e a relva faz menos de um ano quevocê partiu.

- Pippin - disse Frodo -: você não tinha dito que Gandalf estava menos reservadoque antigamente? Quando você disse isso, ele estava cansado devido aos seus trabalhos,eu acho. Agora está voltando á antiga forma.

E Gandalf disse: - Muitas pessoas gostam de saber de antemão o que vai serservido à mesa, mas aqueles que trabalharam preparando o banquete gostam de manter osegredo, pois a surpresa faz com que os elogios soem mais alto. E o próprio Aragornaguarda um sinal.

Chegou um dia em que Gandalf desapareceu, e os Companheiros ficaram seperguntando o que estaria acontecendo. Mas Gandalf levou Aragorn para fora da Cidadedurante a noite, e o conduziu até os pés da encosta sul do Monte Mindolluin, e lá os doisencontraram uma trilha feita em eras passadas, e que poucos agora ousavam pisar. Poisela conduzia montanha acima, para um local alto e sagrado aonde apenas os antigos reiscostumavam ir. E eles subiram por caminhos íngremes, até chegarem a um campoelevado, perto da neve que cobria os picos, que se debruçava sobre o precipício ao fundoda Cidade. Postados lá eles observaram as terras, pois a manhã chegara; e eles viram astorres da Cidade bem abaixo deles como lápis brancos tocados pela luz do sol, e todo oVale do Anduin era como um jardim, e uma névoa dourada velava as Montanhas da

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Sombra. De um lado, a visão atingia as cinzentas Emyn Muil, e o brilho de Rauros eracomo uma estrela a faiscar na distância; do outro lado viram o Rio como uma fitaestendida até Pelargir, e mais além havia a luz na borda do céu que evocava o Mar.

E Gandalf disse: - Este é o seu reino, e o coração do reino maior que haverá. ATerceira Era do mundo está terminada, e a nova era começou; é sua tarefa ordenar o inícioe preservar o que pode ser preservado. Pois, embora muito tenha sido salvo, muita coisadeve agora morrer, e o poder dos Três Anéis também terminou. E todas as terras que vocêestá vendo, e aquelas que ficam em torno delas, deverão ser moradias de homens. Chegouo tempo do Domínio dos Homens, e a Gente Antiga deverá desaparecer ou partir.

- Sei muito bem disso, caro amigo - disse Aragorn -, mas ainda gostaria de contarcom seus conselhos.

- Não por muito tempo agora - disse Gandalf. - A Terceira Era foi a minha. Eu erao Inimigo de Sauron e meu trabalho está terminado. Partirei em breve. E o fardo deveráser carregado por você e pelo seu povo.

- Mas eu morrerei - disse Aragorn. - Pois sou um homem mortal, e, embora seja oque sou e da raça pura do oeste, devendo ter uma vida mais longa que os outros homens,ela vai durar pouco tempo; e, depois que aqueles que agora estão nos ventres dasmulheres nascerem e estiverem velhos, eu também ficarei velho. E quem então deverágovernar Gondor e aqueles que consideram esta Cidade a sua rainha, se meu desejo nãofor satisfeito? A Árvore no Pátio da Fonte ainda está seca e estéril. Quando terei um sinalde que um dia será de outro modo?

- Desvie seu rosto do mundo verde, e olhe para onde tudo parece desolado e frio! -disse Gandalf.

Então Aragorn se virou, e havia uma ladeira de pedra atrás dele, que descia da orlada neve; e, quando olhou, percebeu que ali, solitária, em meio à desolação, estava umacoisa viva. E ele subiu até ela, e viu que exatamente da orla da neve nascia uma muda deárvore que não ultrapassava noventa centímetros em altura. Já Já exibia jovens folhaslongas e belas, escuras na face superior e prateadas por baixo, e sobre sua esbelta copacarregava um pequeno cacho de flores, cujas pétalas brancas brilhavam como a neveiluminada pelo sol.

Então Aragorn exclamou: - Yé! utúvienyes! Encontrei-a! Veja! Aqui está umadescendente da Mais Velha das Arvores. Mas como veio parar aqui? Pois ela mesma nãotem mais de sete anos de idade.

E Gandalf, aproximando-se, olhou para a pequena árvore e disse: - Realmente, estaé uma muda da linhagem de Nimloth, a bela, e esta foi uma semente de Galathilion, quenasceu do fruto de Telperion dos muitos nomes, a Mais Velha das Árvores. Quem poderádizer como ela veio parar aqui na hora marcada? Mas este é um antigo local sagrado, e,antes que os reis caíssem ou a Arvore secasse no pátio, um fruto deve ter sido plantadoaqui. Pois comenta-se que, embora o fruto da Árvore raramente fique maduro, mesmoassim a vida que existe dentro dele pode dormir através de muitos e muitos anos, eninguém pode predizer o tempo em que despertará. Lembre-se disso. Pois, se algum diaum fruto amadurecer, ele deve ser plantado, para evitar que a linhagem desapareça domundo. Aqui ele foi colocado, escondido nas montanhas, da mesma forma que a raça deElendil ficou escondida nos ermos do norte. E apesar disso a linhagem de Nimloth émuito mais antiga do que a sua, Rei Elessar.

Aragorn encostou delicadamente sua mão á muda de árvore e ai percebeu,surpreso, que ela se prendia muito de leve á terra; retirou-a sem feri-la, e levou-a de voltaà Cidadela. Então a árvore seca foi arrancada, mas com reverência; não a queimaram, masa deitaram para que descansasse no silêncio de Rath Dinen. E Aragorn plantou a nova

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árvore no pátio perto da fonte, e ela começou a crescer rápida e alegremente; e, quandochegou o mês de junho, ficou carregada de flores.

- O sinal foi dado - disse Aragorn -, e o dia não está distante.E ele colocou vigias sobre as muralhas.Era o dia anterior ao Solstício de Verão quando chegaram à Cidade mensageiros de

Amon Din, dizendo que havia uma comitiva de belas pessoas que vinham cavalgando donorte, e que se aproximavam agora das muralhas do Pelennor. E o rei disse: - Finalmentechegaram. Que toda a Cidade se prepare!

Exatamente na Véspera do Solstício de Verão, quando o céu estava da cor da safirae estrelas brancas se abriam no leste, enquanto o oeste ainda estava dourado e o ar erafresco e fragrante os cavaleiros desceram a Estrada Norte até os Portões de Minas Tirith.Na frente cavalgavam Elrohir e Elladan com a bandeira de prata, e depois vinhamGlorfindel e Erestor e todos os membros da Casa de Valfenda, e depois deles a SenhoraGaladriel e Celeborn, Senhor de Lothlórien, montando cavalos brancos e com eles muitagente bonita de sua terra, usando mantos cinzentos e pedras brancas nos cabelos; porúltimo vinha Mestre Elrond, poderoso entre elfos e homens, carregando o cetro deAnnúminas, e ao seu lado, montando um palafrem cinzento, vinha Arwen, sua filha,Estrela Vespertina de seu povo.

E Frodo, quando a viu chegar brilhando á noitinha, com estrelas na testa e umadoce fragrância a envolvê-la, foi tocado por um profundo sentimento de admiração, edisse a Gandalf: - Finalmente entendo por que esperamos! Este é o término. Agora não sóos dias serão amados, mas as noites também serão belas e bem-aventuradas e todo o medoque existe nelas se extinguirá.

Então o Rei deu boas-vindas aos convidados, que apearam das montarias; Elrondentregou o cetro, e colocou a mão da filha na mão do Rei, e juntos eles subiram para aCidade Alta, e todas as estrelas floriram no céu. E Aragorn, o rei Elessar, casou-se comArwen Undómiel na Cidade dos Reis no dia do Solstício de Verão, e cumpriu-se ahistória de seus árduos trabalhos e de sua longa espera.

CAPÍTULO VIMUITAS DESPEDIDAS

Quando terminaram os dias de festejos, finalmente os Companheiros pensaram emretornar para seus lares. E Frodo dirigiu-se ao Rei, que estava sentado com a RainhaArwen perto da fonte: ela ia cantando uma canção de Valinor, enquanto a Arvore cresciae florescia. Alegraram-se com a visita de Frodo, levantando-se para cumprimentá-lo, eAragorn disse:

- Sei o que vem me dizer, Frodo: você deseja retornar para casa. Bem, caríssimoamigo, a árvore cresce melhor na terra em que nasceu, mas para você sempre haveráboas-vindas em todas as terras do oeste. E, embora o seu povo tenha pouca fama naslendas dos grandes, agora terá mais renome do que muitos grandes reinos que não existemmais.

- É verdade que desejo retornar ao Condado - disse Frodo. - Mas primeiro precisoir a Valfenda. Pois, se alguma coisa pode estar faltando em dias tão abençoados, essacoisa é justamente a presença de Bilbo; fiquei triste quando vi que entre todos os da casa

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de Elrond ele não viera.- Surpreende-se com isso, Portador do Anel? - disse Arwen.- Pois você conhece o poder da coisa que agora foi destruída, e sabe que tudo o que

foi realizado por aquele poder agora está morrendo. Mas o seu parente a possuiu por maistempo que você. Agora está avançado em anos, de acordo com a sua espécie, e ele oaguarda, pois não deverá mais fazer qualquer viagem longa, exceto uma.

- Então peço permissão para partir em breve - disse Frodo.- Iremos em sete dias - disse Aragorn. - Pois vamos acompanhá-lo ao longo de um

bom trecho da estrada, na verdade até Rohan. Daqui a três dias Éomer retornará para levarThéoden de volta, para que ele descanse na Terra dos Cavaleiros, e nós oacompanharemos em honra do Tombado. Mas agora, antes de você partir, confirmarei aspalavras que Faramir lhe disse, e você estará livre para sempre do reino de Gondor, comotambém todos os seus companheiros. E se houver algum presente que eu possa lhesoferecer, que esteja à altura de seus feitos, vocês o terão; mas poderão levar qualquercoisa que desejem, e deverão cavalgar com todas as honras e pompas dos príncipes destaterra.

Mas a Rainha Arwen disse: - Vou lhe dar um presente. Pois sou a filha de Elrond.Não vou acompanhar meu pai quando ele partir para os Portos, pois a minha escolha é amesma de Lúthien, e como ela eu também escolhi tanto o doce como o amargo. Mas vocêirá em meu lugar, Portador do Anel, quando a hora chegar, se você assim quiser. Se seusferimentos ainda lhe doerem e a lembrança do fardo for pesada, então você poderápermanecer no oeste até que todas as feridas e todo o cansaço estejam curados. Mas useisto agora, em memória de Pedra Élfica e Estrela Vespertina, cujas vidas se entrelaçaramcom a sua.

E ela pegou uma pedra branca semelhante a uma estrela que estava sobre o seupeito, pendurada numa corrente de prata, e a colocou em volta do pescoço de Frodo. -Quando a lembrança do medo e da escuridão o incomodar - disse ela -: isso lhe traráajuda.

Em três dias, conforme dissera o rei, Éomer de Rohan chegou cavalgando áCidade, e com ele veio um éored dos mais belos cavaleiros daquela terra. Foram-lhesdadas as boas-vindas, e, quando todos estavam sentados á mesa em Merethrond, o GrandeSalão de Banquetes, ele contemplou a beleza das senhoras presentes e se encheu deadmiração. E antes que fosse descansar, mandou chamar Gimli, o anão, e lhe disse: -Gimli, filho de Glóin, seu machado está pronto?

- Não, senhor - disse Gimli -, mas posso providenciar isso rapidamente, se fornecessário.

- Cabe a você decidir - disse Éomer. - Pois entre nós ainda há certas palavrasprecipitadas a respeito da Senhora da Floresta Dourada. E agora eu a vi com meuspróprios olhos.

- Bem, senhor - disse Gimli -, e o que me diz então?- Infelizmente - disse Éomer -: não vou dizer que ela é a senhora mais bela que

existe.- Então preciso ir buscar meu machado - disse Gimli.- Mas primeiro faço uma ressalva - disse Éomer. - Se eu a tivesse visto em outra

companhia, eu teria dito tudo o que você deseja. Mas agora coloco a Rainha ArwenEstrela Vespertina em primeiro lugar, e de minha parte estou pronto a lutar com qualquerum que queira me desmentir. Devo mandar buscar minha espada?

Então Gimli fez uma grande reverência. Não, de minha parte está desculpado,senhor - disse ele. - Você escolheu a Tarde, mas meu amor destina-se á Manhã. E meu

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coração pressente que logo ela vai desaparecer para sempre.Finalmente chegou o dia da partida, e uma comitiva numerosa e bela se preparava

para deixar a Cidade rumo ao norte. Então os reis de Gondor e de Rohan foram até osFanos e chegaram aos túmulos na Rath Dinen, e levaram embora o Rei Théoden sobre umgrande esquife dourado, passando pela Cidade em silêncio. Então colocaram o esquifesobre uma grande carruagem que foi acompanhada por um cortejo de Cavaleiros deRohan, com a bandeira à frente; Merry, sendo o escudeiro de Théoden, foi na carruagemcom as armas do rei.

Para os outros Companheiros foram trazidos cavalos de acordo com a sua estatura;Frodo e Samwise cavalgaram ao lado de Aragorn, Gandalf montou Scadufax, e Pippinacompanhou os cavaleiros de Gondor; Legolas e Gimli, como sempre, foram juntosmontados em Arod.

Nessa comitiva foram também a Rainha Arwen, Celeborn e Galadriel com todo oseu povo, Elrond com seus filhos, assim como os príncipes de Doí Amroth e de lthilien, emuitos capitães e cavaleiros. Nunca um rei da Terra dos Cavaleiros teve tal cortejo comoo que acompanhava agora Théoden, filho de Thengel, para a sua terra natal.

Sem pressa e com tranquilidade eles entraram em Anórien e chegaram à FlorestaCinzenta sob o Amon Din, e lá ouviram um som de tambores batendo nas colinas, emboranão se pudesse ver nenhum ser vivo. Então Aragorn mandou que tocassem as trombetas, eos arautos gritaram:

- Eis que o Rei Elessar chegou! A Floresta de Drúadan ele doa a Ghânburí-ghân ea seu povo, para que seja deles para sempre, e a partir de hoje nenhum homem pode entrarnela sem sua permissão!

Então os tambores retumbaram alto, e depois silenciaram.Por fim, depois de quinze dias de viagem, a carruagem do Rei Théoden atravessou

os campos verdes de Rohan e chegou a Edoras, e lá todos descansaram. O PalácioDourado foi adornado com belas tapeçarias e ficou repleto de luz, e ali celebrou-se obanquete mais pomposo desde os dias de sua construção. Após três dias os homens daTerra dos Cavaleiros prepararam o funeral de Théoden, que foi colocado numa casa depedra com suas armas e muitos outros objetos belos que possuíra, e sobre ela foi erigidoum grande túmulo, coberto de turfa verde e sempre-em-mentes brancas. Agora havia oitojazigos no lado leste do Campo dos Túmulos.

Então os Cavaleiros da Casa do Rei, montados em cavalos brancos, cavalgaram aoredor do túmulo e cantaram juntos uma canção sobre Théoden, filho de Thengel, feitapelo menestrel Gléowine, que nunca mais compôs canção alguma. As vozes lentas dosCavaleiros tocaram os corações até mesmo daqueles que não conheciam a língua daquelepovo; mas a letra da canção trouxe uma luz aos olhos dos habitantes da Terra dosCavaleiros quando ouviram mais uma vez, na distância, o trovão dos cascos do norte e avoz de Eorl elevando-se mais alto que o som da batalha no Campo de Celebrant, e ahistória dos reis prosseguiu retumbante, e a corneta de Helm ecoou alto nas montanhas,até que a Escuridão sobreveio e o Rei Théoden ergueu-se e cavalgou através da Sombrana direção do fogo, e morreu em esplendor, no momento em que o sol, retornando depoisque morrera toda a esperança, brilhava sobre o Mindolluin pela manhã.

Trocando a dúvida, trocando o dúbio pelo dia raiando, veio cantando ao sol,espada a brandir Esperança reacesa, em esperança partindo; sobre a morte, sobre o medo,sobre a ruína erguido, além da perda, além da vida, para a glória subindo.

Mas Merry parou aos pés do verde túmulo e chorou; ao final da canção ele seergueu gritando:

- Rei Théoden, Rei Théoden! Adeus! Como um pai o senhor foi para mim, por um

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curto período. Adeus!Quando o funeral terminou, o choro das mulheres foi silenciando e Théoden foi

deixado finalmente sozinho em seu túmulo, as pessoas se reuniram no Palácio Douradopara o grande banquete, pondo a tristeza de lado; pois Théoden vivera muitos anos efalecera gozando de uma honra que não era menor que a de nenhum de seus antepassados.E quando chegou a hora em que, segundo o hábito da Terra dos Cavaleiros, deveriambeber à memória dos reis, Éowyn, a Senhora de Rohan, ergueu-se dourada como o sol ebranca como a neve, e entregou uma taça cheia a Éomer.

Então um menestrel e mestre na tradição levantou-se e pronunciou todos os nomesdos Senhores da Terra dos Cavaleiros, em ordem: Eorl, o Jovem; Brego, construtor doPalácio; Aldor, irmão do desafortunado Baldor; Fréa, Fréawine, Goldwine, Déor e Gram;Helm, que se escondeu no Abismo de Helm quando a Terra dos Cavaleiros foi invadida;assim terminaram os nove túmulos do lado oeste, pois naquele tempo a linhagem foiinterrompida, e depois vieram os túmulos do lado leste: Fréalaf, filho da irmã de Helm;Léofa, Walda, Folca, Folcwine, Fengel, Thengel, e por último Théoden. E, quando foipronunciado o nome de Théoden, Éomer esvaziou a taça. Então Éowyn pediu aos queserviam que enchessem as taças e todos os reunidos ali se levantaram e beberam à saúdedo novo rei, gritando: - Salve, Éomer, Rei da Terra dos Cavaleiros!

Por fim, quando o banquete terminou, Éomer levantou-se e disse: - Este é obanquete do funeral do Rei Théoden; mas antes de partirmos falarei de coisas alegres,pois ele não se importaria se eu fizesse isso, uma vez que sempre foi um pai para Éowyn,minha irmã. Ouçam então, meus convidados, bela gente de muitos reinos, nunca antesaqui reunidos neste salão! Faramir, Regente de Gondor e Príncipe de Ithilien, pede queÉowyn, Senhora de Rohan, seja sua esposa, e ela concorda de bom grado. Portanto elesficarão noivos diante de todos vocês.

E Faramir e Éowyn deram um passo á frente e se deram as mãos; e todos beberamà saúde de ambos e se alegraram. - Desse modo - disse Éomer -, a amizade entre Gondor ea Terra dos Cavaleiros fica ligada por um novo elo, e mais ainda me alegro.

- Você não é nem um pouco mesquinho, Éomer - disse Aragorn oferecendo assima Gondor a coisa mais bela de seu reino!

Então Éowyn olhou nos olhos de Aragorn e disse: - Deseje-me felicidades, meusoberano e curador!

E ele respondeu: - Desejei-te felicidades desde a primeira vez em que te vi. Curameu coração ver-te agora completamente feliz.

Quando terminou o banquete, aqueles que deveriam partir despediram-se do ReiÉomer. Aragorn e seus cavaleiros, e o povo de Lórien e de Valfenda, se aprontaram paracavalgar; mas Faramir e Imrahil permaneceram em Edoras, e Arwen Estrela Vespertinatambém ficou, e disse adeus a seus irmãos. Ninguém viu o último encontro dela com seupai, Elrond, pois eles subiram até as colinas e lá conversaram longamente; triste foi aseparação, que deveria perdurar além do fim do mundo.

Por fim, antes que os convidados saíssem, Éomer e Éowyn aproximaram-se deMerry, dizendo: - Adeus agora, Meriadoc do Condado e Holdwine da Terra dosCavaleiros! Parta ao encontro da felicidade, e volte logo, pois será sempre bem-vindo!

E Éomer disse: - Pelos seus feitos nos campos de Mundburg, os Reis deantigamente tê-lo-iam coberto de tantos presentes que uma carroça não poderia carregar; eapesar disso você diz que não aceita nada, a não ser as armas que lhe foram dadas. Issovou tolerar, pois na verdade não tenho nada de valor para lhe oferecer; mas minha irmãimplora que aceite esta pequena prenda, como uma lembrança de Dernhelm e das cornetasda Terra dos Cavaleiros na chegada da manhã.

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Então Éowyn entregou a Merry uma corneta antiga, pequena mas habilidosamenteconfeccionada em fina prata e com um tiracolo verde; nela os artesãos tinham desenhadovelozes cavaleiros, numa fileira que a contornava da extremidade até a boca, e gravaramtambém runas de grande virtude.

- Esta corneta é uma herança de nossa família - disse Éowyn. - Foi feita pelosanões, e veio do tesouro de Scatha, o Verme. Eorl, o Jovem, trouxe-a do norte. Aqueleque a tocar numa hora de necessidade plantará o medo no coração de seus inimigos, ealegria nos corações dos amigos, que irão ouvi-lo e virão até ele.

Então Merry aceitou a corneta, pois não poderia recusá-la, e beijou a mão deÉowyn; e eles o abraçaram, e assim se separaram naquela ocasião.

Quando os convidados estavam prontos, beberam a taça de partida, e com muitoselogios e gestos de amizade partiram, chegando finalmente ao Abismo de Helm, ondedescansaram por dois dias. Então Legolas pagou a promessa que fizera a Gimli, e ambosforam até as Cavernas Cintilantes; quando voltaram o elfo ficou em silêncio, dizendoapenas que Gimli era o único que podia encontrar palavras adequadas para descrevê-las. -E nunca antes um anão cantou vitória sobre um elfo numa competição de palavras - disseele. - Agora então vamos até Fangorn, onde acertaremos a contagem!

Da Garganta do Abismo cavalgaram até Isengard, e viram como os ents haviam-seocupado. Todo o circulo de pedra fora derrubado e removido, e a terra dentro dele foratransformada num jardim cheio de pomares e árvores, atravessado por um rio; mas nomeio de tudo havia um lago de águas límpidas, e dele surgia a Torre de Orthanc, alta eimpenetrável, e sua rocha negra se espelhava no lago.

Por um tempo os viajantes sentaram-se no local onde os antigos portões deIsengard ficavam; agora havia duas árvores altas como sentinelas no início de uma trilhamargeada de árvores que conduzia até Orthanc; todos olharam maravilhados para otrabalho feito, mas não se via qualquer ser vivo próximo ou distante.

De repente ouviram uma voz chamando hum-hom, hum-hom; e lá vinhaBarbárvore descendo a trilha a largas passadas para cumprimentá-los, com Tronquespertoao seu lado.

- Bem-vindos ao Jardinárvore de Orthanc! - disse ele. - Eu sabia que vocês deviamchegar, mas estava trabalhando lá em cima no vale; ainda há muito por fazer.

Mas vocês também não ficaram ociosos lá no sul e no leste, pelo que ouvi dizer; etudo o que ouvi é bom, muito bom. - Então Barbárvore louvou todos os feitos deles, dosquais parecia ter pleno conhecimento; quando finalmente terminou, olhou longamentepara Gandalf.

- Bem, agora vamos! - disse ele. - Você se mostrou o mais poderoso, e todos osseus trabalhos foram bem sucedidos. Aonde estaria indo agora? E por que veio até aqui?

- Para ver como vai o seu trabalho, meu amigo - disse Gandalf -, e para agradecer-lhe por toda a ajuda em tudo o que foi realizado.

- Hum, bem, isso é justo - disse Barbárvore. - Pois com certeza os ents fizeram asua parte. E não apenas tomando conta daquele, hum, daquele maldito assassino deárvores que morava aqui. Pois houve uma grande invasão daqueles, burórum, daquelesolhos-malignos-mãos-pretas-pernas-arqueadas, coração-de-pedra-dedos-de-garra,barriga-nojenta-sedento-de-sangue , morimaite-sincahonda, hum, bem, como vocês são pessoasapressadas e o nome inteiro deles é comprido como anos de tormento, aqueles vermes dosorcs; e eles atravessaram o Rio, e desceram do norte e da região que circunda toda afloresta de Laurelindórenan, na qual não conseguiram entrar, graças aos Grandes queestão lá. - Curvou-se diante do Senhor e da Senhora de Lórien.

- E essas mesmas criaturas fedorentas ficaram mais que surpresas ao antes, embora

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isso também se possa dizer de pessoas melhores. E nem tantos se lembrarão de nós, poisnão muitos escaparam vivos, e o Rio ficou com a maioria deles. Mas foi bom para vocês,pois, se eles não nos encontrassem, então o rei da terra verde não teria chegado muitolonge, e, se tivesse, não haveria um lar para onde pudesse retornar.

- Sabemos muito bem disso - disse Aragorn -, e seus feitos nunca serão esquecidosem Minas Tirith ou em Edoras.

- Nunca é uma palavra longa demais até mesmo para mim – disse Barbárvore. -Não enquanto seus remos perdurarem, você quer dizer; mas realmente eles terão de serbem longos para que pareçam longos aos ents.

- A Nova Era começa - disse Gandalf-, e nesta era pode muito bem acontecer de osremos dos homens durarem mais que você, Fangorn, meu amigo. Mas agora me diga: e atarefa que lhe designei? Como está Saruman? Ainda não está cansado de Orthanc? Poisna minha opinião ele não vai achar que vocês melhoraram a vista de suas janelas.

Barbárvore dirigiu um longo olhar a Gandalf, que Merry considerou quase maroto.- Ah! - disse ele. - Achei mesmo que chegaria a esse ponto. Cansado de Orthanc?

- Muito cansado, finalmente; mas não ficou tão cansado de sua torre como deminha voz. Hum! Obriguei-o a escutar algumas histórias compridas, ou pelo menos o quepode ser considerado comprido em sua língua.

- Então por que ele ficou escutando? Você entrou em Orthanc? - perguntouGandalf.

- Hum, não, não entrei em Orthanc! - disse Barbárvore. - Mas ele veio até a janelae escutou, pois não podia conseguir noticias de nenhum outro modo, e, embora odiando asnoticias, estava ansioso por consegui-las; e cuidei para que ele escutasse todas. Mas euacrescentei muitas coisas às noticias sobre as quais julguei que ele devia pensar. Ele ficoumuito cansado. Sempre tinha pressa. Essa foi a sua ruína.

- Observo, meu bom Fangorn - disse Gandalf-, que com muito cuidado você dizmorava, tinha, foi. E o que me diz sobre o que é? Ele está morto?

- Não, morto não, pelo que sei - disse Barbárvore. -Mas ele partiu. Sim, partiu hásete dias. Deixei-o partir. Pouco restava dele quando saiu rastejando, e, quanto àquelacriatura-verme que o acompanha, não passava de uma sombra pálida. Agora, não me diga,Gandalf, que eu prometi mantê-lo a salvo, pois eu sei disso. Mas as coisas mudaram desdeentão. E eu o mantive aqui até que ele estivesse impossibilitado, impossibilitado de fazerqualquer mal. Você deve saber que acima de tudo eu odeio prender coisas vivas, e merecuso a manter presas até mesmo criaturas como essa, a não ser que a necessidade sejaextrema. Uma cobra sem presas pode rastejar para onde quiser.

- Você pode estar certo disse Gandalf -; mas a esta cobra ainda restava uma presa,eu acho. Ele tinha o veneno de sua voz, e julgo que persuadiu você, até mesmo você,Barbárvore, conhecendo o ponto fraco de seu coração. Bem, ele se foi, e não há mais nadaa dizer. Mas agora a Torre de Orthanc volta para o Rei, a quem pertence. Embora talvezele não precise dela.

- Isso veremos mais tarde - disse Aragom. - Mas darei aos ents todo este vale paraque o usem como quiserem, contanto que mantenham vigilância sobre Orthanc e cuidempara que ninguém entre nela sem minha autorização.

- A Torre está trancada - disse Barbárvore. - Obriguei Saruman a trancá-la e meentregar as chaves. Estão com Tronquesperto.

Tronquesperto curvou-se como uma árvore que se dobra ao vento, e entregou aAragorn duas grandes chaves negras de formato intrincado, úmidas por um anel de aço.

- Agora, agradeço-lhes mais uma vez - disse Aragorn -, e desejo-lhes boa sorte.Que sua floresta cresça outra vez em paz. Quando este vale estiver cheio, haverá espaço

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de sobra a oeste das montanhas, onde outrora vocês caminharam.O rosto de Barbárvore se entristeceu. - As florestas podem crescer - disse ele. - Os

bosques podem se espalhar. Mas não os ents. Não existem entinhos.- Mas agora talvez haja mais esperança em sua procura - disse Aragorn. - Terras

que estiveram por muito tempo fechadas ficarão abertas para vocês na direção do leste.Mas Barbárvore balançou a cabeça e disse: - É muito longe. E nestes dias existem

muitos homens. Mas estou esquecendo meus modos! Vocês não querem ficar aqui paradescansar um pouco? E quem sabe haja alguém que fique satisfeito em atravessar aFloresta de Fangorn e assim encurtar seu caminho para casa? - Olhou para Celeborn eGaladriel.

Mas todos, exceto Legolas, disseram que precisavam agora despedir-se e partirpara o sul ou para o oeste. - Venha, Gimli – disse Legolas. - Agora, com a permissão deFangorn, visitarei os recônditos da Floresta Ent e verei árvores que não existem emnenhum outro lugar da Terra-média. Você virá comigo, mantendo a sua palavra; e assimviajaremos juntos para nossas próprias terras, na Floresta das Trevas e mais além. - Comisso Gimli concordou, embora sem muita satisfação, ao que pareceu.

- Aqui, então, finalmente, chegamos ao fim da Sociedade do Anel - disse Aragorn.- Mas espero que em breve vocês retornem á minha terra com a ajuda que prometeram.

- Viremos, se nossos senhores assim o permitirem - disse Gimli. - Bem, adeus,meus hobbits! Agora vocês devem ir para suas casas a salvo, e eu não ficarei acordadotemendo os perigos que possam correr. Mandaremos noticias quando for possível, ealguns de nós poderão se encontrar de vez em quando; mas temo que nunca maisestaremos todos reunidos.

Então Barbárvore disse adeus a cada um deles, e curvou-se três vezes, devagar ecom grande reverência, diante de Galadriel e Celeborn. - Faz muito, muito tempo que nãonos encontramos junto a árvore ou pedra, A vanimar, vanimálion nostari! - disse ele. - Etriste que nos encontremos só agora, no final. Pois o mundo está mudando: sinto isso naágua, sinto isso na terra, e farejo no ar. Não acho que nos encontraremos de novo.

E Celeborn disse: - Eu não sei, Mais velho. - Mas Galadriel falou:- Não na Terra-média, não até que as terras que jazem sob as ondas se ergam de

novo. Então, nos prados de salgueiros de Tasarinan podemos nos encontrar na primavera.Adeus!

Por último Merry e Pippin disseram adeus ao velho ent, e ele ficou maisdescontraído quando olhou para eles. - Bem, meu povo alegre - disse ele -, não vão bebermais um gole comigo antes de partirem?

- Claro que vamos - disseram eles, e Barbárvore os levou de lado, entrando emuma das sombras das árvores, e eles viram que ali fora colocado um grande jarro depedra. Barbárvore encheu três tigelas e eles beberam, vendo os estranhos olhos do entobservando-os por sobre a borda de sua tigela. - Cuidado, cuidado! - disse ele. - Poisvocês já cresceram desde que os vi pela última vez. - E os dois riram e esvaziaram suastigelas.

- Bem, adeus! - disse ele. - E não se esqueçam de me avisar se em sua terraouvirem qualquer noticia sobre as entesposas. - Então acenou as mãos grandes para toda acomitiva e sumiu por entre as arvores.

Os viajantes cavalgavam agora com mais velocidade, e se dirigiam para oDesfiladeiro de Rohan, e Aragorn finalmente despediu-se deles, perto do local ondePippin havia olhado na Pedra de Orthanc. Os hobbits se entristeceram com a separação,pois Aragorn nunca lhes faltara, e sempre fora o seu guia através de muitos perigos.

- Gostaria que houvesse uma pedra onde pudéssemos ver todos os nossos amigos -

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disse Pippin - e que fosse possível conversar com eles a distância! - Agora só resta uma que você poderia usar – respondeu Aragorn -; pois você não

desejaria ver o que a Pedra de Minas Tirith pode lhe mostrar. Mas o palantír de Orthancserá guardado pelo Rei, para que ele possa ver o que se passa em seu reino, e o que osservidores estão fazendo. Pois não se esqueça, Peregrin Túk, de que você é um cavaleirode Gondor, e eu não o dispenso do serviço. Agora você parte de licença, mas posso voltara chamá-lo. E lembrem-se, queridos amigos do Condado, que meu reino também abrangeo norte, e irei até lá um dia.

Então Aragorn despediu-se de Celeborn e Galadriel, e a Senhora lhe disse: - PedraÉlfica, através da escuridão você conquistou a esperança, e agora possui tudo o quedeseja. Use bem os seus dias!

Mas Celeborn disse: - Parente, adeus! Que seu destino seja diferente do meu, e seutesouro permaneça com você até o fim.

Com essas palavras despediram-se, na hora do pôr-do-sol; quando, depois de umtempo, eles se viraram e olharam para trás, viram o Rei do Oeste sentado sobre o seucavalo com os cavaleiros ao redor; e o sol poente reluzia sobre eles e fazia com que seusarreios brilhassem como ouro vermelho, e o manto branco de Aragom transformou-senuma chama. Então Aragorn pegou a pedra verde e a ergueu, e um fogo verde emanou desua mão.

Logo a comitiva reduzida, seguindo o Isen, dirigiu-se para o oeste e cavalgouatravés do Desfiladeiro, entrando nas terras desertas mais além; depois rumaram para onorte, e passaram pelas fronteiras da Terra Parda. Os habitantes de lá fugiram e seesconderam, pois tinham medo do Povo Élfico, embora na realidade poucos elfostivessem chegado àquele lugar; mas os viajantes não lhes deram atenção, pois aindaformavam uma grande comitiva e estavam providos de tudo do que necessitavam;continuaram o seu caminho tranquilamente, montando tendas quando bem queriam.

No sexto dia após se separarem do Rei, viajaram através de uma floresta descendodas colinas aos pés das Montanhas Sombrias, que agora assomavam à sua direita.

Quando saíram para o espaço aberto de novo ao pôr-do-sol, alcançaram um velhoapoiado num cajado, vestindo farrapos cinzentos e de um branco sujo, e atrás dele vinhaum outro mendigo, arrastando-se e choramingando.

- Bem, Saruman! - disse Gandalf. - Aonde vai indo?- E o que isso lhe interessa? - respondeu ele. - Quer ainda comandar meus passos, e

não está satisfeito com minha ruína?- Você conhece as respostas - disse Gandalf -: não e não. Mas de qualquer forma o

tempo de meus trabalhos se aproxima de um fim. O Rei tomou para si o fardo. Se vocêtivesse esperado em Orthanc, poderia tê-lo visto, e ele teria demonstrado sua sabedoria eclemência.

- Isso é ainda mais um motivo para eu ter partido antes - disse Saruman -: pois nãodesejo dele nenhuma das duas coisas. Na verdade, se você deseja uma resposta para a suaprimeira pergunta, estou procurando um caminho para fora deste reino.

- Então mais uma vez você está indo pelo caminho errado - disse Gandalf -, e nãovejo esperança em sua viagem. Mas você vai desprezar nossa ajuda? Pois é isso queestamos oferecendo a você.

- A mim? - disse Saruman. - Não, por favor não me sorriam! Prefiro as suascarrancas. E, quanto à Senhora aqui, não confio nela: ela sempre me odiou, e tramou a seufavor. Não duvido de que o tenha trazido por este caminho para ter o prazer de tripudiarsobre a minha pobreza. Se soubesse da sua perseguição, eu lhes teria negado este prazer.

- Saruman - disse Galadriel -, temos outras missões e outras preocupações que nos

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parecem mais urgentes do que ficar caçando você. Ao invés disso, diga que você foialcançado pela boa sorte, pois agora lhe oferecemos uma última oportunidade.

- Se for realmente a última, fico contente - disse Saruman -; pois me será poupadoo trabalho de recusá-la mais uma vez. Todas as minhas esperanças estão arruinadas, maseu não partilharia das suas. Se é que têm alguma.

Por um momento seus olhos se acenderam. - Vão embora! - disse ele.- Não passei longos anos estudando esses assuntos para nada. Vocês se destruíram

e sabem disso. E vai me trazer algum consolo, enquanto vago sem rumo, pensar que vocêsderrubaram a sua única casa quando destruíram a minha. E, agora, que navio poderá levá-los através de um mar tão vasto? - zombou ele. - Será um navio cinza, e cheio defantasmas. - Ele riu, mas sua voz era rouca e hedionda.

- Levante-se, idiota! - gritou ele para o outro mendigo, que se sentara no chão;bateu nele com o cajado. - Meia-volta! Se essas pessoas gentis estão indo pelo nossocaminho, então vamos tomar um outro. Em frente, ou não vai ter nem uma casca de pãopara o jantar.

O mendigo se levantou e foi se arrastando e choramingando:- Pobre velho Gríma! Pobre velho Gríma! Sempre espancado e amaldiçoado.

Como o odeio! Gostaria de poder abandoná-lo!- Então faça isso! - disse Gandalf.Mas Língua de Cobra apenas desfechou um golpe de seus olhos turvos e

aterrorizados em Gandalf, e então apertou o passo atrás de Saruman. Quando o parmiserável passou pela comitiva, aproximaram-se dos hobbits, e Saruman parou para fitá-los; mas eles o contemplaram com pena.

- Então vocês também vieram para tripudiar sobre minha desgraça, não é, meusmoleques? - disse ele. - Não se preocupam com as necessidades de um mendigo, não émesmo? Pois vocês têm tudo o que desejam, comida, e belas roupas, e o melhor fumopara seus cachimbos. É sim, eu sei! Sei de onde a erva vem. Vocês não dariam um bocadopara um mendigo, dariam?

- Eu daria, se tivesse - disse Frodo.- Você pode ficar com o que me resta - disse Merry -, se esperar um pouquinho. -

Desceu do cavalo e procurou no alforje de sua sela. Então entregou a Saruman uma bolsade couro. - Leve o que temos - disse ele. - Esse fumo você conhece bem; veio dosescombros de Isengard.

- Meu, meu, é sim, e comprado a preços altíssimos! - gritou Saruman, agarrando abolsa. - Isto é apenas uma reparação simbólica; pois vocês levaram muito mais, eu aposto.Apesar disso, um mendigo deve ficar agradecido, mesmo que um ladrão lhe devolvaapenas uma parte do que lhe pertencia. Bem, vai ser bem feito para vocês quandochegarem em casa, se encontrarem na Quarta Sul as coisas piores do que desejariam. Quesua terra fique muito tempo sem fumo!

- Obrigado - disse Merry. - Nesse caso, quero de volta minha bolsa, que não é sua,e viajou muitas léguas comigo. Embrulhe o fumo num trapo seu.

- Um ladrão merece o outro - disse Saruman, dando as costas para Merry, echutando Língua de Cobra; depois afastou-se em direção á floresta.

- Bem, gostei disso! - disse Pippin. - Ladrão, essa é boa! E de que vamos acusá-lopor nos ter aprisionado, machucado e arrastado através das mãos de orcs por todaRohan"?

- Ah! - disse Sam. - E ele disse comprado. Fico pensando como. E não gosteidaquilo que ele disse sobre a Quarta Sul. Já é tempo de retornarmos.

- Com certeza - disse Frodo. - Mas não podemos ir mais rápido, se queremos ver

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Bilbo. Vou primeiro a Valfenda, aconteça o que acontecer.- Sim, acho melhor você fazer isso - disse Gandalf - Mas sinto por Saruman! Acho

que não se pode conseguir mais nada dele. Está completamente murcho. Mesmo assim,não tenho certeza de que Barbárvore esteja com a razão: imagino que ele ainda poderiafazer alguma maldade, de um modo mais mesquinho.

No dia seguinte entraram na parte norte da Terra Parda, onde nenhum homemmorava agora, embora fosse um lugar verde e agradável.

Setembro chegou com dias dourados e noites de prata, e eles cavalgaram tranquilosaté atingirem o rio Cisnefrota, e encontraram o antigo vau, a leste das cachoeiras onde aságuas desciam abruptamente para as terras baixas. Muito mais a oeste, envoltos pelanévoa, ficavam os pântanos e ilhotas através dos quais esse rio seguia até juntar-se ao RioCinzento: lá inúmeros cisnes moravam em meio aos juncos.

Assim entraram em Eregion, e finalmente surgiu uma manhã bonita, tremeluzindosobre névoas cintilantes; olhando do acampamento que haviam feito numa colina baixa,os viajantes viram no leste o sol tocando três picos que se lançavam ao céu em meio anuvens flutuantes: Caradhras, Celebdil e Fanuidhol. Estavam próximos dos Portões deMoria.

Detiveram-se ali por sete dias, pois aproximava-se o momento de uma novadespedida contra a qual eles relutavam. Logo Celeborn, Galadriel e seu povo rumariampara o leste, passando assim pelo Passo do Chifre Vermelho e descendo a Escada doRiacho Escuro e atingindo o Veio de Prata, prosseguindo para sua própria terra.

Até aquele ponto, haviam viajado pelos caminhos do oeste, pois tinham muitosassuntos a tratar com Elrond e Gandalf e ali ainda demoraram bastante conversando comseus amigos. Várias vezes, muito depois de os hobbits já estarem dormindo, eles sesentavam juntos sob as estrelas, rememorando as eras passadas e todas as suas alegrias etrabalhos no mundo, ou discutindo assuntos a respeito dos dias vindouros. Se por acasoalgum viajante tivesse passado, pouco teria visto ou ouvido, ficando com a impressão deque vira apenas vultos cinzentos esculpidos na pedra, monumentos em memória de coisasesquecidas, agora perdidas em terras despovoadas. Pois eles não se mexiam nem usavamas bocas para falar; olhavam de uma mente para a outra, e apenas seus olhos brilhantes seagitavam e se acendiam, enquanto trocavam pensamentos.

Por fim tudo foi dito, e eles se separaram outra vez por um tempo, até quechegasse a hora de os Três Anéis desaparecerem. Sumindo depressa dentro das pedras esombras, o povo de mantos cinzentos de Lórien cavalgou na direção das montanhas, eaqueles que estavam indo para Valfenda se sentaram na colina e ficaram olhando, até queda névoa que se adensava surgiu um clarão, e eles não viram mais nada. Frodo sabia queGaladriel erguera o seu anel em sinal de adeus.

Sam voltou-se e suspirou: - Gostaria de estar voltando para Lórien!Finalmente numa noite, atravessando as altas charnecas, de repente, como sempre

parecia aos viajantes, depararam com o profundo vale de Valfenda e viram lá embaixolamparinas brilhando na casa de Elrond. Desceram, atravessaram a ponte e chegaram àsportas; toda a casa estava cheia de luz e música, celebrando a alegria da volta de Elrond.

Primeiro de tudo, antes de comerem ou se banharem, antes mesmo de tirarem suascapas, os hobbits foram procurar Bilbo. Encontraram-no sozinho em seu pequeno quarto,abarrotado de papéis, penas e lápis. Mas Bilbo estava sentado numa cadeira diante de umpequeno fogo reluzente. Parecia muito velho, mas tranquilo, e sonolento.

Abriu os olhos e olhou para cima no momento em que os hobbits entraram. - Olá!Olá! - disse ele. - Então vocês voltaram? E além disso amanhã é meu aniversário. Queesperteza a de vocês! Sabem, vou completar cento e vinte e nove anos. E dentro de mais

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um ano, se eu for poupado, chegarei à idade do Velho Túk. Gostaria de derrotá-lo, masisso vamos ver.

Depois da comemoração do aniversário de Bilbo, os quatro hobbits permaneceramem Valfenda por mais alguns dias, sentando-se longamente na companhia do velhoamigo, que agora passava a maior parte do tempo em seu quarto, exceto na hora dasrefeições. Para estas ele ainda era geralmente muito pontual, e raras vezes deixava deacordar em tempo para participar delas. Sentados ao redor do fogo, cada um deles contoutudo o que conseguia lembrar sobre suas viagens e aventuras. No inicio, Bilbo fingiatomar algumas notas, mas frequentemente adormecia; quando acordava, dizia:

- Que esplêndido! Mas onde estávamos? - Então eles continuavam a história doponto onde ele começara a cabecear.

A única parte que realmente pareceu despertá-lo e segurar-lhe a atenção foi orelato sobre a coroação e o casamento de Aragorn. - É claro que eu fui convidado para asbodas - disse ele. - E as aguardei durante um longo tempo. Mas, de alguma forma, quandochegou a hora, achei que tinha muitas coisas para fazer aqui, e fazer as malas é umincômodo tão grande!

Após quase uma quinzena, Frodo olhou através de sua janela e viu que gearadurante a noite, e as teias de aranha pareciam redes brancas.

Então, de repente, percebeu que deveria partir e dizer adeus a Bilbo. O clima aindaera bom e ameno, após um dos mais adoráveis verões de que se tinha memória; maschegara outubro e logo começaria a chover e ventar outra vez. E ainda havia um longocaminho a percorrer. Mas não foi exatamente pensar no clima que o agitou.

Ele teve um sentimento de que era hora de voltar para o Condado. Sam sentia amesma coisa.

Apenas uma noite antes, ele dissera:- Bem, Sr. Frodo, estivemos em muitos lugares e vimos muitas coisas, mas não

acho que encontramos um lugar melhor do que este. Há um pouco de tudo aqui, se osenhor me entende: do Condado e da Floresta, de Gondor e das casas dos reis, dasestalagens e prados, tudo misturado. Mesmo assim, de alguma forma, sinto que devemospartir em breve. Para falar a verdade, estou preocupado com o meu feitor.

- Sim, um pouco de tudo, Sam, exceto o Mar - respondera Frodo, depois repetiupara si mesmo: - Exceto o Mar.

Naquele dia Frodo falou com Elrond, e ficou acertado que deveriam partir namanhã seguinte. Para a alegria deles, Gandalf disse: - Acho que vou também. Pelo menosaté Bri. Quero ver Carrapicho.

Quando chegou a noite, foram dizer adeus a Bilbo. - Bem, se vocês precisam ir,não há mais nada a fazer - disse ele. - Lamento. Vou sentir a falta de vocês. É bom saberque estão por perto. Mas agora estou ficando com sono. - Então deu a Frodo seu casacode mithril e Ferroada, esquecendo-se de que já tinha feito isso antes; deu também trêslivros de histórias que com sua letra comprida e fina escrevera em diferentes ocasiões, emcujos dorsos vermelhos se lia: Traduções do Élfico, por B.B.

Para Sam deu um pequeno saco com ouro. - Quase a última gota que sobrou dasafra de Smaug - disse ele. - Pode vir a ser útil, se você pensa em se casar, Sam. - Samenrubesceu.

- Não tenho nada mais para lhes oferecer, jovens companheiros - disse ele paraMerry e Pippin -, exceto bons conselhos. - E, quando lhes havia dado uma bela amostradeles, acrescentou um último ítem, à moda do Condado: - Não permitam que suas cabeçasfiquem grandes demais para os seus chapéus! Mas, se vocês não pararem logo de crescer,vão achar os chapéus e as roupas caros.

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- Mas, se você quer superar o Velho Túk - disse Pippin -, não vejo por que nãodevamos tentar superar o Urratouro.

Bilbo riu, e tirou de um bolso dois belos cachimbos com embocaduras demadrepérola e adornados com prata trabalhada. - Pensem em mim quando estiveremfumando! - disse ele. - Os elfos os fizeram para mim, mas agora deixei de fumar. - Eentão de repente ele cabeceou e adormeceu por uns momentos; quando acordou de novo,disse:

- Agora, onde estávamos? Sim, é claro, dando presentes. E isso me faz lembrar: Oque aconteceu com o meu anel, Frodo, que você levou embora?

- Eu o perdi, Bilbo querido - disse Frodo. - Livrei-me dele, você sabe.- Que pena! - disse Bilbo. - Gostaria de vê-lo mais uma vez. Mas não, que tolo eu

sou! Foi por isso que você foi, não é? Para se livrar dele? Mas é tudo tão complicado, poistantas outras coisas parecem ter-se misturado com isso: os afazeres de Aragorn, oConselho Branco e Gondor, e os Cavaleiros, os sulistas, os olifantes - você realmente viuum, Sam? - e cavernas e torres e árvores douradas e sei lá mais o quê.

- Evidentemente eu voltei de minha viagem por uma estrada direta demais. Achoque Gandalf poderia ter me mostrado mais lugares. Mas nesse caso o leilão teriaterminado antes do meu retorno, e eu teria mais problemas do que tive. De qualquerforma, agora é muito tarde, e eu realmente acho bem mais confortável ficar aqui sentadoouvindo falar sobre tudo. O fogo aqui é acolhedor, e a comida muito boa, e há elfosquando você quiser vê-los. Quem precisa de mais?

A Estrada em frente vai seguindoDeixando a porta onde começa.Agora longe já vai indo,Que a sigam outros, nada impeça!Que partam para a sua jornada,Porque meus pés irão ficarNo albergue em luz no fim da Estrada;Quero dormir e descansar

E, quando Bilbo murmurou as últimas palavras, sua cabeça caiu sobre o peito e eleadormeceu profundamente.

A noite se adensou na sala, e a luz do fogo brilhou mais forte; os hobbitsobservaram Bilbo dormindo e viram que seu rosto sorria. Por um tempo ficaram sentadosem silêncio; depois, Sam, olhando ao redor da sala para as sombras tremendo nas paredes,disse baixinho:

- Não acho. Sr. Frodo. que ele tenha escrito muito enquanto estivemos fora. Agoranunca vai escrever nossa história.

Bilbo então abriu um olho, quase como se tivesse ouvido. Então despertou. - Vocês entendem, estou ficando tão sonolento - disse ele. - E, quando tenho tempo

para escrever, só gosto mesmo é de escrever poesia. Fico pensando, Frodo, meu carocompanheiro, se você não se importaria muito em organizar as coisas antes de partir.Recolha todos os meus papéis e anotações, e meu diário também, e leve-os com você, sequiser. Você entende, eu não tive muito tempo para selecionar e organizar e tudo mais.Peça que Sam o ajude, e, quando vocês tiverem organizado a coisa toda, voltem, e eu douuma examinada rápida em tudo. Não serei muito exigente.

- Claro que vou fazer isso - disse Frodo. - E é claro que voltarei logo: não haverámais nenhum perigo. Agora existe um rei de verdade, e logo ele vai deixar as estradas em

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ordem.- Obrigado, meu caro companheiro! - disse Bilbo. - Esse realmente é um grande

alívio para minha cabeça. - E dizendo isso ele adormeceu profundamente outra vez.No dia seguinte Gandalf e os hobbits se despediram de Bilbo em seu quarto, pois

estava frio lá fora; depois disseram adeus a Elrond e às pessoas de sua casa.Quando Frodo parou na soleira da porta, Elrond lhe desejou uma boa viagem e o

abençoou, dizendo:- Eu acho, Frodo, que talvez você não precise voltar, a não ser que venha muito em

breve. Por volta desta época do ano, quando as folhas estão douradas e ainda não caíram,procure Bilbo nos bosques do Condado. Eu estarei com ele.

Ninguém mais ouviu essas palavras, e Frodo as guardou consigo.

CAPÍTULO VIIIA CAMINHO DE CASA

Finalmente os hobbits voltavam seus rostos na direção de casa.Estavam agora ansiosos por ver de novo o Condado, mas no início cavalgaram

devagar, pois Frodo sentira-se mal. Quando chegaram ao Vau do Bruinen ele parou,relutando em atravessar a água; os outros notaram que por um tempo seus olhos pareciamalheios a eles e às coisas ao redor. Durante todo aquele dia, Frodo ficou em silêncio. Era odia seis de outubro.

- Você está sentindo dores, Frodo? - perguntou Gandalf numa voz baixa,cavalgando ao seu lado.

- Bem, estou - disse Frodo. - É meu ombro. O ferimento dói, e a lembrança daescuridão pesa sobre mim. Está fazendo um ano hoje.

- É Lamentável, mas há certos ferimentos que não podem ser totalmente curados -disse Gandalf.

- Temo que esse possa ser o meu caso - disse Frodo. - Não existe um retorno deverdade. Embora eu possa voltar, o Condado não será o mesmo, pois eu não serei omesmo. Fui ferido por faca, ferrão e dente, sem falar no fardo que carreguei por tantotempo. Quando poderei descansar?

Gandalf não respondeu.Ao fim do dia seguinte a dor e a inquietação tinham passado, e Frodo estava alegre

de novo, alegre como se não se lembrasse da escuridão do dia anterior.Depois daquilo, a viagem transcorreu bem, e os dias se passaram depressa; eles

cavalgavam com tranquilidade, e frequentemente se demoravam nos belos bosques ondeas folhas estavam vermelhas e amarelas ao sol do outono. Por fim atingiram o Topo doVento; a noite se aproximava, e a sombra da colina deitava-se escura sobre a estrada.Então Frodo pediu aos outros que se apressassem e, negando-se a olhar na direção dacolina, atravessou sua sombra com a cabeça curvada e cobrindo-se com a capa. Naquelanoite o tempo mudou, e do oeste chegou um vento carregado de chuva, que soprouruidoso e frio, fazendo as folhas amarelas rodopiarem no ar como pássaros.

Quando chegaram à Floresta Chet os galhos já estavam quase nus, e uma grandecortina de chuva os impedia de ver a Colina Bri.

Foi assim que, quase ao final de uma noite bravia e molhada dos últimos dias de

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outubro, os cinco viajantes subiram a estrada íngreme e chegaram ao Portão Sul de Bri.Estava bem trancado, e a chuva batia-lhes nos rostos; no céu escuro nuvens baixaspassavam correndo, e eles se sentiram um pouco frustrados, pois esperavam uma recepçãomais calorosa.

Depois de muito chamarem, o porteiro saiu, e eles viram que ele trazia na mão umgrande porrete. Fitou-os com medo e desconfiança, mas quando viu que Gandalf estavaali e que seus companheiros eram hobbits, apesar das estranhas vestes, alegrou-se e deu-lhes as boas-vindas.

- Entrem! - disse ele, destrancando o portão. - Não vão ficar esperando notíciasaqui fora, no frio e na chuva, nesta noite tumultuada. Mas não há dúvida de que o velhoCevado vai lhes dar as boas-vindas no Pônei, e lá vocês poderão ouvir tudo o que há paraouvir.

- E lá vocês vão ouvir tudo o que vamos contar, ou mais até - disse Gandalf rindo.- Como está Harry?

O porteiro fez uma careta. - Foi embora - disse ele. - Mas é melhor perguntarem aoCevado. Boa noite!

- Boa noite para você! - disseram eles passando pelo portão; notaram então queatrás da cerca-viva, ao lado da estrada, fora construído um barraco comprido, de ondevários homens saíram para observá-los por sobre a cerca. Quando se aproximaram da casade Bill Samambaia, viram que a cerca-viva estava danificada e abandonada, e todas asjanelas estavam lacradas com tábuas.

- Será que você o matou com aquela maçã, Sam? - disse Pippin.- Não sou tão otimista, Sr. Pippin - disse Sam. - Mas gostaria de saber o que

aconteceu àquele pobre pônei. Pensei nele muitas vezes, e nos lobos uivando e tudo mais.Por fim chegaram ao Pônei Saltitante, que pelo menos externamente parecia o

mesmo; havia luzes por trás das cortinas vermelhas nas janelas inferiores. Tocaram acampainha, e Nob veio atender a porta, abrindo apenas uma fresta e espiando por ela;quando os viu parados sob a lamparina, soltou um grito de surpresa.

- Senhor Carrapicho! Mestre! - gritou ele. - Eles voltaram!- Ah, é, voltaram é? Já vou lhes dar uma lição - veio a voz de Carrapicho, que saiu

correndo, com um bastão na mão. Mas, quando viu quem eram, parou de repente, e aexpressão carregada em seu rosto transformou-se em surpresa e alegria.

- Nob, seu miolo mole idiota! - gritou ele. - Você não consegue chamar os velhosamigos pelo nome? Não devia ficar me assustando desse jeito, nos tempos de hoje. Bem,bem! E de onde vocês vêm vindo? Jamais esperava ver qualquer um de vocês de novo,não esperava mesmo: indo para as Terras Ermas com o tal de Passolargo, e com todosaqueles Homens Negros á solta. Mas estou muito feliz em vê-los outra vez, sobretudoGandalf Entrem! Entrem! Os mesmos quartos de antes? Estão desocupados. Na verdade,a maioria dos quartos estão desocupados nos últimos tempos, e isso não vou esconder devocês, pois logo verão com seus próprios olhos. E vou ver o que se pode fazer a respeitoda ceia, o mais rápido possível; atualmente estou com falta de empregados. Ei, Nob, seulesma! Diga ao Bob! Ah, mas estou esquecendo, Bob se foi: agora ele vai embora paracasa quando anoitece. Bem, leve os pôneis dos hóspedes para os estábulos, Nob! E nãoduvido de que você mesmo vai levar o seu cavalo, Gandalf Um belo animal, como eudisse a primeira vez que pus os olhos nele. Bem, entrem! Fiquem à vontade!

O Sr. Carrapicho não mudara absolutamente seu modo de falar, e ainda pareciacontinuar no mesmo corre-corre de sempre. Apesar disso, quase não se via ninguém, etudo estava quieto; da sala de estar chegava o murmúrio baixo de no máximo duas ou trêsvozes. O rosto do proprietário, visto a menor distância e sob a luz de duas velas que ele

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acendera para iluminar-lhes o caminho, parecia bastante enrugado e marcado pelapreocupação.

Conduziu-os pelo corredor até a sala que tinham usado naquela estranha noite maisde um ano atrás, e eles o seguiram um pouco ansiosos, pois parecia claro para todos que ovelho Cevado estava enfrentando algum problema sério. As coisas não eram como antes.Mas não disseram nada e esperaram.

Como já adivinhavam, o Sr. Carrapicho veio até a sala após a ceia para ver se tudoestivera a contento. E realmente estivera: nenhuma mudança para pior ocorrera, pelomenos em se tratando da cerveja ou da comida d'O Pônei. - Não vou me atrever a sugerirque venham até a sala de estar esta noite - disse Carrapicho. - Vocês devem estarcansados, e de qualquer modo não há muita gente hoje. Mas, se puderem me concedermeia hora antes de irem dormir, eu gostaria imensamente de conversar um pouco comvocês, uma conversa só entre nós.

- É exatamente o que estamos querendo também – disse Gandalf. Não estamoscansados. Fizemos uma viagem tranquila. Estávamos molhados, com frio e fome, mastudo isso você resolveu. Venha, sente-se! E, se tiver um pouco de fumo, ficaremosagradecidos.

- Bem, se tivessem pedido qualquer outra coisa, eu teria ficado mais contente -disse Carrapicho. - Essa é justamente uma coisa que anda escassa por aqui, uma vez quesó temos o fumo que cultivamos, e isso não é suficiente. Não se consegue nem um poucodo Condado atualmente. Mas vou ver o que posso fazer.

Quando voltou trouxe-lhes fumo suficiente para um ou dois dias, um rolo de folhasinteiras. - Borda do Sul - disse ele -, é o melhor que temos; mas não se compara ao fumoda Quarta Sul, como eu sempre digo, embora eu esteja sempre a favor de Bri na maioriadas coisas, sem querer ofendê-los.

Acomodaram-no numa grande poltrona perto do fogo, e Gandalf sentou-se dooutro lado da lareira, ficando os hobbits em cadeiras baixas entre os dois; entãoconversaram por várias meias horas, e trocaram todas as notícias que o Sr. Carrapichoquiz ouvir ou dar. A maioria das coisas que os viajantes tinham a dizer simplesmentecausavam surpresa e desconcerto no anfitrião, que nem podia imaginá-las; as novidadesprovocavam poucos comentários além de um "Não diga!", que o Sr. Carrapichofrequentemente repetia num desafio á evidência dos seus próprios ouvidos.

- Não diga!, Sr. Bolseiro, ou será que devo chamá-lo de Sr. Monteiro? Estouficando tão confuso. Não diga, Mestre Gandalf! Nunca imaginei! Quem teria pensadonuma coisa dessas nos dias de hoje! Mas ele também disse muita coisa a seu respeito. Ascoisas não iam nada bem, dizia. O negócio não estava nem satisfatório, estava para lá deruim. - Ninguém de Fora se aproxima de Bri - disse ele. - E as pessoas daqui ficam amaior parte do tempo em casa, com as portas cerradas. Isso tudo por causa daquelesforasteiros e vagabundos que começaram a chegar pelo Caminho Verde no ano passado,como vocês devem se lembrar; mais deles vieram depois. Alguns não passavam de pobrescoitados fugindo de problemas, mas a maior parte era de homens maus, ladrõestraiçoeiros. E houve confusão bem aqui em Bri, coisa séria. É sim, tivemos um combatede verdade, e algumas pessoas foram assassinadas, assassinadas! Vocês acreditam?

- Acredito sim - disse Gandalf. - Quantas?- Três e duas - disse Carrapicho, referindo-se às pessoas grandes e às pequenas. - O

pobre Mat Urzal, e Rowlie Macieira e o pequeno Tom Espinheiro, do outro lado daColina; e Willie Ladeira, lá de cima, e um dos Monteiros de Estrado: todos bonscamaradas, dos quais sentimos a falta. E Harry Barba-de-Bode, que costumava ficar noPortão Oeste, junto com aquele Bill Samambaia, os dois passaram para o lado dos

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forasteiros, e foram embora com eles; e acredito que foram esses dois que deixaram osoutros entrar. No dia da luta, quero dizer. E isso foi depois que nós lhes mostramos ocaminho da rua e os expulsamos: antes do final do ano, foi sim; e a luta foi no inicio doAno Novo, depois da forte nevasca.

- E agora se transformaram em ladrões, e moram fora, escondidos nas florestasalém de Archet, e nas terras selvagens ao norte. Eu digo que até parece coisa dos maustempos de antigamente que as histórias contam. A estrada não é segura e ninguém seafasta muito; as pessoas se fecham cedo em suas casas. Temos de manter vigias ao redorde toda a cerca e colocamos um monte de homens sobre os portões á noite.

- Bem, ninguém nos incomodou - disse Pippin -, e nós viemos devagar, sem mantervigilância. Pensamos ter deixado os problemas para trás.

- Ah, não deixaram mesmo, mestre, e é uma grande lástima - disse Carrapicho. -Mas não me admira que os deixaram em paz. Não atacariam pessoas armadas, comespadas, capacetes, escudos e tudo mais. Pensariam duas vezes, sem dúvida. E devo dizerque fiquei um pouco surpreso quando os vi.

Os hobbits então perceberam de repente que as pessoas os tinham olhadoassustadas não tanto pela surpresa de sua volta, mas pelas estranhas vestes que usavam.Eles mesmos tinham-se acostumado tanto à guerra e a cavalgarem em comitivas bemordenadas que se tinham esquecido de que a malha brilhante aparecendo por baixo desuas capas, os capacetes de Gondor e da Terra dos Cavaleiros, e as belas insígnias emseus escudos pareceriam esquisitas em sua própria terra.

O mesmo valia para Gandalf, que agora cavalgava em seu altivo cavalo cinzento,todo vestido de branco com um grande manto azul e prateado cobrindo o corpo, trazendoconsigo a longa espada Glamdring.

Gandalf riu. - Bem, bem - disse ele -; se eles têm medo de apenas cinco de nós,então encontramos inimigos piores em nossas viagens. Mas de qualquer modo vão deixá-los em paz durante a noite, enquanto ficarmos aqui.

- E por quanto tempo ficarão? - perguntou Carrapicho. - Não vou negar queficaríamos felizes em tê-los aqui por um tempo. Você pode entender, não estamosacostumados a esse tipo de problema, e os guardiões foram todos embora, pelo que medizem. Acho que só agora entendemos direito o que eles faziam por nós. Pois houve coisapior que ladrões por aqui. Lobos ficaram uivando ao redor das cercas no inverno passado.E há vultos escuros nas florestas, seres terríveis que fazem o sangue congelar só de sepensar neles. Foi tudo muito perturbador, se vocês me entendem.

- Acho que foi - disse Gandalf. -Houve perturbação em toda parte ultimamente,muita perturbação. Mas alegre-se, Cevado! Você esteve à beira de problemas muitosérios, e fico feliz em saber que não se envolveu mais neles. Mas tempos melhores estãochegando. Talvez melhores do que qualquer tempo que você possa recordar. Os guardiõesretornaram. Voltamos com eles. E há um rei de novo, Cevado. Logo ele estará pensandoneste lugar.

- Então o Caminho Verde se abrirá de novo, e os mensageiros dele virão para onorte, e haverá idas e vindas, e os seres malignos serão expulsos das terras ermas. Naverdade, com o tempo não haverá mais terras ermas, e haverá gente e campo onde antessó havia desertos.

O Sr. Carrapicho balançou a cabeça. - Se houver algumas pessoas decentes erespeitáveis na estrada, isso não trará mal algum - disse ele. - Mas não queremos maisgentalha e rufiões. Não queremos forasteiros em Bri, e nem perto de Bri. Queremos ficarem paz. Não quero uma multidão de forasteiros acampando aqui e se acomodando ali erasgando a terra virgem.

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- Vocês vão ficar em paz, Cevado - disse Gandalf. - Há espaço suficiente paravários reinos entre o Isen e o rio Cinzento, ou ao longo da margem sul do Brandevin, semque ninguém precise morar num raio de muitos dias de cavalgada de Bri. E muita gentecostumava morar lá no norte, a cem milhas ou mais daqui, na outra extremidade doCaminho Verde: nas Colinas Norte, ou junto ao lago Vesperturvo.

- Lá em cima, perto do Fosso dos Mortos? - perguntou Carrapicho, cada vez maisincrédulo. - Dizem que aquele lugar é assombrado. Só um ladrão iria para lá.

- Os guardiões vão lá - disse Gandalf. - Fosso dos Mortos, você diz. Assim foichamado por muitos anos; mas o nome verdadeiro, Cevado, é Fornost Brain, Cidadela doNorte dos Reis. E o rei irá até lá algum dia, e então vocês verão belas pessoas passandopor aqui.

- Bem, isso soa melhor, devo admitir - disse Carrapicho. - E será bom para osnegócios, sem dúvida. Contanto que ele deixe Bri em paz.

- Ele vai deixar sim - disse Gandalf. - O rei conhece Bri, e ama este lugar.- Ele conhece mesmo? - disse Carrapicho com uma expressão intrigada. - Embora

não tenha certeza, não vejo por que ele deveria conhecer, sentado em seu trono em seugrande castelo, a centenas de milhas de distância. E bebendo vinho numa taça de ouro,não me espantaria. Que significa O Pônei para ele, ou canecas de cerveja? Não que aminha cerveja não seja boa, Gandalf Tem sido de rara qualidade desde que você veio, nooutono do ano passado, e disse uma palavra boa sobre ela. E isso tem sido um consolo emmeio a tantos problemas, devo admitir.

- Ah! - disse Sam. - Mas ele diz que a sua cerveja sempre foi boa.- Ele diz?- Claro que diz. Ele é Passolargo. O chefe dos guardiões. Isso ainda não entrou em

sua cabeça?Entrou finalmente, e o rosto de Carrapicho transformou-se em espanto puro. Os

olhos no seu rosto largo ficaram redondos, e sua boca escancarada. - Passolargo! -exclamou ele, quando recuperou o fôlego. - Ele de corôa e tudo mais com uma taça deouro! Pois bem, aonde vamos chegar?

- A tempos melhores, para Bri de qualquer modo - disse Gandalf- Espero que sim, com certeza - disse Carrapicho. - Bem, esta foi a melhor

conversa que tive em muito e muito tempo. E não vou negar que vou dormir maistranquilo esta noite, com o coração mais leve. Vocês me deram muita coisa em quepensar, mas vou deixar isso para amanhã. Vou dormir, e não tenho dúvida de que vocêsficarão felizes em fazer o mesmo. Ei, Nob! - chamou ele, indo até a porta. - Nob, seulesma!

- Agora! - disse ele consigo mesmo, batendo na testa. - Agora, de que isso me fazlembrar?

- Não de outra carta que o senhor esqueceu, Sr. Carrapicho, espero eu disse Merry.- Ora, ora, Sr. Brandebuque, não fique me fazendo lembrar disso! Mas olhe só, o

senhor interrompeu meu pensamento. Onde eu estava? Nob, estábulos, ah!, é isso. Tenhouma coisa que pertence a vocês. Lembram-se de Bill Samambaia, e do roubo dos cavalos?O pônei que vocês compraram dele, bem, ele está aqui. Voltou por conta própria. Masonde esteve sabem melhor que eu. Estava desgrenhado como um cachorro velho e magrocomo um varal de roupa, mas estava vivo. Nob cuidou dele.

- O quê? O meu Bill? - gritou Sam. - Bem, eu nasci com sorte, não importa o que omeu Feitor tenha a dizer. Mais um desejo que se torna realidade! Onde está ele? - Samrecusou-se a ir dormir antes de visitar Bill em seu estábulo.

Os viajantes ficaram em Bri durante todo o dia seguinte, e o Sr. Carrapicho não

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pôde reclamar de seu negócio, pelo menos naquela noite. A curiosidade superou todos ostemores, e sua casa ficou lotada. De noite, por delicadeza, os hobbits ficaram um tempona sala de estar, e responderam a muitas perguntas. Como as memórias de Bri eram boas,perguntaram muitas vezes a Frodo se ele havia escrito seu livro.

- Ainda não - respondia ele. - Estou indo para casa agora, para colocar minhasanotações em ordem. - Prometeu escrever sobre os estranhos eventos de Bri, e dessaforma dar um pouco de interesse a um livro que parecia destinado a tratar principalmentedos remotos e secundários assuntos "lá do sul".

Então um dos mais novos pediu uma canção. Mas fez-se um silêncio de morte, eele se encolheu sob olhares de censura, e o pedido não se repetiu. Evidentemente não sedesejava qualquer incidente estranho na sala de estar outra vez.

Nenhum problema de dia, nem qualquer som durante a noite, incomodaram a pazde Bri enquanto os viajantes permaneceram lá; mas na manhã seguinte eles se levantaramcedo, pois o tempo ainda estava chuvoso e eles desejavam chegar ao Condado antes docair da noite, e a cavalgada era longa. Toda a gente de Bri saiu às portas para vê-los partir,e sentiam uma alegria que havia mais de um ano não provavam; aqueles que não tinhamvisto antes os forasteiros com toda a sua indumentária ficaram boquiabertos à presençadeles: diante de Gandalf com sua barba branca, e da luz que parecia emanar dele, como seseu manto azul fosse apenas uma nuvem cobrindo a luz do sol; e diante dos quatrohobbits, que pareciam cavaleiros errantes saídos de histórias quase esquecidas. Mesmoaqueles que tinham rido da conversa sobre o Rei começaram a achar que poderia haveralguma verdade nela.

- Bem, boa sorte em sua estrada, e boa sorte em sua volta para casa! - disse o Sr.Carrapicho. - Deveria tê-los avisado antes de que também lá nem tudo vai bem, se o queouvimos dizer for verdade. Coisas estranhas acontecendo, dizem por ai. Mas uma coisapuxa a outra, e eu estava cheio de meus próprios problemas. Mas, se me desculpam oatrevimento, vocês voltaram mudados de suas viagens, e agora parecem pessoas quepodem lidar com problemas complicados. Não duvido de que logo vão colocar tudo emordem. Boa sorte para vocês! E quanto mais vezes voltarem, mais eu ficarei satisfeito.

Lhe desejaram boa sorte e partiram, passando pelo Portão Oeste, e avançando nadireção do Condado. Bill, o pônei, foi com eles, e como antes carregando um monte debagagens; mas trotava ao lado de Sam e parecia todo contente.

- Pergunto-me o que o velho Cevado estava querendo insinuar - disse Frodo.- Posso adivinhar alguma coisa - disse Sam num tom tristonho. - O que eu vi no

Espelho: árvores cortadas e tudo mais, e meu velho feitor expulso da Rua. Deveria terapressado minha volta para casa.

- É alguma coisa está errada com a Quarta Sul, evidentemente - disse Merry. - Háuma escassez geral de erva-de-fumo.

- O que quer que seja - disse Pippin -, Lotho deve estar por trás disso: podem tercerteza.

- Por trás, mas não no comando - disse Gandalf. - Vocês se esqueceram deSaruman. Ele começou a se interessar pelo Condado antes que Mordor o fizesse.

- Bem, temos você conosco - disse Merry. - Assim tudo será logo esclarecido.- Estou com vocês agora - disse Gandalf-, mas logo não estarei. Não vou até o

Condado. Vocês mesmos devem cuidar dos problemas de lá, foi para isso que foramtreinados. Ainda não entenderam? Meu tempo acabou: deixou de ser a minha tarefacolocar as coisas em ordem, ou ajudar as pessoas a fazerem isso. E quanto a vocês, meuscaros amigos, não precisarão de ajuda. Agora estão crescidos. Na verdade crescerammuito, e estão entre os grandes, e agora deixei de temer por qualquer um de voces.

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- Mas, se querem saber, vou tomar outro rumo logo. Vou ter uma longa conversacom Bombadil: uma conversa que nunca tive em todo o meu tempo. Ele é um criador delimo, e eu tenho sido uma pedra fadada a rolar. Mas meus dias de rolar estão terminando,e agora teremos muito a dizer um ao outro.

- Bem como sempre, pode ter certeza - disse Gandalf. - Bastante despreocupado.eu diria, não muito interessado em qualquer coisa que fizemos ou vimos, a não ser talvezem nossas visitas aos ents. Talvez mais tarde haja tempo para irem visitá-lo. Mas, se eufosse vocês, iria depressa para casa, ou não chegarão à Ponte do Brandevin antes que osportões se fechem.

- Mas não há nenhum portão - disse Merry. - Não na Estrada; você sabe muito bemdisso. É claro que existe o Portão da Terra dos Buques, mas eles me deixarão entrar aqualquer hora.

- Não havia nenhum portão, você quer dizer - disse Gandalf. - Acho que agoravocês vão encontrar alguns. E podem ter mais problemas do que esperam, até mesmo noPortão da Terra dos Buques. Mas vão se sair bem. Adeus, caros amigos! Não pela últimavez, ainda não. Adeus!

Guiou Scadufax para fora da estrada, e o grande cavalo saltou sobre o fosso verdeque a margeava; então, a um grito de Gandalf, ele partiu, correndo na direção das Colinasdos Túmulos como o vento que vem do norte.

- Bem, aqui estamos, apenas os quatro que partimos juntos - disse Merry. -Deixamos os outros para trás, um a um. Parece quase um sonho que foi se desmanchandodevagar.

- Não para mim - disse Frodo. - Para mim é como adormecer de novo. Em pouco tempo chegaram ao ponto da Estrada Leste onde se haviam despedido

de Bombadil, e tinham esperanças e quase uma certeza de vê-lo outra vez ali parado,esperando para cumprimentá-los quando passassem. Mas não se via sinal dele, e haviauma névoa cinzenta ao sul, encobrindo as Colinas dos Túmulos, e um véu espesso porsobre a Floresta Velha lá adiante.

Pararam e Frodo olhou para o sul pensativo. - Gostaria muito de rever o velhocamarada - disse ele. - Como será que está passando?

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CAPÍTULO VIIIO EXPURGO DO CONDADO

A noite já caíra quando, molhados e exaustos, os viajantes finalmente atingiram oBrandevin, encontrando o caminho bloqueado. Em cada extremidade da Ponte havia umgrande portão cheio de pontas; do outro lado do rio via-se que algumas novas casashaviam sido construídas: com dois andares e janelas retas e estreitas, sem adornos e maliluminadas, tudo muito sombrio e nada parecido com o Condado.

Bateram com força no portão externo e chamaram, mas no início não houveresposta; depois, para a surpresa deles, alguém tocou uma corneta, e as luzes nas janelasse apagaram. Uma voz gritou no escuro:

- Quem é? Fora daqui! Vocês não podem entrar. Não estão lendo a placa: Proibidoentrar entre o pôr-do-sol e a aurora?

- É claro que não estamos lendo placa alguma no escuro - gritou Sam em resposta.- E, se hobbits do Condado devem ficar de fora na chuva numa noite destas, vou derrubarsua placa assim que a encontrar.

Então uma janela bateu, e uma multidão de hobbits com lamparinas irrompeu dacasa á esquerda. Abriram o portão do lado oposto, e alguns vieram atravessando a ponte.Ao verem os viajantes, ficaram amedrontados.

- Venha cá! - disse Merry, reconhecendo um dos hobbits. - Se você não meconhece, Hob Guarda-cerca, deveria conhecer. Sou Merry Brandebuque, e gostaria desaber o que está acontecendo, e o que um habitante da Terra dos Buques como você estáfazendo aqui. Você costumava ficar no Portão da Sebe!

- Céus! É o Sr. Merry, com certeza, e todo vestido para um combate! - disse ovelho Hob. - Ora, disseram que estava morto! Perdido na Floresta Velha, de acordo com aopinião geral. Fico feliz em vê-lo vivo, afinal de contas!

- Então pare de me olhar através das barras com esse jeito embasbacado e abra oportão! - disse Merry.

- Lamento, Sr. Merry, mas são as ordens.- Ordens de quem?- Do Chefe, lá em cima em Bolsão.- Chefe? Chefe? Quer dizer o Sr. Lotho? - perguntou Frodo.- Acho que sim, Sr. Bolseiro; mas atualmente só podemos dizer "O Chefe".- É mesmo? - disse Frodo. - Bem, pelo menos me alegro por ele ter abandonado o

sobrenome "Bolseiro". Mas evidentemente já era hora de a família cuidar dele e colocá-loem seu devido lugar.

Um silêncio tomou conta dos hobbits do outro lado do portão. - Não é nada bomfalar desse jeito - disse um deles.

- Ele vai ficar sabendo disso. E, se fizerem tanto barulho assim, vão acabaracordando o Grande Homem do Chefe.

- Vamos acordá-lo de uma forma que irá surpreendê-lo – disse Merry. Se você estáquerendo dizer que o seu precioso Chefe andou contratando rufiões das terras ermas,então já era tempo de termos voltado. - Saltou do pônei e, lendo a placa na luz daslamparinas, arrancou-a e a jogou por sobre o portão. Os hobbits recuaram, sem fazermenção de abrir. - Vamos, Pippin! - disse Merry. - Bastam dois de nós.

Merry e Pippin treparam no portão, e os hobbits fugiram correndo. Uma outracorneta soou. Da casa maior à direita, um vulto grande e imponente apareceu contra a luzque vinha da porta.

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- O que está acontecendo? - rosnou ele vindo para fora. - Arrombamento deportão? Sumam daqui, ou vou torcer seus pescocinhos nojentos! - Então ele parou, poispercebeu o brilho de espadas.

- Bill Samambaia! - disse Merry -, se você não abrir esse portão em dez segundos,vai se arrepender. - Vou consertar você a ferro, se não obedecer. E, depois de abrir osportões, você vai passar por eles para nunca mais voltar. Você é um rufião, um ladrão deestrada. Bill Samambaia hesitou e depois arrastou-se até o portão para destrancá-lo. - Dê-me a chave! - disse Merry. Mas o rufião atirou-a contra a cabeça do hobbit e correu para aescuridão. Quando passou pelos pôneis, um deles desferiu-lhe um coice, atingindo-o emplena corrida. Bill sumiu gritando dentro da noite, e nunca mais se ouviu falar dele.

- Bom trabalho, Bill - disse Sam, dirigindo-se ao pônei.- É o fim de seu Grande Homem - disse Merry. - Mais tarde cuidaremos do Chefe.

Enquanto isso, queremos pouso para a noite, e, como parece que vocês derrubaram aEstalagem da Ponte e construíram essa coisa feia no lugar, vão ter de nos acomodar.

- Lamento, Sr. Merry - disse Hob -, mas isso não é permitido.- Não é permitido o quê?- Acolher pessoas de improviso, e consumir mais comida que o permitido, e tudo

isso - disse Hob.- Qual é o problema aqui? - disse Merry. - O ano foi ruim, ou qualquer coisa do

tipo? Pensei que tinha sido um bom verão, com uma colheita farta.- Bem, não, o ano foi bastante bom - disse Hob. - Produzimos um monte de

alimentos, mas não sabemos exatamente o que é feito deles. Acho que são todos esses"coletores" e "distribuidores", andando por aí contando e medindo e levando para estocar.Mais coletam do que distribuem, e a maior parte dos alimentos não aparece nunca mais.

- Tenham dó! - disse Pippin bocejando. - Isso tudo é enfadonho demais para mimesta noite. Temos comida em nossas mochilas. É só nos darem um quarto em quepossamos descansar. Será bem melhor do que muitos lugares que já vi.

Os hobbits no portão ainda pareciam constrangidos; com certeza uma ou outraregra havia sido quebrada; mas não havia como discutir com quatro viajantes tãoimponentes, totalmente armados, ainda por cima sendo dois deles tão extraordinariamentegrandes e fortes. Frodo ordenou que fechassem os portões outra vez. De qualquer formaparecia sensato manter vigilância, enquanto os rufiões estivessem à solta. Então os quatrocompanheiros entraram na guarita dos hobbits e se acomodaram como puderam. Era umlugar vazio e feio, com uma lareira pequena e pobre, que não dava bom fogo. Noscômodos superiores havia pequenas fileiras de camas duras, e em cada parede via-se umquadro com uma lista de Regras. Pippin arrancou-os todos. Não havia cerveja e a comidaera escassa, mas, com a que os viajantes trouxeram e partilharam, todos fizeram uma belarefeição; Pippin quebrou a Regra 4, colocando no fogo a maior parte da quota de lenhareservada para o dia seguinte.

- Bem, e agora, que tal um cachimbo, enquanto vocês nos contam o que temacontecido aqui no Condado? - disse ele.

- Atualmente não temos erva-de-fumo - disse Hob -; ou pelo menos há só para oshomens do Chefe. Parece que todo o estoque foi embora. Ouvimos dizer que carroçascarregadas de fumo saídas da Quarta Sul passaram descendo a estrada velha, atravessandoo caminho do Vau Sam. Isso teria sido no final do ano passado, depois que vocêspartiram. Mas antes houve carregamentos partindo em segredo, em quantidades menores.Aquele Lotho...

- Cale essa boca, Hob Guarda-cerca! - gritaram vários dos outros. - Você sabe queesse tipo de conversa não é permitido. O Chefe vai ficar sabendo, e todos nós estaremos

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numa enrascada.- Ele não ficaria sabendo de nada, se alguns de vocês não fossem delatores -

retorquiu Hob enfurecido.- Tudo bem, tudo bem! - disse Sam. - Já basta. Não quero ouvir mais nada. Sem

boas-vindas, sem cerveja, sem fumo, e ao invés disso um monte de regras e conversa deorc. Esperava poder descansar, mas estou vendo que há muito trabalho e muito problemaà frente. Vamos dormir e esquecer tudo até amanhã.

O novo "Chefe" evidentemente tinha meios de conseguir noticias. Da Ponte atéBolsão eram bem umas quarenta milhas, mas alguém fez a viagem correndo. E logoFrodo e seus amigos ficaram sabendo disso.

Eles não tinham nenhum plano definido, mas haviam pensado vagamente emprímeiro deçcer até Criconcavo, para descançarem um pouco por lá. Mas agora, vendocomo estavam as coisas, decidiram ir direto para a Vila dos Hobbits. Assim, no diaseguinte, partiram pela Estrada e avançaram depressa, quase sem paradas.

O vento diminuíra e o céu estava cinzento. O lugar parecia bastante triste eabandonado, mas afinal de contas era primeiro de novembro, o último suspiro do outono.

Mesmo assim, parecia haver uma quantidade incomum de queimadas, edesprendia-se fumaça de vários pontos ao redor do caminho. Formava-se uma grandenuvem que subia lá longe na direção da Ponta do Bosque.

Quando caiu a noite, eles estavam próximos de Sapântano, uma aldeia à margemdireita da Estrada, a cerca de vinte e duas milhas da Ponte. Ali pretendiam passar a noite;O Tronco Flutuante de Sapântano era uma boa estalagem. Mas, quando atingiram aextremidade leste da aldeia, encontraram uma barreira com uma enorme placa dizendoESTRADA BLOQUEADA, e atrás dela se via um grande bando de Condestáveis combastões nas mãos e penas nos chapéus, de aparência ao mesmo tempo arrogante e meioamedrontada.

- Que significa tudo isso? - disse Frodo, sentindo-se inclinado a rir.- É isso mesmo, Sr. Bolseiro - disse o chefe dos Condestáveis, um hobbit de duas

penas -: vocês estão presos por Arrombamento de Portão, por Destruição dos Quadros deRegras e por Ataque aos Guardas do Portão, e por Invasão, e por Dormir nos Prédios doCondado sem Permissão, e por Suborno de Guardas por Meio de Comida.

- E o que mais? - perguntou Frodo.- Isso já basta por enquanto - disse o Chefe dos Condestáveis.- Posso acrescentar mais algumas infrações, se quiserem - disse Sam.- Xingamento de seu Chefe, Desejo de Esbofetear sua Cara Espinhenta, e Achar

que Vocês Condestáveis são uns Bobalhões. - Calma agora, Senhor, já basta. São ordens do Chefe que vocês nos acompanhem

em silêncio. Vamos levá-los até Beirágua e entregá-los aos Homens do Chefe; e, quandoele estiver cuidando do seu caso, terão oportunidade de falar. Mas, se eu fosse vocês,falaria o mínimo possível, a menos que queiram ficar nos Tocadeados mais que onecessário.

Para o desapontamento dos Condestáveis, Frodo e todos os seus companheirosexplodiram em riso. - Não seja absurdo! - disse Frodo. - Eu vou aonde quiser, e quandobem quiser. Por acaso estou indo para Bolsão a negócios, mas, se vocês insistem em irtambém, isso é da sua conta.

- Muito bem, Sr. Bolseiro - disse o líder, empurrando de lado a barreira. - Mas nãose esqueça de que os prendi.

- Não vou me esquecer - disse Frodo. - Nunca. Mas posso perdoá-los. Contudo,não vou viajar mais hoje e, se vocês gentilmente me escoltarem até O Tronco Flutuante,

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ficarei agradecido.- Não posso fazer isso, Sr. Bolseiro. A estalagem está fechada. Há uma casa de

Condestáveis do outro lado da aldeia.- Está bem - disse Frodo. - Vá na frente.Sam estivera examinando todos os Condestáveis, e encontrou um seu conhecido

entre eles. - Ei, venha cá, Robin Covapequena! - chamou ele. - Quero trocar umaspalavras com você.

Lançando um olhar humilde para o líder, que parecia irado mas não ousouinterferir, o Condestável Covapequena atrasou o passo e aproximou-se de Sam, quedesceu de seu pônei.

- Olhe aqui, Robin, seu Galinho! - disse Sam. - Você cresceu na Vila dos Hobbits,e deveria ter mais juízo, em vez de ficar tocaiando o Sr. Frodo e tudo mais. E o quesignifica isso de a estalagem estar fechada?

- Estão todas fechadas - disse Robin. - O Chefe não tolera cerveja. Pelo menos foiassim que tudo começou. Mas agora calculo que são os Homens dele que ficam com todaa cerveja. E ele também não tolera pessoas indo de um lado para o outro. Nesse caso, seelas quiserem ou precisarem, têm de ir até a casa dos Condestáveis para se explicar.

- Você deveria ter vergonha de estar metido num absurdo destes - disse Sam. -Você mesmo costumava gostar do interior de uma estalagem mais que do seu exterior.Você sempre dava uma passadinha por lá, mesmo quando estava trabalhando.

- E ainda continuaria fazendo a mesma coisa, se pudesse. Mas não seja durocomigo. O que posso fazer? Você sabe o motivo de eu ter-me transformado numCondestável há sete anos, antes que tudo isto começasse. Isso me permitia passear pelolugar, e conhecer pessoas, e ouvir notícias, além de saber onde estava a boa cerveja. Masagora é diferente.

- Mas você pode desistir. Deixe de ser Condestável, se o trabalho já não merecerespeito - disse Sam.

- Não nos é permitido - disse Robin.- Se eu ouvir não é permitido com mais frequência, vou ficar com raiva.- Não posso dizer que lamentaria ver a cena - disse Robin, abaixando a voz. - Se

todos nós ficássemos com raiva juntos, alguma coisa se poderia fazer. Mas são estesHomens, Sam, os Homens do Chefe. Ele os manda para todos os lugares, e, se algum denós pequenos se levanta e exige nossos direitos, eles o arrastam para os Tocadeados.Levaram primeiro o velho Bolão e o Prefeito Will Pealvo, e depois levaram muitos mais.Ultimamente a situação está pior. Agora frequentemente nos espancam.

- Então por que vocês executam o trabalho no lugar deles? - disse Sam com raiva. -Quem os mandou para Sapântano?

- Ninguém mandou. Ficamos aqui na grande casa dos Condestáveis. Agoraformamos a Primeira Tropa da Quarta Leste. Ao todo há centenas de Condestáveis, e elesquerem mais, com todas essas novas regras. A maioria está contra a vontade, mas nãotodos. Ate mesmo no Condado há alguns que gostam de se meter na vida dos outros, e defalar arrotando importância. E tem coisa pior: alguns espionam para o Chefe e seusHomens.

- Ah! Então foi assim que vocês ficaram sabendo a nosso respeito, é?- Isso mesmo. Agora não nos permitem enviar noticias pelo velho serviço de

Postagem Rápida, mas eles o usam, e mantêm mensageiros especiais em pontosdiferentes. Um deles veio de Fosso Branco ontem à noite com uma "mensagem secreta", eum outro a levou daqui. E chegou uma mensagem em resposta esta tarde, dizendo quevocês deviam ser presos e levados para Beirágua, e não direto para os Tocadeados. Está

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claro que o Chefe quer vê-los imediatamente.- Não estará tão ansioso depois que o Sr. Frodo tiver acabado com ele - disse Sam.A casa dos Condestáveis em Sapântano era ruim como a casa da Ponte. Era térrea,

mas tinha as mesmas janelas estreitas, e fora construída com horríveis tijolos claros,muito mal assentados. O interior era úmido e melancólico, e a ceia foi servida numa mesacomprida e sem toalha que não era esfregada havia semanas. A comida não mereciaaparato melhor. Os viajantes ficaram satisfeitos em deixar o lugar. Eram cerca de dezoitomilhas até Beirágua, e eles partiram às dez horas da manhã.

Teriam partido antes, se não fosse tão visível a irritação do líder diante do atraso.O vento oeste virara para o norte, e agora estava ficando mais frio, mas a chuva se fora.

Estava bem cômica a cavalgada que partiu da aldeia, embora as poucas pessoasque saíram para observar as "fantasias" dos viajantes não parecessem bem certas de que oriso era permitido. Uma dúzia de Condestáveis foram designados para a escolta dos"prisioneiros", mas Merry fez com que fossem marchando à frente, enquanto Frodo e seusamigos cavalgavam atrás. Merry, Pippin e Sam iam tranquilos, rindo, conversando ecantando. enquanto os Condestáveis iam pisando duro, tentando parecer severos eimportantes. Frodo, entretanto, ficou em silêncio, parecendo bastante triste e pensativo.

A última pessoa pela qual passaram foi um velhinho corpulento que aparava umacerca-viva. - Ei, ei - zombou ele. - Quem prendeu quem?

Dois dos Condestáveis imediatamente deixaram a comitiva e foram na direçãodele. - Líder! - disse Merry. - Mande seus rapazes de volta aos seus lugaresimediatamente, se não quiser que eu cuide deles!

Os dois hobbits, a uma palavra ríspida do líder, voltaram cabisbaixos. Agoraavancem - disse Merry, e depois disso os viajantes cuidaram para manter os pôneis numpasso rápido, obrigando os Condestáveis a avançarem na maior velocidade que podiam. Osol apareceu, e, apesar do vento frio, eles logo começaram a bufar e suar. A altura daPedra das Três Quartas, eles desistiram. Tinham percorrido quase catorze milhas comapenas uma parada ao meio-dia. Já eram três da tarde. Os Condestáveis estavam famintos,com os pés inchados, e não aguentavam mais aquele ritmo.

- Bem, sigam-nos no seu próprio passo! - disse Merry. - Nós vamos avançar.- Até à vista, Galinho! - disse Sam. - Vou esperá-lo do lado de fora do Dragão

Verde, se você não esqueceu onde fica a estalagem. Não fique perdendo tempo pelocaminho!

- Vocês estão infringindo a ordem de prisão, é isso que estão fazendo - disse olíder numa voz pesarosa - e eu não posso ser responsável por isto.

- Ainda vamos infringir muitas ordens, e não estamos pedindo que seresponsabilize - disse Pippin. - Boa sorte a todos!

Os viajantes avançaram trotando, e, quando o sol começou a descer na direção dasColinas Brancas, lá longe no horizonte ocidental, eles chegaram a Beirágua, pelo caminhodo amplo lago, e foi ali que tiveram o primeiro choque realmente doloroso. Esta era aterra de Sam e Frodo, e os dois agora percebiam que se preocupavam mais com ela do quecom qualquer outro lugar do mundo. Muitas das casas que conheciam estavam faltando.Algumas pareciam ter sido incendiadas. As belas e antigas tocas de hobbits enfileiradasna margem do lado norte do Lago estavam abandonadas, e seus pequenos jardins, quecostumavam descer verdejantes até a beira da água, estavam cheios de mato. Pior ainda,havia toda uma fileira das casas novas e feias, ao longo de toda a Beira do Lago, onde aEstrada da Vila dos Hobbits passava próxima à margem. Antes houvera uma avenida deárvores naquele ponto.

Agora não restava uma sequer. E, olhando frustrados estrada acima, na direção de

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Bolsão, eles viram a distância uma alta chaminé feita de tijolos. Derramava fumaça pretano ar da noite.

Sam ficou fora de si. - Estou indo direto para lá, Sr. Frodo! - gritou ele. - Vou ver oque está acontecendo. Quero encontrar meu velho.

- Primeiro precisamos saber em que estamos nos metendo, Sam - disse Merry. -Calculo que o "Chefe" deve ter uma gangue de rufiões a postos. É melhor encontrarmosalguém que nos conte como estão as coisas por aqui.

Mas na aldeia de Beirágua todas as casas e tocas estavam fechadas, e ninguém oscumprimentou. Surpreenderam-se com isso, mas logo descobriram o motivo. Quandochegaram ao Dragão Verde, a última casa da Vila dos Hobbits, agora sem vida e com asjanelas quebradas, ficaram perturbados ao verem meia dúzia de homens grandes e malencarados, descansando contra a parede da estalagem; eram vesgos e amarelentos.

- Como aquele amigo de Bill Samambaia em Bri - disse Sam.- Como muitos que vi em Isengard, murmurou Merry.Os rufiões seguravam bastões nas mãos e traziam cornetas presas aos cintos, mas

não portavam qualquer outro tipo de arma, pelo que se podia ver. A medida que osviajantes foram subindo, eles deixaram a parede vindo na direção da estrada, bloqueandoo caminho.

- Aonde pensam que vão? - disse um deles, o maior e de aparência mais maligna. -Não há mais estrada para vocês. E onde estão aqueles inúteis Condestáveis?

- Estão vindo devagar disse Merry. - Com os pés um pouco inchados, talvez.Prometemos esperá-los aqui.

- Droga!, que foi que eu disse? - disse o rufião para os companheiros. - Eu disse aoCharcote que não adiantava confiar naqueles pequenos idiotas. Devíamos ter mandadoalguns de nossos rapazes.

- E que diferença teria feito? - disse Merry. Não estamos acostumados asalteadores por estas bandas, mas sabemos como lidar com eles.

- Salteadores, é? - disse o homem. Então esse é o seu tom? É melhor mudá-lo, ounós o mudaremos por você. Vocês pequenos estão ficando muito petulantes.

Não confiem demais na bondade do Patrão. Agora Charcote chegou, e ele fará oque Charcote mandar.

- E quais serão as ordens dele? disse Frodo calmamente.- Esta região precisa despertar e pôr as coisas no lugar - disse o rufião e Charcote

vai se encarregar disso; e vai ser duro, se for obrigado. Vocês precisam de um Patrão maisforte. E terão um antes do fim do ano, se houver mais algum problema. Então vãoaprender algumas coisas, seus pequenos ratos.

- De fato, fico feliz em saber de seus planos disse Frodo. - Estou indo visitar o Sr.Lotho, e talvez ele também se interesse em tomar conhecimento deles.

O rufião riu. - Lotho! Ele sabe de tudo. Não se preocupe.Ele fará o que Charcote mandar. Porque, se um Patrão causa problema, podemos

substitui-lo, entendeu? E, se pessoas pequenas tentam se meter onde não são desejadas,podemos afastá-las de qualquer confusão, entendeu?

- Entendi sim - disse Frodo. - Em primeiro lugar, percebo que vocês estãoatrasados no tempo, e não sabem das novidades por aqui. Muita coisa aconteceu desdeque vocês partiram do sul. Seu tempo acabou, como também o tempo de todos os outrosrufiões. A Torre Escura caiu, e agora há um Rei em Gondor. E Isengard foi destruída, e oseu precioso mestre é um mendigo no deserto. Passei por ele na estrada. Agora osmensageiros do Rei é que virão subindo pelo Caminho Verde, e não os valentões deIsengard.

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O homem o fitou e sorriu. Um mendigo no deserto! zombou ele. - É mesmo?Continyue a se gabar, continnue meu pavãozinho. Mas isso não vai nos impedir de vivernesta terrinha farta, onde vocês já tiveram vida mansa por tempo suficiente. E - disse elecom um gesto de desprezo para Frodo - aqui para os mensageiros do Rei! Quando depararcom um, talvez perceba a presença dele.

Aquilo foi demais para Pippin. Seus pensamentos voltaram ao Campo deCormallen, e ali estava um vagabundo vesgo chamando o Portador do Anel de"pavãozinho".

Jogou para trás a capa, ergueu sua espada num lampejo, e as cores da prata e dosable de Gondor reluziram nele quando avançou.

- Eu sou um mensageiro do Rei - disse ele. - Você está falando com o amigo doRei, e um dos mais renomados em todas as terras do oeste. Você é um rufião idiota.Ajoelhe-se aqui na estrada e peça perdão, ou enfio esta assassina de troll em você!

A espada reluziu ao sol poente. Merry e Sam também puxaram suas espadas e seaproximaram para ajudar Pippin, mas Frodo não se mexeu. Os rufiões recuaram.

O trabalho deles era assustar os camponeses de Bri e intimidar hobbíts confusos.Hobbits destemidos com espadas brilhantes e rostos severos eram uma grande surpresa.

E havia um tom nas vozes dos recém chegados que eles nunca tinham ouvidoantes, e que os fez gelar de medo.

- Fora daqui! - disse Merry. E, se perturbarem esta aldeia de novo, vão searrepender. - Os três hobbits avançaram, e então os rufiões se viraram e correram, fugindopela Estrada da Vila dos Hobbits; mas não deixaram de tocar as cornetas enquantocorriam.

- Bem, acho que nosso retorno não foi nem um pouco precoce disse Merry.- Nem um dia. Talvez seja tarde demais, pelo menos para salvar Lotho - disse

Frodo. - Tolo miserável, mas lamento por ele. - Salvar Lotho? O que está querendo dizer? - disse Pippin. - Eu diria destruí-lo.- Acho que você não está entendendo o que se passa, Pippin - disse Frodo. - Lotho

nunca quis que as coisas chegassem a este ponto. Sempre foi um idiota malvado, masagora foi pego. Os rufiões estão por cima, recolhendo, roubando, ameaçando,manipulando ou destruindo as coisas como bem desejam, em nome dele. E nem sequerem nome dele por muito mais tempo. Agora ele é um prisioneiro em Bolsão, eu acho, edeve estar bem amedrontado. Devemos tentar resgatá-lo.

- Bem, estou abismado! - disse Pippin. - De todos os finais para nossa viagem, esteé o último que eu imaginaria: lutar com semi-orcs e rufiões no próprio Condado... pararesgatar Lotho Pústula!

- Lutar? disse Frodo. - Bem, pode ser que cheguemos a isso. Mas lembrem-se: nãodeve haver matança de hobbits, nem mesmo se eles passarem para o outro lado. Querodizer os que passarem realmente, e não os que estão apenas obedecendo ordens dosrufiões sob ameaça. Jamais um hobbit matou outro de propósito no Condado. E isso nãodeve começar agora. E ninguém deve ser morto se eu puder evitar. Mantenha a calma econtrole as mãos até o último minuto possível.

- Mas, se houver muitos desses rufiões - disse Merry -, com certeza isso vaisignificar luta. Você não vai resgatar Lotho, ou o Condado, apenas ficando chocado etriste, meu querido Frodo.

- Não - disse Pippin. - Não será tão fácil assustá-los da próxima vez. Eles forampegos de surpresa. Você ouviu as cornetas soando? Evidentemente há outros rufiões aquipor perto. Ficarão muito mais valentes quando estiverem num grupo maior. Devemospensar em nos proteger em algum lugar durante a noite. Afinal de contas, somos apenas

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quatro, mesmo estando armados.- Tenho uma idéia - disse Sam. - Vamos até a casa do velho Tom Villa, lá no fim

da Alameda Sul! Ele sempre foi um sujeito corajoso. E ele tem um monte de rapazes quesão todos amigos meus.

- Não! - disse Merry. - Não adianta "nos protegermos". É só isso que as pessoastêm feito, e exatamente o que os rufiões querem. Vão simplesmente nos atacar em grupo,nos encurralar, e então nos expulsar, ou nos queimar lá dentro. Não, precisamos fazeralguma coisa imediatamente.

- Fazer o quê? - disse Pippin.- Sublevar o Condado! - disse Merry. - Agora! Acordar nosso povo! Eles odeiam

tudo isso, você pode ver: todos eles, com a exceção de um ou dois velhacos, e algunstolos que querem ser importantes, mas que de modo algum entendem o que realmente estáacontecendo. Mas o povo do Condado tem estado tão acomodado há tanto tempo que nãosabe o que fazer. Entretanto só precisam de uma fagulha para se incendiarem. Os Homensdo Chefe devem saber disso. Vão tentar nos pisotear e nos apagar rápido. Temos muitopouco tempo.

- Sam, você pode dar uma corrida até a fazenda do Villa, se quiser. Ele é a pessoamais importante por aqui, e a mais corajosa. Vamos! Vou tocar a corneta de Rohan, efazê-los todos ouvir uma música que nunca ouviram antes.

Voltaram para o centro da aldeia. De lá Sam desviou seu caminho e galopoudescendo a ladeira que levava até a propriedade de Villa. Não tinha ido muito longequando ouviu um toque de corneta súbito e cristalino subindo pelos ares, ecoando longe,sobre colinas e campos. Tão imperioso era aquele chamado que o próprio Sam quase sevirou e correu de volta. O pônei recuou e relinchou.

- Vamos, rapaz! Para a frente! - gritou ele. Logo voltaremos.Depois ele ouviu Merry mudar de tom, e logo subiu o Chamado de corneta da terra

dos Bosques, agitando o ar.- Acordem! Acordem! Faca, Fogo, Fúria! Acordem! Fogo, Fúria! Acordem!Atrás de si Sam ouviu uma confusão de vozes e um grande estrondo de portas

batendo. A sua frente surgiram luzes no crepúsculo; cães latiram, passos se aproximaramcorrendo. Antes que Sam chegasse ao fim da ladeira, já lá estava o Fazendeiro Villa comtrês de seus rapazes, o Jovem Tom, Jolly e Nick, correndo na direção dele.

Empunhavam machados e estavam bloqueando o caminho.- Não! Não é um dos rufiões - Sam ouviu-o dizer. - Pelo tamanho é um hobbit, mas

com uma roupa muito esquisita. Ei! - gritou ele. - Quem é você, e o que é todo essebarulho?

- É Sam, Sam Gamgi. Eu voltei.Villa aproximou-se e olhou em seu rosto à luz do crepúsculo. - Bem! - exclamou

ele. - A voz é a mesma, e o seu rosto não está pior do que era, Sam. Mas eu não oreconheceria na rua, vestido assim. Ao que parece, você andou por terras estrangeiras.Temíamos que estivesse morto.

- Isso eu não estou! - disse Sam. - Nem o Sr. Frodo. Ele está aqui com os seusamigos. E o barulho é por causa disso. Estão sublevando o Condado. Vamos expulsaresses rufiões, e o Chefe deles também. Estamos começando agora.

- Bom, bom! - exclamou Villa. - Finalmente começou! Estou louco por umaconfusão desde o começo do ano, mas as pessoas daqui não queriam ajudar. E eu tinha depensar na mulher e em Rosinha. Esses rufiões não respeitam nada. Mas venham agora,rapazes! Beirágua está se insurgindo. Precisamos participar disso!

- E a Sra. Villa e Rosinha? - disse Sam. - Ainda não é seguro deixá-las sozinhas.

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- O meu Nibs está com elas. Você pode ir ajudá-lo, se quiser - disse Villa com umsorriso. Depois correu na direção da aldeia junto com os filhos.

Sam correu para a casa. Ao lado da grande porta redonda, no topo da escada quevinha do largo pátio, estavam a Sra. Villa e Rosinha; Nibs estava na frente delas,agarrando um garfo de feno.

- Sou eu! - gritou Sam trotando no pônei -, Sam Gamgi! Não tente me cutucar,Nibs. De qualquer modo, estou vestindo uma malha metálica.

Desceu do pônei e subiu a escada. Os três o observavam em silêncio.- Boa noite, Sra. Villa! - disse ele. - Oi, Rosinha!- Oi, Sam! disse Rosinha. - Por onde esteve? Disseram que estava morto, mas eu

estive à sua espera desde a primavera. Você não teve pressa, não é verdade?- Talvez não - disse Sam envergonhado. Mas agora estou com pressa. Vamos

atacar os rufiões, e preciso voltar para junto do Sr. Frodo. Mas pensei em vir para vercomo a Sra. Villa está passando. E você também, Rosinha.

- Estamos bem, obrigada - disse a Sra. Villa. - Ou deveríamos estar, se não fossepor esses rufiões ladros.

- Bem, então vá andando! - disse Rosinha. - Se você esteve cuidando do Sr. Frodotodo esse tempo, por que quereria abandoná-lo logo que as coisas ficam perigosas?

Aquilo foi demais para Sam. Ou ele ficava uma semana respondendo, ou nãorespondia nada. Virou-se e montou no pônei. Mas, no momento em que ia partir, Rosinhadesceu correndo a escada.

- Eu acho que você está muito bem, Sam- disse ela. - Agora vá! Mas cuide-se evolte direto para cá assim que tiver resolvido o problema dos rufiões!

Quando Sam retornou, encontrou toda a aldeia agitada. Além de vários rapazesmais jovens, já mais de uma centena de hobbits robustos estavam reunidos, commachados, pesados martelos, longas facas e grossos bastões; além disso, alguns levavamarcos de caça. Muitos outros estavam chegando das fazendas distantes.

Algumas pessoas da aldeia tinham acendido uma grande fogueira, só para deixar acoisa toda mais emocionante, e também porque isso era proibido pelo Chefe.

O fogo queimava forte enquanto se aproximava a noite. Outros, por ordem deMerry, estavam erguendo barreiras através da estrada nas duas extremidades da aldeia.

Quando os Condestáveis atingiram o lado mais baixo, ficaram aturdidos; mas,assim que viram como estavam as coisas, a maioria deles tirou as penas e juntou-se àrevolta. Os outros se retiraram furtivamente.

Sam encontrou Frodo e seus amigos perto do fogo, conversando com o velho TomVilla, enquanto uma multidão admirada de Beirágua se juntava ao redor para observá-los.

- Bem, qual é o próximo passo? - perguntou Villa.- Não posso dizer até que saiba mais - disse Frodo. - Quantos são esses rufiões?- Isso é dificil dizer - disse Villa. - Eles andam por aí, indo e vindo. Algumas vezes

há cinquenta deles naqueles barracões lá em cima, no caminho da Vila dos Hobbits; maseles saem e ficam perambulando, roubando ou recolhendo, como eles dizem. Aindaassim, é raro haver menos que vinte em volta do Patrão, como eles o chamam. Ele está emBolsão, ou estava; mas agora não sai da propriedade. Ninguém o vê, na verdade, há umaou duas semanas; mas os homens não deixam ninguém chegar perto.

- A Vila dos Hobbits não é o único lugar onde eles ficam, é? - disse Pippin.- Não, e isso é que é o pior - disse Villa. - Há um bom grupo lá no sul, no Vale

Comprido e perto do Vau Sam, ouvi dizer; e mais alguns rondando na Ponta do Bosque; eeles têm barracões em Encruzada. E além disso há os Tocadeados, como os chamam: osvelhos túneis de estocagem em Grã Cava, transformados em prisões para aqueles que os

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enfrentam. Mesmo assim, calculo que não haja mais que trezentos ao todo, e talvez atémenos. Podemos dominá-los, se ficarmos juntos.

- Eles têm armas? - perguntou Merry.- Chicotes, facas e bastões, o suficiente para o trabalho sujo que fazem: é tudo o

que exibiram até agora - disse Villa. - Mas arrisco dizer que eles têm outrosequipamentos, se for preciso lutar. De qualquer forma, alguns têm arcos. Atingiram umou dois de nosso pessoal.

- Aí está, Frodo! - disse Merry. - Eu sabia que íamos ter de lutar. Bem, foram elesque começaram a matança.

- Não exatamente - disse Villa. - Pelo menos, não foram eles que começaram aatirar. Os Túks começaram tudo. Compreenda, Sr. Peregrin, o seu pai nunca se entendeucom esse Lotho, desde o inicio: disse que, se alguém ia bancar o chefe a essa altura dascoisas, essa pessoa deveria ser o Thain do Condado e não um arrivista qualquer. E,quando Lotho mandou seus homens, não conseguiram fazê-lo mudar de idéia. Os Túkssão sortudos, têm aquelas tocas profundas nas Colinas Verdes, os Grandes Smials e tudomais; e os rufiões não conseguem atacá-los, e eles não permitem a entrada dos rufiões nasterras deles. Quando entram, os Túks os caçam. Atiraram em três por saque e roubo.Depois disso os rufiões ficaram mais cruéis. E montaram uma vigilância cerrada na Terrados Túks. Ninguém entra ou sai de lá.

- Bom para os Túks! - exclamou Pippin. - Mas alguém vai entrar lá de novo, agora.Estou indo para os Smials. Alguém quer ir comigo para Tuqueburgo?

Pippin partiu acompanhado de meia dúzia de rapazes montados em pôneis. - Atébreve! - gritou ele. - São só catorze milhas mais ou menos, indo pelos campos. Voutrazer-lhes um exército de Túks pela manhã. - Merry fez soar a corneta, enquanto eles iamentrando na noite que se adensava. O povo aplaudia.

- Mesmo assim - disse Frodo a todos que estavam próximos - , eu não queromatança nenhuma, nem mesmo dos rufiões, a não ser que seja necessário para impedirque eles machuquem os hobbits.

- Está certo! - disse Merry. - Mas vamos ter uma visita da gangue da Vila dosHobbits a qualquer momento, eu acho, eles não estão vindo só para conversar. Vamostentar lidar com eles sem desordem, mas devemos estar preparados para o pior. E eutenho um plano.

- Muito bem - disse Frodo. - Você prepara tudo. Naquela mesma hora alguns hobbits, que tinham sido mandados para a Vila,

chegaram correndo. - Eles estão chegando! - disseram eles. - Vinte ou mais. Mas doisdesviaram para o oeste através do campo.

- Para Encruzada, sem dúvida disse Villa - a fim de engrossar a gangue. Bem, sãoquinze milhas de ida, e mais quinze de volta. Não precisamos nos preocupar com eles porenquanto.

Merry apressou-se dando ordens. Villa evacuou a rua, mandando todos para dentrode casa, com exceção dos hobbits mais velhos que tinham armas de algum tipo.

Não precisaram esperar muito. Logo já ouviam vozes gritando, e depois a batida depés pesados no chão. De repente um esquadrão inteiro dos rufiões veio pela estrada.

Viram a barreira e começaram a rir. Não imaginavam existir qualquer coisanaquele lugarzinho que pudesse fazer frente a um grupo de vinte rufiões.

Os hobbits abriram a barreira e se puseram de lado. - Obrigado! - zombaram oshomens. - Agora vão correndo para suas casas e durmam, antes que sejam chicoteados.

- Então avançaram em marcha ao longo da rua, gritando: - Apaguem essas luzes!Entrem e fiquem em casa, ou vamos prender cinquenta de vocês nos Tocadeados por um

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ano. Entrem! O Patrão está perdendo a paciência.Ninguém deu atenção àquelas ordens; mas, quando os rufiões passaram, os hobbits

fecharam o caminho atrás deles e os seguiram. Quando os homens se aproximaram dafogueira, depararam com Villa ali sozinho. esquentando as mãos.

- Quem é você, e o que pensa que está fazendo? - disse o líder dos rufiões. Vílla olhou lentamente para ele. - Eu ia lhe perguntar exatamente isso disse ele. -

Esta não é a sua terra, e ninguém quer vocês aqui.- Bem, de qualquer forma alguém quer você - disse o líder.- Nós o queremos. Agarrem-no, rapazes! Tocadeado para ele, e podem aplicar-lhe

um lembrete para que fique quieto!Os homens deram um passo à frente e pararam de súbito. Ergueu-se um rugido de

vozes ao redor deles, e de repente os rufiões perceberam que Villa não estava sozinho,muito pelo contrário. Estavam cercados. No escuro, no limiar da luz do fogo, havia umcirculo de hobbits que surgiram das sombras. Havia quase duzentos deles, cada umsegurando algum tipo de arma.

Merry deu um passo á frente. - Já nos encontramos antes - disse ele ao líder-, e euo avisei para não voltar aqui. Estou avisando de novo: vocês estão sob a luz e cercadospor arqueiros. Se tocarem um dedo neste fazendeiro, ou em qualquer pessoa, serãoimediatamente atingidos. Coloquem no chão qualquer arma que tiverem.

O líder olhou em volta. Estava encurralado. Mas não sentiu medo, não agora, comvinte de seus homens na retaguarda. Sabia muito pouco sobre os hobbits para entender operigo que estava correndo. Numa atitude tola, resolveu lutar. Julgou que seria fácilromper a barreira.

- Para cima deles, rapazes! - gritou ele. - Vamos lá!Com uma faca comprida na mão esquerda e um bastão na outra, ele avançou para o

circulo, tentando correr de volta para a Vila dos Hobbits.Ensaiou um golpe na direção de Merry, que lhe barrava o caminho. Caiu morto

com quatro flechas enfiadas no corpo.Isso bastou para os outros, que se renderam. As armas foram-lhes tomadas e eles

amarrados; fizeram-nos marchar para um barracão vazio construído por eles mesmos, eali tiveram as mãos e pés atados, e ficaram trancados sob vigia. O líder morto foiarrastado dali e enterrado.

- Até que foi fácil demais, afinal de contas, não foi? - disse Villa. - Eu disse quepoderíamos dominá-los. Mas precisávamos de uma convocação. Vocês vieram na horaexata, Sr. Merry.

- Ainda há mais o que fazer - disse Merry. - Se o senhor está certo em seuscálculos, ainda não lidamos nem com um décimo deles. Mas agora está escuro. Acho queo próximo golpe pode esperar até amanhã. Depois devemos visitar o Chefe.

- Por que não agora? - disse Sam. - Não passa muito das seis horas. E eu queria vero meu velho. O senhor sabe o que aconteceu com ele, Sr. Villa?

- Ele não está muito bem, nem muito mal, Sam - disse o fazendeiro.- Eles escavaram toda a rua do Bolsinho, e isso foi um duro golpe para ele. Agora

está em uma das casas novas que os Homens do Chefe costumavam construir, no tempoem que faziam alguma coisa além de incendiar e roubar: não mais que uma milha além dofim de Beirágua. Mas ele ás vezes vem me visitar, quando tem uma oportunidade, e euvejo que está mais bem alimentado que alguns desses pobres coitados.

Tudo contra As Regras, é claro. Eu o teria acolhido em casa, mas isso não erapermitido.

Muito obrigado mesmo, Sr. Villa; nunca me esquecerei disso - disse Sam. - Mas

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quero vê-lo. Aquele Patrão e o tal de Charcote, do qual eles falaram, podem fazer algumamaldade lá em cima antes que amanheça.

- Está bem, Sam - disse Villa. - Escolha um ou dois rapazes e vá buscá-lo; traga-opara minha casa. Não será preciso chegar perto do antigo vilarejo dos hobbits do outrolado do Água. Meu Jolly vai lhe mostrar o caminho.

Sam partiu. Merry designou vigias para ocuparem postos de observação ao redorda aldeia, e guardas para tomarem conta das barreiras durante a noite. Então ele e Frodoforam para a casa de Villa. Sentaram-se com a familia na cozinha aconchegante, e osVíllas fizeram algumas perguntas educadas sobre a viagem deles, mas mal ouviram asrespostas: estavam muito mais preocupados com os acontecimentos no Condado.

- Tudo começou com Pústula, como o chamamos - disse o Sr. Algodão -; ecomeçou assim que vocês partiram, Sr. Frodo. Ele tinha idéias esquisitas, o Pústula.Parece que queria ter tudo para si mesmo, e depois ficar dando ordens para os outros.Logo descobrimos que ele já possuía uma propriedade maior do que precisava, e estavasempre agarrando mais, embora onde ele conseguia o dinheiro continuasse sendo ummistério: moinhos e maltarias, estalagens, fazendas, plantações de fumo. Já tinhacomprado o moinho do Ruivão antes de vir para Bolsão, ao que parece.

- É claro que começou com uma propriedade na Quarta Sul que herdou do pai; eparece que andou vendendo uma grande porção do melhor fumo, e despachando tudo emsegredo por um ou dois anos. Mas no fim do ano passado ele começou a mandar grandesquantidades de mercadorias, não só fumo. As coisas começaram a faltar, o que se agravoucom a chegada do inverno. As pessoas ficavam com raiva, mas ele tinha o que responder.Um monte de homens, a maioria rufiões, chegaram com grandes carroças, alguns paralevar as mercadorias para o sul, e outros para ficar. Mais e mais chegavam. E antes quenos déssemos conta foram-se instalando aqui e acolá em todo o Condado, e estavamderrubando árvores e cavando e construindo para si barracões e casas a seu bel-prazer. Noinicio, as mercadorias e o prejuízo eram pagos por Pústula; mas logo eles começaram amandar e desmandar, levando o que queriam.

- Depois houve um pouco de problemas, mas não o suficiente. O Velho Will, oPrefeito, foi até Bolsão para protestar, mas nunca chegou lá. Os rufiões botaram as mãosnele e o levaram, trancando-o numa toca em Grã Cava, onde ele está até agora. E depoisdisso, logo depois do Ano Novo, não havia mais Prefeito, e o Pústula autodenominou-seCondestável Chefe, ou apenas Chefe, e fez o que quis; e se alguém ficasse "petulante",como diziam eles, ia para junto de Will. Assim as coisas foram de mal a pior. Não haviamais fumo, exceto para os homens, e o Chefe não tolerava cerveja, a não ser para seushomens, e fechou todas as estalagens; e, fora as regras. tudo foi escasseando cada vezmais, a não ser que alguém conseguisse esconder um pouco do que tinha quando osrufiões passavam recolhendo mercadorias "para uma distribuição justa": o que significavaque eles ficavam com tudo e nós com nada, com exceção das sobras que se podiamconseguir nas casas dos Condestáveis, se você conseguisse comê-las. Tudo muito ruim.Mas desde a vinda de Charcote tem sido pura desgraça.

- Quem é esse Charcote"? - perguntou Merry. - Ouvi um dos rufiões falar nele.- O maior rufião de todos, ao que parece - respondeu Villa. - Foi por volta da

última colheita, talvez no fim de setembro, que ouvimos falar dele pela primeira vez.Nunca o vimos, mas ele está lá em Bolsão. E agora é o verdadeiro Chefe, eu acho. Todosos rufiões fazem o que ele manda, e o que ele manda é principalmente cortar, queimar edestruir; agora começaram a matar. O que fazem já não tem mais objetivo nenhum, porpior que seja. Derrubam árvores e as deixam no chão, queimam casas e não constroemoutras.

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- Veja, por exemplo, o moinho do Ruivão. Pústula o derrubou assim que chegou aBolsão. Então trouxe um monte de homens imundos para construir um maior, cheio derodas e geringonças esquisitas. Só aquele idiota do Ted ficou satisfeito com aquilo, etrabalha lá limpando rodas para os homens, onde seu pai era o Moleiro e proprietário. Aidéia do Pústula era moer mais e mais depressa, ou pelo menos era isso o que dizia. Eletem outros moinhos como esse. Mas você precisa conseguir grãos antes de moê-los, epara o novo moinho não havia maior quantidade do que já havia para o antigo. Mas desdeque Charcote chegou eles não moem mais trigo nenhum.

Ficam só martelando e soltando uma fumaça e um cheiro ruim, e não há paz naVila dos Hobbits nem durante a noite. E eles despejam sujeira de propósito;emporcalharam toda a parte baixa do Água, e a sujeira está chegando ao Brandevin. Sepretendem transformar o Condado num deserto, estão no caminho certo. Não acho que oidiota do Pústula esteja por trás de tudo isto. É o Charcote, estou dizendo.

- É isso mesmo! - acrescentou o Jovem Tom. - Olhe, eles até levaram a velha mãedo Pústula, a Lobélia, e ele gostava dela, mesmo que ninguém mais gostasse.

Algumas pessoas da Vila dos Hobbits viram. Ela ia descendo a ladeira com a velhasombrinha. Uns rufiões estavam subindo com uma carroça grande.

- "Aonde vão indo?", diz ela.- "Para Bolsão", dizem eles.- "Para quê?", diz ela.- "Levantar uns barracões para o Charcote", dizem eles.- "Quem disse que vocês podem?", diz ela.- "Charcote", dizem eles. "Então saia da estrada, bruxa velha!"- "Vão ver o Charcote, seus ladrões sujos!", diz ela, e parte com a sombrinha para

cima do líder, quase duas vezes maior que ela. Então eles a levaram.Arrastaram ela para os Tocadeados, naquela idade. Levaram outros de quem

sentimos mais falta, mas não se pode negar que ela mostrou mais valentia que muitos.No meio dessa conversa chegou Sam num atropelo, trazendo o Feitor. - Boa noite, Sr. Bolseiro! - disse ele. Fico realmente feliz em vê-lo de volta. Mas

tenho contas a ajustar com o senhor, por assim dizer, se me permite a ousadia. O senhornunca deveria ter vendido Bolsão, como eu sempre disse. Foi aí que toda a confusãocomeçou. E enquanto o senhor esteve perambulando por terras estrangeiras, caçandohomens negros montanha acima, pelo que diz o meu Sam, embora não explique muitobem para quê, eles foram lá e escavaram a rua do Bolsinho e arruinaram minhas batatas!

- Sinto muito, Sr. Gamgi - disse Frodo. - Mas agora eu voltei, e vou fazer opossível para consertar as coisas.

- Bem, o senhor não poderia ter falado mais bonito - disse o Feitor. - O Sr. FrodoBolseiro é um cavalheiro de verdade, como eu sempre disse, não importa o que se possapensar de outros que levam o mesmo nome, se me desculpa. E espero que o meu Samtenha se comportado a contento.

- Perfeitamente a contento, Sr. Gamgi - disse Frodo. - Na verdade, se o senhor meacredita, ele é uma das pessoas mais famosas em todas as terras, e estão fazendo cançõessobre seus feitos, desde aqui até o Mar e além do Grande Rio. - Sam corou, mas ficouagradecido a Frodo, pois os olhos de Rosinha estavam brilhando, e ela sorria para ele.

- É muito dificil acreditar - disse o Feitor -, embora eu possa perceber que eleandou se misturando a gente estranha. Que aconteceu com o colete dele? Não possosuportar esse roupão de ferro, seja ele elegante ou não.

A gente da casa do Fazendeiro Villa e todos os seus hóspedes acordaram cedo nodia seguinte. Não se ouvira nada durante a noite, mas certamente mais problemas viriam

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antes do final do dia. - Até parece que não sobrou nenhum baderneiro lá em Bolsão -disse Villa. - Mas a gangue de Encruzada virá a qualquer hora.

Depois do desjejum chegou um mensageiro da Terra dos Túks. Estava animado. -O Thain sublevou toda a nossa terra - disse ele - e a noticia está se espalhando feito fogopor todos os lados. Os rufiões que estavam vigiando nossa terra fugiram para o sul, os queescaparam vivos. O Thain foi atrás deles, sustar o avanço da grande gangue por aquelecaminho; mas enviou para cá o Sr. Peregrin, com todos os outros de que pôde dispor.

A próxima notícia não foi tão boa. Merry, que estivera fora toda a noite, chegoucavalgando por volta das dez horas. - Há um bando enorme a umas quatro milhas daqui -disse ele. - Estão vindo pela estrada de Encruzada, mas muitos rufiões perdidos sejuntaram a eles. Deve haver perto de uma centena, e eles estão ateando fogo em tudoenquanto avançam. Malditos!

- Ah! Aqueles bandidos não param para conversar; matam se puderem - disse o Sr.Villa. - Se os Túks não chegarem antes, é melhor nos escondermos e atirarmos antes deperguntar. Será preciso alguma luta antes que tudo isto esteja terminado, Sr. Frodo.

Mas os Túks chegaram antes. Logo vieram marchando, uma centena de hobbitsfortes, de Tuqueburgo e das Colinas Verdes, com Pippin à frente.

Agora Merry tinha um número suficiente de hobbits robustos para dar conta dosrufiões. Batedores reportaram que eles continuavam juntos. Sabiam que o interior serebelara contra eles, e estava claro que pretendiam sufocar a rebelião de forma cruel nasua origem, em Beirágua. Mas, embora pudessem ter cara de malvados, não parecia haverum líder entre eles que entendesse de guerra. Avançavam sem qualquer precaução. Merryfez seus planos depressa.

Os rufiões chegaram pisando firme ao longo da Estrada Leste, e sem parartomaram o caminho de Beirágua, que ia subindo por um trecho entre altos barrancoscobertos de cercas-vivas baixas. Fazendo uma curva a cerca de uns duzentos metros daestrada principal, encontraram uma forte barreira, feita de velhas carroças tombadas. Issoos fez parar. No mesmo momento, perceberam que as cercas-vivas, dos dois lados, logoacima de suas cabeças, estavam cheias de hobbits enfileirados.

Atrás deles outros hobbits agora empurravam mais algumas carroças que tinhamsido escondidas num campo, e assim bloquearam o caminho de volta.

Uma voz dirigiu-se a eles de cima.- Bem, vocês caíram numa armadilha - disse Merry. - O mesmo aconteceu com

seus companheiros da Vila dos Hobbits, e um deles está morto e os outros presos.Coloquem as armas no chão! Depois recuem vinte passos e sentem-se. Qualquer um quetentar fugir será alvejado.

Mas desta vez não foi tão fácil dominar os rufiões. Alguns deles obedeceram, masforam imediatamente hostilizados por seus companheiros.

Cerca de vinte tentaram voltar e atacaram as carroças. Seis foram atingidos, masoutros romperam a barreira, matando dois hobbits, e depois se espalharam pelo campo nadireção da Ponta do Bosque. Mais dois caíram enquanto corriam. Merry fez soar umpoderoso toque de corneta, e ao longe se ouviram toques em resposta.

- Não vão muito longe - disse Pippin. - Todo aquele campo está agora cheio decaçadores nossos.

Atrás, os homens presos no caminho estreito, que ainda somavam cerca de oitenta,tentaram trepar na barreira e nos barrancos, e os hobbits foram obrigados a atirar emmuitos ou golpeá-los com machados. Mas muitos dos mais fortes e desesperados saírampelo lado oeste, e atacaram seus inimigos ferozmente, pensando agora mais em matar doque em escapar. Muitos hobbits tombaram e o resto estava vacilando quando Merry e

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Pippin, que estavam no lado leste, vieram na direção dos rufiões e os atacaram. O próprioMerry matou o líder, um brutamontes vesgo que parecia um orc grande. Então recuousuas forças e prendeu os últimos homens num largo círculo de arqueiros.

Por fim tudo terminou. Quase setenta rufiões jaziam mortos no campo, e uns dozeforam presos. Dezenove hobbits morreram, e uns trinta estavam feridos. Os rufiõesmortos foram colocados em carroças e puxados para um velho poço de areia nasproximidades, e ali foram enterrados: no Poço da Batalha, como ficou sendo chamado.

Os hobbits caídos foram colocados juntos num túmulo na encosta da colina, ondemais tarde erigiu-se uma grande pedra com um jardim em volta. Assim terminou aBatalha de Beirágua, em 1419, a última batalha travada no Condado, e a única desde ados Campos Verdes, em 1147, que ocorrera lá em cima, na Quarta Norte. Emconsequência disso, embora felizmente tenha custado muito poucas vidas, a batalha temum capítulo próprio no Livro Vermelho, e os nomes de todos os que participaram delaformaram uma Lista que os historiadores do Condado sabiam de cor. O considerávelaumento da fama e da riqueza dos Villas vem dessa época, mas no topo da Lista, emtodos os relatos, estão os nomes dos Capitães Meriadoc e Peregrin.

Frodo participara da batalha, mas sem sacar a espada, e sua principal tarefa foraimpedir que os hobbits, em sua ira pela perda dos entes queridos, matassem aquelesinimigos que tinham deposto as armas. Depois que a luta terminou, e as tarefas ulterioresforam organizadas, Merry, Pippin e Sam juntaram-se a ele, e foram de volta para a casados Villas. Almoçaram tarde, e então Frodo disse com um suspiro: - Bem, suponho queagora devemos cuidar do "Chefe".

- É sim, quanto mais cedo melhor - disse Merry. - E não seja bonzinho demais! Eleé o responsável pela vinda desses rufiões, e por todo o mal que eles praticaram. OFazendeiro Villa escolheu uma escolta de uns vinte hobbits robustos. - Pois nós apenassupomos que não haja mais nenhum rufião em Bolsão - disse ele. - Não temos certeza. -Depois eles partiram a pé. Frodo, Sam, Merry e Pippin foram na frente.

Foi uma das horas mais tristes da vida deles. A grande chaminé se erguia á frente,e, quando se aproximavam da antiga aldeia do outro lado do Água, através de fileiras denovas casas miseráveis ao longo dos dois lados da estrada, viram o novo moinho em todaa sua feiúra carrancuda e suja: um grande prédio de tijolos montado sobre o rio, que eraemporcalhado por uma descarga fétida e fumegante. Ao longo da Estrada de Beiráguatodas as árvores tinham sido derrubadas.

Quando atravessaram a ponte e ergueram os olhos na direção da Colina, ficaramboquiabertos. Nem mesmo a visão que Sam tivera no Espelho pudera prepará-lo paraaquela cena. A Granja Velha no lado leste tinha sido derrubada, e em seu lugar viam-sefileiras de barracões cobertos de piche.

Todas as castanheiras tinham-se ido. Os barrancos e cercas-vivas estavamdestruídos. Grandes carroças estavam paradas em desalinho num campo batido e semgrama.

A rua do Bolsinho se transformara num enorme buraco cheio de cascalho e areia.Lá em cima não se via Bolsão, devido a um amontoado de barracões enormes.

- Eles cortaram! - gritou Sam. - Cortaram a Arvore da Festa! - disse ele apontandopara o local onde estivera a árvore sob a qual Bilbo fizera o Discurso de Despedida.Estava morta, caída no campo com os galhos cortados. Como se isso fosse a gota d'água,Sam rompeu em pranto.

Um riso pôs um fim às suas lágrimas. Havia um hobbit grosseiro recostado contrao muro baixo do pátio do moinho. Tinha o rosto encardido e as mãos pretas.

- Não está gostando, Sam? - zombou ele. - Mas você sempre foi um molenga.

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Pensei que tivesse ido embora em algum daqueles navios sobre os quais costumavatagarelar, navegando, navegando. E por que quis voltar? Agora temos trabalho a fazer noCondado.

- Estou vendo - disse Sam. - Não há tempo para se lavar, mas há tempo para ficarescorando muros. Mas olhe aqui, Mestre Ruivão, tenho contas a acertar nesta aldeia, enão queira aumentá-las com essa zombaria, ou sua bolsa será pequena demais para oacerto.

Ted Ruivão cuspiu por sobre o muro. - Não me faça rir! - disse ele. - Você nãopode pôr as mãos em mim. Sou amigo do Patrão. E ele quem vai pôr as mãos em você, seeu tiver de escutar mais alguma de suas asneiras.

- Não gaste mais palavras com esse tolo, Sam! - disse Frodo. - Espero que não hajamuitos outros hobbits que ficaram assim. Seria pior do que todo o prejuízo causado peloshomens.

- Você é sujo e insolente, Ruivão - disse Merry. - E também está errado em seuscálculos. Estamos exatamente subindo a Colina para tirar de lá o seu estimado Patrão. Jácuidamos dos homens dele.

Ted perdeu o fôlego, pois naquele momento viu pela primeira vez a escolta que, aum sinal de Merry, marchava agora atravessando a ponte.

Recuando de volta para o moinho, ele correu segurando uma corneta que fazia soarforte.

- Economize o seu fôlego! - disse Merry rindo. - Tenho uma melhor.- Então, erguendo sua corneta de prata, soprou-a, e um tom claro retumbou por

sobre a Colina, e das tocas e barracões e casas miseráveis da Vila responderam os hobbits,que saíram numa enxurrada, e com aplausos e gritos fortes seguiram a comitiva, subindo aestrada de Bolsão.

No topo da ladeira a comitiva parou, e Frodo e seus amigos continuaramavançando; chegaram por fim ao lugar outrora amado. O jardim estava cheio de cabanas ebarracões, alguns tão próximos às antigas janelas da face oeste que bloqueavam toda aluz. Havia pilhas de entulho por toda a parte. A porta estava arranhada, a corrente dacampainha solta, e a campainha não tocava. Bater na porta não adiantou nada. Por fimeles empurraram a porta, que cedeu. Entraram. O lugar fedia e estava cheio de sujeira ebagunça: parecia abandonado havia algum tempo.

Onde estará escondido aquele desgraçado do Lotho? - disse Merry. Eles tinham procurado em cada sala sem encontrar qualquer ser vivo, exceto ratos

e camundongos.- Vamos chamar os outros para uma busca nos barracões?- Isto é pior que Mordor! - disse Sam. - De certa maneira muito pior. A gente sente

na própria pele, como se diz; porque aqui é nossa casa, e ficamos lembrando de como eraantes de ser toda destruída.

- Sim, isto aqui é Mordor - disse Frodo. - Apenas um de seus trabalhos. Sarumanesteve fazendo o trabalho de Mordor todo o tempo, mesmo quando julgava estartrabalhando para si mesmo. E o mesmo vale para aqueles que Saruman enganou, comoLotho.

Merry olhou ao redor, frustrado e enojado. -Vamos sair daqui! - disse ele. - Setivesse sabido todo o mal feito por Saruman, eu lhe teria enfiado minha bolsa de fumogoela abaixo.

- Sem dúvida, sem dúvida! Mas você não sabia, e assim posso dar-lhe as boas-vindas em seu retorno para casa. - Ali, parado ao pé da porta, estava Saruman em pessoa,com uma aparência bem-alimentada e satisfeita; seus olhos reluziam com malícia e

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deleite. Frodo teve um súbito lampejo. - Charcote! - gritou ele. Saruman riu. - Então vocês ouviram o nome, não é? Todo o meu povo costumava

me chamar assim em Isengard, eu acho. Um sinal de afeição, possivelmente. Mas éevidente que não esperavam me ver aqui.

- Eu não esperava - disse Frodo. - Mas poderia ter adivinhado. Uma maldadezinha,num estilo mais mesquinho: Gandalf me advertiu de que você era capaz disso.

- Bem capaz - disse Saruman - e posso ir além de uma maldadezinha. Vocês mefizeram rir, seus senhorinhos-hobbits, cavalgando em companhia de todas aquelasgrandes pessoas, tão seguros e tão satisfeitos consigo mesmos.

Pensaram que se tinham saido muito bem da coisa toda, e agora podiam apenascavalgar tranquilamente para casa e passar um tempo calmo no campo. A casa deSaruman podia estar toda em pedaços, e ele podia ser expulso, mas ninguém poderia tocarna de vocês. Ah, não! Gandalf cuidaria de seus interesses.

Saruman riu de novo. - Não ele! Quando seus instrumentos já desempenharam atarefa por ele designada, Gandalf os abandona. Mas vocês precisam ficar penduradosnele, vagabundeando e conversando, e cavalgando o dobro da distância que precisavamcavalgar. "Bem", pensei eu, "se são assim tão tolos, vou chegar na frente deles para lhesdar uma lição. O mal com o mal se paga." Teria sido uma lição mais dura, se vocês metivessem dado um pouco mais de tempo e de homens. Mesmo assim já fiz tanta coisa quevocês terão dificuldade para consertar ou desfazer durante suas vidas. E será agradávelpensar nisso, contrabalançando minhas perdas.

nota 1 Provavelmente o nome é de origem orc: .charkú, 'velho".

- Bem, se é com isso que você fica satisfeito – disse Frodo -, tenho pena de você.Será uma satisfação apenas na memória, receio eu. Saia já daqui e não volte nunca mais!

Os hobbits das aldeias tinham visto Saruman sair de uma das barracas, eimediatamente vieram se amontoar em frente à porta de Bolsão.

Quando ouviram a ordem de Frodo, murmuraram raivosos:- Não o deixe escapar! Mate-o! Ele é um bandido, um assassino. Mate-o!Saruman olhou em volta, encarando aqueles rostos hostis, e sorriu. - Matá-lo! -

zombou ele. - Matem-no, se julgam que estão em número suficiente, meus bravoshobbits! - Empertigou-se e fitou-os com seus olhos escuros e sombrios. - Mas não pensemque porque perdi todas as minhas posses perdi também todo o meu poder! Qualquer umque me atacar será amaldiçoado. E, se meu sangue manchar o Condado, este lugarfenecerá e nunca mais poderá ser curado.

Os hobbits recuaram. Mas Frodo disse: - Não acreditem nele. Não lhe restanenhum poder, exceto a voz, que ainda pode intimidá-los e enganá-los, se permitirem.

Mas não permitirei que ele seja morto. É inútil retribuir vingança com maisvingança: não vai sanar nada. Vá, Saruman, pelo caminho mais rápido!

- Língua! Língua! - chamou Saruman, e de uma cabana próxima saiu Língua deCobra, arrastando-se quase como um cão. - Para a estrada de novo, Língua! - disseSaruman. - Esses gentis camaradas e senhorinhos estão nos expulsando de novo. Venha!Saruman virou-se para partir, e Língua de Cobra arrastou-se atrás dele. Mas, no momentoem que Saruman passou perto de Frodo, uma faca brilhou em sua mão, e houve um golperápido. A lâmina foi repelida pela malha metálica sob a roupa e se partiu. Uns dozehobbits, liderados por Sam, saltaram à frente com um grito, jogando o bandido no chão.Sam sacou a espada.

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- Não, Sam! - disse Frodo. - Não o mate, apesar de tudo. Pois ele não me feriu. E,de qualquer forma, não quero que ele seja morto desse jeito traiçoeiro.

Saruman já foi grande, de uma espécie nobre contra a qual não deveríamos ousarlevantar nossas mãos. Caiu, e sua cura está além de nosso alcance; mas ainda assimprefiro poupá-lo, na esperança de que possa encontrá-la.

Saruman ficou de pé, e olhou para Frodo. Havia uma expressão estranha em seusolhos, um misto de surpresa, respeito e ódio. - Você cresceu, Pequeno - disse ele. Sim,você cresceu muito. É sábio e cruel. Roubou a doçura de minha vingança, e agora partoamargurado, em divida para com a sua clemência. Odeio você e sua demência! Bem, vouembora e não o incomodarei mais. Mas não espere de mim que lhe deseje saúde e vidalonga. Não terá nenhuma das duas coisas. Mas isso não será por obra minha. Estou apenasprevendo.

Afastou-se e os hobbits abriram alas para ele passar; mas os nós de seus dedos iamficando brancos enquanto as mãos agarravam as armas.

Língua de Cobra hesitou, e depois seguiu seu mestre.- Língua de Cobra! - chamou Frodo. - Você não precisa segui-lo. Não conheço mal

algum que me tenha feito. Pode ter descanso e comida aqui por um tempo, até estar maisforte para seguir seus próprios caminhos.

Língua de Cobra parou e olhou para trás, meio propenso a ficar.Saruman virou-se: - Mal algum? - grasnou ele. - Ah, não! Mesmo quando ele

escapa furtivamente durante a noite, é só para apreciar as estrelas. Mas ouvi alguémperguntar onde o pobre Lotho está escondido? Você sabe, não é mesmo, Língua? Vaicontar a eles? Língua de Cobra se encolheu e choramingou: - Não, não!

- Então conto eu - disse Saruman. - Língua matou o seu Chefe, pobre criatura, oseu bom Patrãozínho. Não é verdade, Língua? Apunhalou-o enquanto dormia, acho.Enterrou-o, espero; embora Língua tenha estado com muita fome ultimamente. Não,Língua não é bonzinho de verdade. É melhor que o deixem para mim.

Uma faisca de ódio alucinado brilhou nos olhos vermelhos de Língua de Cobra. -Você me mandou fazer isso, você me obrigou - chiou ele.

Saruman riu. - Você sempre faz o que Charcote manda, não é, Língua? Bem, agoraele diz: em frente! - Chutou Língua de Cobra no rosto no momento em que este rastejava,virou-se e partiu. Mas nesse instante algo se partiu: de súbito Língua de Cobra selevantou, sacando uma faca escondida e então, rosnando como um cachorro, saltou sobreas costas de Saruman, puxou-lhe a cabeça para trás, cortou-lhe a garganta e com um gritocorreu descendo a ladeira. Antes que Frodo pudesse se recuperar ou dizer alguma coisa,três arcos hobbits zuniram e Língua de Cobra caiu morto.

Frodo olhou para o corpo com pena e terror, pois enquanto olhava pareceu que derepente longos anos de morte se revelavam nele, e o corpo encolheu, e o rosto enrugadotransformou-se em trapos de pele sobre um crânio hediondo.

Erguendo a barra da capa suja que estava caída ao lado dele, Frodo o cobriu, e deu-lhe as costas.

- E este é o fim dessa criatura - disse Sam. - Um fim terrível, que eu gostaria denão precisar ter assistido; mas foi melhor termo-nos livrado dele.

- E esse é o fim do fim da Guerra, eu espero - disse Merry. - Espero que sim - disse Frodo suspirando. - O último golpe. E pensar que esse

golpe deveria ser desferido aqui, bem na porta de Bolsão! Entre todas as minhasesperanças e medos, nunca imaginei isso.

- Não vou chamar isso de fim, antes de termos limpado toda a sujeira - disse Sammelancólico. - E isso exigirá um bocado de tempo e trabalho. Para o assombro dos

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circunstantes, ao redor do corpo de Saruman formou-se uma névoa cinzenta que, subindolentamente a uma grande altura qual a fumaça de uma fogueira, pairou sobre a Colinacomo um vulto pálido e amortalhado.

Por um momento vacilou, olhando para o Oeste; mas do oeste veio um vento frio,e o vulto se curvou, e com um suspiro dissolveu-se em nada.

CAPÍTULO IXOS PORTOS CINZENTOS

Certamente a limpeza exigiu um bocado de trabalho, mas levou menos tempo doque Sam receara. No dia após a Batalha, Frodo cavalgou até Grã Cava e libertou osprisioneiros dos Tocadeados. Um dos primeiros que encontraram foi o pobre FredegarBolger, que de gorducho não tinha mais nada. Fora levado para lá quando os rufiõesexpulsaram um grupo de rebeldes, que ele liderava, de seus esconderijos lá em cima nasTocas dos Texugos, perto das colinas de Scary.

- Afinal de contas, teria sido melhor para você se nos tivesse acompanhado, pobreFredegar! - disse Pippin, no momento em que o carregaram para fora, pois Fatty estavafraco demais para caminhar.

Ele abriu um olho e cavalheirescamente tentou sorrir. - Quem é esse jovem gigantecom esse vozeirão? - sussurrou ele. - Não pode ser o pequeno Pippin! Que tamanho dechapéu você usa agora?

Depois encontraram Lobélia. Pobrezinha, estava muito envelhecida e magraquando a resgataram de uma cela estreita e escura. Ela insistiu em sair mancando sem aajuda de ninguém; teve uma recepção tão calorosa, e as pessoas tanto aplaudiram egritaram quando ela apareceu, apoiada no braço de Frodo, porém sem deixar cair asombrinha, que ela ficou muito emocionada, e foi embora aos prantos. Nunca antes forauma pessoa querida. Mas ficou arrasada com a notícia do assassinato de Lotho, e recusou-se a voltar para Bolsão. Devolveu a propriedade a Frodo, e foi viver com os seus parentes,os Justa-correias de Tocadura. Na primavera seguinte, quando a pobre criatura morreu -afinal de contas, já contava com mais de cem anos - Frodo ficou surpreso e muitocomovido: ela deixara todo o restante do dinheiro dela e de Lotho para que ele o usasseajudando os hobbits que ficaram desabrigados devido às adversidades.

Assim terminou a rixa.O velho Will Pealvo ficou mais tempo nos Tocadeados que qualquer tira, e,

embora talvez tenha sido menos maltratado do que alguns, precisou de umasuperalimentação antes que parecesse prefeito de novo. Por esse motivo Frodo concordouem ficar como seu Substituto, até que o Sr. Pealvo estivesse em forma outra vez. A únicacoisa que Frodo fez como Prefeito Substituto foi reduzir os Condestáveis á sua função enúmero adequado. A tarefa de caçar os últimos remanescentes dos rufiões ficou a cargode Merry e Pippin, que logo a concluíram. As gangues do sul, depois de ouvirem a noticiada Batalha de Beirágua, fugiram dali e ofereceram pouca resistência ao Thain. Antes dofim do ano os poucos sobreviventes foram confinados na floresta, e os que se renderamforam levados para além da fronteira.

Enquanto isso, o trabalho de reconstrução prosseguia a passos largos, e Sam ficoumuito ocupado. Os hobbits sabem trabalhar como abelhas quando precisam e têm

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vontade. Agora havia milhares de mãos dispostas de todas as idades, desde as pequenas eágeis dos meninos e meninas hobbits, até as calejadas dos velhos e velhas. Às vésperas doJule já não restava de pé um só tijolo das novas casas dos Condestáveis, ou de qualquerprédio que os "Homens de Charcote" tivessem construído; mas os tijolos foram usadospara consertar muitas tocas velhas, para deixá-las mais secas e aconchegantes.Encontraram-se grandes estoques de mercadorias, comida e cerveja, que haviam sidoescondidos pelos rufiões em barracões, celeiros e tocas abandonadas, e especialmente nostúneis em Grã Cava, e nas velhas minas em Scary; assim, aquele Jule foi bem mais alegredo que qualquer um pudera esperar.

Uma das primeiras tarefas na Vila dos Hobbits, antes mesmo da remoção do novomoinho, foi a limpeza da Colina e de Bolsão, além da restauração da rua do Bolsinho. Afrente do novo poço de areia foi toda nivelada e transformada num grande jardim cercado,e novas escavações foram abertas na face sul, avançando para dentro da Colina; foramrevestidas com tijolos. O Feitor voltou à Toca Número Três, e dizia frequentemente, semse importar com quem estivesse ouvindo:

- Vento ruim é aquele que não sopra a favor de ninguém, como eu sempre digo. EBem está o que acaba Melhor!

Houve alguma discussão a respeito do nome que se devia dar à nova rua. Pensou-se em Jardins da Batalha e em Smials Melhores. Mas depois de um tempo, ao modosensato dos hobbits, escolheu-se simplesmente rua Nova. Chamá-la de Passagem doCharcote foi apenas uma piada das pessoas de Beirágua.

As árvores representaram a pior perda e o maior prejuízo, pois por uma ordem deCharcote foram derrubadas a torto e a direito por todos os cantos do Condado; Samlamentava isso mais que qualquer outra coisa. Em primeiro lugar, essa ferida demoraria acicatrizar, e apenas seus bisnetos. pensava ele, veriam o Condado como deveria ser derepente, num belo dia, pois ele estivera por demais ocupado durante semanas para poderpensar em suas aventuras, Sam se lembrou do presente de Galadriel.

Trouxe a caixa e a mostrou para os outros Viajantes (pois assim eles eramchamados agora por todo o mundo), e pediu o seu conselho.

- Fiquei pensando quando você se lembraria dela - disse Frodo. Abra a caixa!Estava cheia de uma terra cinzenta, fina e macia, e no meio havia uma semente,

como uma pequena castanha com casca prateada. - O que eu faço com isto? - perguntouSam.

- Jogue para o alto num dia de brisa e deixe que ela faça seu próprio trabalho -disse Pippin.

- Que trabalho? - disse Sam.- Escolha um lugar como viveiro, e veja o que acontece com as plantas lá dentro -

disse Merry.- Mas tenho certeza de que a Senhora não gostaria que eu guardasse a semente só

para o meu jardim, depois que tanta gente sofreu - disse Sam.- Use toda a habilidade e todo o conhecimento que tem, Sam - disse Frodo -, e use

o presente para facilitar seu trabalho e melhorá-lo. E use-o com parcimônia. Não há muitoaqui, e eu acho que cada grão tem o seu valor.

Assim Sam plantou mudas em todos os lugares onde árvores especialmente belasou amadas haviam sido destruídas, e colocou um grão da preciosa terra no chão, junto àraiz de cada uma delas. Percorreu todo o Condado em seu trabalho, mas deu atençãoespecial á Vila dos Hobbits e a Beirágua e ninguém o culpou por isso. No fim, descobriuque ainda lhe sobrara um pouco da terra; então foi até a Pedra das Três Quartas, que ficapraticamente no centro do Condado, e a jogou no ar com suas bênçãos. A pequena

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castanha prateada ele plantou no Campo da Festa, no local da antiga árvore, e ficouimaginando o que nasceria dela. Durante todo o inverno, foi o mais paciente possível, etentava conter o impulso constante de dar uma volta para ver se alguma coisa estavaacontecendo.

A primavera superou suas mais absurdas esperanças. As árvores começaram abrotar e a crescer, como se o tempo estivesse com pressa e quisesse que um ano valessepor vinte. No Campo da Festa uma bela e jovem mudinha apareceu: tinha o troncoprateado e folhas compridas, e em abril explodiu em ouro. Era de fato um mallorn, e amaravilha da vizinhança. Nos anos seguintes, á medida que foi crescendo em graça ebeleza, ficou conhecido em toda parte, e vinha gente de lugares distantes para vê-lo: oúnico mallorn a oeste das Montanhas e a leste do Mar, e um dos mais bonitos do mundo.

Tudo somado, o ano de 1420 no Condado foi maravilhoso. Não apenas por um soldeslumbrante e uma chuva deliciosa, em períodos adequados e na medida perfeita;parecia haver algo mais: um ar de pujança e crescimento, e um brilho de beleza superioràquele dos verões mortais que reluzem e passam sobre esta Terra-média. Todas ascrianças nascidas ou concebidas naquele ano, e houve muitas, eram lindas e fortes, e amaioria delas tinha belos cabelos dourados que antes eram raros entre os hobbits. Haviauma tal abundância de frutas que os pequenos hobbits quase se banhavam em morangoscom creme; e mais tarde eles se sentavam nos prados sob as ameixeiras e comiam atéfazerem pilhas de caroços que pareciam pequenas pirâmides, ou os crânios amontoadospor um conquistador; depois as crianças partiam para outras aventuras. E ninguém ficavadoente, e todo mundo estava feliz, exceto os que tinham de aparar a grama.

Na Quarta Sul as vinhas ficaram carregadas, e a produção de "fumo" foiassombrosa; e por todo canto havia tanto trigo que na Colheita todos os celeiros ficaramabarrotados. A cevada da Quarta Norte foi tão boa que a cerveja produzida com o maltede 1420 foi lembrada por muito tempo, e ficou proverbial. De fato, uma geração maistarde, nalguma estalagem ainda se podia observar algum velho que, depois de uma boa emerecida cerveja, colocava a caneca na mesa e dizia com um suspiro: "Ah! Essa foi comouma 1420!"

No inicio, Sam ficou na casa dos Villas com Frodo, mas, quando a rua Nova ficoupronta, foi morar com o Feitor. Além de todos os seus outros trabalhos, ele estavaocupado na supervisão da limpeza e reforma de Bolsão; mas ele sempre viajava peloCondado para acompanhar o trabalho nas florestas. Por isso, ele não estava em casa emmarço, e não ficou sabendo que Frodo adoeceu. No dia treze daquele mês o FazendeiroVilla encontrou Frodo de cama; agarrava uma pedra branca pendurada em uma correnteem seu pescoço, e parecia estar numa espécie de sonho.

- Foi-se para sempre - dizia ele -, e agora tudo está escuro e vazio.Mas o acesso passou e, quando Sam voltou no dia vinte e cinco, Frodo estava

recuperado, e não disse nada sobre o que lhe acontecera. Enquanto isso Bolsão ficou em ordem, e Merry e Pippin vieram de Cricôncavo

trazendo toda a mobilia e os equipamentos antigos, de forma que a velha toca logo ficoucom a aparência que sempre tivera.

Quando tudo estava pronto, Frodo disse: - Quando é que você vai se mudar para cáe morar comigo, Sam?

Sam parecia um pouco desconcertado. - Não precisa vir já, se não quiser - disse Frodo. - Mas você sabe que o Feitor mora

aqui perto, e será muito bem cuidado pela Viúva Rumble.- Não é isso, Sr. Frodo - disse Sam, corando muito.- Bem, o que é então?

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- É Rosinha, Rosa Villa - disse Sam. - Parece que em nada lhe agradava a minhaviagem para o exterior, pobre menina; mas, como eu não havia dito nada sobre isso, elanão pôde se manifestar. E eu não comentei porque primeiro precisava fazer o trabalho.Mas agora comentei, e ela diz: "Bem, você desperdiçou um ano, então por que esperarmais?" “Desperdicei?", digo eu. "Não chamaria isso de desperdiçar." Mas, mesmo assim,entendo o que ela quer dizer; sinto-me dividido ao meio, como se diz.

- Entendo - disse Frodo -: você quer se casar, e ao mesmo tempo quer vivercomigo em Bolsão? Mas, meu querido Sam, isso é fácil! Case-se o mais depressapossível, e então mude para cá com Rosinha. Há lugar suficiente em Bolsão para a maiorfamília que você possa desejar.

E assim ficou acertado. Sam Gamgi casou-se com Rosa Villa na primavera de1420 (que ficou famosa por seus casamentos), e os dois vieram morar em Bolsão.

E, se Sam se julgava uma pessoa de sorte, Frodo sabia que tinha mais sorte ainda,pois não havia um hobbit no Condado que fosse tratado com tanto cuidado. Quando ostrabalhos de reforma estavam todos planejados e em andamento, ele se retirou para umavida tranquila, escrevendo muito e examinando todas as suas anotações. Demitiu-se docargo de prefeito Substituto durante a Feira Livre do Solstício de Verão, e o bom e velhoWill Pealvo continuou presidindo Banquetes por mais sete anos.

Merry e Pippin viveram juntos por algum tempo em Cricôncavo, e havia muitovaivém entre a Terra dos Buques e Bolsão. Os dois jovens Viajantes faziam grande figurano Condado com suas canções e histórias e seus atavios refinados e suas festasmaravilhosas. As pessoas diziam que eram "nobres", dando à palavra um significadototalmente positivo, pois alegrava a todos os corações vê-los passar cavalgando, com suasmalhas metálicas brilhantes e seus escudos esplêndidos, rindo e cantando canções delugares distantes; e, se agora eram grandes e magníficos, nos outros pontos não haviammudado nada, exceto pelo fato de que falavam mais bonito e estavam mais joviais ealegres do que nunca.

Frodo e Sam, entretanto, voltaram às suas roupas habituais, mas quando eranecessário ambos usavam longas capas cinzentas de tecido fino, presas ao pescoço combelos broches; e o Sr. Frodo sempre usava uma jóia branca numa corrente, quefrequentemente tocava com os dedos.

Agora todas as coisas corriam bem, com esperança de sempre melhorarem; Samestava tão ocupado e satisfeito como um hobbit poderia desejar. Para ele, nada estragouaquele ano, a não ser uma vaga preocupação com seu mestre. Frodo foi se retirando emsilêncio de todas as atividades do Condado, e Sam sofria ao ver como ele era poucohomenageado em sua própria terra. Poucas pessoas sabiam ou se interessavam em sabersobre seus feitos e aventuras- a admiração delas recaia quase exclusivamente sobre o Sr.Meriadoc e o Sr. Peregrin e (sem que Sam o soubesse) sobre ele mesmo. Além disso, nooutono, apareceu uma sombra de problemas antigos.

Numa noite Sam saiu do estúdio e encontrou seu mestre com uma aparênciabastante estranha. Estava muito pálido, e seus olhos pareciam ver coisas distantes.

- Qual é o problema, Sr. Frodo? - perguntou Sam. - Estou ferido - respondeu ele - estou ferido; isso nunca vai sarar.Mas então ele se levantou e o mal-estar passou, e no outro dia ele estava normal de

novo. Foi só depois que Sam se lembrou da data de seis de outubro. Dois anos antes,naquele dia, estava escuro no vale sob o Topo do Vento.

O tempo passou, e veio 1421. Frodo adoeceu outra vez em março, mas com umgrande esforço escondeu a doença, pois Sam tinha outras coisas em que pensar. Oprimeiro filho de Sam e Rosinha nasceu no dia vinte e cinco de março, uma data que

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chamou a atenção de Sara.- Bem, Sr. Frodo - disse ele. - Estou num dilema. Rosa e eu tínhamos resolvido dar

à criança o nome de Frodo, com a sua permissão; mas não nasceu um menino, nasceuuma menina. Mas é a menina mais bonita que alguém poderia esperar, mais parecida comRosa do que comigo, ainda bem. Então não sabemos o que fazer.

- Bem, Sam - disse Frodo. - O que há de errado com os velhos costumes? Escolhaum nome de flor como Rosa. Metade das meninas do Condado têm esse tipo de nome, e oque poderia ser melhor?

- Acho que o senhor tem razão, Sr. Frodo - disse Sam. - Ouvi alguns nomesbonitos em minhas viagens, mas acho que eles são meio grandes demais para o dia-a-dia,como se diz. O Feitor me disse: "Escolha um nome pequeno, para não precisar diminuí-loantes de usá-lo." Mas, se é para ser um nome de flor, não me incomodo com o tamanho:deve ser uma flor bonita porque, o senhor entende, eu acho que ela é muito bonita, e vaificar ainda mais bonita.

Frodo pensou um instante. - Bem, Sam, que tal elanor, a estrela-do-sol, você selembra da florzinha no gramado de Lothlórien?

- O senhor está certo de novo, Sr. Frodo! - disse Sam deliciado.- Era isso o que eu queria.A pequena Elanor estava com quase seis meses, e 1421 já atingira o outono,

quando Frodo pediu que Sam fosse ao seu estúdio.- Na quinta-feira será o Aniversário de Bilbo, Sam - disse ele. - E ele vai

ultrapassar o Velho Túk. Vai completar cento e trinta e um anos!- É isso mesmo! - disse Sam. - Ele é um prodígio!- Bem, Sam - disse Frodo. - Quero que você fale com a Rosa e veja se ela pode

dispensá-lo, para que eu e você possamos sair juntos. Você não pode se ausentar pormuito tempo agora, é claro - disse ele um pouco ansioso.

- Bem, acho que não, Sr. Frodo.- Claro que não. Mas não se preocupe. Você pode me acompanhar no começo da

viagem. Diga a Rosa que você não vai ficar fora muito tempo. não mais que quinze dias, eque voltará são e salvo.

- Gostaria de poder acompanhá-lo até Valfenda, Sr. Frodo, e ver o Sr. Bilbo - disseSam. - E apesar disso o único lugar onde realmente quero estar é aqui. Estou dividido emdois.

- Pobre Sam! Receio que é assim que vai se sentir - disse Frodo. - Mas vai se curar.Você nasceu para ser sólido e inteiro, e será.

Nos dois dias seguintes Frodo examinou seus papéis e seus escritos com Sam, eentregou-lhe as chaves. Havia um grande livro com capa de couro vermelha e lisa; suaspáginas grandes estavam agora quase totalmente preenchidas. No inicio, havia váriasfolhas cobertas com a caligrafia fina e trêmula de Bilbo; mas a maioria estava escrita coma letra firme e corrida de Frodo. Estava dividido em capítulos, mas o Capítulo Oitentaestava inacabado, e depois dele havia algumas folhas em branco. A página de rosto traziavários títulos, riscados um após o outro, assim:

Meu Diário. Minha Viagem Inesperada. Lá e de Volta Outra Vez. E oQue Aconteceu Depois.

Aventuras de Cinco Hobbits. A História do Grande Anel, compiladapor Bilbo Bolseiro a partir de suas próprias observações e dos relatos de

seus amigos. Oque fizemos na Guerra do Anel.

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Aqui terminava a letra de Bilbo e Frodo havia escrito:

A QUEDADO

SENHOR DOS ANÉISEO

RETORNO DO REI

(segundo as Pessoas Pequenas; contendo as memórias de Bilbo e Frodo do Condado,suplementadas pelos relatos de seus amigos e pelos ensinamentos dos Sábios)

Juntamente com excertos de Livros da Tradição traduzidos por Bilbo em Valfenda.

- Ora, ora, o senhor praticamente terminou o livro, Sr. Frodo! - exclamou Sam. -Bem, o senhor trabalhou com afinco, devo dizer.

- Eu quase terminei, Sam - disse Frodo. - As últimas páginas são para você.No dia vinte e um de setembro eles partiram juntos, Frodo no pônei que o trouxera

desde Minas Tirith, e que agora se chamava Passolargo, e Sam em seu adorado Bill. Erauma manhã bela e dourada, e Sam não perguntou para onde iam: achava que podiaadivinhar.

Pegaram a Estrada de Tronco através das colinas e foram na direção da Ponta doBosque, e deixaram que os pôneis avançassem tranquilos. Acamparam nas ColinasVerdes, e no dia vinte e dois de setembro desceram suavemente até o inicio das árvores,enquanto a tarde terminava.

- Ora, ora, aquela não é exatamente a árvore atrás da qual o senhor se escondeuquando o Cavaleiro Negro apareceu pela primeira vez, Sr. Frodo? - disse Sam apontandopara a esquerda. - Agora parece um sonho!

Já anoitecera e as estrelas estavam faiscando no céu do leste quando eles passarampelo carvalho apodrecido, viraram-se e desceram a colina entre os arbustos de aveleiras.Sam estava quieto, perdido em recordações. De repente percebeu que Frodo estavacantando baixinho consigo mesmo, cantando a velha canção de caminhar, mas a letra nãoera a mesma.

Talvez me espere noutra esquinaPorta secreta ou nova sina;Embora sempre vão passandoVirá enfim o dia quandoSendas secretas seguireiSem sol, sem lua eu partirei.

E como que em resposta, lá debaixo, subindo a estrada que vinha do vale, vozescantaram:

A! Elbereth Gilthoniel! silivren penna minelo menel aglar elenath, Gilthoniel, A! Elbereth!Lembramos sim nós que moramos, Aqui distantes, na floresta, Que brilho aoMar a Estrela empresta.

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Frodo e Sam pararam e sentaram-se em silêncio na sombra fresca, até que viramuma luz fraca no momento em que os viajantes vieram na direção deles, estava Gildor emuitos outros belos elfos; para a surpresa de Sam, também vinham a cavalo Elrond eGaladriel. Elrond estava com um manto cinza e tinha uma estrela sobre a testa; trazia namão uma harpa de prata e no dedo um anel de ouro com uma grande pedra azul, Vilya, omais poderoso dos Três. Mas Galadriel montava um palafrêm branco e vinha toda vestidade um branco reluzente, como as nuvens em torno da lua; pois parecia que ela mesmaemanava uma luz suave. Em seu dedo estava Nenya, o anel feito de mithril, que exibiauma única pedra branca faiscante como uma gélida estrela.

Avançando lentamente logo atrás, num pequeno pônei cinzento, cabeceando desono ao que parecia, vinha Bilbo em pessoa.

Elrond os saudou com graça e gravidade, e Galadriel sorriu para eles.- Bem, Mestre Samwise - disse ela. - Ouvi dizer e vejo agora que você usou bem o

meu presente. Agora mais que nunca o Condado será abençoado e amado. - Sam securvou, sem saber o que dizer. Esquecera-se de como a Senhora era bela.

Então Bilbo acordou e abriu os olhos. - Olá, Frodo! disse ele. - Bem, hojeultrapassei o Velho Túk. Então fica tudo certo. E agora acho que estou pronto para fazeruma outra viagem. Você vem?

- Sim, eu vou - disse Frodo. - Os Portadores dos Anéis devem ir juntos.- Aonde o senhor vai, Mestre? - exclamou Sam, embora finalmente percebesse o

que estava se passando.- Para os Portos, Sam - disse Frodo.- E eu não posso ir.- Não, Sam. Pelo menos não por enquanto, não além dos Portos. Embora você

também tenha sido um Portador do Anel, mesmo que por pouco tempo. O seu tempo podechegar. Não fique muito triste, Sam. Você não pode sempre ficar dividido em dois. Teráde ser um e inteiro, por muitos anos. Ainda tem muito para desfrutar, para ser e parafazer.

- Mas - disse Sam, com as lágrimas brotando em seus olhos achei que o senhortambém ia desfrutar o Condado, por muitos e muitos anos, depois de tudo o que fez.

- Eu também já pensei desse modo. Mas meu ferimento foi muito profundo, Sam.Tentei salvar o Condado, e ele foi salvo, mas não para mim. Muitas vezes precisa serassim, Sam, quando as coisas correm perigo: alguém tem de desistir delas, perdê-las, paraque outros possam tê-las. Mas você é meu herdeiro: tudo o que tive e poderia ter tido lhedeixo. E também você tem Rosa e Elanor; e o menino Frodo virá, e a menina Rosinha; eMerry, Cachinhos Dourados e Pippin, e talvez ainda outros mais que eu não consigo ver.Suas mãos e suas atenções serão necessárias em todo lugar. Você será o Prefeito, é claro,enquanto quiser ser, e o jardineiro mais famoso da história; e você lerá coisas no LivroVermelho, e manterá viva a memória da era que se passou; assim as pessoas se lembrarãodo Grande Perigo e amarão mais ainda sua terra querida. E isso o manterá tão ocupado efeliz quanto alguém pode estar, enquanto prosseguir a sua parte da História.

- Venha agora, cavalgue comigo! Então Elrond e Galadriel foram-se cavalgando, pois a Terceira Era estava

terminada, e os Dias dos Anéis eram passados, chegando o fim da história e das cançõesdaquele tempo. Com eles foram muitos elfos da Alta Linhagem que não queriam maispermanecer na Terra-média; entre eles, cheios de uma tristeza que apesar disso eraabençoada e sem amargura, foram Sam, Frodo e Bilbo, com os elfos felizes em prestar-lhes homenagem.

Embora tenham cavalgado através do território do Condado durante toda a noite,

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ninguém os viu passar, a não ser as criaturas selvagens, ou algum andarilho aqui ou acolá,que viu um brilho rápido sob as árvores, ou uma luz e uma sombra correndo pela grama ámedida que a lua rumava para o oeste. E quando tinham deixado o Condado, contornandoa borda sul das Colinas Brancas, chegaram às Colinas Distantes, e às Torres, econtemplaram o Mar ao longe; e assim finalmente desceram até Mithlond, para os PortosCinzentos, no longo estuário de Lún.

Quando chegaram aos portões, Cirdan, o Armador, aproximou-se paracumprimentá-los. Era muito alto e tinha uma barba muito comprida, os cabelos grisalhos eum rosto velho, a não ser pelos olhos que eram brilhantes como as estrelas; olhou paraeles e fez uma reverência, dizendo depois:

- Já está tudo pronto.Então Cirdan os conduziu até os portos, e lá havia um navio branco ancorado; no

cais, ao lado de um grande cavalo cinzento, via-se um vulto vestido todo de branco áespera deles. No momento em que o vulto se virou e veio ao encontro da comitiva, Frodoviu que Gandalf agora usava abertamente em sua mão o Terceiro Anel, Narya, o Grande,que ostentava uma pedra rubra como o fogo. Então aqueles que estavam de partida sealegraram, pois souberam que Gandalf também embarcaria no navio junto com eles.

Mas Sam agora tinha o coração triste, e a impressão de que, se a despedida seriaamarga, mais amargo ainda seria o retorno solitário pela longa estrada de volta para casa.Mas no momento em que estavam lá, os elfos já embarcando, e tudo preparado para apartida, surgiram cavalgando numa grande velocidade Merry e Pippin.

E em meio às lágrimas Pippin riu.- Você já tentou escapar de nós uma vez e fracassou, Frodo – disse ele.- Desta vez você quase conseguiu, mas fracassou de novo. Mas agora não foi Sam

quem deu com a língua nos dentes, mas o próprio Gandalf- É sim - disse Gandalf -; pois será melhor cavalgar para casa com dois amigos do

que sozinho. Bem, aqui finalmente, caros amigos, nas praias do Mar, chega o fim denossa sociedade na Terra-média. Vão em paz! Não pedirei que não chorem, pois nemtodas as lágrimas são um mal.

Então Frodo beijou Merry e Pippin, e por último Sam; depois embarcou; as velasforam içadas, o vento soprou e lentamente o navio se afastou ao longo do estuáriocomprido e cinzento; e a luz do frasco de Galadriel que Frodo carregava faiscou e seperdeu. E o navio avançou para o Alto Mar e prosseguiu para o oeste, até que por fim,numa noite de chuva, Frodo sentiu uma doce fragrância no ar e ouviu o som de um cantochegando pela água. E então teve a mesma impressão que tivera no sonho na casa deBombadil; a cortina cinzenta de chuva se transformou num cristal prateado e se afastou, eFrodo avistou praias brancas e atrás delas uma terra vasta e verde sob o sol que subiadepressa.

Mas para Sam, que permanecera no Porto, a noite se aprofundou na escuridão; eenquanto contemplava o mar cinzento ele via apenas uma sombra sobre as águas, quelogo se perdeu no oeste. Sam continuou ali ainda um bom tempo, ouvindo apenas osuspiro e o murmúrio das ondas nas praias da Terra-média, e o som delas penetrava fundoem seu coração. Ao lado dele estavam Merry e Pippin, em silêncio.

Por fim os três companheiros se voltaram, e sem olhar para trás mais nem uma vezsequer foram lentamente em direção de casa; não trocaram palavra até chegarem de voltaao Condado, mas cada um sentia um grande consolo na companhia dos amigos, naquelalonga estrada cinzenta.

Finalmente atravessaram as colinas e pegaram a Estrada Leste, e depois Merry ePippin se dirigiram para a Terra dos Buques, e já estavam de novo cantando quando se

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despediram. Mas Sam tomou o caminho de Beirágua, e assim subiu outra vez a Colina,quando o dia terminava mais uma vez. E ele prosseguiu, e havia uma luz amarela, e fogolá dentro; a refeição da noite estava pronta, como ele esperava. Rosa o recebeu, levou-oaté a sua cadeira, colocando a pequena Elanor no colo do pai.

Sam respirou fundo. - É, aqui estou de volta - disse ele.

APENDICES

APÊNDICE A

ANAIS DOS REIS E GOVERNANTES

Quanto às fontes da maior parte do conteúdo dos próximos Apêndices,especialmente do A até o D, ver nota no final do Prólogo. A Seção A III, O Povo deDúrin, origina-se provavelmente de Gimli, o anão, que manteve sua amizade comPeregrin e Meriadoc, e visitou-os muitas vezes em Gondor e em Rohan.

As lendas, histórias e estudos que se encontram nas fontes são muito extensos.Destes, apenas seleções, muitas vezes bastante resumidas, são apresentadas aqui. Seuprincipal propósito é esclarecer a Guerra do Anel e suas origens, e preencher váriaslacunas da história principal. As antigas lendas da Primeira Era, nas quais residia oprincipal interesse de Bilbo, são tratadas muito brevemente, uma vez que dizem respeitoaos antepassados de Elrond e aos reis e lideres númenorianos.

Excertos genuínos de anais e histórias mais longas estão colocados entre aspas.Inserções posteriores aparecem entre colchetes. As notas entre aspas podem serencontradas nas fontes. Outras são do editor (1).

As datas fornecidas são as da Terceira Era, a não ser que venham acompanhadasdas siglas S.E. (Segunda Era) ou Q.E. (Quarta Era).

Considera-se que a Terceira Era terminou quando os Três Anéis desapareceram emsetembro de 3021 mas, para efeito dos registros de Gondor, o Ano 1 Q.E. começou no dia25 de março de 3021. Nas listas, as datas após os nomes dos reis e governantes são as desuas mortes, se apenas uma data é fornecida. O sinal t indica uma morte prematura, embatalha ou não, embora nem sempre sejam incluídos anais sobre o evento.

OS REIS NÚMENORIANOS

(i)Númenor

Feanor foi o maior dos eldar no campo das artes e dos estudos, mas também Omais orgulhoso e obstinado. Foi ele quem trabalhou as Três Jóias, as Silmarill, e asencheu com o fulgor das Duas Árvores, Telperion e Laurelin (2), que davam luz à terrados valar.

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nota1. Referências por volume e página dizem respeito a esta edição de O Senhor dos

Anéis; referências a The Hobbit baseiam-se na 3ª edição inglesa, encadernada em tecido.2. na Terra-média não restou nenhuma imagem de Laurelin, a Dourada.

As Jóias eram cobiçadas por Morgoth, o Inimigo, que as roubou e, depois dedestruir as Árvores, levou-as para a Terra-média e as escondeu em sua grande fortaleza deThangorodrim3. Contra a vontade dos valar, Feanor abandonou o Reino Abençoado eexilou-se na Terra-média, conduzindo uma grande parte de seu povo, pois em seu orgulhopretendia recuperar as Jóias, tomando-as de Morgoth à força. Seguiu-se então a guerrasem esperança dos eldar e dos edain contra Thangorodrim, na qual eles foram por fimcompletamente derrotados. Os edain (Atani) eram três povos cujos membros eramhomens que, chegando primeiro ao oeste da Terra-média e às praias do Grande Mar,tornaram-se aliados dos eldar contra o Inimigo.

Houve três uniões entre os eldar e os edain: Lúthien e Beren, Idril e Tuor, Arwen eAragorn. Através do último reunificaram-se ramos dos meio-elfos, separados havia muitotempo, e sua linhagem foi restaurada.

Lúthien Tinúviel era filha do rei Thingol Capa-Cinzenta, de Doriath, da PrimeiraEra, mas sua mãe era melian, do povo dos valar.

Beren era filho de Barahir, da Primeira Casa dos edain. Juntos eles arrancaramuma silmaril da Coroa de Ferro de Morgoth4. Lúthien tornou-se mortal e os elfos aperderam. Dior era seu filho.

Elwing era filha deste, e guardou em seu poder a silmaril. Idril Celebrindal era filha de Turgon, rei da cidade oculta de Gondolin5. Tuor era

filho de Huor, da Casa de Hador, a Terceira Casa dos edain, e a mais renomada nasguerras contra Morgoth. Eãrendil era filho deles.

Eãrendil casou-se com Elwing, e com o poder da silmaril passou pelas Sombras6 echegou ao Extremo Oeste, e falando como um embaixador tanto dos elfos como doshomens obteve a ajuda através da qual Morgoth foi derrotado. Eãrendil foi proibido deretornar para as terras mortais, e seu navio levando a silmoril zarpou pelos céusnavegando como uma estrela, e como sinal de esperança para os habitantes da Terra-média, oprimidos pelo Grande Inimigo ou por seus servidores Apenas as silmarillipreservavam a antiga luz emanada pelas Duas Arvores de Valinor antes que Morgoth asenvenenasse; mas as outras duas se perderam no final da Primeira Era.

Narra-se essa história completa, e muito mais a respeito de elfos e homens, noSilmarillion.

Os filhos de Eiirendil eram Elros e Elrond, os Peredhil, ou meio-elfos. Somenteneles a linhagem dos heróicos lideres dos edain da Primeira Era foi preservada; da mesmaforma, após a queda de Gil-galad8, a linhagem dos altos-elfos reis só ficou representadana Terra-média por seus descendentes.

No final da Primeira Era os valar impuseram uma escolha irrevogável aos meio-elfos, ou seja, eles deveriam decidir a que raça pertenceriam. Elrond escolheu ser do PovoÉlfico, e transformou-se num mestre da sabedoria. Portanto, a ele foi concedida a mesmagraça recebida pelos altos-elfos que ainda permaneciam na Terra-média que, quando porfim estivessem cansados das terras mortais, eles poderiam tomar um navio e partir dosPortos Cinzentos para o Extremo Oeste; essa graça perdurou depois da mudança domundo. Mas para os filhos de Elrond também foi indicada uma escolha: passar com o paidos círculos do mundo ou, se permanecessem, tornarem-se mortais e morrerem na Terra-média. Em consequência disso, para Elrond, todas as possibilidades da Guerra do Anel

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estavam carregadas de tristeza9.Elros escolheu ser do povo dos homens e permanecer com os edain; mas foilhe

concedido um grande tempo de vida, muitas vezes maior que o dos homens inferiores.Como recompensa por seus sofrimentos na causa contra Morgoth, os valar,

Guardiões do Mundo, concederam aos edain uma terra para morarem, retirada dos perigosda Terra-média. A maioria deles, portanto, cruzou o Mar, e guiados pela Estrela deEãrendil chegaram à grande Ilha de Elenna, no extremo oeste das Terras Mortais. Ali elesfundaram o reino de Númenor.

Havia uma alta montanha no centro da ilha, chamada Meneltarma, e de seu topo osque enxergavam longe podiam divisar a torre branca do porto dos eldar em Eressea. De láos eldar vieram para se juntar aos edain, enriquecendo-os com conhecimento e muitasdádivas; mas aos númenorianos foi imposta uma ordem, a "Interdição dos Valar": ficavamproibidos de navegar para o oeste, além do campo de visão de suas próprias praias, etambém de pôr os pés nas Terras Imortais. Pois embora lhes tivesse sido concedida umagrande longevidade, no inicio três vezes maior que a dos homens inferiores, eles deviampermanecer mortais, uma vez que aos valar foi permitido tomar deles a Dádiva dosHomens (ou a Destruição dos Homens, como foi posteriormente denominada).

Elros foi o primeiro rei de Númenor, e depois ficou conhecido pelo nomemeioálfico de Tar-Minyatur. Seus descendentes tiveram vida longa, mas eram mortais.

Mais tarde, quando se tornaram poderosos, lamentaram a escolha de seu ancestral,desejando a imortalidade dentro da vida do mundo, o que era destino dos eldar, emurmurando contra a Interdição. Assim começaram a rebelião que, sob o comandomaligno de Sauron, culminou com a Queda de Númenor e a ruina do antigo reino, comose conta no Akallabêth.

Estes são os nomes dos reis e das rainhas de Númenor: Elros Tar-Minyatur,Vardamir, Tar-Amandil, Tar-Elendil, Tar-Meneldur, Tar-Aldarion, Tar-Ancalimé (aprimeira rainha governante), Tar-Anàrion, Tar-Súrion, Tar-Telperién (a segunda rainha),Tar-Minastir, Tar-Ciryatan, Tar-Atanamir, o Grande, Tar-Ancalimon, Tar-Telemmaité,Tar-Vanimeldé (a terceira rainha), Tar-Alcarin, Tar-Calmacil.

Depois de Calmacil, os reis ocuparam o trono assumindo nomes da línguanúmenoriana (ou Adúnaid): Ar-Adúnakhôr, Ar-Zimrathón, Ar-Sakalthôr, Ar-Gimilzôr,Ar-Inziladûn. Inziladûn arrependeu-se dos procedimentos dos reis e mudou seu nome paraTar-Palantir, "que Enxerga Longe". Sua filha deveria ser a quarta rainha, Tar-Miriel, maso sobrinho do rei usurpou o trono e tornou-se Ar-Pharazôn, o Dourado, último rei dosnúmenonanos.

Nos dias de Tar-Elendil, os primeiros navios dos númenorianos retornaram para aTerra-média. Seu primeiro descendente foi uma filha, Silmarién. O primeiro filho dela foiValandil, o primeiro dos senhores de Andúnié, na costa oeste, famoso por sua amizadecom os eldar. Dele descenderam Amandil, o último senhor, e Elendil, o Alto.

O sexto rei deixou apenas um descendente, uma filha. Ela tornou-se a primeirarainha; pois foi nessa época que se promulgou uma lei da casa real, segundo a qual odescendente mais velho do rei, fosse ele homem ou mulher, deveria assumir o trono.

O reino de Númenor perdurou até o fim da Segunda Era, sempre crescendo empoder e esplendor; e até meados dessa Era, os númenorianos cresceram também emsabedoria e felicidade. O primeiro sinal da sombra que cairia sobre eles apareceu nos diasde Tar-Minastir, décimo primeiro rei. Foi ele quem mandou um grande exército emauxilio de Gil-galad. Ele amava os eldar, mas os invejava. Os númenorianos agoratinham-se transformado em grandes marinheiros, explorando todos os mares ao leste, ecomeçaram a desejar o oeste e as águas proibidas; quanto mais feliz era a vida deles, mais

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começavam a ansiar pela imortalidade dos eldar.Além disso, depois de Minastir, os reis se tornaram ávidos por riqueza e poder. No

inicio, os númenorianos tinham vindo para a Terra-média como professores e amigos doshomens inferiores afligidos por Sauron; agora seus portos haviam-se transformado emfortalezas, mantendo amplas regiões costeiras sob seu comando. Atanamir e seussucessores cobravam altos tributos, e os navios dos númenorianos retornavam carregadosde espólios.

Foi Tar-Atanamir quem primeiro falou abertamente contra a Interdição e declarouque a vida dos eldar era dele por direito. Assim a sombra se adensou, e pensar na mortefez com que o coração do povo ficasse pesado e oprimido. Então os númenonanos sedividiram: de um lado ficaram os reis e aqueles que os seguiram, indispostos com os eldare os valar; do outro lado estavam os poucos que chamavam a si próprios de Fiéis. Estesmoravam principalmente na parte oeste do Reino.

Os reis e seus seguidores pouco a pouco deixaram de usar as línguas eldarin, e porfim o vigésimo rei assumiu seu nome real na forma númenoriana, chamando-se de Ar-Adúnakhõr, "Senhor do Oeste". Esse ato pareceu de mau agouro para os Fiéis, pois atéentão esse titulo só fora concedido aos valar, ou ao próprio Antigo Rei10.

E de fato Ar-Adúnakhõr começou a perseguir os Fiéis e a punir aqueles queusavam abertamente as línguas élficas; os eldar cessaram de vir a Númenor.

Não obstante, o poder e a riqueza dos númenorianos continuavam a crescer; massua longevidade diminuía à medida que aumentava seu medo da morte, e a felicidade osabandonou. Tar-Palantir tentou reparar o mal, mas era tarde demais, e houve rebelião econtenda em Númenor. Quando ele morreu, seu sobrinho, líder da rebelião, apossou-se dotrono e tornou-se Ar-Pharazôn. Ar-Pharazõn, o Dourado, foi o mais arrogante e poderosode todos os reis, e desejava nada menos do que governar o mundo.

Ele resolveu desafiar Sauron, o Grande, pela supremacia da Terra-média, e por fimele mesmo partiu num navio com uma grande esquadra, aportando em Umbar.

Tão grandes eram o poder e o esplendor dos númenorianos que os própriosservidores de Sauron o abandonaram; Sauron se humilhou, prestando honras e implorandoperdão.

Então Ar-Pharazôn, na loucura de seu orgulho, levou-o como prisioneiro paraNúmenor. Não demorou muito para que Sauron enfeitiçasse o rei e se tornasse mestre deseu conselho; logo arrebatou o coração de todos os númenorianos, exceto aqueles queainda eram Fiéis, de volta para a escuridão.

E Sauron mentiu para o rei, declarando que a vida eterna seria daquele quepossuísse as Terras Imortais, e que a Interdição fora imposta apenas para evitar que osreis dos homens sobrepujassem os valar. "Mas grandes reis tomam o que lhes cabe dedireito", dizia ele.

Por fim Ar-Pharazôn deu ouvidos ao seu conselho, pois sentia seus dias seesvairem e estava estupefato pelo medo da Morte. Preparou então o maior armamento queo mundo já vira, e, quando tudo estava pronto, mandou soarem as trombetas e fez-se àvela; e assim quebrou a Interdição dos valar, insurgindo-se em guerra para arrancar a vidaeterna aos senhores do oeste. Mas, quando Ar-Pharâzon colocou os pés nas praias deAman, o Reino Abençoado, os valar rejeitaram a sua função de Guardiões e invocaram oUm, e o mundo mudou. Númenor foi derrubada e engolida pelo Mar; as Terras Imortais11foram removidas para sempre dos círculos do mundo. Assim terminou a glória deNúmenor.

Os últimos líderes dos Fiéis, Elendil e seus filhos, escaparam da Queda com novenavios, levando uma muda de Nimloth, e as Sete Pedras-videntes (dádivas que receberam

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dos eldar)"; foram carregados nas asas de uma grande tempestade e jogados nas praias daTerra-média. Ali estabeleceram no noroeste os reinos númenorianos do exílio, Amor eGondor12. Elendil tornou-se o Alto Rei e morava no norte, em Annúminas; o governo dosul foi entregue a seus filhos, Isildur e Anánon. Ali eles fundaram Osgiliath, entre MinasIthil e Minas Anor13, não muito longe das fronteiras de Mordor. Acreditavam que pelomenos uma coisa boa resultara da ruína, que Sauron também perecera.

Mas não foi assim. Sauron foi realmente apanhado pela destruição de Númenor, eassim a forma corpórea na qual por tanto tempo caminhara pereceu; mas ele fugiu devolta para a Terra-média, um espírito de ódio transportado por um vento escuro. Foiincapaz de assumir outra vez uma forma que fosse agradável aos homens, mas tornou-senegro e hediondo, e seu poder depois disso só se impôs pelo terror. Ele voltou a Mordor ese escondeu lá por um tempo, em silêncio.

Mas sua ira foi grande quando ficou sabendo que Elendil, a quem mais odiava,havia escapado de suas garras, e estava agora organizando um reino nas suas fronteiras.

Portanto, depois de um tempo, ele declarou guerra contra os Exilados, antes queestes criassem raízes. Orodrnin explodiu outra vez em chamas, e em Gondor recebeu umnovo nome, Amon Amarth, Montanha da Perdição. Mas Sauron atacou cedo demais,antes que seu próprio poder fosse reconstruído, enquanto o poder de Gil-galad tinhaaumentado em sua ausência; e, na Ultima Aliança que foi feita contra ele, Sauron foiderrotado e o Um Anel lhe foi tomado14. Assim terminou a Segunda Era.

(ii)

Os Reinos no ExílioA Linhagem do NorteHerdeiros de Isildur

Amor Elendil t3441 SE., Isildur t2, Valandil 24915, Eldacar 339, Arantar 435,Tarcil 515, Tarondor 602, Valandur t652, Elendur 777, Eãrendur 861.

Arthedain. Amlaith de Fornost"6 (filho mais velho de Eãrendur) 946; Beleg 1029,Maílor 1110, Celepharn 1191, Celebrindor 1272, Malvegil 134916, Argeleb 1 t1356,Arveleg 11409, Araphor 1589, Argeleb 111670, Arvegil 1743, Arveleg 111813, Araval1891, Araphant 1964, Arvedui Ultimo Rei t1975. Fim do Reino do Norte.

Lideres. Aranarth (filho mais velho de Arvedui) 2106, Arahael 2177, Aranuir2247, Aravir 2319, Aragorn 1 t2327, Araglas 2455, Arahad 1 2523, Aragost 2588.

Aravorn 2654, Arahad II 2719, Arassuil 2784, Arathorn 1 t2848, Argonui 2912,Arador t2930, Arathorn II t2933, Aragorn 11120 Q.E.

A Linhagem do SulHerdeiros de Anárion

Reis de Gondor Elendil (Isildur e) Anárion 13440 SE., Meneldil, filho de Anárion,158, Cemendur 238, Eàrendil 324, Anardil 411, Ostoher 492, Rómendacil 1 (Tarostar) t541, Turambar 667, Atanatar 1 748, Siriondil 830. Aqui seguiram-se os quatro "Reis-navegantes":

Tarannon Falastur 913. Foi o primeiro rei sem prole, e quem o sucedeu foi o filhode seu irmão, Tarciryan. Eãrnil 17 t936, Ciryandil tlOlS, Hyarmendacil (Ciryaher) 1149.

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Gondor agora atingia o auge de seu poder.

nota15. Ele era o quarto filho de Isildur, nascido em Imíadris. Seus irmãos foram

mortos nos Campos de Lis.16. Após Eãrendur, os reis deixaram de assumir nomes na forma do alto-élfico.17. Após Malvegil, os reis de Fomost mais uma vez reivindicaram o governo de

toda Amor, e assumiram nomes com o prefixo ar(a) em sinal disso.

Atanatar II Alcarin, 16o Glorioso", 1226, Narmacil 11294. Foi o segundo rei semprole e quem o sucedeu foi seu irmão mais novo. Calmacil 1304, Minalcar (regente 1240-1304), coroado como Rómendacil II em 1304, morto em 1366, Valacar.

Em sua época o primeiro desastre de Gondor começou, a Contenda das Famílias.Eldacar, filho de Valacar (primeiramente chamado Vinitharya), deposto em 1437

Castamir, o Usurpador, t 1447. Eldacar, reentronizado, morreu em 1490.Aldamir (segundo filho de Eldacar) t 1540, Hyarmendacil II (Vinyarion) 1621,

Minardil t1634, Telemnar t1636. Telenmar e todos os seus filhos pereceram na peste; foisucedido por seu sobrinho, o filho de Minastan, segundo filho de Minardil. Tarondor1798, Telumebtar Umbardacil 1850, Narmacil II t1856, Calimehtar 1936, Ondober t1944. Ondober e seus dois filhos foram mortos no campo de batalha. Depois de um ano,em 1945, a coroa foi passada ao general vitorioso Eãrnil, descendente de TelumehtarUmbardacil, Eãrnil II 2043, Earnur t2050. Aqui a linhagem dos reis foi interrompida, atéser restaurada por ElessarTelcontar em 3019. O reino passou então a ser governado pelosregentes.

Regentes de Gondor A Casa de Húrin; Pelendur 1998. Governou por um anodepois da queda de Ondoher, e aconselhou Gondor a rejeitar a reivindicação ao trono feitapor Arvedui. Vorondil, o Caçador, 202915. Mardil Voronwé, "o Constante", o primeirodos regentes governantes. Seus sucessores deixaram de usar nomes nas formas do alto-élfico.

Regentes governantes. Mardil 2080, Eradan 2116, Herion 2148, Belegorn 2204,Húrin 1 2244, Túrin 1 2278, Hador 2395, Barahir 2412, Dior 2435, Denethor 1 2477,Boromir 2489, Cirion 2567. Nessa época os rohirrim vieram para Calenardhon.

Halías 2605, Húrin II 2628, Belecthor 1 2655, Orodreth 2685, Ecthelion 1 2698,Egalmoth 2743, Beren 2763, Beregon 2811, Belecthor II 2872, Thorondir 2882, Túrin II2914, Turgon 2953, Echtelion II 2984, Denethor II. Foi o último dos regentesgovernantes, e foi sucedido por seu segundo filho Faramir, senhor de Emyn Arnen,regente do rei Elessar, 82 Q.E.

(iii)

Eriador, Amor e os Herdeiros de Isildur

Eriador era antigamente o nome de todas as terras entre as Montanhas Sombrias eas Montanhas Azuis; ao sul a região fazia divisa com o rio Cinzento e o Glanduin, quedeságua nele acima de Tharbad.

Em seu apogeu, Arnor incluía toda Eriador, com exceção das regiões além de e as

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terras a leste do rio Cinzento e do Ruidoságua, nas quais ficavam Val-fenda e Azevim.

nota18. O gado branco selvagem que ainda se podia encontrar peno do Mar de Rhún,

pelo que contam as lendas, descendia do Gado de Araw, o caçador dos valar, o único dosvalar que frequentemente vinha para a Terra-média nos Dias Antigos. Oromê é o seunome emalto-élfico.

Além de Lún as terras eram élficas, verdes e tranquilas, nunca visitadas porhomem algum; mas os anões moravam, e ainda moram, no lado leste das MontanhasAzuis, especialmente nas regiões ao sul do golfo de Lún, onde eles têm minas aindaprodutivas. Por esse motivo, eles tinham o costume de ir para o leste pela Grande Estrada,como haviam feito por longos anos, antes que chegássemos ao Condado. Nos PortosCinzentos morava Cirdan, o Armador, e alguns dizem que ele ainda mora lá, até que oÚltimo Navio zarpe em direção ao oeste. Nos dias dos reis, a maioria dos altos-elfos queainda permaneciam na Terra-média moravam com Círdan ou nas regiões litorâneas deLindon. Se alguns ainda restam atualmente, eles são poucos." O Reino do Norte e osdúnedain

Após Elendil e Isíldur houve oito altos reis de Arnor. Depois de Eãrendur, devido adissensões entre seus filhos, o reino foi dividido em três: Arthedain, Rhudaur e Cardolan.Arthedain ficava no noroeste e incluída a região entre o Brandevin e Lún, e também asterras ao norte da Grande Estrada, até as Colinas do Vento.

Rhudaur ficava no nordeste, entre a Charneca Etten, as Colinas do Vento e asMontanhas Sombrias, mas incluia também o Ângulo entre o Fontegris e o Ruidoságua.Cardolan ficava no sul, sendo suas fronteiras o Baranduin, o rio Cinzento e a GrandeEstrada.

Em Arthedain a linhagem de Isildur foi mantida e continuada, mas logodesapareceu em Cardolan e Rhudaur. Sempre havia desavenças entre os reinos, o queapressou o decréscimo dos dúnedain. O principal ponto de disputa era a possessão dasColinas do Vento e das terras a oeste, na direção de Bri. Tanto Rbudaur quanto Cardolandesejavam possuir Amon Súl (o Topo do Vento), que ficava nas fronteiras de seus reinos;pois a Torre de Amon Súl possuía o mais importante palantír do norte, e os dois outrosestavam em poder de Artbedain.

"Foi no início do reinado de Malvegil de Arthedain que o mal chegou a Amor. Poisnaquele tempo o reino de Angmar surgiu no norte além da Charneca Etten.

Suas terras compreendiam os dois lados das Montanhas, e ali estavam reunidosmuitos homens maus, e orcs, e outras criaturas cruéis. [O Senhor daquelas terras eraconhecido como o Rei dos Bruxos, mas só depois se soube que na verdade ele era o chefedos Espectros do Anel, que vieram ao norte com o propósito de destruir os dúnedain deAmor, alimentando esperanças em sua desunião, enquanto Gondor era forte.]"

Nos dias de Argeleb, filho de Malvegil, uma vez que não restava nenhumdescendente de Isildur nos outros reinos, os reis de Arthedain mais uma vez reivindicaramo poder sobre toda Amor. Rhudaur opôs-se á reivindicação. Ali os dúnedain eram poucos,e o poder fora tomado por um senhor maligno dos homens das Colinas, que tinha umaaliança secreta com Angmar. Argeleb portanto fortificou as Colinas do Vento (19), masfoi morto em combate contra Rhudaur e Angmar.

Arveleg, filho de Argeleb, com a ajuda de Cardolan e Lindon, expulsou seusinimigos das Colinas, e por muitos anos Arthedain e Cardolan mantiveram sob seucomando uma fronteira ao longo das Colinas do Vento, da Grande Estrada, e do baixo

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Fontegrís. Conta-se que nessa época Valfenda ficou sitiada. Um grande exército chegou de Angmar em 1409, e atravessando o rio entrou em

Cardolan, cercando o Topo do Vento. Os dúnedain foram derrotados e Arveleg foi morto.A Torre de Amon 561 foi incendiada e completamente destruída; mas o palantír foi salvoe levado de volta na retirada para Fornost; Rhudaur foi ocupada por homens maus, súditosde Angmar20, e os dúnedain que permaneceram ali foram mortos ou fugiram para o oeste.Cardolan foi saqueada. Araphor, filho de Arveleg, ainda não se tornara adulto, mas eravalente, e com a ajuda de Cirdan expulsou o inimigo de Fornost e das Colinas do Norte.Alguns dos Fiéis que restaram entre os dúnedain de Cardolan também resistiram em TyrnGorthad (as Colinas dos Túmulos), ou procuraram refúgio na Floresta mais além.

Conta-se que Angmar ficou por um tempo controlada pelo povo élfico vindo deLindon, e também de Valfenda, pois Elrond trouxe ajuda vindo de Lórien pelasMontanhas. Foi no tempo dele que os Grados que moravam no Ângulo (entre o Fontegrise o Ruidoságua) fugiram para o oeste e para o sul, devido às guerras e ao terror deAngmar, e também porque a região e o clima de Eriador, especialmente no leste, piorarame se tornaram hostis. Alguns retornaram para as Terras Ermas, e passaram a morar nosCampos de Lis, transformando-se num povo ribeirinho de pescadores.

Nos dias de Argeleb II a peste chegou a Eriador pelo sudeste, e a maioria do povode Cardolan pereceu, especialmente em Minhiriath. Os hobbits e a maioria dos outrospovos sofreram muito, mas a peste abrandou à medida que foi se alastrando para o norte,e as partes setentrionais de Arthedain foram pouco afetadas. Foi nessa época que osdúnedain de Cardolan se extinguiram, e espíritos malignos de Angmar e Rhudaurinvadiram os túmulos abandonados para ali morar.

"Conta-se que os túmulos de Tyrn Gorthad, como eram antigamente chamadas asColinas dos Túmulos, são muito antigos e muitos foram construídos nos dias do mundoantigo da Primeira Era pelos antepassados dos edain, antes que atravessassem asMontanhas Azuis chegando à região de Beleriand, da qual apenas sobrevive Lindonatualmente. Portanto essas colinas foram reverenciadas pelos dúnedain após seu retorno, eali muitos de seus senhores e reis foram enterrados.

[Dizem alguns que o túmulo no qual o Portador do Anel foi aprisionado fora otúmulo do último principe de Cardolan, que pereceu na guerra de 1409.]"

"Em 1974, o poder de Angmar cresceu de novo, e o Rei dos Bruxos desceu atéArthedain antes do final do inverno. Ele dominou Fornost, e expulsou a maioria dosdunedain restantes sobre o Lún; entre estes estavam os filhos do rei.

Mas o rei Arvediii resistiu nas Colinas do Norte o máximo possível, e depois fugiupara o norte com alguns membros de sua guarda; escaparam devido á rapidez de seuscavalos.

"Por um tempo Arvedui se escondeu nos túneis das antigas minas dos anões,próximas ao extremo oposto das Montanhas, mas por fim foi levado pela fome a procuraro auxílio dos lossoth, os Homens das Neves de Forochel21. Alguns destes ele encontrouacampados na praia; mas eles não se dispuseram a ajudar o rei, pois ele não tinha nadapara lhes oferecer, exceto algumas jóias às quais os Homens das Neves não davam valor;e os lossoth tinham medo do Rei dos Bruxos, que (segundo eles) podia produzir gelo oudesmanchá-lo conforme bem quisesse. Mas em parte por pena do rei esquálido, e em partepor temerem suas armas, ofereceram-lhe um pouco de comida, e construiram-lhe abrigosde neve. Ali Arvedui foi forçado a aguardar, na esperança de alguma ajuda que viesse dosul, pois seus cavalos tinham perecido.

"Quando Círdan ficou sabendo por intermédio de Aranarth, filho de Arvedui, sobre

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a fuga do rei para o norte, imediatamente zarpou para Forochel em sua procura.O navio por fim chegou lá após muitos dias, devido a ventos contrários, e os

marinheiros viram de longe a pequena fogueira que os homens perdidos conseguiammanter acesa, alimentando-a com lenha trazida pela maré. Mas o inverno demorou parasoltar suas garras naquele ano, e, embora a época fosse março, o gelo estava apenascomeçando a se quebrar, e se estendia mar adentro.

"Quando os Homens das Neves viram o navio, ficaram assustados e receosos, poisnunca tinham visto uma embarcação daquelas antes; mas agora tinham ficado maisamigáveis, e levaram o rei e aqueles de sua comitiva que haviam sobrevivido através dogelo em suas carroças deslizantes, até onde foi possível arriscar. Dessa forma um barcodo navio pôde alcançá-los.

"Mas os Homens das Neves estavam inquietos, pois diziam que farejavam perigono vento. E o chefe dos lossoth disse a Arvedui: - Não monte no monstro do mar!

Se as tiverem, os homens do mar poderão nos trazer comida e outras coisas de quenecessitamos, e vocês podem permanecer aqui até que o Rei dos Bruxos vá para casa.

Pois no verão o poder dele míngua, mas agora seu hálito é mortal, e seu braço frioé comprido.

"Mas Arvedui não seguiu o conselho. Agradeceu ao chefe dos lossoth e nadespedida deu-lhe seu anel, dizendo: - Este é um objeto que vale muito mais do que vocêpossa imaginar. Simplesmente por ser antigo. Não tem poder algum, exceto a estima quelhe dedicam os membros de minha casa. Não vai ajudá-lo em nada, mas, se seu povo tiverqualquer necessidade, meus parentes podem resgatá-lo em troca de um grande estoque detudo o que vocês desejarem22.

"Apesar disso, por acaso ou devido a algum poder de previsão, o conselho doslossoth tinha valor; pois o navio ainda não tinha alcançado o alto-mar quando uma grandetempestade de vento se ergueu, e chegou do norte com uma nevasca que não permitiaenxergar nada; o navio foi arrastado de volta na direção do gelo, que se empilhou atecobri-lo por completo. Até os marinheiros de Cirdan ficaram sem ação, e durante a noite ogelo rompeu o casco, e o navio afundou.

nota21. Este é um povo estranho e hostil, remanescente dos forodwaith, homens de

tempos muito distantes, acostumados ao frio rigoroso do reino de Morgoth. De fato, esse clima persiste ainda na região, embora se situe a pouco mais de cem

léguas ao norte do Condado. Os lossoth constroem suas casas na neve, e conta-se que elespodem correr no gelo com os pés apoiados em ossos, e têm carroças sem rodas. Em suamaioria vivem, inacessíveis aos seus inimigos, no grande Cabo de Forochel, que isola anoroeste a imensa baia que leva o mesmo nome; mas eles frequentemente acampam naspraias do sul da baia, aos pés das Montanhas.

22. Dessa forma foi salvo o anel da Casa de Isíldur, já que depois ele foi resgatadopelos dúnedain. Conta-se que era nada menos que o anel que Felagungo de Nargothronddeu a Barabir, e que Beren recuperou correndo grandes riscos.

Assim pereceu Arvedui Último Rei, e com ele os palantíri foram sepultados nomar23. Passou muito tempo antes que os Homens das Neves tivessem noticias donaufrágio de Forochel."

O povo do Condado sobreviveu, embora tenha sofrido as consequências da guerra,tendo a maioria da população fugido para se esconder. Enviaram em auxílio do rei alguns

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arqueiros que nunca retornaram; outros também foram para a batalha na qual o reino deAngmar foi derrotado (sobre a qual encontram-se mais detalhes nos anais do sul).Posteriormente, com a paz que sobreveio, o povo do Condado governou a si mesmo eprosperou. Escolheram um Thain para ocupar o lugar do rei, e ficaram satisfeitos; apesardisso, durante muito tempo muitos ainda esperavam o retorno do rei. Mas por fim essaesperança foi esquecida, permanecendo apenas na frase Quando retornar o rei, usada nosentido de algo bom que não se podia alcançar, ou de algum mal que não se pudessecorrigir. O primeiro Thain do Condado foi um tal de Bucca do Pântano, de quem osVelhobuques afirmavam descender.

Tornou-se Thain em 379 de nosso registro (1979).

Após Arvedui o Reino do Norte terminou, pois os dúnedain agora eram poucos etodos os povos de Eriador diminuíram. Apesar disso, a linhagem dos reis foi continuadapelos líderes dos dúnedain, dos quais Aranarth, filho de Arvedui, foi o primeiro. Arahael,seu filho, foi criado em Valfenda, assim como todos os filhos de líderes depois dele; alitambém foram guardadas as heranças de sua casa: o anel de Barahir, os fragmentos deNarsil, a estrela de Elendil e o cetro de Annúminas24.

nota

23. Estas eram as Pedras de Annúminas e Amon Súl. A única pedra que restou nonorte era a que estava na Torre sobre Emyn Beraid, que dá para o Golfo de Lún.

Ela foi guardada pelos elfos, e, embora nunca tenhamos sabido, permaneceu lá, atéque Cirdan a colocou a bordo do navio de Elrond quando ele partiu. Mas conta-se que eradiferente das outras e não estava em acordo com elas; a pedra só olhava para o mar.Elendil a colocou lá para que pudesse olhar para trás com uma "visão direta", e verEresséa no oeste desaparecido; mas os mares encurvados lá embaixo cobriam Númenorpara sempre.

24. Conta-nos o Rei que o cetro era o piincipal símbolo de realeza em Númenor; omesmo acontecia em Amor, cujos reis não usavam coroa, mas traziam na testa uma únicapedra, chamada Elendilnijr, Estrela de Elendil, presa por um filete de prata. Falando emuma coroa , Bilbo sem dúvida estava se referindo a Gondor; ao que parece, ele se inteiroudos assuntos concernentes á linhagem de Aragorn. Comenta-se que o cetro de Númenordesapareceu com Ar-Pharazôn. O de Annúminas era o bastão de prata dos Senhores deAndúnié, e talvez seja atualmente o mais antigo trabalho feito por homens Preservado naTerra-média. Já tinha mais de cinco mil anos quando Elrond o entregou a Aragom. Acoroa de Gondor derivou do formato de um capacete de guerra númenoriano. De fato, noinicio era apenas um elmo sem adornos; e comenta-se que foi o elmo usado por Isildur naBatalha de Dagorlad (pois o elmo de Anárion foi esmagado pela pedra desferida porBarad-dûr que o matou). Mas nos dias de Atanatar Alcarin esse elmo foi substituído porum outro adornado de jóias, que foi usado na coroação de Aragom.

Quando o reino terminou, os dúnedain entraram nas sombras e transformaram-senum povo incógnito e errante, e seus feitos e trabalhos raramente eram cantados ouregistrados. Atualmente pouco se lembra deles, desde que Elrond partiu. Embora seresmalignos tenham começado a atacar ou invadir secretamente Eriador, antes mesmo que aPaz Vigilante terminasse, a maioria dos líderes viveu uma longa vida até atingir a velhice.Conta-se que Aragorn 1 foi morto por lobos, que depois disso continuaram a ser umperigo em Eriador, e ainda não desapareceram por completo. Nos dias de Arahad 1, os

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orcs, que, como se soube depois, havia muito tempo vinham ocupando em segredofortalezas nas Montanhas Sombrias, a fim de bloquear todas as passagens que davamacesso a Eriador, de repente se revelaram.

Em 2509 Celebrían, esposa de Elrond, estava viajando para Lórien quando foicapturada no Passo do Chifre Vermelho; sua comitiva se dispersou devido ao súbitoataque dos orcs e ela foi presa e sequestrada. Elladan e Elrohir a seguiram e resgataram,porém só depois que ela fora atormentada e recebera um ferimento envenenado25.Celebrían foi trazida de volta a Imíadris, e, embora Elrond tivesse curado seu corpo, elaperdeu todo o prazer de estar na Terra-média, e no ano seguinte dirigiu-se aos Portos eatravessou o Mar. Mais tarde, nos dias de Arassuíl, os orcs, mais uma vez multiplicando-se nas Montanhas Sombrias, começaram a devastar as terras, e os dúnedain e os filhos deElrond lutaram contra eles. Foi nessa época que um grande bando chegou ao oeste einvadiu o Condado, e foi rechaçado por Bandobras Túk.26

Houve quinze líderes antes do nascimento do décimo sexto e último deles. AragornII, que voltou a ser rei de Gondor e Amor. "Nós o chamamos de Nosso Rei, e quando elevem para o norte para visitar sua casa restaurada em Annúminas, e permanece um tempona região do lago Vesperturvo, todos no Condado ficam felizes.

Mas ele não entra nesta terra, e segue as próprias leis que criou, segundo as quaisninguém das Pessoas Grandes deve atravessar as fronteiras. Mas ele frequentementecavalga com muita gente bonita até a Grande Ponte, e ali recebe os amigos e qualqueroutra pessoa que deseje vê-lo; alguns o acompanham e hospedam-se em sua casa porquanto tempo quiserem. O Thain Peregrin já esteve lá muitas vezes, e também MestreSamwise, o Prefeito. Sua filha, Elanor, a Bela, é uma da aias da Rainha EstrelaVespertina."

Era motivo de orgulho e admiração da Linhagem do Norte o fato de que, emboraseu poder tivesse desaparecido e seu povo diminuído, através das muitas gerações asucessão de pai para filho não fora interrompida. Além disso, embora a longevidade dosdúnedain estivesse sempre diminuindo na Terra-média, depois do desaparecimento deseus reis o decréscimo foi mais acelerado em Gondor, e muitos dos líderes do norte aindaatingiam o dobro da idade dos homens, e ultrapassavam em muitos anos mesmo os maisvelhos dentre nós. De fato, Aragorn viveu até os cento e noventa anos, mais que qualqueroutro de sua linhagem desde o rei Arvegíl; mas em Aragorn Elessar a dignidade dos reisde antigamente foi reconquistada.

Gondor e os Herdeiros de Anárion

Houve trinta e um reis em Gondor depois de Anárion, que foi morto diante de Bat-ad-dUr. Embora a guerra nunca cessasse em suas fronteiras, durante mais de mil anos osdúnedain do sul cresceram em riqueza e poder, em terra e mar, até o reinado de AtanatarII, que era chamado de Alcarin, o Glorioso.

Apesar disso, os sinais da decadência já tinham começado a aparecer; os homensnobres do sul casavam-se tarde, e tinham poucos filhos. O primeiro rei sem prole foiFalastur, e o segundo Narmacil 1, o filho de Atanatar Alcarin.

Foi Ostoher, o sétimo rei, quem reconstruiu Minas Anor, onde posteriormente osreis passaram a morar no verão, preferindo aquele local a Osgíiiath. Em sua época,Gondor foi pela primeira vez atacada pelos homens bárbaros vindos do leste. MasTarostar, seu filho, derrotou-os e os expulsou, assumindo o nome de Rómendacil:

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"Vencedor do Leste". Entretanto, ele foi morto depois numa batalha travada contra novashordas de orientaís. Turambar, seu filho, vingou-o, e conquistou um grande território naregião leste.

Com Tarannon, o décimo segundo rei, começou a linhagem dos Reis-navegantes,que construíram esquadras e estenderam o poder de Gondor ao longo da costa a oeste e aosul da Foz do Anduin. Para comemorar suas vitórias como Capitão dos Exércitos,Tarannon assumiu a coroa com o nome de Falastur, "Senhor das Costas".

Eãrnil 1, seu sobrinho, que o sucedeu, reformou o antigo porto de Pelargír econstruiu uma grande esquadra. Sitiou Umbar por terra e mar, conquistando etransformando o lugar num grande porto e numa fortaleza do poder de Gondor27. MasEãrnil não sobreviveu muito tempo ao próprio triunfo.

Perdeu-se, juntamente com muitos navios e homens, numa grande tempestade nacosta de Umbar.

Círyandil, seu filho, continuou com a construção de navios, mas os homens deHarad, chefiados pelos senhores que haviam sido expulsos de Umbar, insurgíram-se commuita força contra aquela fortaleza, e Ciryandil caiu na batalha em Haradwaith.

Por muitos anos Umbar foi atacada, mas não podia ser tomada devido ao podermarítimo de Gondor. Ciryaher, filho de Ciryandíi, esperou a hora certa, e por fim, quandotinha reunido forças, desceu do norte por mar e por terra e, atravessando o rio Harnen,seus exércitos derrotaram completamente os homens de Harad, e seus reis foramobrigados a reconhecer a soberania de Gondor (1050).

Ciryaher assumiu então o nome de Hyarmendacil, "Vencedor do Sul". Nenhum inimigo ousou contestar o poder de Hyarmendacíl durante o resto de seu

longo reinado. Ele foi rei por cento e trinta e quatro anos, sendo o seu o segundo reinadomais longo de toda a Linhagem de Anárion.

nota27. Tanto o grande cabo como o porto de Umbar, todo bloqueado por terras, foram

propriedade númenoriana desde os Dias Antigos, mas tratava-se de uma fortaleza doshomens do Rei, que posteriormente foram chamados de númenorianos negros,corrompidos por Sauron, e que Odiavam acima de tudo os seguidores de Elendil. Depoisda queda de Sauron, sua raça minguou depressa, ou misturou-se com a dos homens daTerra-média, mas eles herdaram com a mesma intensidade o ódio por Gondor. Umbar,portanto, só foi tomada a um alto custo.

Em sua época Gondor atingiu o apogeu de seu poder. O reino se estendeu ao norteaté Celehrant e as fronteiras sudoeste da Floresta das Trevas; a oeste até o rio Cinzento; aleste abarcou o Mar Interno de Rhún; ao sul chegou até o rio Harnen, e dali prolongou-sepela costa até a peninsula e o porto de Umbar. Os homens dos Vales do Anduínreconheceram sua autoridade, e os reis de Harad prestaram honras a Gondor, e seus filhosviveram como reféns na corte do Rei. Mordor estava em abandono, mas era vigiada pelagrande fortaleza que guardava as entradas.

Assim terminou a linhagem dos Reis-navegantes. Atanatar Aicarin, filho deHyarmendacíl, viveu com grande esplendor, tanto que os homens diziam que em Gondorpedras preciosas são pedregulhos para as crianças brincarem. Mas Atanatar gostava devida mansa e não fez nada para manter o poder que herdara, e seus dois filhos tinhamtemperamento semelhante. O declínio de Gondor já havia começado antes de sua morte, e

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sem dúvida era observado pelos inimigos. A vigilância sobre Mordor foi negligenciada.Não obstante, foi só nos dias de Valacar que o primeiro grande mal se abateu sobreGondor: a guerra civil da Contenda das Famílias, na qual houve grande perda edestruição, que nunca foram totalmente reparadas.

Minalcar, filho de Caimacil, era um homem muito vigoroso, e em 1240 Narmacil,para se livrar de todas as suas preocupações, nomeou-o Regente. Depois disso elegovernou Gondor em nome dos reis até suceder o pai. Sua maior preocupaçao eram oshomens do norte.

Estes últimos tinham crescido muito durante a paz trazida pelo poder de Gondor.Os reis se mostravam favoráveis a eles, já que eram entre os homens inferiores osparentes mais próximos dos dúnedain (descendendo, em sua maioria, daqueles povos queoriginaram os antigos edain); a eles foram concedidas grandes extensões de terra além doAnduín, ao sul da Grande Floresta Verde, para que se constituíssem numa defesa contraos homens do leste. Isso deveu-se ao fato de que, no passado os ataques dos orientaistinham vindo principalmente através da planície que fica entre o Mar Interno e asMontanhas de Cinza.

Nos dias de Narmacil 1, os ataques começaram de novo, embora a princípio compouca força; mas o regente ficou sabendo que os homens do norte nem semprepermaneciam fiéis a Gondor, e alguns poderiam juntar forças com os orientaís, levadospela ganância por espólios ou pelo desejo de alimentar rixas entre seus príncipes.Mínalcar, portanto, liderou em 1248 um grande exército, e entre Rhovanion e o MarInterno derrotou uma grande força dos orientais e destruiu todos os seus acampamentos epovoados a leste do Mar. Assumiu então o nome de Rómendacil.

Ao retornar, Rómendacil fortificou a margem oeste do Anduín até a foz doLímciaro, proibindo qualquer forasteiro de descer o rio além das Emyn Muíl. Foi elequem construiu os pilares dos Argonath e a entrada para Nen Hithoei.

Mas, já que precisava de homens e queria fortalecer os laços entre Gondor e oshomens do norte, tomou a seu serviço muitos destes, dando a alguns altos postos em seusexércitos.

Rómendacíl mostrava uma preferência por Vidugavia, que o ajudara durante aguerra. Ele se autodenomínava Rei de Rhovanion, e de fato era o mais poderoso dospríncipes do norte, embora seu reino ficasse entre a Floresta Verde e o rio Celduin (28).Em 1250, Rómendacil mandou seu filho Valacar como embaixador para morar um tempocom Vidugavia e se familiarizar com a língua, os costumes e as politicas dos homens donorte. Mas Valacar excedeu em muito os desígnios de seu pai. Tornou-se um apaixonadopelas terras e pelo povo do norte, e casou-se com Vidumavi, filha de Vidugavia. Demoroualguns anos para retornar. Desse casamento originou-se depois a guerra da Contenda dasFamílias.

"Pois os nobres de Gondor não viam com bons olhos a presença dos homens donorte entre eles; nunca se ouvira falar antes de um herdeiro da coroa, ou qualquer filho dorei, que se tivesse casado com alguém de uma raça inferior e estranha. Já havia rebeliãonas províncias do sul quando o rei Valacar ficou velho. Sua rainha fora uma senhora belae nobre, mas de vida curta, conforme era o destino dos homens inferiores, e os dúnedaintemiam que com os seus descendentes acontecesse o mesmo e que eles perdessem amajestade dos reis dos homens. Além disso, não estavam dispostos a aceitar como seusenhor o filho dela que, apesar de agora se chamar Eldacar, nascera em terras estrangeirase em sua infância se chamara Vinitharya, um nome do povo de sua mãe.

"Portanto, quando Eldacar sucedeu o pai, houve guerra em Gondor. Mas não foi fácil afastar Eldacar de sua herança. A linhagem de Gondor ele

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acrescentara o espírito destemido dos homens do norte. Era belo e corajoso, e nãomostrava sinais de envelhecer mais depressa que seu pai. Quando os aliados, chefiadospelos descendentes dos reis, insurgiram-se contra ele, opôs-se a eles até o esgotamento desuas forças. Por fim foi cercado em Osgiliath, mas resistiu por muito tempo, até que afome e os exércitos mais numerosos dos rebeldes o expulsaram, deixando a cidade emchamas. Naquele cerco e naquele incêndio, a Torre da Cúpula de Osgiliath foi destruida, eo palatír se perdeu nas águas.

"Mas Eldacar enganou seus inimigos; veio para o norte, juntando-se aos seusparentes em Rhovaníon. Muitos ali se juntaram a ele, tanto dentre os homens do norte aserviço de Gondor quanto dentre os dúnedain das regiões setentrionais do reino. Muitosdos dúnedaín tinham aprendido a estimá-lo, e muitos outros vieram a odiar o usurpador.Este era Castamir, neto de Calimehtar, irmão mais novo de Rómendacíl II. Além de serum dos parentes mais próximos da coroa, ele era entre os rebeldes o que tinha o maiornúmero de seguidores, pois era o Capitão dos Navios, sendo apoiado pelo povo do litorale dos grandes portos de Pelargir e Umbar.

"Não fazia muito tempo que Castamír fora entronizado, e já se mostrava arrogantee mesquinho. Era um homem cruel, como já demonstrara na tomada de Osgiliath.

Fez com que Ornendil, filho de Eldacar, que foi capturado, fosse morto; e amatança e a destruição perpetradas na cidade sob suas ordens em muito excederam asnecessidades da guerra. Isso foi lembrado em Minas Anor e em Ithílien, onde a estima porCastamir diminuiu ainda mais quando ficou visível que ele pouco se importava com aterra, pensando apenas nas esquadras, e quando propós que o trono do rei fosse levadopara Pelargir.

"Dessa forma, seu reinado contava com apenas dez anos quando Eldacar,agarrando a sua oportunidade, saiu do norte com um grande exército, e muitos outroshomens de Calenardhon, Anórien e Ithilien juntaram-se a ele. Houve uma grande batalhaem Lebennin e nas Travessias do Erui, na qual grande parte do melhor sangue de Gondorfoi derramado.

nota28. Rio Corrente.

O próprio Eldacar matou Castamir em combate vingando assim a morte deOrnendil; mas os filhos de Castamir escaparam, e com outros de sua família e muita gentedas esquadras resistiram por muito tempo em Pelargir.

"Quando tinham reunido ali toda a força que conseguiram (pois Eldacar não tinhafrota para atacá-los pelo mar), eles partiram em seus navios, e se estabeleceram emUmbar. Ali criaram um refúgio para todos os inimigos do rei, e um governo independenteda coroa. Umbar permaneceu em guerra contra Gondor durante muitas vidas de homens,sendo uma ameaça para a sua região litorânea e para todo o tráfego marítimo. Nunca maisfoi completamente dominada até os dias de Elessar; e a região de Gondor do Sul tornou-se objeto de disputa entre os Corsários e os Reis."

"Gondor lamentou a perda de Umbar, não apenas porque o reino ficou menor nosul e seu controle sobre os homens de Harad enfraqueceu, mas também porque ali Ar-Pharazôn, o Dourado, último rei de Númenor, desembarcara e humilhara o poder deSauron. Embora grandes males tivessem acontecido posteriormente, mesmo os seguidoresde Elendil lembravam com orgulho a chegada do grande exército de Ar-Pharazôn, saindodas profundezas do Mar; e no ponto mais alto do promontório que ficava acima do Portoeles tinham erguido um grande pilar branco à guisa de monumento.

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Em seu topo havia um globo de cristal que captava os raios do Sol e da Lua ebrilhava como uma estrela luminosa que se podia avistar, quando o tempo estava bom,mesmo da costa de Gondor ou do mar ocidental, a grande distância. O monumentopermaneceu ali até que, depois da segunda ascensão de Sauron, que agora se aproximava,Umbar caiu sob a dominação de seus servidores. e o memorial da humilhação que elesofrera foi derrubado."

Depois do retorno de Eldacar, o sangue da casa real e de outras casas dos dúnedainmisturou-se mais ao sangue dos homens inferiores.

Muitos foram mortos na Contenda das Famílias, e Eldacar via com bons olhos oshomens do norte, que o ajudaram a recuperar a coroa; por esses motivos, ao povo deGondor juntou-se um grande número de gente vinda de Rhovanion.

No princípio, essa miscigenação não apressou o declínio dos dúnedain como setemera; mas mesmo assim o declínio continuou, pouco a pouco, como já acontecia antes.Pois sem dúvida sua razão era acima de tudo a própria Terra-média, além da lenta retiradadas dádivas dos númenorianos após a queda da Terra da Estrela. Eldacar viveu até osduzentos e trinta e cinco anos, e foi rei por cinquenta e oito, dos quais dez foram passadosno exílio.

O segundo e maior mal abateu-se sobre Gondor no reinado de Telemnar, ovigésimo sexto rei, cujo pai, Minardil, filho de Eldacar, fora morto em Pelargir pelosCorsários de Umbar (estes foram comandados por Angamaitê e Sangabyando, os bisnetosde Castamir). Logo depois uma peste mortal chegou trazida por ventos escuros do leste. Orei e todos os seus filhos morreram, assim como muita gente do povo de Gondor,especialmente os moradores de Osgiliath. Então, devido ao cansaço e à escassez dehomens, a vigilância sobre as fronteiras de Mordor cessou, e as rortalezas que guardavamas entradas ficaram desguarnecidas.

Mais tarde percebeu-se que essas coisas aconteceram ao mesmo tempo em que aSombra se adensava na Floresta Verde, e muitos seres malignos reapareceram, sinais daascensão de Sauron. É bem verdade que os inimigos de Gondor também sofreram, casocontrário poderiam tê-la derrotado em sua fraqueza; mas Sauron podia esperar, e podemuito bem ser que a abertura de Mordor fosse o que ele mais queria.

Quando o rei Telemnar morreu, as Arvores Brancas de Minas Anor tambémmurcharam e morreram. Mas Tarondor, seu sobrinho e sucessor, replantou uma muda nana Cidadela. Foi ele também quem transferiu a casa real definitivamente para Minas Mor,pois Osgiliath estava agora parcialmente abandonada, e começava a cair em ruínas.

Poucos dos que haviam fugido da peste para Ithilien ou para os vales do lesteestavam dispostos a retornar.

Tarondor, assumindo o trono em sua juventude, teve o reinado mais longo de todosos reis de Gondor, mas pouco pode realizar além do reordenamento interno de seu reino eda lenta formação de suas forças. Mas Telumehtar, seu filho, lembrando-se da morte deMinardil, e sentindo-se incomodado pela insolência dos Corsários, que atacavam suaregião costeira chegando até Anfalas, reuniu suas forças e em 1810 tomou Umbar deassalto. Nessa guerra os últimos descendentes de Castamir pereceram, e Umbar ficououtra vez sob o controle dos reis por um tempo. Telumehtar acrescentou ao seu nome otitulo de Umbardacil. Mas, com os novos males que logo se abateram sobre Gondor,Umbar foi novamente perdida, caindo nas mãos dos homens de Harad.

O terceiro mal foi a invasão dos Carroceiros, que consumiram as forças jáminguadas de Gondor em guerras que duraram quase cem anos. Os Carroceiros eram umpovo, ou uma confederação de muitos povos, que vinha do leste; eram mais fortes eestavam mais bem armados do que qualquer outro exército que aparecera antes.

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Viajavam em grandes carroças, e seus lideres lutavam em carruagens. Incitados pelos emissários de Sauron, como se percebeu depois, eles atacaram

Gondor de súbito, corei Narmacil II foi morto num combate contra eles além do Anduin,em 1856. O povo de Rhovanion do leste e do sul foi escravizado, e as fronteiras deGondor foram naquela época recuadas para o Anduin e as Emyn Muil (considera-se quenessa época os Espectros do Anel reentraram em Mordor).

Calimebtar, filho de Narmacil II, ajudado por uma revolta em Rhovanion, vingouseu pai com uma grande vitória sobre os orientais em Dagorlad em 1899, e por um tempoo perigo ficou afastado. Foi durante o reinado de Araphant, no norte, e de Ondoher, filhode Calimehtar, no sul, que os dois reinos passaram a fazer planos juntos, após um longoperíodo de estranhamento e silêncio. Perceberam finalmente que um único poder e umaúnica vontade estavam, de vários pontos diferentes, dirigindo os ataques contra ossobreviventes de Númenor. Foi nessa época que Arvediii, herdeiro de Araphant, casou-secom Fíriel, filha de Ondoher (1940). Mas nenhum dos reinos conseguiu enviar auxílio aooutro, pois Angmar renovara seu ataque contra Arthedain ao mesmo tempo em que osCarroceiros reapareceram com grandes exércitos.

Muitos dos Carroceiros agora tinham penetrado no sul de Mordor e feito aliançacom homens de Khand e Harad Próximo; e, nesse grande ataque do norte e do sul,Gondor quase chegou à ruína. Em 1944, o rei Ondober e seus dois filhos, Artamir eFaramir, caíram em batalha ao norte do Morannon, e o inimigo invadiu Itillien. MasEãmil, Capitão do Exército do Sul, obteve uma grande vitória em Ithílien do Sul edestruiu o exército de Harad que tinha cruzado o rio Poros.

Avançando rapidamente para o norte, ele arrebanhou todo o restante do Exércitodo Norte, que batia em retirada, e atacou o principal acampamento dos Carroceiros,enquanto estes se divertiam num banquete, na crença de que Gondor fora derrotada e deque nada restava para saquear. Eãrnil tomou de assalto o acampamento e ateou fogo àscarroças, expulsando o inimigo de Ithilien em meio a um grande tumulto. Boa partedaqueles que fugiram de sua perseguição pereceram nos Pântanos Mortos.

"Por ocasião da morte de Ondober e seus filhos, Arvedui, do Reino do Norte,reivindicou a coroa de Gondor, como descendente direto de Isildur, e como marido deFíriel, a única filha sobrevivente de Ondoher. A reivindicação foi rejeitada. Nisto,Pelendur, o regente do rei Ondoher, desempenhou o principal papel.

"O Conselho de Gondor respondeu: - A coroa e a realeza de Gondor pertencemunicamente aos herdeiros de Meneldil, filho de Anárion, a quem Isildur entregou estereino. Em Gondor essa herança só é considerada através de filhos homens, e não ouvimosfalar que a lei em Amor seja diferente.

"A isso Arvedui respondeu: - Elendil teve dois filhos, dos quais Isildur era o maisvelho e herdeiro. Sabemos que o nome de Elendil está até hoje no topo da linhagem dosreis de Gondor, já que ele foi reconhecido como alto rei de todas as terras dos dúnedain.Enquanto Elendil ainda vivia, o governo conjunto do sul ficou a cargo de seus filhos;mas, quando ele morreu, Isildur partiu para tomar posse do alto trono de seu pai, deixandoo governo do sul, de forma semelhante, para o filho de seu irmão. Ele não abdicou dotrono em Gondor, nem pretendia que o reino de Elendil ficasse dividido para sempre.

Além disso, na antiga Númenor, o cetro era passado ao descendente mais velho dorei, fosse homem ou mulher. É verdade que a lei não foi observada nas terras do exílio,sempre atribuladas pelas guerras; mas esta era a lei de nosso povo, à qual nos referimosagora, tendo em vista que os filhos de Ondoher morreram sem deixar prole29.

"A isso Gondor não respondeu. A coroa foi reivindicada por Eãrnil, o capitãovitorioso, e a ele foi concedida com a aprovação de todos os dúnedain de Gondor, uma

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vez que ele fazia parte da casa real. Era filbo de Siriondil, filho de Calimmacil, filho deArciryas, irmão de Narmacil II. Arvedui não insistiu em sua reivindicação, pois não tinhanem poder e nem vontade de se opor á escolha dos dúnedain de Gondor; apesar disso, areivindicação nunca foi esquecida por seus descendentes, mesmo quando seu reino játinha desaparecido. Pois aproximava-se então a hora em que o reino do Norte chegaria aofim.

nota29. Essa lei foi feita em Númenor (como nos contou o Rei) quando Tar-Aldarion, o

sexto rei, deixou apenas um descendente, uma filha. Ela se tornou a primeira rainhagovernante, TarAncalimé. Mas a lei era diferente antes de sua época. Tar-Elendil, oquarto rei, foi sucedido por seu filho Tar-Meneldur, embora sua filha Silmarien fosse amais velha. Entretanto, foi de Silmarien que Elendil descendeu.

"Arvedui foi de fato o último rei, como diz seu próprio nome.Conta-se que esse nome foi-lhe dado assim que nasceu por Malbeíh, o Vidente,

que disse ao seu pai: - Deve chamá-lo de Arvedui, pois ele será o último em Arthedain.Contudo, uma escolha deverá ser feita pelos dúnedain, e, se eles optarem pelo que parecemenos promissor, então seu filho mudará de nome e tornar-se-á rei de um grande reino.Caso contrario, muita tristeza e muitas vidas de homens se passarão até que os dúnedainse levantem e se unam outra vez.

"Em Gondor também apenas um rei sucedeu a Eãrnil. Pode ser que, se a coroa eocetro se tivessem unido, a soberania fosse mantida e muito mal teria sido evitado.

Mas Eãrnií era um homem sábio, e não era arrogante, mesmo que, na opinião doshomens de Gondor, o reino de Arthedain parecesse uma coisa insignificante, apesar detoda a nobreza da linhagem de seus senhores.

"Ele enviou mensagens para Arvedui anunciando que recebia a coroa de Gondor,de acordo com as leis e as necessidades do Reino do Sul, "mas não me esqueço dalealdade de Amor, nem nego nosso parentesco, e também não desejo que os reinos deElendil fiquem distantes. Enviar-lhe-ei ajuda quando for necessário, dentro de minhaspossibilidades".

"Entretanto, passou-se muito tempo até que Eärnil se sentisse suficientementeseguro para realizar o que prometera. O rei Araphant continuava a se defender dosataques de Angmar com forças cada vez mais reduzidas e Arvedui, quando o sucedeu,continuou procedendo do mesmo modo; mas finalmente, no outono de 1973, chegarammensagens a Gondor dizendo que Arthedain estava em grandes dificuldades, e que o Reidos Bruxos estava preparando um último golpe contra aquele reino. Então Eãrnil enviouseu filho Eãrnur para o norte com uma esquadra, o mais rápido possível, e com a maiorforça de que pôde dispor. Tarde demais. Antes que Eãrnur chegasse aos portos de Lindon,o Rei dos Bruxos tinha conquistado Arthedain e Arvedui tinha perecido.

"Mas quando Eãrnur chegou aos Portos Cinzentos houve grande alegria e surpresatanto entre os elfos como entre os homens. Seus navios eram tão numerosos e de tãogrande calado que foi dificil encontrar onde pudessem atracar, embora tanto o Harlondquanto o Forlond também estivessem totalmente ocupados; dos navios desembarcou umexército poderoso, com munição e provisões para uma guerra de grandes reis. Pelo menosassim pareceu ao povo do norte, embora essa fosse apenas uma pequena fração do poderde Gondor. Acima de tudo, os cavalos foram elogiados, pois muitos deles vinham dosVales do Anduin, montados por cavaleiros altos e belos, e altivos príncipes de Rhovanion.

"Então Cirdan convocou todos os que estavam dispostos a segui-lo, de Lindon Ou

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de Amor, e quando tudo estava pronto o exército atravessou Lún e marchou em direção aonorte, para desafiar o Rei dos Bruxos de Angmar. Diz-se que na época este morava emFornost, lugar que enchera de gente maligna, usurpando a casa e o governo dos reis. Emseu orgulho, ele não aguardou o ataque dos inimigos em sua fortaleza, mas saiu aoencontro deles, com a intenção de varrê-los, como já fizera com outros, para dentro dogolfo de Lún.

"Mas o Exército do Oeste atacou-o saindo das Colinas do Vesperturvo, e houveuma grande batalha na planície que fica entre Nenuial e as Colinas do None As forças deAngmarjá estavam cedendo e se retirando na direção de Foruost quando o principal grupodos cavaleiros que contornara as colinas desceu do norte, dispersando-as em meio a umgrande tumulto. Então o Rei dos Bruxos, com tudo o que conseguiu reunir de sua ruína,fugiu para o norte, em busca de Angmar, sua própria terra. Antes que pudesse alcançar oabrigo de Carn Dúm, foi alcançado pela cavalaria de Gondor, liderada por Eãrnur. Aomesmo tempo, uma força sob o comando de Glorfindel, o Senhor Élfico, saiu deValfenda. Assim Angmar foi completamente derrotada, não restando nenhum homem ouorc daquele reino a oeste das Montanhas.

"Mas conta-se que, de repente, quando tudo estava perdido, o Rei dos Bruxosapareceu em pessoa, vestido de negro, com uma máscara preta e montado num cavalotambém negro. O medo dominou todos os que o contemplaram, mas ele escolheu oCapitão de Gondor para descarregar todo o seu ódio, e com um grito terrível cavalgoudireto contra ele. Earnur ter-lhe-ia feito frente, mas seu cavalo não suportou o ataque,desviou e levou-o para longe antes que Eãrnur pudesse dominá-lo.

"Então o Rei dos Bruxos riu, e ninguém que ouviu aquilo jamais esqueceu o horrordaquele grito. Mas Glorfindel então avançou em seu cavalo branco, e, em meio ao seuriso, o Rei dos Bruxos virou-se e fugiu para dentro das sombras. Pois a noite caiu sobre ocampo de batalha, ele desapareceu, e ninguém viu para onde foi.

"Nesse momento Fârnur retornou cavalgando; mas Glorfindel, olhando em direçãoá escuridão que se adensava, disse: - Não o persigam!

Ele não retornará para esta terra. Muito distante ainda está sua destruição, e ele nãocairá pela mão de um homem. Essas palavras muitos guardaram na memória; mas Eãrnurestava zangado, desejando apenas vingar sua desgraça.

"Assim terminou o reino maligno de Angmar, e dessa forma Eãrnur, Capitão deGondor, atraiu sobre si o mais intenso ódio do Rei dos Bruxos; mas muitos anos ainda sepassariam antes que isso fosse revelado."

Foi assim que, durante o reinado do rei Fârnil, como posteriormente ficou claro, oRei dos Bruxos, escapando do norte, foi para Mordor, e lá reuniu os outros Espectros doAnel, de quem era o líder. Mas foi só em 2000 que eles saíram de Mordor pela Passagemde Cirith Ungol e fecharam cerco sobre Minas Ithil, que tomaram em 2002, roubando datorre o palantir. Não foram expulsos enquanto durou a Terceira Era; Minas Ithiltransformou-se num lugar de terror e ganhou um novo nome, Minas Morgul. Grande partedas pessoas que ainda permaneciam em Ithilien abandonaram o lugar.

Eärnur parecia-se com o pai na coragem, mas não na sabedoria. Era um homem decorpo vigoroso e sangue quente; mas não queria se casar, pois seu único prazer residia naluta, ou no exercício com armas. Sua destreza era tanta que ninguém em Gondor podiafazer-lhe frente naqueles esportes de armas com os quais ele se deliciava, mais parecendoum campeão do que um capitão ou rei, e conservando seu vigor e habilidade até umaidade mais avançada do que era normal na época.

Quando Eärnur recebeu a coroa em 2043, o rei de Minas Morgul o desafiou paraum combate homem a homem, escarnecendo-se dele, dizendo que Eärnur não ousara

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fazer-lhe frente em batalha no norte. Daquela vez Mardil, o Regente, conteve a ira do rei.Minas Anor, que se tornara a principal cidade do reino desde os dias do rei Teleniflar,sendo a residência dos reis, recebeu então um novo nome, Minas Tiritll, como a cidadesempre alerta contra o mal de Morgul.

Eärnur detivera a coroa por apenas sete anos quando o Senhor de Morgul repetiuseu desafio, caçoando do rei e dizendo que ao coração fraco de sua juventude de ele agoraacrescentara a fraqueza da idade. Então Mardil não pôde mais contê-lo, e Eärnur cavalgoucom uma pequena comitiva de cavaleiros até o portão de Minas Morgul. Jamais se ouviufalar outra vez de alguém daquela comitiva.

Acreditou-se em Gondor que o traiçoeiro inimigo prendera o rei, e que ele tinhamorrido sofrendo torturas em Minas Morgul; mas, uma vez que não havia testemunhas desua morte, Mardil, o Bom Regente, governou Gondor em seu nome por muitos anos.

Agora os descendentes dos reis tinham rareado. Seu número diminuira muitodurante a Contenda das Famílias visto que, desde aquela época, os reis se haviam tornadociumentos e vigiavam de perto os parentes próximos.

Frequentemente aqueles sobre quem recaiu alguma suspeita fugiram para Umbar eali se juntaram aos rebeldes, enquanto outros haviam renunciado à sua linhagem, casando-se com mulheres que não tinham sangue númenoriano.

Foi assim que não se encontrou nenhum pretendente à coroa que fosse de puraestirpe, ou cuja reivindicação todos aceitassem; além disso, todos temiam a lembrança daContenda das Famílias, sabendo que, se uma dissensão desse tipo acontecesse de novo,certamente Gondor pereceria. Portanto, embora os anos se alongassem, o regentecontinuou a governar Gondor, e a coroa de Elendil ficou jazendo no colo do rei Eärnil nasCasas dos Mortos, onde Eãrnur a deixara.

Os regentes

A Casa dos Regentes se chamava Casa de Húrin, pois eles descendiam do regentedo rei Minardil (1621-34), Húrin de Emyn Arnen, um homem de nobre estirpenúmenoriana.

Depois de sua época, os reis sempre escolheram seus regentes entre osdescendentes dele, e após a época de Pelendur a regência tornou-se hereditária como arealeza, passando de pai para filho ou para o parente mais próximo.

De fato, cada novo regente assumia seu posto prestando o juramento de "segurar obastão e governar em nome do rei, até o seu retorno". Mas logo essas palavras passaram ater um sentido apenas ritual, e pouca atenção se dava a elas, pois Os regentes exerciamtodo o poder dos reis. Apesar disso, muitos em Gondor acreditavam que um rei realmentevoltaria em alguma época futura, e alguns relembravam a antiga linhagem do norte, que,pelo que se dizia, ainda continuava a viver nas sombras.

Mas contra tais pensamentos os regentes governantes fechavam seus corações.Não obstante, os regentes nunca tomaram assento no antigo trono, e não usavam

coroa ou cetro. Tinham um bastão branco apenas como símbolo de seu posto; suabandeira era branca e sem insígnias, ao passo que a bandeira real fora sable, exibindo umaárvore branca em flor sob sete estrelas.

Após Mardil Voronwë, que foi reconhecido como o primeiro da linhagemsucederam-se vinte e quatro regentes governantes em Gondor, até a época de Denethor II,o vigésimo sexto e último. Os primeiros tempos foram tranquilos, Pois aqueles eram os

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dias da Paz Vigilante, durante a qual Sauron recuou ante o Poder do Conselho Branco, eos Espectros do Anel permaneceram escondidos no Vale Morgul.

Mas, a partir da época de Denethor I, a paz nunca mais reinou completamente, e,mesmo quando em Gondor não havia grande ou declarada guerra, suas fronteiras estavamsob ameaça constante.

Nos últimos anos de Denethor 1, a raça dos uruks, orcs negros de grande força,pela primeira vez apareceu, vinda de Mordor, e em 2475 eles atravessaram Ithilien etomaram Osgiliath. Boromir, filho de Denethor (cujo nome seria dado mais tarde aBoromir dos Nove Caminhantes), derrotou-os e reconquistou Ithilien; mas no fimOsgiliath ficou arruinada, e sua grande ponte de pedra foi destruida.

Depois disso ninguém morou lá. Boromir foi um grande capitão, temido atémesmo pelo Rei dos Bruxos. Era nobre e de rosto belo, um homem de corpo e vontadefortes, mas sofreu um ferimento de Morgul naquela guerra, e isso encurtou sua vida; ficoumirrado pela dor e morreu doze anos após o pai.

Depois dele veio o longo dominio de Cirion. Esse regente era vigilante e cauteloso,mas o poderio de Gondor diminuira, e a ele restava pouco mais do que defender suasfronteiras, enquanto seus inimigos (ou o poder que os movia) preparavam golpes que elenão podia evitar. Os Corsários saquearam seu litoral, mas era no norte que residia o maiorperigo. Nas amplas terras de Rhovanion, entre a Floresta das Trevas e o rio Corrente,agora morava um povo cruel, totalmente dominado pela sombra de Doí Guldur.Frequentemente eles atacavam pela floresta, até que o vale do Anduin ao sul do Rio deLis ficou em grande parte abandonado. A esses balchoth somavam-se constantementeoutros, de raças semelhantes, que chegavam do leste, enquanto o povo de Calenardhondiminuía. Cirion teve de esforçar-se ao máximo para manter a fronteira do Anduin.

"Prevendo o ataque, Cirion pediu auxílio ao norte, mas foi tarde demais; naqueleano (2510), os balchoth, tendo construído muitos navios e jangadas grandes nas margensorientais do Anduin, atacaram maciçamente pelo rio e dispersaram os defensores. Umexército que subia do sul foi interceptado e empurrado para o norte pelo Limclaro, e alifoi subitamente atacado por uma horda de orcs das Montanhas e forçado a retirar-se nadireção do Anduin. Então do norte chegou uma ajuda quando já não restava qualqueresperança, e as cornetas dos rohirrim se fizeram ouvir pela primeira vez em Gondor. Eorl,o Jovem, veio com seus cavaleiros e expulsou o inimigo, perseguindo os balchoth até amorte através dos campos de Calenardhon. Cirion concedeu que Eorl morasse naquelaregião, e este prestou a Cirion o Juramento de Eorl, garantindo assisténcia aos senhores deGondor em casos de necessidade ou de solicitação."

Nos dias de Beren, o décimo nono regente, um perigo ainda maior abateu-se sobreGondor. Três grandes frotas, preparadas por longo tempo, vieram de Umbar e de Harad, eatacaram as costas de Gondor com muita violência; o inimigo desembarcou em várioslugares, chegando a alcançar ao norte a foz do Isen. Ao mesmo tempo, os rohirrim foramatacados pelo leste e pelo oeste, sua terra foi devastada e o povo foi forçado a se refugiarnos vales das Montanhas Brancas. Naquele ano o Inverno Longo começou com frio egrandes nevascas vindas do norte e do leste, prolongando-se por quase cinco meses. Helmde Rohan e seus dois filhos pereceram naquela guerra; houve miséria e morte tanto emEriador como em Rohan.

Mas em Gondor, ao sul das montanhas, as coisas não correram tão mal, e antes dachegada da primavera Beregond, filho de Beren, tinha derrotado os invasores.Imediatamente enviou auxílio a Rohan. Ele foi o maior capitão que surgiu em Gondordepois de Boromir; quando sucedeu o pai (2763), Gondor começou a recuperar suasforças. Mas Rohan demorou mais para se refazer dos ferimentos que sofrera. Foi por esse

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motivo que Beren recebeu Saruman e entregou-lhe as chaves de Orthanc; a partir daqueleano (2759), Saruman passou a morar em Isengard.

Foi na época de Beregond que a Guerra entre anões e orcs foi travada nasMontanhas Sombrias (2793-9), da qual apenas rumores chegaram ao sul, até que os orcs,fugindo de Nanduhirion, tentaram atravessar Rohan e se estabelecer nas MontanhasBrancas. Houve luta por muitos anos nos vales antes que o perigo terminasse.

Quando morreu Belecthor II, o vigésimo primeiro regente, a Árvore Brancatambém morreu em Minas Tirith, mas foi deixada de pé "até o retorno do rei", pois não seconseguiu achar uma muda.

Nos dias de Túrin II, os inimigos de Gondor começaram a se mover novamente;Sauron crescera de novo em poder e o dia de seu levante se aproximava. Todo o povo deIthilien, com exceção dos mais corajosos, abandonou a região e estabeleceu-se no oeste,do outro lado do Anduin, pois a região estava infestada de orcs de Mordor. Foi Túrinquem construiu para seus soldados refúgios secretos em Ithilien, dos quais HennethAnnún foi o mais guarnecido e o que ficou por maior tempo protegido.

Ele também fortificou outra vez a ilha de Cair Andros30 para defender Anórien.Mas seu maior perigo residia no sul, onde os haradrim tinham ocupado Gondor do Sul, ehouve muita luta ao longo do Poros. Quando Ithilien foi invadida por grandes exércitos, orei Folcwine de Rohan cumpriu o Juramento de Eorl e pagou sua dívida pela ajuda trazidapor Beregond, enviando muitos homens a Gondor. Com seu auxílio, Gondor teve umavitória no cruzamento do Poros; mas ambos os filhos de Folcwine morreram em combate.

Os Cavaleiros os enterraram à moda de seu povo, e eles foram colocados em umúnico túmulo, pois eram irmãos gêmeos. Por muito tempo ali permaneceu o túmulo,Haudh in Gwanur, erguendo-se sobre a margem do rio, e os inimigos de Gondor temiampassar por ele.

Turgon sucedeu Túrin, mas de sua época lembra-se principalmente que, dois anosantes de sua morte, Sauron levantou-se outra vez, declarando-se abertamente; adentrououtra vez em Mordor, longamente preparada para ele. Então Barad-dúr foi erguida maisuma vez, e a Montanha da Perdição explodiu em chamas; o restante do Povo de Ithilienfugiu para longe. Quando Turgon morreu, Saruman tomou Isengard Como propriedadesua, e a fortificou.

nota30. Esse nome significa Navio da Espuma Longa, pois a ilha tinha o formato de

um grande navio com uma proa alta apontando para o norte, contra a qual a espumabranca do Anduin se quebrava sobre rochas pontiagudas.

"Ecthelion II, filho de Turgon, era um homem de sabedoria. Com o poder que lherestava, começou a fortalecer seu reino contra o ataque de Mordor. Encorajou todos oshomens de valor, de perto ou de longe, a entrarem para seu exército, e àqueles queprovaram ser dignos de confiança garantiu posição e recompensa. Em grande parte do querealizou teve a ajuda de um grande capitão, a quem estimava acima de todos. Chamavam-no Thorongil, Águia da Estrela, pois ele era rápido e tinha olhos sagazes, e usava umaestrela de prata sobre a capa. Mas ninguém sabia seu nome verdadeiro, nem onde nascera.Para encontrar-se com Ecthelion veio de Rohan, onde servira ao rei Thengel, mas não eraum dos rohirrim. Era um grande líder de homens, por terra e por mar, mas partiu para assombras de onde viera, antes que os dias de Ecthelion tivessem findado.

"Thorongil frequentemente aconselhava Ecthelion, dizendo que o exército dosrebeldes de Umbar representava grande perigo para Gondor, e uma ameaça que poderia

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ser mortal para os feudos do sul, se Sauron partisse para a guerra declarada. Finalmenteobteve permissão do regente e reuniu uma pequena esquadra, e deslocou-se para Umbarinesperadamente durante a noite, e lá incendiou grande parte dos navios dos Corsários.Ele mesmo derrotou o Capitão do Porto numa batalha travada no cais, e em seguida suafrota bateu em retirada com poucas perdas. Mas quando retornou a Pelargir, para atristeza e o espanto dos homens, recusou-se a voltar para Minas Tirith, onde grandeshomenagens o aguardavam.

"Enviou uma mensagem de adeus a Ecthelion, dizendo: - Outras tarefas mechamam, senhor, e muito tempo e muitos perigos deverão passar antes que eu volte outravez para Gondor, se esse for o meu destino. - Embora ninguém pudesse imaginar quaistarefas seriam essas, nem que chamado ele recebera, sabia-se para onde fora. Pois eletomou um barco e atravessou o Anduin, dizendo ali adeus aos seus companheiros;prosseguiu sozinho, e quando foi visto pela última vez seu rosto olhava na direção dasMontanhas da Sombra.

Houve consternação na Cidade pela partida de Thorongil, considerada por todosuma grande perda; menos para Denethor, filho de Ecthelion, um homem agora maduropara a regência, na qual sucedeu o pai por ocasião de sua morte, quatro anos depois.

"Denethor II era um homem orgulhoso, alto, valente, e mais majestoso quequalquer outro homem que aparecera em Gondor por muitas vidas de homens; tambémera sábio, enxergava longe, além de ser versado nas tradições. De fato era semelhante aThorongil como se fosse um parente próximo, e apesar disso sempre ficava em posiçãoinferior ao estranho nos corações dos homens e na estima de seu pai. Na época muitospensaram que Thorongil tinha partido antes que seu rival se tornasse senhor, embora opróprio Thorongil jamais tivesse competido com Denethor, nem se considerasse algo maisque um servidor de seu pai. E em um ponto apenas os dois aconselhavam o regente demaneira diversa: Thorongil frequentemente advertia Ecthelion a não depositar confiançaem Saruman, o Branco, de Isengard, mas em vez disso preferir os conselhos de Gandalf, oCinzento. Mas havia pouca amizade entre Denethor e Gandalf depois da época deEcthelion, o Peregrino Cinzento era menos bem-vindo em Minas Tirith. Portanto, maistarde, quando tudo ficou claro, muitos acreditaram que Denethor, que tinha uma mentemais perspicaz e enxergava mais longe que os homens de seu tempo, descobrira quem naverdade era aquele forasteiro de nome Thorongil, e suspeitara que ele e Mithrandirpretendiam suplantá-lo.

"Quando Denethor tornou-se regente (2984), mostrou-se um governantedominador, tomando para si o controle de todas as coisas.

Falava pouco. Ouvia conselhos e depois seguia sua própria cabeça. Casara-se tarde(2976), tomando como esposa Finduilas, filha de Adrahil, de Doí Amroth. Ela era umasenhora de grande beleza e coração bondoso, mas faleceu antes que se tivessem passadodoze anos.

Denethor a amava, á sua maneira, mais que qualquer outra pessoa, exceto, talvez,pelo mais velho dos dois filhos que ela lhe dera. Mas tinha-se a impressão de que elamurchava na cidade guardada, como uma flor que, nascida nos vales próximos ao mar, étransplantada para um rochedo árido. A sombra do leste a enchia de terror, e ela semprevoltava seus olhos para o sul, na direção do saudoso mar.

"Depois da morte da esposa, Denethor tornou-se mais austero e calado do queantes, e ficava sentado sozinho em sua torre por muito tempo, perdido em pensamentos,prevendo que o ataque de Mordor viria durante sua regência.

Posteriormente acreditou-se que, precisando de conhecimento, mas sendoorgulhoso e confiando em sua própria força de vontade, ele ousou olhar no palantir da

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Torre Branca. Nenhum dos regentes ousara fazer tal coisa, nem mesmo os reis Farnil eEãrnur, após a queda de Minas Ithil, quando o palantír de Isildur caiu nas mãos doInimigo; pois a Pedra de Minas Tirith era o palantír de Anárion, o que mais se acordavacom aquele que Sauron possuia.

"Foi dessa forma que Denethor adquiriu seu grande conhecimento sobre as coisasque se passavam em seu reino, e muito além de suas fronteiras, o que causava o espantodos homens; mas pagara um alto preço por esse conhecimento, ficando velho antes dotempo, devido à sua disputa com a vontade de Sauron. Assim o orgulho cresceu emDenethor junto com o desespero, até que ele viu em todos os feitos de sua época apenasum combate homem a homem entre o Senhor da Torre Branca e o Senhor de Barad-dúr, epassou a desconfiar de todos os outros que resistiam a Sauron, a não ser que servissemunicamente a ele próprio.

"Assim foi-se aproximando a época da Guerra do Anel, e os filhos de Denethortornaram-se adultos. Boromir cinco anos mais velho, amado por seu pai, era parecido comele nas feições e no orgulho, mas em pouca coisa mais. Pelo contrário, era um homem quese assemelhava ao rei Eãrnur de antigamente, recusando-se a se casar e divertindo-seprincipalmente com armas; forte e destemido, preocupava-se pouco com os estudos datradição, exceto as histórias de antigas batalhas. Faramir, o mais novo, tinha umaaparência semelhante á do irmão, mas uma mente diferente. Decifrava os corações doshomens com a mesma perspicácia do pai, mas o que lia lhe causava antes pena do quedesprezo. Tinha modos gentis e era um amante da tradição e da música; portanto, muitosdaquela época o julgavam menos corajoso que o irmão.

Mas isso não era verdade, a não ser pelo fato de que ele não buscava glória noperigo sem razão de ser. Acolheu Gandalf todas as vezes em que este visitou a Cidade, eaprendeu tudo o que pôde da sabedoria do mago; nesse e em muitos outros pontosdesagradou a seu pai.

"Apesar disso, entre os irmãos havia um grande amor, como sempre aconteceradesde a infancia, quando Boromir ajudava e protegia Faramir.

Nenhum ciúme e nenhuma rivalidade surgira entre os dois desde aquela época,pela preferência do pai ou pelo elogio dos homens. Faramir não achava possível quequalquer um em Gondor conseguisse rivalizar com Boromir, herdeiro de Denethor,Capitão da Torre Branca, e Boromir pensava do mesmo modo. No entanto, o teste provouo contrário. Mas sobre tudo o que aconteceu aos três na Guerra do Anel muito se contaem outro lugar. E depois da Guerra os dias dos regentes governantes chegaram ao fim,pois o herdeiro de Isildur e Anárion retornou, o governo dos reis foi restabelecido, e abandeira da Árvore Branca foi mais uma vez desfraldada sobre a Torre de Ecthelion."

(v)

Aqui Segue-se uma Parte da Históriade Aragorn e Arwen

"Arador era o avô do rei. Seu filho Arathorn pediu em casamento Gilraen, a Bela,filha de Dírhael, que por sua vez era um descendente de Aranarth. A esse casamentoDírhael se opunha, pois Gilraen era jovem e ainda não atingira a idade na qual asmulheres dos dúnedain estavam acostumadas a se casar.

Além do mais - dizia ele -, Arathorn é um homem austero e já adulto, e será líder

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antes do que se espera; apesar disso, meu coração pressente que sua vida será curta."Mas Ivorwen, sua esposa, que também tinha poderes de previsão, respondeu: -

Maior razão para a pressa! Os dias estão ficando escuros e trazem a tempestade, e grandescoisas acontecerão. Se esses dois se casarem agora, pode ser que a esperança nasça para onosso povo; mas, se demorarem, a esperança não virá enquanto durar esta era.

"E aconteceu que, apenas um ano após o casamento de Arathorn e Gilrean, Aradorfoi capturado e morto por trolls das colinas nos Morros Frios, ao norte de Valfenda;Arathorn portanto tornou-se líder dos dúnedain. No ano seguinte Gilraen lhe deu umfilho, a quem foi dado o nome de Aragorn. Mas Aragorn tinha apenas dois anos quandoArathorn saiu cavalgando num ataque contra os orcs, acompanhado dos filhos de Elrond,e foi abatido por uma flecha-orc que lhe perfurou o olho, e dessa forma ele realmenteviveu pouco para alguém de sua raça, tendo apenas sessenta anos quando tombou.

"Então Aragorn, sendo agora o herdeiro de Isildur, foi levado com a mãe paramorar na casa de Elrond, que assumiu o lugar de seu pai e veio a amá-lo como se fosseseu próprio filho. Mas ele era chamado de Estel, que significa "Esperança", e seuverdadeiro nome e linhagem foram guardados em segredo por ordem de Elrond; os Sábiossabiam que o Inimigo estava procurando descobrir quem era o Herdeiro de Isildur, casorestasse algum na terra.

"Mas, quando Estel tinha apenas vinte anos de idade, aconteceu que um diaretornava a Valfenda depois de ter realizado grandes feitos na companhia dos filhos deElrond; Elrond olhou para ele e ficou satisfeito, pois viu que era belo e nobre, eprecocemente atingiria a idade adulta, embora ainda fosse crescer no corpo e na mente.Naquele dia, portanto, Elrond o chamou por seu verdadeiro nome, e revelou-lhe quem era,e o nome de seu pai; entregou-lhe então os legados de sua casa.

"- Aqui está o anel de Barahir - disse ele -, o sinal de nosso antigo parentesco; eaqui também estão os fragmentos de Narsil. Com eles você ainda poderá realizar grandesfeitos, pois eu prevejo que sua vida será mais longa que a da maioria dos homens, a nãoser que o mal o acometa ou que você falhe no teste. Mas o teste será longo e dificil. OCetro de Annúminas eu reterei, pois você ainda deve fazer por merecê-lo.

"No dia seguinte, na hora do pôr-do-sol, Aragorn caminhava sozinho na floresta;seu coração estava leve e ele cantava, pois sentia-se cheio de esperanças e o mundo erabelo. E de repente, no momento em que cantava, viu uma donzela caminhando numgramado por entre os troncos brancos das bétulas; parou então assustado, pensando que setinha perdido num sonho, ou então que recebera a dádiva dos menestréis-élficos, capazesde fazer com que as coisas por eles cantadas apareçam diante dos olhos de quem osescuta.

"Na verdade Aragorn estivera cantando uma parte da Balada de Lúthien, que contasobre o encontro de Lúthien e Beren na Floresta de Neldoreth. E eis que Lúthien estavaali, caminhando diante de seus olhos em Valfenda, vestindo um manto prata e azul, belacomo o crepúsculo em Casadelfos; seus cabelos escuros esvoaçavam num ventorepentino, e sua fronte estava cingida com pedras que pareciam estrelas.

"Por um momento Aragorn observou em silêncio, mas, temendo que ela fugisse enunca mais aparecesse, chamou-a, gritando, Tinúviel, Tinúviel!, da mesma forma queBeren fizera nos Dias Antigos, muito tempo atrás.

"Então a donzela virou-se para ele e sorriu, dizendo: - Quem é você? E por que mechama por esse nome?

"E ele respondeu: - Porque achei que você fosse realmente Lúthien Tinúviel, sobrequem eu estava cantando. Mas, se você não for ela, então você caminha na imagem dela.

Muitos já disseram isso - respondeu ela num tom grave. - Mas o nome dela não é o

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meu. Embora talvez nossos destinos não sejam diferentes. Mas quem é você?"- Estel era meu nome - disse ele -, mas sou Aragorn, filho de Arathorn, Herdeiro

de Isildur, Senhor dos Dúnedain. - Mas no momento em que falava ele sentiu que sua altalinhagem, que lhe trouxera alegria ao coração, valia agora pouca coisa, e não era nada emcomparação á dignidade e beleza dela.

"Mas ela riu com alegria, e disse: - Então somos parentes distantes. Pois eu souArwen, filha de Elrond, e também me chamo Undómiel.

"- Frequentemente se observa - disse Aragorn - que em tempos perigosos oshomens escondem seu principal tesouro. Mas mesmo assim surpreendo-me com Elrond ecom seus irmãos, pois, embora tenha vivido nesta casa desde a infancia, nunca ouvi falarde você. Como será que nunca nos encontramos antes? Com certeza seu pai não a trancoujunto com seu tesouro?

"- Não - disse ela, erguendo os olhos para as Montanhas que assomavam no leste. -Morei um tempo na terra dos parentes de minha mãe, em Lothlórien. Faz pouco tempoque retornei para visitar meu pai outra vez. Já faz muitos anos que não caminho emImíadris.

"Então Aragorn ficou surpreso, pois ela não parecia mais velha do que ele, que porsua vez ainda não vivera muito mais que vinte anos na Terra-média. Mas Arwen olhou emseus olhos e disse: - Não fique admirado! Os filhos de Elrond têm a vida dos eldar.

"Então Aragorn ficou consternado, pois viu nos olhos dela a luz élfica e asabedoria de muitos dias; mas daquela hora em diante amou Arwen Undómiel, filha deElrond.

"Nos dias que se seguiram, Aragorn ficou calado, e sua mãe percebeu que algoestranho lhe acontecera; por fim ele cedeu às perguntas dela e contou-lhe sobre oencontro na meia-luz do bosque.

Meu filho - disse Gilraen -, sua ambição é grande, mesmo para um descendente demuitos reis. Pois esta senhora é a mais bela e a mais nobre que agora pisa sobre a terra. Enão é adequado que os mortais se casem com alguém do povo élfico.

Mesmo assim, nós temos algum parentesco - disse Aragorn -, se for verdadeira ahistória que me foi contada sobre meus antepassados.

- É verdade - disse Gilraen - mas isso foi há muito tempo e numa outra era destemundo, antes que nossa raça fosse diminuída.

Portanto sinto-me receosa, pois sem a boa vontade do mestre Elrond os herdeirosde Isildur logo chegarão ao fim. Mas não julgo que você consiga a boa vontade de Elrondnesse assunto.

- Então amargos serão meus dias, e eu caminharei nas terras ermas sozinho disseAragorn.

- Esse realmente será o seu destino - disse Gilraen, mas, embora ela tivesse umpouco do poder de previsão de seu povo, não lhe disse mais nada sobre o seupressentimento, nem comentou com ninguém sobre o que o filho lhe dissera.

Mas Elrond via muitas coisas e decifrava muitos corações. Um dia, antes do finaldo ano, ele chamou Aragorn ao seu aposento e disse: - Aragorn, filho de Arathorn, Senhordos Dúnedain, ouça-me! Um grande destino o aguarda: elevar-se acima de todos os seusantepassados desde os dias de Elendil, ou então cair na escuridão com tudo o que resta desua estirpe. Muitos anos de provações estendem-se diante de você. Você não deve ter umaesposa, nem assumir compromisso com qualquer mulher, até que seu tempo chegue e quevocê seja considerado digno disso.

"Então Aragorn ficou perturbado, e disse: - Será que minha mãe mencionou algosobre esse assunto?

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"-Não, não mencionou nada - disse Elrond. - Seus próprios olhos o traíram. Masnão estou falando apenas de minha filha. Você ainda não deve comprometerse com a filhade homem algum. Mas quanto a Arwen, a Bela, Senhora de Imíadris e de Lórien, EstrelaVespertina de seu povo, ela é de uma linhagem superior á sua, e já viveu neste mundotanto tempo que para ela você não passa de um tenro broto ao lado de uma bétula jovemde muitos verões. Ela está muito acima de você. E também acho provável que ela penseassim. Mas mesmo se não fosse o caso, e o coração dela se voltasse na direção do seu, euainda me sentiria triste por causa do destino que nos foi imposto.

"Que destino é esse? - perguntou Aragorn."- Que, enquanto eu permanecer aqui, ela viverá com a juventude dos eldar -

i.espondeu Elrond -, e quando eu partir ela irá comigo, se assim escolher."- Estou vendo - disse Aragorn - que fixei meus olhos num tesouro não menos

precioso que o de Thingol, desejado outrora por Beren. Este é meu destino.- Então, de súbito, o poder de previsão de seu povo aflorou-lhe na mente, e ele

disse: - Mas veja, mestre Elrond! Os anos de sua permanência estão chegando ao fim, e aescolha logo deverá ser imposta aos seus filhos, a escolha de se separarem ou do senhorou da Terra-média.

"- É verdade - disse Elrond. - Logo, pelos nossos cálculos, embora muitos anos doshomens ainda devam se passar. Mas não haverá escolha para Arwen, minha amada filha,a não ser que você, Aragorn, filho de Arathorn, se coloque entre nós e faça com que umde nós dois, você ou eu, sofra uma separação amarga, que ultrapassará o fim do mundo.Você ainda não compreende o que deseja de mim. - Elrond suspirou e depois de umtempo, olhando gravemente para o jovem, disse outra vez: - Os anos trarão o que devemtrazer. Não vamos falar mais nisso até que muitos se tenham passado. Os dias estãoescurecendo, e muito está por vir.

"Então Aragom despediu-se carinhosamente de Elrond, e no dia seguinte disseadeus à mãe, e ás pessoas da casa de Elrond e a Arwcn, partindo para os ermos.

Por quase trinta anos trabalhou na causa contra Sauron, e tornou-se amigo deGandalf, o Sábio, do qual ganhou muita sabedoria. Com ele fez muitas viagens perigosas,mas enquanto os anos se passavam viajava sozinho com mais frequência.

Seus caminhos eram longos e dificeis, e ele assumiu uma aparência rústica, a nãoser quando casualmente sorria; mesmo assim os homens o consideravam digno de honra,como um rei no exílio, nos momentos em que ele não escondia sua verdadeira aparência.Pois ele circulava sob muitos disfarces, e obteve fama sob muitos nomes.

Cavalgou com o exército dos rohirrim, lutou para o Senhor de Condor por terra emar e depois, na hora da vitória, desapareceu para não ser mais visto pelos homens dooeste, e viajou pelo distante leste e pelas profundezas do sul, explorando os corações doshomens, bons e maus, e revelando os planos e estratégias dos servidores de Sauron.

"Assim acabou se tornando o mais resistente dos homens vivos, habilidoso em seusoficios e erudito nas suas tradições, e apesar disso era mais do que eles; pois tinha asabedoria dos elfos, e havia uma luz em seus olhos que, quando se acendia, poucospodiam suportar. Seu rosto era triste e austero por causa do destino que lhe fora imposto,e apesar disso a esperança sempre morou nas profundezas de seu coração, do qual aalegria ás vezes jorrava como uma fonte que jorra de uma rocha.

"Veio a acontecer que, aos quarenta e nove anos de idade, Aragorn estavaretornando de perigos nos escuros confins de Mordor, onde Sauron passara a morar denovo, ocupando-se do mal. Vinha cansado e desejava voltar a Valfenda para descansarum pouco, antes de viajar para terras distantes; em seu caminho passou pelas fronteiras deLórien e foi recebido na terra oculta pela Senhora Galadriel.

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"Ele não sabia, mas Arwen Undómiel também estava lá, passando outra temporadacom os parentes da mãe. Mudara pouco, pois os anos mortais haviam passado por ela semdeixar marcas; mas seu rosto estava mais sério, e raramente se ouvia seu riso. MasAragorn crescera, atingindo a plenitude no corpo e na mente, e Galadriel pediu que tirassesuas vestes gastas pela viagem e o vestiu em prata e branco, com um manto de cinza-élfico, colocando uma pedra brilhante sobre sua testa. Então sua aparência ficou superiorà de qualquer homem, e ele mais parecia um Senhor Élfico das Ilhas do Oeste. E foi assimque Arwen o contemplou pela primeira vez após a longa separação; e enquanto ele veiocaminhando ao encontro dela sob as árvores de Caras Galadhon, que estavam carregadasde flores douradas, ela fez sua escolha e selou seu destino.

"Então por um tempo os dois passearam juntos nas clareiras de Lothlórien, até quechegou a hora de ele partir. E, na tardinha do Solstício de Verão, Aragorn, filho deArathorn, e Arwen, filha de Elrond, foram até a bela colina Cerin Amroth, no centrodaquele lugar, e andaram descalços sobre a relva sempre verde, com elanor e niphredil aoredor de seus pés. E ali, sobre aquela colina, olharam para o leste, na direção da Sombra,e para o oeste, na direção do Crepúsculo, e comprometeram-se um com o outro esentiram-se felizes.

E Arwen disse: - Escura é a Sombra, e mesmo assim meu coração se alegra; poisvocê, Estel, estará entre os grandes cuja coragem irá destruí-la.

Mas Aragorn respondeu: Infelizmente não posso prever esse fato, e o modo comovirá a acontecer está oculto para mim. Mas com sua esperança hei de esperar. E rejeito aSombra com todas as minhas forças. Mas da mesma forma, senhora, o Crepúsculo não épara mim; pois sou mortal, e se você ficar ao meu lado, Estrela Vespertina, deverátambém renunciar ao Crepúsculo.

"Ela então ficou imóvel como uma árvore branca, olhando para o oeste; por fim,disse: - Vou ficar ao seu lado, Dúnadan, e dar as costas para o Crepúsculo.

Apesar disso, lá fica a terra de meu povo, e a antiga casa de toda a minha família.- Ela amava o pai intensamente."Quando Elrond ficou sabendo da escolha da filha, ficou em silêncio, embora seu

coração se tivesse entristecido, percebendo que o destino tanto tempo temido não era nadafácil de suportar. Mas, quando Aragorn chegou outra vez a Valfenda, chamou-o á parte elhe disse: Meu filho, aproximam-se os anos em que a esperança vai desaparecer, e alémdeles pouco está claro para mim. E agora uma sombra paira entre nós. Talvez assim tenhasido prescrito, que por minha perda o poder dos reis dos homens possa ser restaurado.Portanto, embora o ame, digo-lhe isto: Arwen Undómiel não diminuirá a dádiva de suavida por uma causa menor. Ela não será a noiva de ninguém que não seja o rei de Condore de Amor. Para mim, até mesmo nossa vitória só poderá trazer tristeza e separação maspara você poderá trazer esperança de alegria por um tempo. É uma pena, meu filho!Receio que para Arwen o destino dos homens possa ser dificil no final.

"Assim ficou acertado entre Elrond e Aragorn, e eles não falaram mais desseassunto; mas Aragorn partiu outra vez na direção do perigo e do trabalho árduo.

E enquanto o mundo escurecia e o medo caía sobre a Terra-média, á medida que opoder de Sauron crescia e Barad-dúr se erguia cada vez mais alta e forte, Arwenpermaneceu em Valfenda, e, quando Aragorn estava fora, de longe ela cuidava dele empensamento; e na esperança fez para ele um estandarte grande e majestoso, digno de serexibido apenas por alguém que reivindicasse o trono dos númenorsanos e a herança deElendil.

"Depois de alguns anos, Gilraen despediu-se de Elrond e retornou para o seio deseu próprio povo em Eriador, e viveu sozinha; raras vezes viu o filho de novo, pois ele

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passava muitos anos em terras distantes. Mas uma vez, quando Aragorn tinha retornadodo norte, ele foi vê-la, e ela lhe disse antes de sua partida:

"- Esta é a nossa última despedida, Estel, meu filho. Estou envelhecida pelapreocupação, mesmo para uma pessoa pertencente á raça dos homens inferiores; e, agoraque se aproxima, não posso enfrentar a escuridão de nosso tempo, adensando-se sobre aTerra-média. Deixarei este lugar em breve.

"Aragorn tentou consolá-la, dizendo: - Apesar disso, ainda pode haver uma luzalém da escuridão; se for assim, eu gostaria que a senhora a visse e se alegrasse.

"Mas ela respondeu apenas com este linnod: Onen i-Estel Edain, ú-chebin estelanim (31), e Aragorn foi-se embora com o coração pesado. Gilraen morreu antes daprimavera seguinte.

"Assim se aproximaram os anos da Guerra do Anel, sobre a qual se conta mais emoutro lugar: sobre como se revelou o meio inesperado pelo qual Sauron poderia serderrotado, e sobre como uma esperança além de qualquer esperança foi concretizada. Eaconteceu que na hora da derrota Aragorn surgiu do mar e desfraldou o estandarte deArwen na batalha dos Campos de Pelennor, e naquele dia foi pela primeira vez aclamadocomo rei. E por fim, quando tudo estava consumado, ele assumiu a herança de seusantepassados e recebeu a coroa de Condor e o cetro de Amor; e no Solstício de Verão doano da Queda de Sauron ele tomou a mão de Arwen Undómiel, e os dois se casaram nacidade dos reis.

"A Terceira Era terminou em vitória e esperança; apesar disso, melancólica entreas tristezas daquela Era foi a despedida de Arwen e Elrond, pois os dois foram separadospelo Mar e por um destino que ultrapassava o fim do mundo. Quando o Grande Anel foidesfeito, e os Três foram despojados de seu poder, Elrond por fim ficou cansado eabandonou a Terra-média, para nunca mais voltar.

Arwen tornou-se uma mulher mortal, mas apesar disso não era seu destino morreraté perder tudo o que ganhara.

"Como rainha dos elfos e dos homens, ela viveu com Aragorn por cento e vinteanos em grande glória e felicidade; mas por fim ele sentiu a aproximação da velhice esabia que seu tempo de vida estava se esgotando, por mais longo que pudesse ter sido.Então Aragorn disse a Arwen:

"- Finalmente, Senhora Estrela Vespertina, belíssima neste mundo, e muitíssanoamada, meu mundo está se acabando. Eis que acumulamos e gastamos, e agora a hora dopagamento se aproxima!

nota31. "Dei Esperança aos dúnedain, não guardei nenhuma esperança para mim.

"Arwen sabia o que ele pretendia, tendo previsto tudo muito tempo antes; nãoobstante, foi derrotada pela tristeza: Então iria, meu senhor, antes de seu tempo,abandonar seu povo, que vive graças ao seu comando? - disse ela.

Não antes de meu tempo - respondeu ele. - Pois, se não for agora, deverei ir embreve, á força. E Eldarion, nosso filho, é um homem maduro para o trono.

"Então, dirigindo-se para a Casa dos Reis, na rua Silenciosa, Aragorn deitou-se nolongo leito que lhe fora preparado. Ali disse adeus a Eldarion, e entregou-lhe nas mãos acoroa alada de Gondor e o cetro de Amor; depois todos o deixaram, com exceção deArwen, que ficou sozinha ao lado do leito. E, com toda a sua sabedoria e nobreza, ela nãopôde evitar de implorar que ele ficasse ainda por mais um tempo. Ainda não estavacansada de seus dias, e assim provou o gosto amargo da mortalidade que assumira para si.

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Senhora Undómiel - disse Aragorn -, a hora é realmente dificil, mas ela foi feita nomesmo dia em que nos encontramos sob as bétulas brancas no jardim de Elrond, por ondeagora ninguém caminha. E sobre a colina de Cerin Amroth, quando rejeitamos tanto aSombra como o Crepúsculo, foi este o destino que aceitamos. Aconselhe-se consigomesma, minha amada, e pergunte-se se realmente gostaria que eu esperasse até mirrar ecair de meu alto trono, sem virilidade e sem razão. Não, senhora, sou o último dosnúmenorianos, e o último rei dos Dias Antigos; a mim foi concedida não apenas umalongevidade três vezes maior que a dos homens da Terra-média, mas também a graça de irquando quisesse, devolvendo a dádiva. Agora, portanto, vou dormir.

Não lhe direi palavras de consolo, pois não há consolo para uma dor assim noscírculos do mundo. A escolha suprema se coloca diante de você: arrepender-se e ir paraos Portos, levando para o oeste a lembrança dos dias que passamos juntos, que lá serãosempre verdes, embora não passem de uma lembrança, ou então conformar-se com oDestino dos homens.

Não, querido senhor - disse ela. - Essa escolha há muito não existe mais. Agoranão há um navio que pudesse me levar para lá, e devo de fato me conformar com oDestino dos homens, quer queira quer não: a perda e o silêncio. Mas digolhe, Rei dosNúmenorianos, só agora entendo a história de seu povo e de sua queda.

Desprezei-os como tolos miseráveis, mas por fim sinto pena deles. Pois, serealmente esta for, como dizem os eldar, a dádiva do Um concedida aos homens, é umadádiva amarga de receber.

Assim parece disse ele. - Mas não nos deixemos derrotar no último teste, nós quehá muito tempo renunciamos á Sombra e ao Anel. Devemos partir com tristeza, mas nãocom desespero. Veja! Não estamos para sempre presos aos círculos do mundo, e alémdeles há mais do que lembrança. Adeus! Estel, Estel! -gritou ela, e nesse momento, nahora em que tomou sua mão e a beijou, Aragoro adormeceu. Então revelou-se nele umagrande beleza, tanto que todos os que vieram depois para vê-lo olhavam-no admirados,pois viam que a graça de sua juventude, a coragem de sua virilidade, a sabedoria e amajestade de sua velhice estavam mescladas em seu rosto. E por muito tempo ficou alideitado, uma imagem do esplendor dos Reis dos Homens, numa glória que não se apagouantes da destruição do mundo.

"Mas, quando Arwen saiu da Casa, a luz de seus olhos se apagara, e seu povo tevea impressão de que ela se tornara fria e cinzenta como o cair de uma noite de inverno, quechega sem uma estrela. Então ela disse adeus a Eldarion e às filhas, e a todos aqueles aquem amava; partiu da cidade de Minas Tirith e passou para a terra de Lóríen; e viveu lásozinha, sob as árvores que iam murchando, até que o inverno chegou. Galadriel tinha-seido, Celeborn também, e a terra estava em silêncio.

"Então, por fim, quando as folhas de maílom estavam caindo, mas a primaveraainda não chegara32, ela se deitou para descansar sobre Cerin Amroth, e lá está seutúmulo verde, até que o mundo se altere, e todos os dias de sua vida sejam completamenteesquecidos por homens que vierem depois, e elanor e niphredil não mais floresçam a lestedo Mar.

"Aqui termina esta história, como nos chegou do sul; e com a passagem da EstrelaVespertina nada mais se lê neste livro sobre os dias de outrora."

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II

A CASA DE EORL

"Eorl, o Jovem, era o senhor dos homens de Éothéod. Essa região ficava perto dasnascentes do Anduin, entre as cadeias mais distantes das Montanhas Sombrias e as partesmais setentrionais da Floresta das Trevas. Os éothéod haviam-se mudado para aquelasparagens nos dias do rei Eãrnil II, tendo vindo das terras nos vales do Anduin, entre oCarrock e o Rio de Lis, e eram originariamente parentes proximos dos beornings e doshomens das orlas ocidentais da floresta. Os antepassados de Eorl afirmavam serdescendentes dos reis de Rhovanion, cujo reino ficava além da Floresta das Trevas antesdas invasões dos Carroceiros, e dessa forma consideravam-se parentes dos reis de Gondorque descendiam de Eldacar. Davam preferência às planícies e deliciavam-se com cavalose com todas as proezas da equitação, mas naqueles dias havia muitos homens nos valescentrais do Anduin, e além disso a sombra de Doí Guldur se alongava; portanto, quandotomaram conhecimento da derrota do Rei dos Bruxos, procuraram mais espaço no norte, eexpulsaram os remanescentes do povo de Angmar do lado leste das Montanhas. Mas nosdias de Léod, pai de Eorl, seu povo se tornara numeroso, ficando de certa forma mais umavez comprimido na terra que era seu lar.

"No ano dois mil quinhentos e dez da Terceira Era, um novo perigo ameaçouGondor. Um grande exército de bárbaros do nordeste se espalhou em Rhovanion e,descendo das Terras Castanhas, atravessou o Anduin em jangadas. Ao mesmo tempo, poracaso ou por estratégia, os orcs (que naquela época, antes de sua guerra contra os anões,formavam um poderoso exército) desceram das Montanhas. Os invasores assolaramCalenardhon, e Cirion, regente de Gondor, pediu a ajuda do norte; havia uma antigaamizade entre os homens do Vale do Anduin e o povo de Gondor. Mas no Vale do Rio oshomens agora eram poucos e estavam espalhados, e demoraram para prestar o auxíliopossível. Por fim Eorl recebeu noticias sobre a dificul dade de Gondor e, emboraparecesse muito tarde, partiu com um grande exército de cavaleiros.

"Assim chegou à batalha do Campo de Celebrant, pois esse era o nome da terraverde que ficava entre o Veio de Prata e o Limclaro. Ali o exército do norte de Gondorcorria perigo. Derrotados no Descampado e isolados do sul, seus homens tinham sidoforçados a atravessar o Limclaro, e foram subitamente atacados pelo exército dos orcs queos empurrava na direção do Anduin. Não havia mais esperanças quando,inesperadamente, os Cavaleiros surgiram do norte e investiram contra a retaguarda doinimigo. Então as chances da batalha se inverteram, e o inimigo foi expulso através doLimclaro com muitas baixas. Eorl conduziu seus homens numa perseguição, e tão grandeera o medo que precedia os cavaleiros do norte que os invasores do Descampado tambémficaram em pânico, e foram perseguidos pelos homens de Eorl através das planícies deCalenardhon.

"O povo daquela região se tornara pouco numeroso desde a Peste, e os querestaram tinham sido mortos pelos selvagens orientais. Cirion, portanto, comorecompensa pela ajuda recebida, doou a região de Calenardhon que fica entre o Anduin eo Isen a Eorl e seu povo; estes mandaram buscar no norte suas esposas, filhos e pertences,assentando-se naquela região. Deram-lhe um novo nome, Terra dos Cavaleiros, epassaram a se autodenominar eorlingas; mas em Gondor sua terra era chamada Rohan, eseu povo os rohirrim (ou seja, Senhores dos Cavalos). Assim Eorl se tomou o primeiro reida Terra dos Cavaleiros, e escolheu para morar uma colina verde á frente dos pés dasMontanhas Brancas, que formavam a fronteira sul de sua terra.

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Ali os rohirrim passaram a viver como homens livres, seguindo seu próprio rei esuas próprias leis, mas em aliança perpétua com Gondor.

"Muitos senhores e guerreiros, e muitas mulheres belas e corajosas, sãomencionados nas canções de Rohan que ainda evocam o norte.

Frumgar, dizem eles, era o nome do líder que conduziu seu povo para Éothéod.Sobre seu filho, Fram, contam que matou Scatha, o grande dragão de Ered Mithrin,deixando aquela terra livre dos grandes-vermes. Dessa forma Fram adquiriu grandesriquezas, mas entrou em desentendimento com os anões, que reivindicavam o tesouro deScatha. Fram não se mostrou disposto a lhes entregar uma única moeda, e em vez dissoenviou-lhes um colar com os dentes de Scatha, acompanhado dos dizeres: "Jóias comoestas não têm similar em seus tesouros, pois são dificeis de se conseguir." Alguns dizemque os anões mataram Fram por tal insulto. Não havia grande estima entre os éothéod e osanões.

"Léod era o nome do pai de Eorl. Era domador de cavalos selvagens, pois na épocahavia muitos naquela região. Capturou um potro branco, que logo se transformou numcavalo forte, belo e altivo. Ninguém podia dominá-lo. Quando Léod tentou montá-lo, oanimal carregou-o para longe, e por fim jogou-o ao chão; a cabeça de Léod bateu contrauma pedra, e assim ele morreu. Contava com apenas quarenta e dois anos de idade, e seufilho era um rapaz de dezesseis.

"Eorl jurou que vingaria o pai. Por muito tempo caçou o cavalo, e por fim oavistou; seus companheiros esperavam que ele fosse tentar se aproximar e matá-lo comuma flechada. Mas, quando se aproximaram, Eorl pôs-se de pé e chamou o animal em vozalta: - Venha cá, Ruína do Homem, e receba um novo nome!

Para a surpresa de todos, o cavalo olhou na direção de Eorl, aproximou-se a parouao lado dele. Eorl disse: - Eu o nomeio Felaróf. Você amava sua liberdade, e não o culpopor isso.

Mas agora você me deve uma grande compensação, e deverá entregar sualiberdade a mim até o fim de sua vida.

"Então Eorl o montou, e Felarôf se submeteu; Eorl conduziu-o para casa sem rédeaou freio, e depois disso sempre o montou dessa forma. O cavalo entendia tudo o que oshomens diziam, embora não permitisse que ninguém, exceto Eorl, o montasse. Foimontado em Felaróf que Eorl cavalgou para o Campo de Celebrant, pois aquele cavaloprovou ter uma vida longa como a dos homens, o mesmo sucedendo com seusdescendentes. Estes eram os mearas, que não carregavam ninguém, a não ser o rei daTerra dos Cavaleiros ou seus filhos, até a época de Scadufax. A seu respeito os homensdiziam que Béma (a quem os eldar chamavam de Oromé) teria trazido o pai deles dooeste, além do Mar.

"Dos reis da Terra dos Cavaleiros entre Eorl e Théoden fala-se muito em HeImMão-de-Martelo. Era um homem austero, de grande força.

Havia naquele tempo um homem chamado Freca, que afirmava ser descendente dorei Fréawine, embora tivesse, afirmavam os homens, muito sangue da Terra Parda, e oscabelos escuros. Ficou rico e poderoso, possuindo amplas terras dos dois lados doAdorn33. Perto da nascente desse rio, construiu para si uma fortaleza, dando poucaatenção ao rei. HeIm não confiava nele, mas o convocava para seus conselhos; Frecavinha quando queria.

"Para participar de um desses conselhos, Freca chegou cavalgando acompanhadode muitos homens, e pediu a mão da filha de HeIm para seu filho Wulf. Mas Helm disse: -Você cresceu desde que esteve aqui pela última vez; principalmente em gordura, eu acho-; os homens riram disso, pois Freca tinha uma barriga volumosa.

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"Então Freca ficou furioso e insultou o rei, dizendo por fim: - Reis velhos querecusam o bastão que lhes é oferecido podem cair de joelhos. - HeIm respondeu:

- Venha! O casamento de seu filho é uma ninharia. HeIm e Freca podem cuidardisso mais tarde. Enquando isso, o rei e seu conselho têm assuntos importantes a tratar.

"Quando terminou o conselho, Helm levantou-se e colocou as mãos enormes sobreos ombros de Freca, dizendo: - O rei não permite gritarias em sua casa, mas os homenssão mais livres lá fora - forçou então Freca a andar á sua frente, saindo de Edoras eentrando no campo. Aos homens de Freca que se aproximavam, ele disse:

- Fora daqui! Não precisamos de ouvintes! Vamos tratar de um assunto particular.Vão conversar com meus homens. - E eles olharam e viram que os homens e amigos dorei estavam em número muito maior que eles, e recuaram.

Agora, terrapardense - disse o rei -" você só tem de lidar com Helm, sozinho edesarmado. Mas você já disse muito, e é minha vez de falar. Freca, sua loucura cresceucom sua barriga. Você fala em um bastão! Se Helm não aprecia um bastão torto que lhe éjogado, ele o quebra. Assim! - Com essas palavras, deu um murro em Freca com tal forçaque ele caiu zonzo para trás, e morreu logo em seguida.

nota33. Este rio vem do oeste das Ered Nimrais e desemboca no tsen.

"Helm então declarou que o filho de Freca e seus parentes próximos eram inimigosdo rei, e eles fugiram, pois imediatamente Helm enviou muitos cavaleiros para asfronteiras ocidentais."

Quatro anos mais tarde (2758), grandes problemas sobrevieram a Rohan, e nenhumauxílio pôde ser enviado de Gondor, pois três esquadras dos Corsários atacaram aquelereino e havia guerra ao longo de todo o litoral. Ao mesmo tempo, Rohan foi mais uma vezinvadida pelo leste, e os homens da Terra Parda, percebendo sua oportunidade,atravessaram o Isen e desceram de Isengard. Ficou-se logo sabendo que Wulf era o seulíder. Formavam um grande exército, pois juntaram-se a ele os inimigos de Gondor quedesembarcaram na foz do Lefnui e na do Isen.

Os rohirrim foram derrotados e sua terra foi assolada; os que não foram mortos ouescravizados fugiram para os vales das montanhas. Helm foi expulso das Travessias doIsen com grandes perdas, refugiando-se no Forte da Trombeta e no precipício que ficavamais atrás (que depois ficou conhecido como Abismo de Helm). Ali ficou sitiado. Wulftomou Edoras e sentou-se em Meduseld, intitulando-se rei. Ali Haleth, filho de Helm, foio último a morrer, defendendo as portas.

"Logo em seguida começou o Inverno Longo, e Rohan ficou coberta de neve porquase cinco meses (de novembro a março, 2758-9). Tanto os rohirrim como seus inimigossofreram enormemente com o frio, e com a escassez que se prolongou por mais tempo.

No Abismo de Helm houve muita fome depois do Iule; sentindo-se desesperado,contra o conselho do rei, Háma, seu filho mais novo, conduziu um grupo de homens numasurtida com a intenção de saquear as provisões do inimigo, mas todos se perderam naneve. HeIm tornou-se feroz e sombrio devido á penúria e á tristeza, e apenas o terror quecausava já valia muitos homens na defesa do Forte.

Ele saía sozinho, vestido de branco, e se esgueirava como um troll-de-neve pelosacampamentos inimigos, matando muitos homens com as próprias mãos.

Acreditava-se que, se ele não levava arma alguma, nenhuma arma poderia feri-lo.Os terrapardenses diziam que, se ele não conseguisse encontrar comida, devoravahomens. A história sobreviveu por muito tempo na Terra Parda. Helm tinha uma grande

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trombeta, e logo notou-se que antes de investir contra o inimigo ele emitia um clangor queecoava no Abismo; então um pavor tão profundo dominava seus inimigos que, em vez dese reunirem para prendê-lo ou matá-lo, eles fugiam Garganta abaixo.

"Uma noite os homens ouviram a trombeta tocar, mas Helm não retornou. Namanhã seguinte surgiu um raio de sol, o primeiro depois de muitos dias, e eles viram umvulto branco parado, imóvel sobre o Dique, sozinho, pois nenhum dos terrapardensesousava se aproximar. Ali estava Helm, morto como pedra, mas ainda ereto. Mesmo assimdizia-se que a trombeta ainda foi ouvida algumas vezes no Abismo e que o espectro deHelm caminhava em meio aos inimigos de Rohan, matando os homens de medo.

"Logo depois o inverno cedeu. Então Fréaláf, filho de Hild, a irmã de Helm,desceu do Templo da Colina, para o qual muitos haviam fugido, e com uma pequenacomitiva de homens desesperados surpreendeu Wulf em Meduseld e o matou,reconquistando Edoras. Houve grandes enchentes depois da neve, e o vale do Entáguatransformou-se num enorme charco. Os invasores do leste morreram ou se retiraram, efinalmente chegou ajuda de Gondor, pelas estradas a leste e a oeste das montanhas. Antesdo término do ano (2759), os terrapardenses foram expulsos, até mesmo de Isengard;então Fréaláf tornou-se rei.

"Helm foi trazido do Forte da Trombeta e colocado no nono túmulo.Sempre depois disso, a branca simbelmynë cresceu ali espessa, de modo que o

túmulo parecia estar coberto de neve. Quando Fréaláf morreu, iniciou-se uma outra fileirade túmulos."

O povo dos rohirrim foi dramaticamente reduzido pela guerra, pela miséria e pelaperda do gado e dos cavalos, e foi bom que mais nenhum grande perigo voltasse aameaçá-los por muitos anos, pois foi só na época do rei Folcwine que eles recuperaram aantiga força.

Foi durante a cerimônia de coroação de Fréaláf que Saruman apareceu, trazendopresentes, e elogiando muito a coragem dos rohirrim.

Foi bem recebido por todos.Logo em seguida ele passou a morar em Isengard. Para isso, Beren, regente de

Gondor, lhe deu permissão, pois Gondor ainda afirmava que Isengard era uma fortalezade seu reino, não pertencendo a Rohan. Beren também permitiu que Saraman guardasseas chaves de Orthanc. Aquela torre nunca fora invadida ou danificada por qualquerinimigo.

Dessa forma Saruman começou a se comportar como um senhor de homens, poisno inicio vigiava Isengard como um tenente do regente e um guardião da torre. MasFréaláf estava tão satisfeito quanto Beren em relação a isso, considerando que Isengardestava nas mãos de um amigo forte. Um amigo foi o que Saruman pareceu ser por muitotempo, e talvez no inicio fosse um amigo sincero. Apesar disso, posteriormente restarampoucas dúvidas nas mentes dos homens de que Saruman foi para Isengard na esperança deainda encontrar ali a Pedra, e com o propósito de construir um poder para si próprio. Comcerteza, depois do último Conselho Branco (2953), seus designios com relação a Rohan,embora ele os escondesse, eram malignos.

Então ele tomou Isengard como se fosse propriedade sua, e começou a transformá-la num lugar de força e medo, como se pretendesse rivalizar com Barad-dúr. Conquistouamigos e servidores entre todos aqueles que odiavam Gondor e Rohan, fossem eleshomens ou outras criaturas mais malignas.

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Os Reis da Terra dos Cavaleiros

Primeira Linhagem

Ano (nota 34)

2485-2545 1. Eorl, o Jovem. Era assim chamado porque sucedeu o pai ainda najuventude e permaneceu loiro e corado até o fim de sua vida. Esta foi encurtada por umnovo ataque dos orientais. Eorl morreu em combate no Descampado, e o primeiro túmulofoi erigido. Felaróf também foi colocado ali.

nota34. As datas são dadas de acordo com o Registro de Gondor (Terceira Era). As que

estão na margem referem-se ao nascimento e à morte.

25 12-70 2. Brego. Expulsou o inimigo do Descampado, e Rohan não voltou a seratacada por muitos anos. Em 2569 ele terminou o grande palácio de Meduseld.

Durante o banquete de inauguração, seu filho, Baldor, jurou que iria trilhar "asSendas dos Mortos", e nunca mais retornou35. Brego morreu de tristeza no ano seguinte.

2544-2645 3. Aldor o Velho. Era o segundo filho de Brego. Tornou-se conhecidocomo oVelho", já que viveu até uma idade avançada, e foi rei por 75 anos. Em sua época,os rohirrim aumentaram em número, e expulsaram ou subjugaram os últimosterrapardenses que restavam a leste do Isen. O Vale Harg e outros vales foram povoados.Sobre os três reis seguintes há poucas informações, pois em sua época Rohan prosperou eteve paz.

2570-2659 4. Erda. Varão mais velho, mas o quarto descendente de Aldor; jáestava velho quando se tornou rei.

2594-2680 5. Fréawine.26 19-99 6. Goldwine.2644-2718 7. Déor Em sua época os terrapardenses atacaram várias vezes através

do Isen. Em 2710 ocuparam o círculo abandonado de Isengard, e não foi possívelexpulsá-los.

2668-2741 8. Gram.2691-2759 9. Heim Mão-de-Martelo. No final de seu reino, Rohan sofreu grandes

perdas, devido a invasões e ao Inverno Longo. HeIm pereceu, bem como seus filhosHáma e Haleth. Fréaláf, filho da irmã de Helm, tornou-se rei.

Segunda Linhagem

2726-98 10. Fréaláf,filho de Hild. Em sua época Saruman chegou a Isengard, deonde os terrapardenses tinham sido expulsos. Os rohirrim no inicio lucraram com aamizade dele, nos dias de miséria e fraqueza que se seguiram.

2752-2842 11. Brytta. Seu povo o chamava de Léofa, pois era amado por todos;era generoso e ajudava a todos os necessitados. Em sua época houve uma guerra contra osorcs, que, expulsos do norte, procuraram refugio nas Montanhas Brancas36. Por ocasiãode sua morte, pensou-se que todos os orcs tinham sido expulsos, mas não era assim.

2780-2851 12. Walda. Foi rei por apenas nove anos. Foi morto com todos os seuscompanheiros quando foram capturados numa cilada por orcs, ao cruzarem as passagensdas montanhas, vindos do Templo da Colina.

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2804-64 13. Folca. Foi um grande caçador, mas jurou não perseguir qualqueranimal selvagem enquanto restasse um orc em Rohan. Quando a última fortaleza-orc foiencontrada e destruída, ele partiu para caçar o grande javali de Everholt na FlorestaFirien. Matou o javali mas morreu devido aos graves ferimentos que este lhe causou.

2830-2903 14. Folcwine. Quando se tornou rei, os rohirrim haviam recuperado suaforça. Ele reconquistou a fronteira ocidental (entre o Adorn e o Isen) que osterrapardenses tinham ocupado. Rohan recebera um grande auxilio de Gondor nos diasfunestos. Quando, portanto, ele ficou sabendo que os haradrím estavam atacando Gondorcom grandes exércitos, enviou muitos homens em auxílio ao regente.

Desejava conduzi-los em pessoa, mas foi dissuadido, e seus filhos gêmeos, Folcrede Fastred (nascidos em 2858), foram em seu lugar. Caíram lado a lado na batalha deIthílien (2885). Túrin II, de Gondor, enviou a Folcwine uma grande compensação emouro.

2870-2953 15. Fengel. Era o terceiro filho e quarto descendente de Folcwíne. Nãoé lembrado com elogios. Era ávido por comida e ouro, e não se entendia com seusmarechais ou com seus filhos. Thengel, seu terceiro descendente e único varão, deixouRohan quando se tornou adulto e viveu um longo tempo em Gondor, conquistandorespeito a serviço de Turgon.

2905-80 16. Thengel. Só se casou bem tarde, mas em 2943 tomou como esposaMorwen, de Lossamach, em Gondor, embora ela fosse dezessete anos mais jovem. Ela lhedeu três filhos em Gondor, dos quais Théoden, o segundo, era o único varão. QuandoFengel morreu, os rohírrim o convocaram, e ele retornou a contragosto. Mas mostrou-seum rei bondoso e sábio, embora a língua de Gondor fosse falada em sua casa, e nem todosos homens apreciassem esse fato. Morwen lhe deu mais duas filhas em Rohan, e a última,Théodwyn, era a mais bela, embora tivesse nascido tarde (2963), a filha da velhice do rei.Seu irmão a amava muito. Foi logo depois do retorno de Thengel que Saruman sedeclarou Senhor de Isengard e começou a causar problemas a Rohan, invadindo suasfronteiras e apoiando seus inimigos.

2948-30 19 17. Théoden. É chamado Théoden Ednew na tradição de Rohan, poiscomeçou a decair devido aos feitiços de Saruman; mas foi curado por Gandalf, e noúltimo ano de sua vida levantou-se e conduziu seus homens para a vitória no Forte daTrombeta, e logo em seguida para os Campos de Pelennor, a maior batalha da Era. Caiudiante dos portões de Mundburg. Por um tempo descansou na terra onde nascera, entre osreis mortos de Gondor, mas foi trazido de volta e colocado no oitavo túmulo de sualinhagem em Edoras. Depois iniciou-se uma nova linhagem.

Terceira Linhagem

Em 2989, Théodwyn casou-se com Éomund, do Folde Oriental, o mais importanteMarechal da Terra dos Cavaleiros. Seu filho Éomer nasceu em 2991, e sua filha Éowynem 2995. Naquela época Sauron se insurgira de novo, e a sombra de Mordor se estendiana direção de Rohan. Orcs começaram a atacar as regiões orientais e a matar ou roubarcavalos. Outros desceram também das Montanhas Sombrias, muitos deles sendo grandesuruks a serviço de Saruman, embora muito tempo se passasse antes que alguémsuspeitasse disso. A principal tarefa de Eomund estava nas fronteiras orientais; ele amavamuito os cavalos, e odiava os orcs. Se chegassem noticias sobre um ataque, ele muitasvezes investia contra eles tomado pelo ódio, sem cautela e com poucos homens. Foi assimque ele foi morto em 3002, pois estava perseguindo um pequeno bando até as fronteiras

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dos Emyn Muil, e lá foi surpreendido por um grande exército que estava á esperaescondido nas rochas.

Não muito depois Théodwyn ficou doente e morreu, para a grande tristeza do rei,que acolheu em sua casa os filhos dela, chamando-os de filho e filha. Théoden tinhaapenas um filho, Théodred, que na época contava com vinte e quatro anos; a rainhaElfhild morrera no parto, e Théoden não voltou a se casar.

Eomer e Eowyn cresceram em Edoras e viram a sombra escura cair sobre o paláciode Théoden. Eomer era como seus antepassados, mas Éowyn era esguia e alta, tendo umagraça e uma altivez herdadas do sul, de Morwen de Lossarnach, a quem os rohirrimhaviam chamado Brilho do Aço.

2991 QE. 63 (3084) Éomer Éadig. Ainda jovem tornou-se Marechal da Terra dosCavaleiros (3017), tendo-lhe sido confiada a tarefa que anteriormente fora do pai nasfronteiras orientaís. Na Guerra do Anel, Théodred caiu em combate contra Saruman nasTravessias do Isen. Portanto, antes de morrer nos Campos de Pelennor, Théoden nomeouEomer seu herdeiro e chamou-o de rei. Naquele dia Eowyn também ganhou renome, poislutou na batalha, cavalgando disfarçada; posteriormente ficou conhecida na Terra dosCavaleiros como a Senhora do Braço do Escudo37.

Éomer tornou-se um grande rei, e, sendo jovem quando sucedeu Théoden, reinoupor sessenta e cinco anos, mais tempo que todos os reis dos rohirrim exceto Aldor, oVelho. Na Guerra do Anel, tornou-se amigo do rei Elessar, e de Imrahil, de Doí Amroth; ecom frequêncía cavalgava até Gondor. No último ano da Terceira Era casou-se comLothíriel filha de Imrahil. Seu filho, Elfwine, o Belo, o sucedeu no trono.

nota37. Isso se deve ao fato de que o seu braço que carregava o escudo foi quebrado

pela maça do Rei dos Bruxos; mas este ficou reduzido a nada, e assim se cumpriram aspalavras ditas por Glorfindel ao rei Eãmur muito tempo antes, de que o Rei dos Bruxosnão cairia pela mão de um homem. Pois conta-se nas canções da Terra dos Cavaleirosque, nesse feito, Éowyn teve a ajuda do escudeiro de Théoden, que também não era umhomem, mas um Pequeno, vindo de uma terra distante, embora tenha sido homenageadopor Eomer, que lhe deu o nome de Holdwine.

(Esse Holdwine não era ninguém menos que Meriadoc, o Magnifico, Senhor daTerra dos Buques.)

Na época de Éomer, os homens da Terra dos Cavaleiros que desejavam paz ativeram, e o povo cresceu nos vales e nas planícies, e seus cavalos se multiplicaram.

Em Gondor reinava agora o rei Elessar, que também governava Amor. Em todas asterras daqueles reinos de outrora ele era rei, exceto em Rohan, pois renovou a dádiva deCiríon para com Éomer, e Éomer prestou outra vez o Juramento de Eorl.

Com frequência o cumpriu, pois, embora Sauron tivesse desaparecido, os ódios emaldades semeados por ele não haviam morrido, e o Rei do Oeste teve de subjugar muitosinimigos antes que a Arvore Branca pudesse crescer em paz. E, para onde quer que o reiElessar conduzisse uma guerra, o rei Eomer o acompanhava; e além do Mar de Rhún enos distantes campos do sul o trovão da cavalaria dos rohírrim foi ouvido, e o CavaloBranco sobre Verde tremulou em muitos ventos até Éomer ficar velho.

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III

O POVO DE DURJN

A respeito da origem dos anões histórias estranhas são contadas tanto pelos eldarquanto pelos próprios anões, mas, uma vez que essas coisas se situam longe no passado,pouco se fala sobre elas aqui. Durin é o nome que os anões usavam para o mais velho dosSete País de sua raça, e o ancestral de todos os reis dos Barbaslongas (38). Ele dormiusozinho até que, nas profundezas do tempo e no despertar de seu povo, veio paraAzanulbízar, e fez sua morada nas cavernas acima do Kheledzâram, na parte leste dasMontanhas Sombrias, onde depois se situaram as Minas de Moria, celebradas nascanções.

Ali viveu por tanto tempo que ficou conhecido em toda parte como Durin, oImortal. Apesar disso, acabou por morrer antes que os Dias Antigos se tivessem passado,e seu túmulo ficou em Khazad-dúm; mas sua linhagem sempre continuou, e cinco vezesnasceu em sua Casa um herdeiro tão parecido com seu Ancestral que recebia o nome deDurín. Na verdade, os anões achavam que era o Imortal que retornava, pois eles tinhammuitas histórias e crenças estranhas a respeito de si e de seu destino no mundo.

Depois do final da Primeira Era, o poder e a riqueza de Khazad-dúm cresceram,pois a casa foi enriquecida por muitas pessoas, muita tradição e muitos oficios quando asantigas cidades de Nogrod e Belegost, nas Montanhas Azuis, foram arruinadas nadestruição de Thangorodrím. O poder de Moria resistiu através dos Anos Escuros e dodomínio de Sauron, pois, embora Eregíon tivesse sido destruída e os portões de Moriafechados, os salões de Khazad-dúm eram por demais profundos e fortes e repletos de umpovo demasiado numeroso e valente para que Sauron pudesse conquistá-los de fora.Assim sua riqueza permaneceu por muito tempo intacta, embora seu povo começasse adiminuir.

Aconteceu que, no meio da Terceira Era, mais uma vez Durin era o rei dos anões,sendo o sexto que levava aquele nome. O poder de Sauron, servidor de Morgoth, estavaentão crescendo no mundo, embora a Sombra na Floresta que olhava na direção de Moriaainda não fosse conhecida pelo que era. Todos os seres malignos se agitavam.

Naquela época os anões faziam escavações profundas, vasculhando Barazínbar embusca de mithril, o metal de preço inestimável que a cada ano ficava mais díficíl deconseguir39. Assim eles despertaram de seu sono40 uma criatura de terror que, fugindode Thangorodrim, se escondera nos alicerces da terra desde a chegada do Exército doOeste: um balrog de Morgoth. Durin foi morto por ele, e no ano seguinte Náin 1, seufilho; então o esplendor de Moria desapareceu, e seu povo foi destruído ou fugiu paralonge.

A maioria dos que escaparam seguiram para o norte, e Thráín 1, filho de Náin,veio para Erebor, a Montanha Solitária, próxima ás bordas orientais da Floresta dasTrevas; ali iniciou novos trabalhos, e tornou-se Rei-sob-a-Montanha.

Em Erebor encontrou uma jóia, a Pedra Arken, Coração da Montanha41. MasThorin 1, seu filho, mudou-se e penetrou no norte distante, chegando até as MontanhasCinzentas, onde agora se reunia a maioria do povo de Durin, pois essas montanhas eramricas e pouco exploradas. Mas havia dragões nas regiões ermas mais além, e depois demuitos anos eles ficaram fortes outra vez e se multiplicaram, e abriram guerra contra osanões, saqueando suas minas. Por fim, Dáin 1, juntamente com Frór, seu segundo filho,foi morto ás portas de seu palácio por um grande dragão-frio.

Não muito depois, a maioria do Povo de Durin abandonou as Montanhas

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Cinzentas. Grór, filho de Dáin, foi embora com muitos seguidores para as Colinas deFerro.

Mas Thrór, o herdeiro de Dáin, juntamente com Borin, o irmão de seu pai, e orestante do povo retornaram para Erebor. Thrór trouxe de volta para o Grande Palácio deThráin a Pedra Arken, e ele e seu povo prosperaram e ficaram ricos, tendo a amizade detodos os homens que moravam nas redondezas. Pois não só eles faziam objetos deextrema beleza e singularidade, como também armas e armaduras de grande valor, e haviaum intenso comércio de minério entre eles e seus parentes das Colinas de Ferro. Dessaforma, os homens do norte, que viviam entre o Celduin (o rio Corrente) e o Carnen(Rubrágua), tornaram-se fortes e expulsaram os inimigos do leste; e os anões viviam comfartura, e havia banquetes e música nos Salões de Erebot42.

Assim, rumores sobre a riqueza de Erebor se espalharam e atingiram os ouvidosdos dragões, e por fim Smaug, o Dourado, o maior de todos os dragões de seu tempo,ergueu-se e, sem avisar, investiu contra o rei Thrór, descendo em chamas na Montanha.

Não demorou muito para que todo aquele reino fosse destruido, e a cidade deVaíle, que ficava nas imediações, ficou abandonada e em ruínas; mas Smaug entrou noGrande Salão e deitou-se ali sobre um leito de ouro.

nota40. Ou a libertaram da prisão; pode muito bem ser que a criatura já tivesse sido

despertada pela malícia de Sauron.

Muita gente do povo de Thrór escapou do saque e do incêndio, e por último,saindo dos corredores por uma porta secreta, vieram o próprio Thrór e seu filho Thráín II.Dirigiram-se para o sul com sua familia43, começando uma longa peregrinação semdestino. Com eles também foi uma pequena comitiva de parentes e seguidores fiéis.

Anos depois, Thrór, agora velho, pobre e desesperado, deu ao filho Thráin o únicogrande tesouro que ainda possuía, o último dos Sete Anéis, e então partiu com apenas umcompanheiro, de nome Nár. Na despedida ele disse a Thráin sobre o Anel: ainda podeacabar sendo o alicerce de uma nova fortuna para voce, embora isso possa parecerimprovável. Mas o Anel precisa de ouro para gerar ouro.

- O senhor não estaria pensando em voltar para Erebor, estaria? - disse Thráin.- Não na minha idade - disse Thrór. Nossa vingança contra Smaug eu a transmito

para você e seus filhos. Mas estou cansado da pobreza e do desprezo dos homens.Vou para ver o que posso encontrar. - Ele não disse para onde. Estava um pouco

perturbado talvez pela idade e pela tristeza, e por longos anos pensando no esplendor daMoria da época de seus antepassados; ou talvez o Anel estivesse voltando-se para o malagora que seu mestre despertara, conduzindo Thrór para a loucura e a destruição. DaTerra Parda, onde agora estava morando, ele foi para o norte com Nár, e elesatravessaram a Passagem do Chifre Vermelho e entraram em Azanulbizar.

Quando Thrór chegou a Moria, encontrou o Portão aberto. Nár implorou quetivesse cuidado, mas ele não deu ouvidos ao companheiro, e entrou destemido como umherdeiro que retorna. Mas não voltou. Nár ficou ali perto, escondido, por muitos dias. Umdia ouviu um grito alto e o toque de uma corneta, e um corpo foi jogado através daescada. Temendo que fosse Thrór, ele começou a se aproximar com cuidado, mas entãoveio uma voz de dentro do portão:

- Venha cá, barbadinho! Podemos vê-lo. Mas não precisa ficar com medo hoje.Precisamos de você como mensageiro.

Então Nár subiu e descobriu que realmente se tratava do corpo de Thrór, mas a

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cabeça estava decepada e com o rosto para baixo. Assim que se ajoelhou, ouviu risadas deorcs vindas das sombras, e a voz disse:

Se os mendigos não esperam na porta, e entram sorrateiramente tentando roubar,isso é o que fazemos com eles. Se qualquer um de seu povo meter sua barba suja aquioutra vez, vai ter o mesmo fim. Vá e diga isso a eles! Mas, se a família dele quiser saberquem é o rei por aqui atualmente, o nome está escrito no rosto dele. Eu escrevi. Eu omatei! Eu sou o mestre!

Então Nár virou a cabeça e viu marcado na testa de Thrór em runas dos anões, paraque ele pudesse ler, o nome AZOG. O nome ficou marcado no seu coração e nos coraçõesde todos os anões depois disso. Nár abaixou-se para pegar a cabeça, mas a voz de Azog(44) disse:

nota43. Entre os quais estavam os filhos de Thrãin ti: Thorin (Escudo de Carvalho),

Frerin e Dis. Thorin na época era um jovem pela contagem dos anões. Depois ficou-sesabendo que haviam escapado mais pessoas do Povo-sob-a-Montanha do que a principiose imaginara; mas a maioria deles dirigiu-se para as Colinas de Ferro.

44. Azog era o pai de Bolg.

- Largue isso! Fora daqui! Aqui está a sua paga, mendigo-barbudo.- Uma pequenabolsa lhe foi atirada. Continha algumas moedas de pouco valor.

Chorando, Nár fugiu pelo Veio de Prata; mas olhou mais uma vez para trás e viuque alguns orcs tinham saido pelo portão e estavam despedaçando o corpo e jogandoaspartes para os corvos negros.

Foi essa a história que Nár trouxe de volta aThráín, e, quando este já tinha choradoe arrancado muitos fios de sua barba, ficou em silêncio. Ficou sete dias sentado sem dizerpalavra. Então levantou-se e disse: - Isso é intolerável! - Foi assim que começou a Guerraentre os anões e os orcs, que foi longa e mortal, travada em sua maior parte nos lugaresprofundos embaixo da terra.

Thráin imediatamente enviou mensageiros levando a história para o norte, o leste eo oeste, mas demorou três anos para que os anões concentrassem suas forças.

O Povo de Durin reuniu todo o seu exército, que se juntou a grandes forçasenviadas das Casas de outros Pais. Tal desonra para com o herdeiro do Mais Velho de suaraça os encheu de ira. Quando tudo estava pronto, eles atacaram e saquearam cada umadas fortalezas dos orcs que conseguiram, do Gundabad até o Rio de Lis. Ambos os ladosforam implacáveis, e houve morte e feitos cruéis de dia e de noite. Mas os anõesconquistaram a vitória por sua força, por suas armas incomparáveis e pelo fogo de sua ira,caçando Azog em cada caverna sob a montanha.

Por fim, os orcs que fugiam deles reuniram-se em Moria, e o Exército dos anõesque os perseguia chegou a Azanulbizar. Este era um grande vale que ficava entre osbraços das montanhas ao redor do lago de Kheled-zâram, e que fora uma parte antiga doreino de Khazad-dúm. Quando os anões viram o portão de suas antigas moradias sobre aencosta da colina, emitiram um forte grito que eeoou no vale feito trovão. Mas um grandeexército de inimigos estava disposto nas encostas acima deles, e dos portões derramou-seuma multidão de orcs que haviam sido reservados por Azog para uma necessidadeextrema.

No inicio, a sorte estava contra os anões, pois era um dia escuro de inverno. semsol, e os orcs, que não vacilaram, estavam em número maior que seus inimigos, eocupavam o terreno mais alto. Assim começou a Batalha de Azanulbizar (ou Nanduhiron,

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na Língua Élfica), cuja lembrança ainda faz com que os orcs tremam e os anões chorem.O primeiro ataque da vanguarda liderado por Thráin foi rechaçado com baixas, e Thráinfoi obrigado a se retirar para uma floresta de grandes árvores que na época ainda vicejava,não muito distante do Kheled-zâram. Ali Frerin, seu filho, caiu, e Fundín, seu parente,além de vários outros, juntamente com Thráin e Thorin, ficaram feridos45. Em outroponto, a batalha avançava e recuava com grande matança, até que finalmente o povo dasColinas de Ferro virou o jogo.

nota45. Conta-se que o escudo de Thorin foi partido, e ele o jogou fora. Cortou então

com seu machado um ramo de um carvalho e o segurava com a mão esquerda para seproteger dos golpes dos inimigos, ou para brandi-lo como um porrete. Dessa forma,ganhou seu nome (Thorin Escudo de Carvalho).

Chegando depois ao campo, com força total, os guerreiros de Náin, filho de Grór,protegidos com malhas metálicas, perseguiram os orcs até o limiar de Moria, gritando"Azog! Azog!", enquanto derrubavam com suas picaretas todos os que barravam seucaminho.

Então Náin parou diante do Portão e gritou numa voz poderosa: - Azog! Se estiveraí dentro, saía! Ou será que o jogo no vale está duro demais?

Então Azog saiu, um grande orc com uma enorme cabeça coberta de ferro, emesmo assim ágil e forte. Junto saíram muitos como ele, os lutadores de sua guarda, e, àmedida que avançaram contra a tropa de anões, Azog virou-se para Náin, dizendo:

- O quê? Mais um mendigo em minha porta? Será que vou precisar marcá-lotambém? - Com isso avançou contra Náin e eles lutaram. Mas Náin estava meio cego pelaira, e também muito cansado da batalha, enquanto Azog estava descansado, era cruel echeio de astúcia. Logo Náin desferiu um grande golpe com toda a força que lhe restava,mas Azog pulou de lado e chutou a perna de Náín, de modo que a picareta se estílhaçoucontra a pedra onde o orc estivera, enquanto Náín caiu para a frente. Então Azog, com umgolpe rápido, atingiu-lhe o pescoço. O colarinho de metal resistiu á lâmina, mas o golpefoi tão pesado que o pescoço de Náin foi quebrado e ele caiu.

Então Azog riu, ergueu a cabeça e soltou um grande grito de triunfo. Mas o gritomorreu-lhe na garganta, pois ele viu que todo o seu exército no vale fugia em debandada,e os anões iam de um lado e do outro matando como bem queriam, e os que conseguiamescapar deles estavam fugindo para o sul, correndo e guinchando.

Perto de onde estava, todos os soldados de sua guarda jaziam mortos. Azog virou-se e fugiu na direção do Portão.

Subindo os degraus atrás dele veio um anão com um machado vermelho. Era DáinPé-de-Ferro, filho de Náín. Pegou Azog bem diante da porta, e ali o matou e decepou-lhea cabeça. Isso foi considerado um grande feito, pois Dáin na época era apenas umrapazola para os padrões dos anões. Mas ainda havia uma vida longa e muitas batalhasdiante dele, até que velho, mas náo curvado, ele acabasse por cair na Guerra do Anel.Todavia, mesmo sendo corajoso e cheio de ira como estava, conta-se que, quando desceuos degraus do Portão, seu rosto estava cinzento, como o de alguém que acabou de passarpor um grande medo.

Quando por fim a batalha foi vencida, os anões que restavam reuniram-se emAzanulbizar. Pegaram a cabeça de Azog e meteram-lhe na boca a bolsa com o dinheiro depouco valor, e então a fincaram numa estaca. Mas naquela noite não houve banquete nemcantoria, pois o número de mortos ultrapassava o cálculo de sua tristeza.

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Não mais da metade deles, conta-se, ainda conseguia ficar de pé ou ter esperançasde cura.

Não obstante, pela manhã, Thráin estava diante deles. Um de seus olhos foracegado para sempre, e ele mancava devido a um ferimento na perna, mas mesmo assimdisse: - Muito bem! Conquistamos a vitória! Khazad-dúm é nossa!

Mas eles responderam: - Você pode ser herdeiro de Durin, mas mesmo com umolho você deveria enxergar com mais clareza. Lutamos nesta batalha por vingança, e nosvingamos. Mas esta vingança não é doce. Se isto for uma vitória, então nossas mãos sãomuito pequenas para segurá-la.

E os que não faziam parte do Povo de Durin disseram: - Khazad-dúm não era acasa de nossos Pais. O que representa para nós, além de uma esperança de conseguirmostesouros? Mas agora, se devemos voltar sem as recompensas e as compensações que nossão devidas, quanto mais cedo voltarmos para nossas próprias terras melhor será.

Então Thráin virou-se para Dáin e disse: - Mas, com certeza, meus própriosparentes não vão me abandonar? - Não - disse Dáin. - Você é o pai de nosso Povo, ederramamos nosso sangue por você, e estamos dispostos a fazê-lo de novo. Mas nãovamos entrar em Khazad-dúm. Você não vai entrar em Khazad-dúm. Somente eu olheiatravés da sombra do Portão. Além da sombra ainda o espera a Ruína de Durin. O mundodeve mudar, e algum outro poder que não é o nosso deverá vir antes que o Povo de Durinentre de novo em Moria.

Foi assim que, depois de Azanulbizar, os anões dispersaram-se mais uma vez. Masantes disso, com grande esforço, despojaram todos os seus mortos, para evitar que os orcsviessem e conseguissem ali um estoque de armas e cotas de malha. Conta-se que cadaanão que saiu do campo de batalha vinha vergado sob um grande peso.

Então construiram muitas piras e cremaram todos os corpos de seu povo. Houve grande derrubada de árvores no vale, que depois disso ficou para sempre

deserto, e de Lóríen foi possível avistar a fumaça da cremação46. Quando as horrendas fogueiras estavam em cinzas, os aliados foram embora para

suas próprias terras, e Dáin Pé-de-Ferro conduziu o povo de seu pai de volta para asColinas de Ferro. Então, parando ao lado da grande estaca, Thráin disse a Thorin Escudode Carvalho: - Alguém poderia pensar que esta cabeça foi comprada a um alto preço! Pelomenos demos o nosso reino por ela. Você voltará comigo para a bigorna? Ou preferemendigar pão em portas orgulhosas?

- Para a bigorna - respondeu Thorin. - Pelo menos o martelo manterá os braçosfortes, até que possam outra vez empunhar armas mais afiadas.

Então Thráin e Thorín, com o restante de seus seguidores (entre os quais estavamBalin e Glóin), voltaram para a Terra Parda, e logo após mudaram-se para Eriador, atéque por fim fizeram um lar no exílio, na parte leste das Ered Luin, além de Lún. Amaioria dos objetos que forjaram naquela época era de ferro, mas eles prosperaram decerta maneira, e seu povo lentamente cresceu47. Mas, como Thrór dissera, o Anelprecisava de ouro para gerar ouro, e eles tinham pouco ou quase nada daquele metal e deoutros metais preciosos.

nota46. Foi triste para os anões dispensar aos seus mortos tal tratamento, que era contra

os seus hábitos; mas fazer os túmulos que estavam acostumados a construir (uma vez queeles depositam seus mortos na rocha, e não na terra) levaria muitos anos. Portanto, osanões recorreram ao fogo, preferindo isto a expor seu povo a animais, aves ou orcscarntceíros. Mas aqueles que caíram em Azanulbizar eram homenageados na lembrança, e

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até hoje um anão se refere com orgulho a um de seus antepassados: "ele foi um anãocremado", e isso é o suficiente.

47. Eles tinham muito poucas mulheres. Dis, filha de Thráin, estava lá. Era a mãede Fili e Kili, que nasceram nos Ered Luin. Thorin não era casado.

Sobre esse Anel pode-se dizer algo aqui. Os anões do Povo de Dum acreditavamque ele era o primeiro dos Sete que foram forjados, e dizem que ele foi dado ao rei deKhazad-dúm, Dum III, pelos próprios ferreiros élficos, e não por Sauron, embora semdúvida o poder maligno deste estivesse no Anel, já que ele ajudara na forja de todos osSete. Mas os possuidores do Anel não o exibiam nem comentavam sobre ele, e raramenteo entregavam antes de estarem ás portas da morte, de modo que os outros não sabiam aocerto onde estava guardado. Alguns pensavam que tinha ficado em Khazaddúm, nastumbas secretas dos reis, se é que estas não tivessem sido descobertas e saqueadas; masentre o povo do Herdeiro de Durin acreditava-se (erroneamente) que Thrór o estavausando quando retornou temerariamente para lá.

O que então teria acontecido a ele não sabiam. O Anel não foi encontrado junto aocorpo de Azog45.

Não obstante, pode muito bem ser, como acreditam atualmente os anões, queSauron, por suas artes, tenha descoberto quem estava com o Anel, o último a continuarlivre, e que os estranhos infortúnios sofridos pelos herdeiros de Dum se tenham devidoem grande parte á malícia dele. Pois os anões se revelaram indomáveis atravês dessemeio. O único poder que o Anel tinha sobre eles era o de inflamar seus corações com umaavidez por ouro e objetos preciosos, de modo que, se eles não tivessem essas coisas,achavam que todas as outras não traziam lucro algum, e eles se enchiam de ira e de desejode vingança contra todos os que os privavam de tais coisas.

Mas, desde o início, os anões eram feitos de uma fibra que os fazia resistirfirmemente a qualquer dominação. Embora pudessem ser mortos ou destruidos, nãopodiam ser reduzidos a sombras escravizadas por outra vontade; e pelo mesmo motivosuas vidas não eram afetadas por qualquer Anel, não sendo prolongadas ou encurtadas porcausa dele. Isso fazia com que Sauron odiasse ainda mais os seus possuidores, e desejassedespojá-los.

Portanto, foi talvez em parte pela malícia do Anel que Thráín, depois de algunsanos, foi ficando inquieto e insatisfeito. O desejo de ouro não saia de sua cabeça. Por fim,quando não conseguia mais contê-lo, voltou sua mente para Erebor, e decidiu retornarpara lá. Não mencionou a Thórin nada do que estava em seu coração, mas com Balin eDwalin e alguns outros levantou-se, disse adeus e partiu.

Pouco se sabe do que se passou com ele depois. Agora parece possível que, assimque se distanciou com poucos companheiros, ele foi perseguido pelos emissários deSauron. Lobos o caçaram, orcs prepararam-lhe emboscadas, pássaros malignos encheramsuas trilhas de sombras, e, quanto mais ele avançava a duras penas para o norte, maisnumerosos eram os infortúnios que se lhe opunham. Chegou uma noite escura na qual elee seus companheiros vagaram na região além do Anduin, foram forçados a se abrigar nasfronteiras da Floresta das Trevas devido a uma chuva negra. Pela manhã Thráín não foiencontrado no acampamento, e seus companheiros o chamaram em vão. Procuraram-nopor muitos dias, até que por fim, sem mais esperanças, partiram ao encontro de Thorin. Sódepois de muito tempo se soube que Thráin fora capturado e levado para os poços de DoíGuldur. Ali foi torturado e o Anel lhe foi tomado. E lá acabou por morrer.

Assim Thorin Escudo de Carvalho tornou-se o Herdeiro de Dum, mas um herdeirosem esperança. Quando Thráin desapareceu, ele tinha noventa e cinco anos, e era um

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grande anão de porte altivo, mas parecia satisfeito em permanecer em Eriador. Alitrabalhou e negociou por muito tempo, ganhando toda a riqueza possível; seu povoaumentou devido á chegada de muita gente errante do Povo de Dum que ouvia falar desua morada no oeste e vinha até ele. Agora tinham belos palácios nas montanhas, eestoques de mercadorias, e seus dias não pareciam tão díficeis, embora suas cançõessempre mencionassem a distante Montanha Solitária.

Os anos se alongaram. As cinzas no coração de Thorin se aqueceram de novoenquanto ele pensava nas iniquídades sofridas por sua Casa e na herança que recebera: atarefa de vingar-se do Dragão. Pensava em armas e exércitos e alianças, enquanto seugrande martelo ressoava na forja; mas os exércitos estavam dispersos e as aliançasrompidas e os machados de seu povo eram poucos; e um enorme ódio sem esperançaqueimava em seu coração enquanto ele malhava o ferro vermelho na bigorna.

Mas por fim ocorreu um encontro casual entre Thorin e Gandalf que mudou toda asorte da Casa de Durin, além de conduzir a fins outros e mais importantes.

Uma vez49, Thorin retornava para o oeste de uma viagem, quando passou umanoite em Bri. Ali também estava Gandalf. Ia para o Condado, lugar que não visitara jáhavia vinte anos. Sentia-se cansado, e desejava repousar ali por um tempo.

No meio de muitas preocupações, sua mente se concentrava no estado perigoso donorte, pois ele já sabia na época que Sauron estava planejando uma guerra e pretendia,assim que se sentisse forte o suficiente, atacar Valfenda.

Mas agora, para opor resistência contra qualquer tentativa do leste de reconquistaras terras de Angmar e as passagens do norte nas montanhas, só havia os anões das Colinasde Ferro. E além destas ficava a desolação do Dragão. Sauron poderia utilizar-se doDragão com um efeito terrível. Como então seria possível destruir Smaug49

Foi no momento em que Gandalf estava sentado ponderando sobre essas coisasque Thorin parou diante dele e disse: - Mestre Gandalf, conheço-o apenas de vista, masagora ficaria feliz em conversar com você. Pois ultimamente tenho pensado em você comfrequência, como se me fosse ordenado que o procurasse. De fato teria feito isso, sesoubesse onde encontrá-lo.

Gandalf olhou para ele surpreso. - Isso é estranho, Thorin Escudo de Carvalho -disse ele. - Pois também estive pensando em você, e, embora esteja a caminho doCondado, tinha em mente que este também é o caminho para os seus palácios.

- Chame-os assim, se desejar - disse Thorín. - São apenas pobres acomodações noexílio. Mas você seria bem-vindo lá, se quisesse nos visitar. Pois dizem que você é sábio econhece melhor do que qualquer um o que acontece no mundo; há muitas coisas que mepreocupam e ficaria feliz em me aconselhar com voce.

- Eu irei - disse Gandalf-, pois desconfio que temos pelo menos um problema emcomum. O Dragão de Erebor me preocupa, e não acho que será esquecido pelo neto deThrór.

nota49. 15 de março de 2941.

Conta-se em outro lugar sobre as consequências desse encontro: sobre o estranhoplano feito por Gandalf para ajudar Thorin, e sobre como Thorin e seus companheirospartiram do Condado em busca da Montanha Solitária, o que resultou em grandes feitosimprevistos. Aqui são relembradas apenas as coisas que se referem diretamente ao Povode Durin.

O Dragão foi morto por Bard, de Esgaroth, mas houve uma batalha em Vaíle. Pois

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os orcs atacaram Erebor assim que ficaram sabendo do retorno dos anões, e eramliderados por Bolg, filho daquele Azog que Dáin matara em sua juventude. Naquelaprimeira batalha de Vaíle, Thorin Escudo de Carvalho foi mortalmente ferido; morreu efoi enterrado num túmulo sob a Montanha, com a Pedra Arken sobre o peito. Ali tambémcaíram Fíli e Kili, os filhos de sua irmã. Mas Dáin Pé-de-Ferro, seu primo, que viera dasColinas de Ferro em seu auxilio e que também era seu herdeiro por direito, tornou-se o reiDáin II, e o Reino-sob-a-Montanha foi restaurado, exatamente como Gandalf desejava.Dáin mostrou ser um grande e sábio rei, e os anões prosperaram e se fortaleceram outravez em sua época.

No fim do verão do mesmo ano (2941), Gandalf conseguira por fim convencerSaruman e o Conselho Branco a atacarem Dol Guldur, e Sauron se retirou, indo paraMordor, onde poderia estar a salvo, segundo pensava, de todos os seus inimigos. Foiassim que, quando a Guerra por fim chegou, o principal ataque foi dirigido para o sul;mas mesmo assim, com sua mão direita estendida, Sauron poderia ter feito grande mal aonorte, se o rei Daín e o rei Brand não lhe tivessem impedido o caminho.

Foi isso o que Gandalf disse a Frodo e Gimli, quando ficaram morando por umtempo em Minas Tirith. Não fazia muito tempo que tinham chegado a Gondor notícias deeventos distantes.

- Senti pela morte de Thorín - disse Gandalf -, e agora ficamos sabendo que Dáinmorreu, lutando em Vaíle mais uma vez, ao mesmo tempo em que lutávamos aqui.Consideraria esta uma enorme perda, se não fosse um grande prodígio o fato de que, emsua idade avançada, ele ainda conseguisse brandir seu machado com a força com quedizem que o fez, de pé sobre o corpo do rei Brand diante do Portão de Erebor até o cair daescuridão.

- Mas, apesar disso, as coisas poderiam ter sido muito diferentes, e muito piores.Quando vocês pensam na grande Batalha do Pelennor, não devem se esquecer dasbatalhas de Vaíle e da coragem do Povo de Durin. Pensem no que poderia ter acontecido.Fogo de Dragão e espadas cruéis em Eriador, noite em Valfenda. Poderia não haverrainha em Gondor. Poderíamos agora ter esperanças de retornar da vitória para encontrarapenas cinzas e ruínas. Mas isso foi evitado - porque eu encontrei Thorin Escudo deCarvalho certa noite no início da primavera em Bri. Um encontro casual, como se diz naTerra-média.

Dis era filha de Thráin II. É a única mulher-anã mencionada nessas histórias. Gimlicontou que há poucas anãs, provavelmente não mais que um terço de todo o povo.Raramente elas deixam seus lares, a não ser que haja grande necessidade. São tãosemelhantes aos anões na voz e na aparência, e nas roupas que usam quando precisamviajar, que olhos e ouvidos dos outros povos não conseguem distíngui-los. Isso deuorigem entre os homens á tola crença de que não há anãs, e os anões "nascem da pedra".

A Linhagem dos anões de Erebor, como foi desenhada por Gimil, filho de Glóin,para o rei Elessar.

Fundação de Erebor, 1999.Dáin I morto por um dragão, 2589.Retorno a Erebor, 2590.Erebor saqueada, 2770.Assassinato de Trór, 2790.Concentração os Anões, 2790-3.Guerra entre anões e orcs, 2793-9.

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Batalha de Nanduhirion, 2799.Thráin parte sem destino, 2841.Morte de Thráin e perda de seu Anel, 2850.Batalha dos Cinco Exércitos e morte de Thorin II, 2941.Balin vai para Moria, 2898.

- Os nomes daqueles que foram considerados reis do Povo de Durin, no exílio ounão, estão marcados deste modo. Dos outros companheiros de Thorin Escudo de Carvalhona tomada para Erebor, Ori, Nori e Dori também eram da Casa de Durin, e parentes maisremotos de Thorin; Bifur, Bofo e Bombur descendiam dos anões de Moria mas não eramda linhagem de Durin.

É por causa do reduzido número de mulheres entre eles que a espécie dos anões semultiplica lentamente, e fica ameaçada quando eles não têm uma moradia segura.

Pois os anões só se casam uma vez na vida, e são ciumentos, como em todos osseus direitos. O número de anões-varões que se casam é na verdade menos de um terço.Pois nem todas as mulheres se casam: algumas não desejam maridos, outras desejamalgum que não podem conseguir e portanto não aceitam outro. Quanto aos homens,muitos também não desejam o casamento, concentrando-se em seus oficios.

Gimli, filho de Glóin, é famoso, pois foi um dos Nove Caminhantes que partiramcom o Anel, e ficou na companhia do rei Elessar durante toda a Guerra. Foi chamado deAmigo-dos-elfos devido ao grande amor nascido entre ele e Legolas, filho do reiThranduil, e por causa de sua reverência pela Senhora Galadriel.

Depois da queda de Sauron, Gimli trouxe para o sul uma parte do povo dos anõesde Erebor, e tornou-se Senhor das Cavernas Cintilantes. Ele e seu povo realizaramgrandes trabalhos em Gondor e em Rohan. Para Minas Tirith forjaram portões de mithril eaço, substituindo aqueles que foram destruidos pelo Rei dos Bruxos. Legolas, seu amigo,também trouxe para o sul alguns elfos da Floresta Verde, e eles moraram em Ithilien, quese tornou outra vez o lugar mais belo de todas as Terras do Oeste.

Mas, quando o rei Elessar entregou sua vida, Legolas seguiu por fim o desejo deseu coração, e navegou atravessando o Mar.

Segue-se aqui uma das últimas notas do Livro Vermelho

Ouvimos dizer que Legolas levou consigo Gimli, filho de Glóin, por causa de suagrande amizade, maior do que qualquer uma que já houve entre um elfo e um anão. Seisto for verdade, então é realmente estranho: que um anão estivesse disposto a deixar aTerra-média por qualquer amor, e que os eldar o recebessem, ou que os Senhores doOeste permitissem tal coisa. Mas conta-se que Gimli partiu também movido pelo desejode rever a beleza de Galadriel; pode ser que ela, sendo poderosa entre os eldar, tenhaconseguido tal graça para ele. Não se pode dizer mais nada sobre esse assunto.

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APÊNDICE B

O CONTO DOS ANOS

(Cronologia das Terras do Oeste)

A Primeira Era terminou com a Grande Batalha, na qual o Exército de Valínordestruiu Thangorodrim1 e derrotou Morgoth. Então a maior parte dos noldor retornoupara o Extremo Oeste2 e passou a morar em Eressêa, perto de Valínor, e muitos dossindar também atravessaram o Mar.

A Segunda Era terminou com a primeira derrota de Sauron, servidor de Morgoth, ecom a tomada do Um Anel.

A Terceira Era chegou ao fim com a Guerra do Anel; entretanto, só se consideraque a Quarta Era teve início com a partida de Mestre Elrond, quando chegou a época dodomínio dos homens e do declínio de todos os outros "povos falantes" na Terra-média3.

Na Quarta Era, todas as eras anteriores eram frequentemente chamadas de DiasAntigos, mas esse nome fica mais adequado se for aplicado somente aos dias anterioresao banímento de Morgoth. As histórias dessa época não estão registradas aqui.

A Segunda Era

Estes foram os tempos sombrios para os homens da Terra-média mas os anos deglória de Númenor. Sobre eventos na Terra-média os registros são raros e breves, e asdatas são frequentemente duvidosas.

No início dessa era, muitos dos altos elfos ainda permaneciam. A maioria delesmorava em Lindon, a oeste das Ered Luín; mas antes da construção de Baraddor muitosdos sindar foram para o leste, e alguns estabeleceram reinos nas florestas distantes, onde amaior parte do povo se compunha de elfos da Floresta. Thranduil, rei no norte da GrandeFloresta Verde, era um destes. Em Lindon, a norte de Lún, morava Gil-galad, o últimoherdeiro dos reis dos noldor no exílio. Era reconhecido como alto rei dos elfos do oeste.Em Lindon, ao sul de Lún, morou por um tempo Celeborn, parente de Thíngol; suamulher era Galadriel, a maior das mulheres élficas.

Ela era irmã de Finrod Felagund, Amigo-dos-Homens, outrora rei de Nargothrond,que deu sua vida para salvar Beren, filho de Barahir.

Posteriormente, alguns dos noldor foram para Eregion, no lado ocidental dasMontanhas Sombrias, próximo ao Portão Oeste de Moria. Fizeram isto porque souberaraque se descobrira mithril em Mona4. Os noldor eram grandes artesãos e menos hostis aosanôes do que os sindar; mas a amizade que cresceu entre o povo de Durio e os ferreirosélficos de Eregion foi a mais estreita que já houve entre as duas raças. Celebrimbor eraSenhor de Eregion e o maior dos artesàos; era descendente de Fêanor.

Ano1 Fundação dos Portos Cinzentos e de Lindon.32 Os edain chegam a Númenor.c. 40 Muitos anões, deixando suas antigas cidades nas Ered Luin, vão para Moria

aumentando a população local.442 Morte de Elros Tar-Minyatur.c. 500 Sauron começa outra vez a agitar-se na Terra-média.548 Nasce Silmariên em Númenor.

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600 Os primeiros navios dos númenorianos aparecem próximos ao litoral. 750Fundação de Eregion, pelos noldor.

c. 1000 Sauron, alarmado com o crescimento do poder dos númenorianos, escolheMordor como o local para transformar numa fortaleza. Começa a construção de Barad-dúr.

1075 Tar-Ancalimê torna-se a primeira rainha governante de Númenor.1200 Sauron tenta seduzir os eldar. Gil-galad se recusa a fazer acordo com ele,

mas os ferreiros de Eregion passam para o seu lado. Os númenorianos começam aconstruir portos permanentes.

c. 1500 Os ferreiros élficos, orientados por Sauron, alcançam o apogeu de suahabilidade. Começam a forja dos Anéis de Poder.

c. 1590 São completados os Três Anéis em Eregion.c. 1600 Sauron forja o Um Anel em Orodruin. Finaliza a construção de Baraddúr.

Celebrimbor percebe as intenções de Sauron.1693 Começa a guerra entre os elfos e Sauron. Os Três Anéis são escondidos.1695 As forças de Sauron invadem Eriador. Gil-galad envia Elrond para Eregion.1697 Eregion é devastada. Morte de Celebrimbor. Os portões de Moria são

fechados. Elrond retira-se com os remanescentes dos noldor e funda o refúgio de Imíadris.1699 Sauron invade Eriador.1700 Tar-Minastir envia uma grande esquadra de Númenor para Lindon. Sauron é

derrotado.1701 Sauron é expulso de Eriador. As Terras do Oeste têm paz por um longotempo.c. 1800 Por volta dessa época os númenorianos começam a estabelecer dominios

nas costas. Sauron estende seu poder na direção do leste. A sombra cai sobre Númenor.2251 Tar-Atanamir toma o cetro. Começa a rebelião e a divisão dos númenorianos.

Por volta dessa época os nazgúl ou Espectros do Anel, escravos dos Nove Anéis,aparecem pela primeira vez.

2280 Umbar se transforma numa grande fortaleza de Númenor.2350 Pelargir é construído. Torna-se o principal porto dos númenorianos Fiéis.2899 Ar-Adûnakhôr toma o cetro.3175 Arrependimento de Tar-Palantir. Guerra civil em Númenor.3255 Ar-Pharazôn, o Dourado, toma o cetro.3261 Ar-Pharazôn zarpa e aporta em Umbar.3262 Sauron é levado para Númenor como prisioneiro; 3262-3310 Sauron seduz o rei e corrompe os númenorianos.3310 Ar-Pharazôn inicia a construção do Grande Armamento.3319 Ar-Pharazõn ataca Valinor. Queda de Númenor. Elendil e seus filhos

escapam.3320 Fundação dos Reinos no Exílio: Amor e Gondor. As Pedras são divididas.

Sauron retorna a Mordor.3429 Sauron ataca Gondor, toma Minas Ithil e queima a Árvore Branca. Isildur

escapa pelo Anduin e vai ao encontro de Elendil no norte. Anárion defen de Minas Anor eOsgiliath.

3430 Forma-se a Última Aliança entre elfos e homens.3431 Gil-galad e Elendil marcham para o leste na direção de Imíadris.3434 O exército da Aliança atravessa as Montanhas Sombrias. Batalha de

Dagorlad e derrota de Sauron. Começa o cerco de Barad-dúr.3440 Anárion é assassinado.

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3441 Sauron derrubado por Elendil e Gil-galad, que morrem. Isildur toma o UmAnel. Sauron desaparece e os Espectros do Anel entram nas sombras. Termina a SegundaEra.

A Terceira Era

Estes foram os últimos anos dos eldar. Viveram em paz por um longo tempo,controlando os Três Anéis, enquanto Sauron dormia e o Um Anel estava perdido; mas nãotentaram nada de novo, vivendo de recordações do passado. Os anões se esconderam emlugares profundos, guardando seus tesouros; mas, quando o mal começou a se manifestarde novo e os dragões reapareceram, seus antigos tesouros foram saqueados um a um, eeles se transformaram num povo errante. Por muito tempo Moria permaneceu um lugarseguro, mas a população diminuía até que muitos de seus vastos salões se tornaramescuros e vazios. A sabedoria e a longevidade dos númenorianos também foramminguando, à medida que eles se miscigenaram com homens inferiores.

Quando cerca de mil anos haviam passado, e a primeira sombra cobriu a GrandeFloresta Verde, os istari ou magos apareceram na Terra-média. Posteriormente comentou-se que eles tinham vindo do Extremo Oeste e eram mensageiros enviados para fazerfrente ao poder de Sauron, e para unir todos aqueles que tinham vontade de resistir a ele;mas os magos estavam proibidos de enfrentar o poder dele com o seu poder, ou deprocurar dominar os elfos ou os homens usando de força ou medo.

Portanto vieram na forma de homens, embora nunca fossem jovens eenvelhecessem vagarosamente, e detinham muitos poderes na mente e nas mãos.Revelavam seus verdadeiros nomes a poucos5, mas usavam os nomes que lhes eramdados. Os dois maiores dessa ordem (da qual se diz que era composta de cinco) eramchamados pelos eldar de Curunir, "o Homem Habilidoso", e Mithrandir, "o PeregrinoCinzento", mas os homens do norte chamavam-nos respectivamente de Saruman eGandalf. Curunir viajava frequentemente para o leste, mas por fim passou a morar emIsengard. Mithrandir tinha uma amizade mais estreita com os eldar, e vagavaprincipalmente no oeste, nunca fixando uma residência permanente.

Ao longo de toda a Terceira Era, a guarda dos Três Anéis só era conhecidadaqueles que os possuiam. Mas finalmente se ficou sabendo que no início eles estiveramsob a posse dos três maiores entre os eldar: Gil-galad, Galadriel e Círdan. Gil-galad, antesde morrer, entregou seu anel a Elrond; Cirdan mais tarde entregou o seu a Mithrandir.Cirdan enxergava mais longe e mais fundo que qualquer outro na Terra-média, e assimrecebeu Mithrandir nos Portos Cinzentos, sabendo de onde ele viera e para onderetornaria.

- Tome este anel, Mestre - disse ele -, pois seus trabalhos serão árduos; mas ele iráajudá-lo na cansativa missão que você tomou para si.

Pois este é o Anel de Fogo, e com ele você poderá reacender corações num mundoque se esfria. Mas, quanto a mim, meu coração está com o Mar, e vou morar nas praiascinzentas até que zarpe o último navio. Vou aguardar voce.

Ano1 Fundação dos Portos Cinzentos e de Lindon.2 Isildur planta uma muda da Arvore Branca em Minas Anor. Entrega o Reino do

Sul para Meneldil. Desastre dos Campos de Lis; Isildur e seus três filhos mais velhos sãomortos.

3 Ohtar traz os fragmentos de Narsil a Imíadris.

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10 Valandil torna-se rei de Amor.109 Elrond casa-se com Celebrían, filha de Celeborn.130 Nascem Elladan e Elrobir, filhos de Elrond.241 Nasce Arwen Undómiel.420 O rei Ostoher reconstrói Minas Anor.490 Primeira invasão dos orientais.500 Rómendacil 1 derrota os orientais.541 Rómendacil é morto em batalha.830 Falastur começa a linhagem dos reis navegantes de Gondor.861 Morte de Eãrendur e divisão de Amor.933 O rei Eãrnil 1 conquista Umbar, que se transforma numa fortaleza de Gondor.936 Eãrnil se perde no mar.1015 O rei Ciryandil é morto no cerco de Umbar.1050 Hyarmendacíl conquista Harad. Gondor alcança o apogeu de seu poder. Por

volta dessa época uma sombra cai sobre a Floresta Verde, e os homens começam achamá-la de Floresta das Trevas. Os Periannath são mencionados pela primeira vez nosregistros, com a chegada dos Péspeludos a Eriador.

c. 1100 Os sábios (os istari e os principais eldar) descobrem que um poder malignoconstruiu uma fortaleza em Doí Guldur. Há desconfiança de que se trata de um dosnazgúl.

1149 Começa o Reinado de Atanatar Alcarin.c. 1150 Os Cascalvas chegam a Eriador. Os Grados chegam pelo Passo do Chifre

Vermelho e mudam-se para o Ângulo, ou para a Terra Parda.c. 1300 Seres malignos começam a se multiplicar outra vez. Os orcs proliferamnas Montanhas Sombrias e atacam os anões. Os nazgúl reaparecem. O chefe deles

vem ao norte para Angmar. Os Periannath migram para o oeste; muitos se fixam em Bri.1356 Orei Argeleb í é morto em batalha contra Rhudaur. Por volta dessa épocaos Grados deixam o Angulo e alguns deles retornam para as Terras Ermas.1409 O Rei dos Bruxos de Angmar invade Amor. O rei Arveleg I é morto.Fornost e Tyrn Gorthad são defendidos. A Torre de Amon Súl é destruida.1432 Morre o rei Valacar de Gondor e começa a guerra civil e a Contenda das

Famílias.1437 Incêndio de Osgiliath e extravio dopalantír. Eldacar foge para Rhovanion;

seu filho Omendil é assassinado.1447 Eldacar retorna e expulsa o usurpador Castamir. Batalha das Travessias de

Frui. Cerco de Pelargir.1448 Rebeldes escapam e sitiam Umbar.1540 Rei Aldamir morto na guerra contra Harad e os Corsários de Umbar.1551 Hyarmendacil II derrota os homens de Harad.1601 Muitos Periannath migram de Bri, e Argeleb II lhes doa terras além do

Baranduin.

c. 1630 Juntam-se a eles os Grados, vindos da Terra Parda.1634 Os Corsários assolam Pelargir e matam o rei Minardil.1636 A Grande Peste devasta Gondor. Morte do rei Telemnar e de seus filhos. A

Árvore Branca morre em Minas Anor. A peste se alastra para o norte e para o oeste, emuitas partes de Eríador ficam desoladas. Além do Baranduin os Periannath sobrevivem,mas sofrem grandes perdas.

1640 Orei Tarondor remove a Casa Real para Minas Anor e planta uma muda da

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Árvore Branca. Osgiliath começa a cair em ruínas. Mordor fica desguarnecida.1810 O rei Telumehtar Umbardacil reconquista Umbar e expulsa os Corsários.1851 Começam os ataques dos Carroceiros contra Gondor.1856 Gondor perde seus territórios orientais e Narmacil II cai em batalha.1899 O rei Calimehtar derrota os Carroceiros em Dagorlad.1900 Calimehtar constrói a Torre Branca em Minas Anor.1940 Gondor e Amor renovam suas relações e formam uma aliança. Arvedui casa-

se com Firiel, filha de Ondoher de Gondor. 1944 Ondoher cai em batalha. Eãmil derrota o inimigo em Ithilicn do Sul. Vence

então a Batalha do Acampamento e expulsa os Carroceiros para os Pântanos Mortos.Arveduí reivindica a coroa de Gondor.

1945 Fárnil II recebe a coroa.1974 Fim do Reino do Norte. O Rei dos Bruxos invade Arthedain e toma Fornost.1975 Arvedui morre afogado na Baía de Forochel. Ospalantiri de Annúminas e de

Amon Súl são perdidos. Farnur traz uma frota para Lindon. O Rei dos Bruxos é derrotadona Batalha de Fornost e perseguido até a Charneca Etten. Desaparece do norte.

1976 Aranarth recebe o titulo de Líder dos Dúnedain. As heranças de Amor sãoconfiadas à custódia de Elrond.

1977 Frumgar conduz os éothéod para o norte.1979 Bucca do Pântano torna-se o primeiro Thain do Condado.1980 O Rei dos Bruxos vem para Mordor e ali reúne os nazgúl. Um balrog aparece

em Moria e mata Durin VI.1981 Assassinado Náin 1. Os anões fogem de Moria. Muitos dos elfos da Floresta

de Lórien fogem para o sul. Desaparecem Amroth e Nimrodel.1999 Thráín 1 vem para Erebor e funda um Reino de Anões "sob-a-Montanha".2000 Os nazgúl saem de Mordor e sitiam Minas Ithil.2002 Queda de Minas Ithil, posteriormente conhecida como Minas Morgul. O

palantir é capturado.2043 Eãrnur torna-se rei de Gondor. É desafiado pelo Rei dos Bruxos.2050 O desafio é repetido. Eãrnur cavalga para Minas Morgul e desaparece.

Mardil torna-se o primeiro regente governante.2060 Cresce o poder de Doí Guldur. Os sábios temem que possa ser Sauron

manifestando-se de novo.2063 Gandalf vai para Doí Guldur. Sauron se retira e se esconde no leste. Começa

a Paz Vigilante. Os nazgúl permanecem quietos em Minas Morgul.2210 Thorin 1 deixa Erebor e vai para o norte rumo às Montanhas Cinzentas, onde

a maior parte dos remanescentes do Povo de Durin está agora reunida.2340 Isumbras 1 toma-se o décimo terceiro Thain, e o primeiro da linhagem dos

Túks. Os Velhobuques ocupam a Terra dos Buques.2460 Termina a Paz Vigilante. Sauron retorna a Doí Guldur com maior força.2463 Forma-se o Conselho Branco. Por volta dessa época, Déagol, o Grado,

encontra o Um Anel e é morto por Sméagol.2470 Por volta dessa época, Sméagol-Gollum se esconde nas Montanhas Sombrias.2475 Renova-se o ataque a Gondor. Osgiliath finalmente é arruinada e sua ponte

pedra destruída.c. 2480 Orcs começam a construir fortalezas secretas nas Montanhas Sombrias,

com o intuito de barrar todas as passagens para Eriador. Sauron começa a povoar Moriacom suas criaturas.

2509 Celebrian, viajando para Lónien, é vitima de uma emboscada no Passo do

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Chifre Vermelho e sofre um ferimento envenenado.2510 Celebrian parte para além-Mar. Orcs e orientais assolam Calenardhon. Eorl,

o Jovem, obtém a vitória do Campo de Celebrant. Os rohirrím se estabelecem emCalenardhon.

2545 Eorl cai em batalha no Descampado.2569 Brego, filho de Eorl, termina o Palácio Dourado.2570 Baldor, filho de Brego, entra pela Porta Proibida e desaparece. Por vol ta

dessa época, dragões voltam a aparecer no extremo norte e começam a atormentar osanões.

2589 Dáin i é morto por um dragão.2590 Thrór retorna para Erebor. Grór, seu irmão, vai para as Colinas de Ferro.c. 2670 Tobold planta "erva-de-fumo" na Quarta Sul.2683 Isengrim II toma-se o décimo Thain e começa a escavação dos Grandes

Smlals.2698 Ecthelion II reconstrói a Torre Branca em Minas Tirith.2740 Orcs voltam a invadir Eriador.2747 Bandobras Túk derrota um bando de orcs na Quarta Norte.2758 Rohan atacada pelo leste e pelo oeste é invadida. Gondor atacada por

esquadras dos Corsários. Heim de Rohan refugia-se no Abismo de Heim. Wulf sitiaEdoras.

2758-9 Segue-se o Inverno Longo. Grande sofrimen-to e perdas de vidas emEriador e em Rohan. Gandalf vem em socorro do povo do Condado.

2759 Morte de Heim. Fréaláf expulsa Wulf e começa a segunda linhagem de reisda Terra dos Cavaleiros. Saruman fixa residência em Isengard.

2770 Smaug, o dragão, desce sobre Erebor. Vaile é destruída. Thrór escapa comThráin II e Thonin II.

2790 Thrór morto por um orc em Moria. Os anões se reúnem para uma guerra devingança. Nascimento de Gerontius, mais tarde conhecido como Velho Túk.

2793 Começa a Guerra entre orcs e anoes.2799 Batalha de Nanduhinion diante do Portão Leste de Moria. Dáin Pé-de-Ferro

retorna para as Colinas de Ferro. Thráin II e seu filho Thonin vagam na direção do oeste.Assentam-se no sul das Ered Luin, além do Condado (2802).

2800-64 Orcs do norte perturbam Rohan. Rei Walda morto por eles (2861).2841 Thráín II parte para revisitar Erebor, mas é perseguido pelos servidores de

Sauron.2845 Thráin, o anão, é aprisionado em Doí Guldur; o último dos Sete Anéis lhe é

tomado.2850 Gandalf entra mais uma vez em Doí Guldur, e descobre que o mestre ali é

realmente Sauron, que está reunindo todos os Anéis e procurando notícias do Um e doHerdeiro de Isildur. Gandalf encontra Thráin e recebe a chave de Erebor. Thráin morreem Doí Guldur.

2851 O Conselho Branco se reúne. Gandalf insiste num ataque contra Dol Guldur.Saruman prevalece6. Saruman começa a vasculhar perto dos Campos de Lis.

2852 Morre Belecthor II, de Gondor. A Árvore Branca morre e não se encontramais nenhuma muda. A Arvore Morta é deixada de pé.

2885 Insuflados por emissários de Sauron, os haradrim atravessam o Poros eatacam Gondor. Os filhos de Folcwine de Rohan são mortos a serviço de Gondor.

2890 Nasce Bilbo, no Condado.

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nota6. Posteriormente ficou claro que Saruman começara então a desejar o Um Anel

para si próprio, e esperava que ele pudesse se revelar, procurando seu mestre, se Sauronfosse deixado em paz por um tempo.

2901 A maior parte dos habitantes que restam em Ithilien a abandonam devido aosataques os uruks de Mordor. E construído o refúgio secreto de Henneth Annún.

2907 Nasce Gilraen, mãe de Aragorn II.2911 O Inverno Mortal. O Baranduin e outros rios ficam congelados. Lobos

brancos invadem Eriador pelo norte.2912 Grandes enchentes devastam Enedwaith e Minhiriath. Tharbad fica arruinada

e deserta.2920 Morre o Velho Túk.2929 Arathorn, filho de Arador dos dúnedaín, casa-se com Gilraen.2930 Arador morto por trolls. Nasce Denethor II, filho de Ecthelion II, em Minas

Tirith.2931 Aragorn II, filho de Arathorn, nasce no dia primeiro de março.2933 Arathorn II é morto. Gilraen leva Aragorn para Imíadris. Elrond o recebe

como um filho adotivo e lhe dá o nome de Estel (Esperança); seus antepassados não lhesão revelados.

2939 Saruman descobre que os servidores de Sauron estão vasculhando o Andum,perto dos Campos de Lis, e que Sauron, portanto, já sabe do fim de Isildur. Saruman ficaalarmado, mas não conta nada ao Conselho.

2941 Thonn Escudo de Carvalho e Gandalf visitam Bilbo no Condado. Bilboencontra Sméagol-Gollum e acha o Anel. O Conselho Branco se reúne; Sarumanconcorda em atacar Doí Guldur,já que agora quer impedir que Sauron vasculhe o Rio.Sauron, já tendo feito seus planos, abandona Dol Guldur. Batalha dos Cinco Exércitos emValle. Morte de Thorin II. Bard de Esgaroth mata Smaug. Dáin, das Colinas de Ferro,torna-se Rei-sob-a-Montanha (Dáin II).

2942 Bilbo retorna para o Condado com o Anel. Sauron retorna em segredo paraMordor.

2944 Bard reconstrói Vaíle e torna-se rei. Gollum deixa as Montanhas e começasua procura pelo "ladrão" do Anel.

2948 Nasce Théoden, filho de Thengel, rei de Rohan.2949 Gandalf e Balin visitam Bilbo no Condado.2950 Nasce Finduilas, filha de Adrabil de Doí Amroth.2951 Sauron declara-se abertamente e concentra seu poder em Mordor. Come ça a

reconstrução de Barad-dúr. Gollum volta-se na direção de Mordor. Sauron envia três dosnazgúl para que reocuperem Dol Guldur. Elrond revela a "Estel" seu verdadeiro nome elinhagem, e lhe entrega os fragmentos de Narsil. Arwen, recém-chegada de Lórien,encontra Aragorn na floresta de Imíadris. Aragorn parte para as Terras Ermas.

2953 Última reunião do Conselho Branco. Debatem sobre os Anéis. Saruman fingeque descobriu que o Um Anel desceu pelo Anduin na direção do Mar. Saruman se retirapara Isengard, que toma como sua e fortifica. Sentindo ciúme e medo de Gandalf, colocaespiões para vigiar todos os seus movimentos, e percebe o seu interesse pelo Condado.Logo começa a manter agentes em Bri e na Quarta Sul.

2954 A Montanha da Perdição volta a explodir em chamas. Os últimos habitantesde Ithilien fogem pelo Anduín.

2956 Aragorn encontra Gandalf e começa a amizade entre os dois.

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2957-80 Aragom empreende as longas jornadas de sua vida errante. Sob o disfarcede Thorongil, serve tanto a Thengel de Rohan como a Ecthelíon II de Gondor.

2968 Nasce Frodo.2976 Denethor casa-se com Finduilas, de Doí Amroth.2977 Bain, filho de Bard, torna-se rei de Vaíle.2978 Nasce Boromir, filho de Denethor II.2980 Aragom entra em Lórien e lá encontra outra vez Arwen Undómiel. Aragorn

lhe dá o Anel de Barahir e eles se comprometem sobre a colina de Cem Amroth. Por voltadessa época Gollum chega aos confins de Mordor e trava conhecimento com Laracna.Théoden torna-se rei de Rohan.

2983 Nasce Faramir, filho de Denethor. Nasce Samwíse.2984 Morre Ecthelion II. Denethor II torna-se regente de Gondor.2988 Morre precocemente Finduilas.2989 Balin deixa Erebor e entra em Moria.2991 Nasce Éomer, filho de Éomund, em Rohan.2994 Balin morre e a colónia dos anões é destruida.2995 Nasce Éowyn, irmã de Eomer.c. 3000 A sombra de Mordor se expande. Saruman se arrisca a usar o palantir de

Orthanc, mas é iludido por Sauron, que tem a Pedra de Ithíl. Saruman trai o Conselho.Seus espiões reportam que o Condado está sendo fortemente protegido pelos guardiões.

3001 Festa de Despedida de Bilbo. Gandalf suspeita que o anel dele é o Um Anel.A vigilância do Condado é redobrada. Gandalf procura noticias de Gollum e pede a ajudade Aragom.

3002 Bílbo torna-se um hóspede de Elrond, e passa a morar em Valfenda.3004 Gandalf visita Frodo no Condado, e continua fazendo o mesmo em intervalos

durante os quatro anos seguintes.3007 Brand, filho de Bain, torna-se rei de Vaíle. Morre Gilraen.3008 No outono, Gandalf faz sua última visita a Frodo.3009 Gandalf e Aragom retomam, de tempo em tempo, sua caça a Gollum durante

os oito anos seguintes, procurando nos vales do Anduin, na Floresta das Trevas, emRhovanion e indo até os confins de Mordor. Em algum período durante esses anos opróprio Gollum se aventurou a entrar em Mordor e foi capturado por Sauron. Elrondmanda buscar Arwen e ela retorna para Imíadris; as Montanhas e toda a região orientalestão ficando perigosas.

3017 Gollum é libertado em Mordor. É capturado por Aragorn nos PântanosMortos e trazido para Thranduil, na Floresta das Trevas. Gandalf visita Minas Tirith e lê opergaminho de Isíldur.

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OS GRANDES ANOS

3018

Abril

Ano12 Gandalf chega á Vila dos Hobbits.

Junho20 Sauron ataca Osgiliath. Por volta da mesma época, Thranduil éatacado e Gollum escapa.

Julho

4 Boromir parte de Minas Tirith.10 Gandalf aprisionado em Orthanc.

Agosto

Desaparecem todos os rastros de Gollum. Considera-se que, por volta dessa época,sendo caçado tanto pelos elfos quanto pelos servidores de Sauron, ele se tenha refugiadoem Moria, mas, quando finalmente descobriu o caminho para o Portão Oeste, ele nãoconseguiu sair.

Setembro

18 Gandalf escapa de Orthanc nas primeiras horas do dia. Os Cavaleiros Negrosatravessam os Vaus do Isen.

19 Gandalf vai para Edoras como um mendigo, e sua entrada não é permitida.20 Gandalf consegue entrar em Edoras. Théoden ordena que parta: "Escolha

qualquer cavalo, mas parta antes do fim do dia de amanhã!"21 Gandalf encontra Scadufax, mas o cavalo não permite que ele se aproxime.

Gandalf persegue Scadufax por um longo trecho através dos campos.22 Os Cavaleiros Negros chegam ao Vau Saro ao cair da noite e afugentam os

guardiões. Gandalf alcança Scadufax.23 Quatro Cavaleiros entram no Condado antes da aurora. Os outros perseguem os

guardiões na direção do leste e depois retornam para vigiar o Caminho Verde. UmCavaleiro Negro chega à Vila dos Hobbits ao cair da noite. Frodo deixa Bolsão. Gandalftendo domado Scadufax, parte de Rohan.

24 Gandalf atravessa o Isen.26 A Floresta Velha. Frodo encontra Bombadíl.27 Gandalf atravessa o rio Cinzento. Segunda noite com Bombadil.28 Os hobbits são capturados por uma Criatura Tumular. Gandalf chega ao Vau

Sam.29 Frodo chega a Bri de noite. Gandalf visita o Feitor.30 Cricôncavo e a Estalagem em Bri são atacadas nas primeiras horas do dia.

Frodo deixa Bri. Gandalf dirige-se para Cricôncavo e chega a Bri ao anoitecer.

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Outubro

1 Gandalf deixa Bri.3 Gandalf é atacado durante a noite no Topo do Vento.6 O acampamento sob o Topo do Vento é atacado durante a noite. Frodo é ferido.9 Glorfindel deixa Valfenda.11 Glorfindel expulsa os Cavaleiros da Ponte de Mitheithel.13 Frodo atravessa a ponte.18 Glorfindel encontra Frodo ao cair da tarde. Gandalf chega a Valfenda.20 Fuga através do Vau do Bruinen.24 Frodo recupera-se e acorda. Boromir chega a Valfenda de noite.25 Conselho de Elrond.

Dezembro

25 A Comitiva do Anel deixa Valfenda ao cair da noite.

3019

Janeiro

8 A Comitiva chega a Azevim.11,12 Neve sobre Caradhras.13 Ataque de lobos nas primeiras horas do dia. A Comitiva atinge o Portão Leste

de Moria ao cair da noite. Gollum começa a seguir os rastros do Portador do Anel.14 Noite no Salão Vinte e Um.15 A Ponte de Khazad-dúm e queda de Gandalf. A Comitiva chega a Nimrodel

tarde da noite.17 A Comitiva chega a Caras Galadhon no inicio da noite23 Gandalf persegue o balrog até o pico de Zirak-zigil.25 Gandalf derruba o balrog e morre. Seu corpo jaz no pico.

Fevereiro

14 O Espelho de Galadriel. Gandalf volta à vida e jaz em um transe.16 Adeus a Lórien. Gollum, escondido na margem ocidental, observa a partida.17 Gwaihir transporta Gandalf até Lórien.23 Os barcos são atacados de noite perto do Saro Gebir.25 A Comitiva passa pelos Argonath e acampa no Parth Galen. Primeira Batalha

dos Vaus do Isen; Théodred, filho de Théoden, é morto.26 Rompimento da Sociedade do Anel. Morte de Boromir; sua corneta é ouvida

em Minas Tirith. Meriadoc e Peregrin são capturados. Frodo e Samwise penetram a parteleste das Emyn Muil. Aragorn parte em perseguição aos orcs no início da noite. Éomerfica sabendo da descida do bando de orcs das Emyn Muil.

27 Aragorn atinge o penhasco oeste ao nascer do dia. Éomer, contra as ordens deThéoden, parte do Folde Oriental por volta da meia-noite em perseguição aos orcs.

28 Éomer alcança os orcs nas bordas da Floresta de Fangorn.29 Meriadoc e Pippin escapam e encontram Barbárvore. Os rohirrim atacam ao

nascer do dia e destroem os orcs. Frodo desce das Emyn Muil e encontra Gollum. Faramir

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vê o barco funerário de Boromir.30 Começa o Entebate. Éomer, retornando de Edoras, encontra Aragorn.

Março

1 Frodo começa a atravessar os Pântanos Mortos ao nascer do dia. Continua oEntebate. Aragorn encontra Gandalf, o Branco. Eles partem para Edoras. Faramir deixaMinas Tirith e vai para Ithilien numa missão.

2 Frodo chega ao fim dos Pântanos. Gandalf chega a Edoras e cura Théoden. Osrohirrim cavalgam para o oeste e avançam contra Saruman. Segunda Batalha dos Vaus doIsen. Erkenbrand derrotado. Termina o Entebate durante a tarde. Os ents marcham nadireção de Isengard, chegando lá de noite.

3 Théoden se retira para o Abismo de Helm. Começa a Batalha do Forte daTrombeta. Os ents completam a destruição de Isengard.

4 Théoden e Gandalf partem do Abismo de Helm na direção de Isengard. Frodoatinge os morros de lava nas fronteiras da Desolação do Morannon.

5 Théoden chega a Isengard ao meio-dia. Parlamentação com Saruman emOrthanc. Um nazgúl alado sobrevoa o acampamento em Doí Baran. Gandalf parte comPeregrin para Minas Tirith. Frodo se esconde perto do Morannon, e parte na hora docrepúsculo.

6 Aragorn alcançado pelos dúnedain nas primeiras horas do dia. Théoden parte doForte da Trombeta para o Vale Harg. Aragorn parte mais tarde.

7 Frodo é levado por Faramir para Henneth Annún. Aragom chega ao Templo daColina ao cair da noite.

8 Aragom toma as "Sendas dos Mortos" ao nascer do dia; chega a Erech á meia-noite. Frodo parte de Henneth Annún.

9 Gandalf chega a Minas Tirith. Faramir parte de Henneth Annún. Aragom partede Erech e chega a Calembel. No crepúsculo Frodo atinge a Estrada de Morgul. Théodenchega ao Templo da Colina. A Escuridâo de Mordor começa a se espalhar.

10 O Dia sem Aurora. A Concentração das Tropas de Rohan: os rohirrim partemdo Templo da Colina. Faramir resgatado por Gandalf do lado de fora dos Portões daCidade. Aragom atravessa o Ringló. Um exército do Morannon toma Cair Andros einvade Anórien. Frodo atravessa a Encruzilhada e assiste à partida do Exército de Morgul.

11 Gollum visita Laracna, mas, vendo Frodo adormecido, quase se arrepende.Denethor manda Faramir para Osgiliath. Aragom chega a Linhir e entra em Lebennin.Rohan Oriental é invadida pelo norte. Primeiro ataque contra Lórien.

12 Gollum leva Frodo para a Toca de Laracna. Faramir se retira para os Fortes doPassadiço. Théoden acampa sob Minrimmon. Aragom acossa os inimigos na direção dePelargir. Os ents derrotam os invasores de Rohan.

13 Frodo capturado pelos orcs de Cirith Ungol. Os Campos de Pelennor sãoinvadidos. Faramir é ferido. Aragom chega a Pelargir e captura a esquadra. Théoden naFloresta Drúadan.

14 Samwise encontra Frodo na Torre. Minas Tirith é cercada. Os rohirrim,conduzidos pelos homens selvagens, chegam á Floresta Cinzenta.

15 Nas primeiras horas do dia, o Rei dos Bruxos destrói os Portões da Cidade.Denethor crema-se numa pira. As cornetas dos rohirrim são ouvidas ao cantar do galo.Batalha dos Campos de Peleonor. Théoden é morto. Aragom levanta o estandarte deArwen. Frodo e Samwise escapam e começam sua viagem para o norte ao longo doMorgai. Batalha sob as árvores da Floresta das Trevas; Thranduil repele as forças de Doí

Page 280: O Senhor dos Anéis III. O Retorno do Rei – J. R. R. Tolkien

Guldur. Segundo ataque contra Lórien.16 Debate dos comandantes. Frodo, do Morgai, observa a Montanha da Perdição

por sobre o acampamento.17 Batalha de Vaíle. Caem o rei Brand corei Dáin Pé-de-Ferro. Muitos anões e

homens refugiam-se em Erebor e são cercados. Shagrat leva a capa, a cota de malha e aespada de Frodo para Barad-dúr.

18 O Exército do Oeste parte em marcha de Minas Tirith. Frodo se aproxima daBoca Ferrada; é alcançado por orcs na estrada que vai de Durthang para Udún.

19 O Exército chega ao Vale Morgul. Frodo e Samwise escapam e começam suajomada ao longo da estrada que conduz a Barad-dúr.

22 O crepúsculo terrível. Frodo e Samwise abandonam a estrada e dirigem-se paraa Montanha da Perdição pelo sul. Terceiro ataque contra Lórien.

23 O Exército deixa Ithilien. Aragom dispensa os covardes. Frodo e Samwiselivram-se de suas armas e indumentárias.

24 Frodo e Samwise fazem sua última jornada para os pés da Montanha daPerdição. O Exército acampa na Desolação do Morannon.

25 O Exército é cercado nas Colinas de Lava. Frodo e Samwise chegam ásSammath Naur. Gollum agarra o Anel e cai nas Fendas da Perdição. Queda de Barad-dúre desaparecimento de Sauron.

Depois da queda da Torre Escura e do desaparecimento de Sauron, a Sombra foiretirada de todos os corações dos que se opunham a ele, mas o medo e o desesperotomaram seus servidores e aliados. Três vezes Lórien fora atacada por Dol Guldur, mas,além da coragem dos elfos daquela região, o poder que lá morava era forte demais paraser derrotado por quem quer que fosse, a não ser que o próprio Sauron atacasse Lórien.Embora as orlas da bela floresta tenham sido seriamente danificadas, os ataques foramrepelidos; quando Sauron desapareceu, Celebom avançou e conduziu o exército de Lórienpelo Anduin em muitos barcos. Tomaram Dol Guldur, e Galadriel derrubou suas muralhase pôs a descoberto suas cavidades; a floresta foi purificada.

No norte também houvera guerra e maldade. O reino de Thranduil foi invadido, ehouve uma longa batalha sob as árvores e uma grande devastação causada pelo fogo; masno fim Thranduil conquistou a vitória. E, no dia do Ano Novo dos elfos, Celebom eThranduil encontraram-se no meio da floresta; deram então um novo nome à Floresta dasTrevas, Eryn Las galen , A Floresta das Folhas Verdes.

Thranduil tomou toda a região norte até as montanhas que nascem na florestacomo seu reino; Celebom tomou toda a floresta do sul abaixo dos Estreitos, dando-lhe onome de Lórien Oriental; toda a ampla floresta intermediária foi doada aos beornings eaos homens da Floresta. Mas, após a passagem de Galadriel, dentro de alguns anosCeleborn ficou cansado de seu reino e foi para Imíadris morar com os filhos de Elrond.

Na Floresta Verde os elfos da Floresta não foram mais molestados, mas em Lórienmelancolicamente sobreviveram apenas alguns do antigo povo, e já não havia mais luz oumúsica em Caras Galadon.

Ao mesmo tempo em que grandes exércitos cercavam Minas Tirith, um exércitodos aliados de Sauron, que por muito tempo ameaçara as fronteiras do rei Brand,atravessou o rio Camen, e Brand foi expulso de volta para Vaíle. Ali teve o auxílio dosanões de Erebor, e houve uma grande batalha aos pés da Montanha. Durou três dias, e nofinal o rei Brand e o rei Dáin Pé-de-Ferro foram ambos mortos, ficando a vitória para osorientais. Mas eles não puderam tomar o Portão, e muitos, tanto homens quanto anões,refugiraram-se em Erebor, onde resistiram a um cerco.

Quando chegou a notícia das grandes vitórias no sul, o exército do norte de Sauron

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se encheu de desânimo; os sitiados irromperam e os expulsaram, e uma parte deles fugiupara o leste e deixou de molestar Vaíle. Então Bard II, filho de Brand, tornou-se rei deVaíle; Thorin III, Elmo de Pedra, filho de Dáin, tornou-se rei-sob-amontanha.

Ambos enviaram embaixadores para a cerimônia de coroação do rei Elessar, e seusreinos permaneceram, enquanto duraram, amigos de Gondor, ficando sob a coroa e

sob a proteção do Rei do Oeste.

OS DIAS MAIS IMPORTANTESDA QUEDA DE BARAD-DÚR ATÉ O FINALDA TERCEIRA ERA (7)

3019 1419 R.C.

27 de março. Bard III e Thorin II, Elmo de Pedra, expulsam o inimigo de Vaíle. 28Celebom atravessa o Anduin; começa a destruição de Doí Guldur.

7. Os dias e meses são dados de acordo com o Calendário do Condado.6 de abril. Encontro de Celebom e Thranduil.8 Os Portadores do Anel são homenageados no Campo de Cormallen.1 de maio. Coroação do rei Elessar. Elrond e Arwen partem de Valfenda.8 Éomer e Éowyn partem de Rohan com os filhos de Elrond.20 Elrond e Arwen chegam a Lórien.27 A Comitiva de Arwen deixa Lórien.14 de junho. Os filhos de Elrond encontram a comitiva e levam Arwen a Edoras.16 Eles partem para Gondor.25 O rei Elessar encontra a muda da Árvore Branca.1 Lite. Arwen chega à Cidade. Dia do Meio do Ano. Casamento de Elessar e Arwen.18 de julho. Eomer retorna a Minas Tirith.19 Parte a comitiva do funeral do rei Théoden.7 de agosto. A comitiva chega a Edoras.10 Funeral do rei Théoden.14 Os hóspedes se despedem do rei Éomer.18 Chegam ao Abismo de HeIm.22 Chegam a Isengard; despedem-se do Rei do Oeste ao pôr-do-sol.28 Alcançam Saruman; Saruman dirige-se para o Condado.6 de setembro. Eles param ao avistarem as Montanhas de Moria.13 Celeborn e Galadriel partem, os outros vão para Valfenda.21 Retorno a Valfenda.22 Centésimo vigésimo novo aniversário de Bilbo. Saruman chega ao Condado.5 de outubro. Gandalf e os hobbits partem de Valfenda.6 Atravessam o Vau do Bruinen; Frodo sente pela primeira vez a dor retornar. 28

Chegam a Bri ao cair da noite.30 Deixam Bri. Os "Viajantes" atingem a Ponte do Brandevin durante a noite.10de novembro. São presos em Sapántano.2 Chegam a Beirágua e sublevam o povo do Condado.3 Batalha de Beirágua, e Desaparecimento de Saruman. Fim da Guerra do Anel.

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3020 1420 R.C.: O Grande Ano de Fartura

13 de março. Frodo adoece (no aniversário de seu envenenamento por Laracna).6 de abril. O pé de mallorn floresce no Campo da Festa. 1? de maio. Samwise casa-se com Rosa.Dia do Meio do Ano. Frodo demite-se do cargo de prefeito, e Will Pealvo

reassume.22 de setembro. Centésimo trigésimo aniversário de Bilbo.6 de outubro. Frodo adoece outra vez.

3021 1421 R.C.: O Ultimo Ano da Terceira Era

13 de março. Frodo adoece de novo.25 Nascimento de Elanor, a Bela8, filha de Samwise. Neste dia começou a Quarta

Era, segundo o Registro de Gondor.

nota8. Ela ficou conhecida como "a Bela" por causa de sua beleza; muitos diziam que

ela mais parecia uma donzela élfica que uma hobbit. Tinha cabelos dourados, o queoutrora era raro no Condado; mas duas outras filhas de Samwise também eram loiras,assim como muitas outras crianças nascidas nessa época.

21 de setembro. Frodo e Samwise partem da Vila dos Hobbits.22 Encontram a Última Cavalgada dos Guardiões dos Anéis em Ponta do Bosque.29 Chegam aos Portos Cinzentos. Frodo e Bilbo partem através do Mar com os

Três Guardiões. Fim da Terceira Era.6 de outubro. Samwise retorna a Bolsão.

ACONTECIMENTOS ULTERIORESRELACIONADOS AOS MEMBROSDA SOCIEDADE DO ANEL

R.C. 1422

Com o início deste ano começa a Quarta Era na contagem de anos do Condado;mas se deu continuidade à numeração dos anos do Registro do Condado.

1427 Will Pealvo demite-se. Samwise é eleito Prefeito do Condado. Peregrin Túkcasa-se com Diamantina, de Frincha Longa. O rei Elessar promulga um edito proibindoque os homens entrem no Condado, o qual se torna uma Terra Livre sob a proteção doCetro do Norte.

1430 Nasce Faramir, filho de Peregrin.1431 Nasce Cachinhos Dourados, filha de Samwise.1432 Meriadoc, chamado de O Magnífico, torna-se Senhor da Terra dos Buques.

Grandes presentes lhe são enviados pelo rei Éomer e pela senhora Éowyn de Ithilien.1434 Peregrin se torna "O Túk" e Thain. Orei Elessar nomeia o Thain, o Senhor e

o Prefeito como Conselheiros do Reino do Norte. Mestre Samwise é eleito prefeito pela

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segunda vez.1436 O rei Elessar viaja para o norte e mora por um tempo ao lado do lago

Vesperturvo. Chega à Ponte do Brandevin, e ali saúda seus amigos. Outorga a Estrela dosDúnedain ao Mestre Samwise, e Elanor torna-se dama-dehonra da senhora Arwen.

1441 Mestre Samwise torna-se prefeito pela terceira vez.1442 Mestre Samwise, sua mulher e Elanor vão para Gondor e lá passam um ano.

Mestre Tolman Villa atua como prefeito interino.1448 Mestre Samwise torna-se prefeito pela quarta vez.1451 Elanor, a Bela, casa-se com Fastred de Ilhaverde, nas Colinas Distantes.1452 O Marco Ocidental, das Colinas Distantes até as Colinas das Torres (Emyn

Beraid)9, é anexado ao Condado mediante uma doação do rei. Muitos hobbits mudam-separa lá.

1454 Nasce Elfostan Lindofilho, filho de Fastred e Elanor1455 Mestre Samwise torna-se prefeito pela quinta vez. Mediante um pedido seu,

o Thain nomeia Fastred Diretor do Marco Ocidental. Fastred e Elanor passam a morar emSob-as-Torres, nas Colinas das Torres, onde seus descendentes, os Lindofilhos dasTorres, moraram por muitas gerações.

1463 Faramir Túk casa-se com Cachinhos Dourados, filha de Samwise.1469 Mestre Samwise torna-se prefeito pela sétima e última vez, estando em1476, no final de seu mandato, com noventa e seis anos de idade.1482 Morte da senhora Rosa, mulher de Mestre Samwise, no Dia do Meio do Ano.

Em 22 de setembro, Mestre Samwise parte de Bolsão. Vai para as Colinas das Torres e évisto pela última vez por Elanor, a quem dá o Livro Vermelho, que posteriormente foiguardado pelos Lindofilhos. Entre eles mantém-se a crença, que se iniciou com Elanor,segundo a qual Samwise passou pelas Torres, chegou aos Portos Cinzentos e atravessou oMar, sendo o último dos Portadores do Anel.

1484 Na primavera deste ano chegou à Terra dos Buques uma mensagem deRohan dizendo que o rei Éomer desejava ver Mestre Holdwine mais uma vez. Meriadocestava então velho (102), mais ainda forte. Aconselhou-se com seu amigo, o Thain, e logoem seguida ambos transmitiram bens e oficios aos seus filhos e partiram através do VauSam, e não foram mais vistos no Condado. Conta-se que Mestre Meriadoc foi a Edoras eesteve com o rei Éomer antes da morte deste, no outono. Então ele e o Thain Peregrinforam para Gondor, onde passaram os poucos anos que lhes restavam, até morrerem eserem enterrados na Rath Dinen, entre os grandes de Gondor.

1541 Neste ano, em primeiro de março, finalmente se deu o Passamento do reiElessar. Conta-se que os leitos de Meriadoc e Peregrin foram colocados junto ao leito dogrande rei. Então Legolas construiu um navio cinzento em Ithilien, desceu navegandopelo Anduin, e depois através do Mar; com ele, conta-se, foi Gimli, o anão. E, quandoaquele navio desapareceu, terminou a Sociedade do Anel na Terra-média.