O Ser de Deus e Seus Atributos_Herman Hoeksema

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Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9) www.monergismo.com O Ser de Deus Herman Hoeksema Tradução: Marcelo Herberts A partir do que já foi dito sobre a cognoscibilidade e a incompreensibilidade de Deus, deve ser evidente que é absurdo falar acerca de provas para a existência de Deus e que elas não são necessárias. Ninguém está apto a demonstrar com certeza matemática que Deus existe, nem pode a razão alcançar isso através de um silogismo. Tudo o que pode ser demonstrado e provado dessa forma precisa pertencer ao mundo do nosso próprio entendimento e experiência, e, portanto, não é Deus. “Quem dele se aproxima precisa crer que ele existe e que recompensa aqueles que o buscam” (Hebreus 11:6). É a fé, uma evidência das coisas que não se vêem e a essência daquilo que se espera, que é capaz de “entender que os mundos foram formados pela palavra de Deus, tal que as coisas que são vistas não foram feitas daquilo que é visível” (vv. 1,3), e que podem abordar a incompreensibilidade de Deus. Isso é verdade não apenas num sentido espiritual e ético, tal que não podemos adorar e confiar nEle sem fé, mas é também verdadeiro num sentido intelectual. Alguém que discorresse sobre o conhecimento de Deus não poderia abordar esse propósito mediante uma dúvida acerca do que Deus é ou não é, ou com uma franca negação da sua existência. Sem fé é impossível agradar a Deus. Sem fé é impossível encontrá- lo. Igualmente, não há necessidade de provas para convencer o homem daquilo que Deus é, pois Ele se revela e não deixa-se ficar sem o testemunho na consciência de toda e qualquer pessoa. É somente na forma de evidências da revelação que as assim chamadas provas para a existência de Deus encontram valor e significado. A Prova Cosmológica O argumento cosmológico origina-se da lei da causa e efeito. Todas as coisas têm uma causa. Isso pode ser considerado uma lei universal. Portanto também o universo, o cosmos como conjunto orgânico, precisa ter uma causa. Essa causa do universo como um todo é a causa última ou final, Deus. Não é difícil demonstrar a fraqueza e a falácia dessa argumentação. Por esse silogismo a mente humana não pode jamais mover-se para além do mundo de causa e efeito. Suponha que a conclusão quanto a uma causa última de todo universo fosse correta. Essa causa ainda iria pertencer ao mundo da

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Ótimo livro sobre Teologia Propriamente Dita

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    O Ser de Deus Herman Hoeksema

    Traduo: Marcelo Herberts

    A partir do que j foi dito sobre a cognoscibilidade e a incompreensibilidade de Deus, deve ser evidente que absurdo falar acerca de provas para a existncia de Deus e que elas no so necessrias. Ningum est apto a demonstrar com certeza matemtica que Deus existe, nem pode a razo alcanar isso atravs de um silogismo. Tudo o que pode ser demonstrado e provado dessa forma precisa pertencer ao mundo do nosso prprio entendimento e experincia, e, portanto, no Deus.

    Quem dele se aproxima precisa crer que ele existe e que recompensa aqueles que o buscam (Hebreus 11:6). a f, uma evidncia das coisas que no se vem e a essncia daquilo que se espera, que capaz de entender que os mundos foram formados pela palavra de Deus, tal que as coisas que so vistas no foram feitas daquilo que visvel (vv. 1,3), e que podem abordar a incompreensibilidade de Deus. Isso verdade no apenas num sentido espiritual e tico, tal que no podemos adorar e confiar nEle sem f, mas tambm verdadeiro num sentido intelectual. Algum que discorresse sobre o conhecimento de Deus no poderia abordar esse propsito mediante uma dvida acerca do que Deus ou no , ou com uma franca negao da sua existncia. Sem f impossvel agradar a Deus. Sem f impossvel encontr-lo.

    Igualmente, no h necessidade de provas para convencer o homem daquilo que Deus , pois Ele se revela e no deixa-se ficar sem o testemunho na conscincia de toda e qualquer pessoa. somente na forma de evidncias da revelao que as assim chamadas provas para a existncia de Deus encontram valor e significado.

    A Prova Cosmolgica

    O argumento cosmolgico origina-se da lei da causa e efeito. Todas as coisas tm uma causa. Isso pode ser considerado uma lei universal. Portanto tambm o universo, o cosmos como conjunto orgnico, precisa ter uma causa. Essa causa do universo como um todo a causa ltima ou final, Deus.

    No difcil demonstrar a fraqueza e a falcia dessa argumentao. Por esse silogismo a mente humana no pode jamais mover-se para alm do mundo de causa e efeito. Suponha que a concluso quanto a uma causa ltima de todo universo fosse correta. Essa causa ainda iria pertencer ao mundo da

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    nossa experincia e jamais poderia ser o absoluto, pois h uma relao de necessidade entre causa e efeito. Existe uma diferena infinita entre causa e criador. A relao do criador com o universo de liberdade e soberania, ao passo que a relao de uma causa de necessidade e dependncia.

    Uma causa nunca auto-existente; auto-existncia um dos principais atributos de Deus, que Deus. Uma causa no seria causa sem o seu efeito; Deus Deus eternamente e permanece Deus, ainda que todo o mundo se reduzisse ao nada. Portanto, mesmo se pudesse ser admitido que a argumentao acima nos conduzisse a uma causa ltima ou final, a concluso de que essa causa final Deus totalmente arbitrria e injustificada.

    Mesmo a concluso em si, isto , que deve existir uma causa final do mundo, arbitrria. A partir da premissa maior de que todas as coisas tm uma causa, pode ser feita a inferncia que mesmo o mundo tem uma causa. Mas no h nada nessa premissa que garanta o julgamento que essa causa final, isto , em si mesma no-causada. De fato, estritamente falando, a premissa maior nega a finalidade de qualquer causa. Algum poderia voltar o conjunto do argumento em favor do atesmo, como segue: Todas as coisas tm uma causa, isto , no h nada no-causado; se um Deus existe, ele precisa ser no-causado; logo, Deus no existe.

    Na verdade, a existncia do mundo evidncia certa de Deus para o crente, e para ele representa o cmulo do absurdo negar o ser de Deus como criador do universo. No entanto, a f no alcana Deus na forma de um argumento lgico, mas cr e ouve o discurso de Deus em todas as coisas que so feitas. Pela f ns sabemos que o mundo estruturado pela palavra de Deus (Hebreus 11:3).

    A Prova Ontolgica

    O argumento ontolgico procura raciocinar a partir da noo de Deus que est presente em ns para a existncia dEle. O mtodo de argumentao de Anselmo neste ponto, tal como apresentado por Dr. A. Kuyper, complicado e mecnico: Primeiro, algo maior do que qualquer coisa concebvel precisa existir: aquilo que existe no pensamento e que na verdade maior do que aquilo que existe apenas no pensamento. Segundo, Deus concebido como algo maior do que qualquer coisa que pode ser concebida. Terceiro, portanto Deus existe no apenas no pensamento, mas tambm de fato. 1

    1 Abraham Kuyper, Dictaten Dogmatiek (Dictated Dogmatics), 2nd ed., 5 vols. (Grand Rapids: Sevensma, n.d.), vol, Locus de Deo, 1.3, 84.

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    Eu no sei se Kuyper representa corretamente a argumentao de Anselmo, mas sendo o caso, parece-me que temos aqui um mero exemplo de argumentao circular. Simplesmente e claramente estabelecido, o silogismo coloca-se da seguinte forma: Deus concebido como algo maior alm do que nada mais pode ser concebido. Algo maior alm do que nada mais pode ser concebido existe no apenas em pensamento, mas tambm de fato. Portanto, Deus existe no apenas em pensamento, mas tambm de fato.

    Assim estruturado, o silogismo simplesmente assume o que precisa ser provado, isto , a declarao na premissa menor. Se verdade que algo maior alm do que nada maior pode ser pensado ou concebido existe no apenas em pensamento, mas tambm de fato, a concluso tambm resulta. Mas isso precisamente o que precisa ser provado, no se tratando deveras algo auto-evidente. Portanto todo o argumento uma forma de argumentao circular.

    No entanto, o argumento ontolgico real muito mais simples. Ele sustenta que ns temos uma idia de Deus. Essa idia de Deus infinitamente maior do que o homem em si. Portanto a idia de Deus no pode ter sua origem no homem; ela pode ter sua origem somente no prprio Deus. Portanto, Deus existe. Essa linha de raciocnio tambm est baseada em pressuposies que requerem prova. A suposio principal que h um mundo real de seres correspondendo ao nosso mundo do pensamento, que existem coisas reais (noumena) correspondendo s nossas idias das coisas (phenomena), e que as idias tm sua origem nas coisas reais.

    O crente que procede do princpio bsico, Eu creio em Deus, criador de todas as coisas, no tem dificuldade aqui. Ele cr mediante a Palavra (Logos) que Deus criou todas as coisas, incluindo a capacidade perceptiva e cognitiva do homem, numa tal forma que as faculdades do homem esto em harmonia com a Palavra. Mas a razo pura no pode jamais estabelecer essa verdade, como claramente evidente a partir da histria da filosofia de Descartes a Kant. Novamente, o argumento assume que o homem tem em si uma idia de Deus a partir da qual pode concluir a existncia de Deus em si. Mas suponha que ele analise a sua idia de Deus. Suponha que ele descubra que essa idia de Deus maior do que ele mesmo, e suponha que haveria um ser correspondendo a essa idia. Este ser seria Deus? evidente que no. Ele seria um ser maior do que o homem, mas ainda no seria Deus.

    Para o crente esse argumento plenamente convincente. Ele no parte da sua idia de Deus, mas da f no Deus vivo em si, que infinito em poder e majestade no apenas maior do que o homem, mas tambm infinitamente superior sua compreenso mais arrojada. Ele sabe tambm que no tem esse conhecimento de Deus a partir de si mesmo, mas que Deus mediante a sua palavra e Esprito o seu autor. Esse conhecimento no da razo e no

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    alcanvel na forma de uma demonstrao lgica, nem deriva a sua certeza de um argumento silogstico. Antes, derivado da revelao e tem a sua convico imediata atravs do testemunho do Esprito Santo. Para a f no somente absurdo, mas pecaminoso colocar de lado esse testemunho.

    A Prova Teleolgica

    A mais rica e mais bela de todas as assim chamadas provas para a existncia de Deus a prova teleolgica. Isso significa sermos conduzidos para alm, em direo no apenas a um determinado super-poder acima de tudo, ou causa final do mundo, mas tambm a um designer pessoal de todas as coisas, dotado de intelecto e vontade, de conhecimento e sabedoria.

    No mundo ao nosso redor, bem como em nosso prprio ser, vemos desgnio e propsito em toda parte. Quo maravilhosa e perfeitamente esto todas as coisas adaptadas umas as outras tal que cada criatura existe, se move, vive e age dentro da esfera da sua prpria lei, e todas as suas necessidades so satisfeitas. O peixe est adaptado gua, o pssaro a voar no ar, a besta a vagar na selva, rvores e flores a crescer e florescer no solo, e nuvens, chuva e raios solares, a fazer com que a semente germine na terra. O olho est adaptado luz, o ouvido ao som. A mente humana est adaptada a interpretar o mundo ao seu redor e manter sob o seu domnio todas as coisas.

    Em toda parte h propsito e desgnio, e todas as coisas proclamam em alta voz um designer maravilhoso em sabedoria, benevolncia e poder. Esse designer Deus. De fato, o crente ama esse argumento. Ele ama cantar com o salmista inspirado: Quantas so as tuas obras, Senhor! Fizeste todas elas com sabedoria! A terra est cheia de seres que criaste (Salmos 104:24). Novamente, essa a linguagem da f, no da razo sem f, e est baseada na revelao. A f no busca provar a existncia de Deus, mas parte da certeza da sua existncia.

    Na medida em que a razo pura ou incrdula est implicada, notemos que tambm esta assim chamada prova demonstra exatamente nada no que se refere existncia de um ser inteligente exterior ao mundo, que infinito em poder e sabedoria e o designer de todas as coisas. Ela pode ser da mesma forma empregada pelo evolucionismo pantesta para demonstrar que a natureza em si inteligente, que Deus o mundo, encontrando a sua conscincia mais alta no homem.

    Alm disso, se h desgnio no universo, h tambm muitos fenmenos que pareceriam demonstrar o exato oposto de desgnio e propsito. H atrito, conflito, morte, destruio e aparente tolice em toda parte. Um beb nasce, e sua me morre nas dores do parto, ou o beb em si arrebatado pelo inexorvel brao da morte. Uma rvore cresce, e o raio a derruba. Uma safra

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    est quase pronta para a colheita, e uma chuva de pedras a destri. O mundo tal como percebemos e conhecemos hoje to repleto de fenmenos beirando o absurdo que alguns tm negado o desgnio por completo, tendo proclamado o universo como o pior que poderia ter sido concebido por algum.

    F na revelao de Deus tem a sua resposta a essas objees, pois ela conhece a ira de Deus pelo pecado, e considera a sabedoria de Deus na expresso de Jesus Cristo o Senhor, em quem o crente encontra a soluo para todos esses fenmenos e olha esperanoso para a teodicia final e perfeita no dia da revelao do julgamento reto de Deus. Mas a razo incrdula que coloca de lado ou contradiz a revelao do prprio Deus de si mesmo no pode restabelecer Deus na forma do argumento teleolgico. Ela no tem poder enquanto prova racional.

    A Prova Moral

    A prova moral para a existncia de Deus encontrada em sua forma mais simples no imperativo categrico de Kant. Todos os homens tm um senso de obrigao daquilo que certo e errado, somado a um sentimento inegvel de responsabilidade de fazer o que certo e um senso de auto-reprovao quando se faz o que mau. H nele como se fosse uma voz que no silenciada, sempre dizendo sua conscincia interior, Du sollst (Tu deves). Isso pressupe que existe um locutor e, alm disso, algum que Senhor e Soberano. Esse autor da ordem Du sollst na conscincia moral do homem Deus.

    Novamente, ns admitimos que o conhecimento humano do bem e do mal e seu senso de dever so certamente provenientes de Deus. Os pagos, que no tm a lei, tm a obra da lei escrita em seus coraes, tal que a sua prpria conscincia constantemente d testemunho, ora defendendo ora acusando-os uns aos outros (Romanos 2:14,15). Mas por esse argumento completamente impossvel provar a existncia de Deus a algum que no esteja partindo da f em Deus e na sua revelao. Spencer demonstra que esse Du sollst no tem nada a ver com a voz de um ser supremo e Senhor, mas que tem sua origem na sociedade, limitando em todos os aspectos e em milhares de formas o amor-prprio. 2 O humanismo desenvolve a sua prpria tica, divorciada na sua totalidade do conhecimento de Deus e dos seus preceitos.

    2 Herbert Spencer, Data of Ethics (London: Williams & Norgate, 1894), 89, 233-237.

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    A Prova Histrica

    O mesmo pode ser dito do argumento histrico, que algumas vezes vinculado aos quatro argumentos j considerados. Ele procede, ou do fenmeno geral da religio em meio a todas as naes ou do progresso deliberado na histria. Mas nem uma nem a outra forma de argumentao suficiente para provar a existncia de Deus a algum que no deseja dobrar-se revelao do Deus vivo e que conteste a sua palavra.

    Ao passo que todas essas assim chamadas provas tm a sua importncia e valor para algum que cr, assim como os muitos testemunhos do Deus invisvel; enquanto provas estritamente lgicas que devam convencer a razo incrdula, no tm qualquer poder. O tolo continuar a dizer em seu corao Deus no existe (Salmos 14:1), e o homem natural ainda ir se negar a glorific-lo e dar-lhe graas. Somente a f e a obedincia humilde palavra de Deus estaro aptas a confessar Eu creio em Deus.

    A Impossibilidade da Definio de Deus

    luz do que tem sido dito acerca da incompreensibilidade de Deus, deve ter ficado claro que todos os esforos para prover uma definio adequada de Deus devem ser infrutferos. A essncia de Deus no pode ser definida no sentido prprio do termo definio. Definir significa limitar, tal como o termo em si alude. Quando ns definimos algum objeto, inclumo-lo a uma certa classe, colocamo-lo na categoria de um universal conhecido, para ento distingui-lo dos outros objetos na mesma classe, mencionando as suas caractersticas distintivas.

    simplesmente impossvel definir a essncia de qualquer coisa pelo simples fato de no podermos formar um conceito claro do significado de essncia. Ns podemos dizer que a essncia de uma coisa aquilo que ela , ou sua substncia, ou sua hipstase [hypostasis], o substrato de todas as qualidades e atributos necessrios de uma coisa, aquilo em que tudo o mais subsiste. Mas sentimos que todas essas tentativas de definio no tm xito em limitar com clareza s nossas mentes o conceito essncia, ou ser. A dificuldade parece estar em que essncia precisa em si mesma ser um conceito ltimo, tal que no possamos encontrar um universal mais amplo ou abrangente.

    Como ento podemos esperar formular uma definio satisfatria do ser ou da natureza de Deus? Deus Deus. No pode existir um conceito mais alto do que a nossa idia de Deus. No pode existir universal em que Deus possa ser classificado. Ele no pode ser comparado: Com quem vocs me vo comparar? Quem se assemelha a mim?, pergunta o Santo (Isaas 40:25). Qualquer definio ou descrio de Deus que falhe em levar em conta essa

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    incomparabilidade de Deus estaria por meio disso destruindo a prpria idia de Deus. O que no pode ser comparado certamente no pode ser definido. Da mesma forma no possvel encontrar o gnero de tal definio no prprio Deus.

    Freqentemente tem se buscado isso. Algumas pessoas partiram da idia do Esprito a fim de fazer dela o gnero da sua definio; outras partiram da idia do amor; ainda outras, da idia do ser puro ou da idia da auto-suficincia de Deus (aseitas). Mas todas essas tentativas, medida que se propunham a oferecer uma definio do Altssimo, naufragaram no choque contra os rochedos da simplicidade de Deus. Deus um. Ele suas virtudes. Todas as suas virtudes, muito embora discriminadas em sua revelao a ns, so uma unidade nele. Portanto, todas as tentativas de definir a essncia do ser divino precisam ser abandonadas, posto que necessariamente infrutferas. Dizer que podemos definir Deus negar a sua prpria Divindade.

    Isso no significa que no podemos descrever a natureza divina. Se no pudssemos dizer nada sobre o ser de Deus teramos de retroceder concluso do agnosticismo. Sem com isso reivindicar a capacidade de prover uma definio lgica e abrangente da essncia de Deus, podemos claramente circunscrever a nossa concepo de Deus enquanto ela estiver baseada na revelao, a fim de expressar quem e o que ele , tanto em si mesmo quanto em relao ao mundo, e fazer isso em distino e oposio a todas aquelas concepes de Deus que no estejam baseadas na revelao e so, portanto, necessariamente falsas. Aqui precisa ser novamente enfatizado que todas as nossas descries da natureza de Deus precisam estar baseadas estritamente naquilo que Deus em si nos tem revelado no que se refere ao seu prprio ser e natureza.

    O Mtodo da Filosofia

    A f no pode nem por um s momento conceder razo o direito e a capacidade de dizer quem e o que Deus. Dogmticos no podem adotar o mtodo da filosofia, que sempre faz desta o seu prprio deus, seja quando com audcia reivindica junto com Fichte que a razo humana simplesmente o criou, seja se a verdadeira concepo de Deus determinada pela maioria de votos na humanidade. Para a filosofia representa um problema se politesmo, monotesmo, tesmo, desmo ou pantesmo apresentam a concepo correta de Deus. Para o crente, que deriva todo o seu conhecimento de Deus a partir da Sua prpria revelao, isso no pode representar dvida.

    O professor G. Watts Cunningham descobre um problema real aqui, em parte porque a conscincia religiosa questionvel em seu

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    pronunciamento acerca do objeto da sua f. Ele julga que esses pronunciamentos da conscincia religiosa so uma autntica babilnia. 3

    Para alguns crentes existem muitos deuses com uma grande variedade de caractersticas; para outros h somente um Deus, ainda que concebido com uma variedade interminvel de qualidades; alguns crem que Deus o artfice do progresso do mundo, outros O identificam precisamente com o progresso do mundo; s vezes Ele concebido como um Deus ciumento interessado em alguns poucos escolhidos, e ento novamente assumido como algum que no respeita pessoas; segundo a f de alguns, Ele uma personalidade auto-consciente com uma disposio de atingir certos fins, ao passo que em outros tipos de f ele um Poder inconsciente, Karma ou Cu; e assim a confuso segue ad infinitum. claro, mesmo uma mera reflexo revela que tal confuso logicamente intolervel; obviamente, no pode ser o caso de todas essas vises estarem certas. O que diramos ento? Iramos nos refrear no questionamento, que a f pode abundar? Isso impossvel, e a conscincia religiosa da humanidade no ir tolerar isso. Assim, aparte das crenas em Deus emerge o problema de Deus; a prpria diversidade da f faz deste um problema inevitvel. 4

    Para o crente esse problema no existe, pelo simples fato que ele no deriva a sua concepo de Deus de um estudo das diversas manifestaes da conscincia religiosa.

    Da mesma forma no h uma soluo satisfatria quando o problema de Deus filosoficamente apresentado dessa forma. O professor Cunningham, tendo eliminado o politesmo e desmo como possveis solues, arbitrariamente decide-se em favor do tesmo como este oferecendo a verdadeira concepo da natureza de Deus:

    O campo de batalha ento aparentemente deixado para o tesmo e o pantesmo. O que pode ser dito dos seus mritos relativos? Aqui a conscincia religiosa da humanidade no fala inequivocamente. Uma das grandes religies, pelo menos, totalmente pantesta; e ela soma entre seus devotos uma grande parte da raa humana. Mas o Budismo permanece quase sozinho nesse sentido; as outras grandes religies, particularmente o Cristianismo e o Maometismo, so

    3 G. Watts Cunningham, Problems of Philosophy: An Introductory Survey, rev. ed. (New York: Henry Holt & Co., 1935), 410. 4 Ibid., 410.

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    predominantemente testas em sua viso de Deus. Assim, pareceria que do ponto de vista da conscincia religiosa o peso de autoridade descansa em favor do tesmo antes que do pantesmo; e esse certamente o caso se pode ser demonstrado (tal como muitos dizem ser possvel) que o Cristianismo moderno expressa o discernimento mais profundo que a conscincia religiosa do homem j alcanou. 5

    Evidentemente o peso de autoridade ao qual o Professor Cunningham se refere o voto majoritrio computado pela conscincia religiosa do mundo, pois ele fala acerca do peso de autoridade da razo:

    Como a conscincia religiosa raciocina, tambm hesita entre o pantesmo e o tesmo. Mas aqui tambm o peso de autoridade pareceria favorecer as reivindicaes do tesmo. Os argumentos acima enumerados, especialmente os mais fortes (os argumentos epistemolgico e moral), conduzem mais diretamente ao tesmo; de fato, seria difcil reconcili-los com uma viso pantesta radical do mundo. E no desenvolvimento histrico do pensamento filosfico os maiores pensadores tm, no seu todo, mostrado uma inclinao para o tesmo antes que para o pantesmo. 6

    As citaes acima mostram claramente que a filosofia no tem uma soluo ao problema que levanta e que no tem nada de positivo a dizer sobre a questo da natureza de Deus.

    O Mtodo Subjetivo de Abraham Kuyper

    Da mesma forma a fonte do nosso conhecimento e da descrio da natureza de Deus no pode ser encontrada na experincia subjetiva do crente, nem mesmo se amparada por revelao. Esse parece ser o mtodo recomendado pelo Dr. A. Kuyper quando ele ensinava dogmtica na Universidade Livre de Amsterdam. Parece quase inacreditvel, mas ele diz:

    Se, portanto, a partir da natureza e histria do assunto, parece que a idia do ser no pode ser definida, ento a questo que se levanta como podemos mesmo lidar com a idia na teologia. A esse respeito o pargrafo diz que, falando da natureza de Deus, ns nunca precisamos partir do nosso entendimento pessoal ou do pensamento abstrato. Toda tentativa de abordar essa doutrina por meio do raciocnio abstrato parte de um falso escolasticismo ou colapsa dentro dele. Uma pessoa tem um

    5 Ibid., 430, 431. 6 Ibid., 431.

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    fundamento slido sob os ps quando se volta sua vida pessoal interior e s suas experincias religiosas e parte da. Falar das impresses religiosas no falar de algo provido pela graa, mas daquelas impresses bsicas, fundamentais, da vida religiosa, no prprio corao dos nossos coraes, assim desconsiderando aquelas impresses que so dadas pela nossa prpria auto-realizao da autoconscincia. Os pargrafos precedentes chamam isso de senso do divino, gravado na prpria essncia e entranhas do homem. Se algum diz que no existe tal coisa, ento deixe tal pessoa renunciar a toda empreitada teolgica. Pois mesmo que uma pessoa tenha dez bblias e possua todo o conhecimento exegtico possvel do que est nessas bblias, sem uma conexo interna com o ser eterno ela no pode avanar nem um s passo. 7

    A partir dessa experincia religiosa e dessas impresses religiosas, o Dr. Kuyper alega que ns podemos ascender ao conhecimento de um ser eterno ou Ego, que um, imutvel, e que tem o fundamento do seu ser em si mesmo. Kuyper nos lembra que quando ele fala da conscincia religiosa ou experincia, no se refere quela do ser humano individual, mas conscincia universal da humanidade tal como iluminada pela revelao das Escrituras:

    Se algum pergunta, ento, se segue a partir disso que observando esse [senso do divino] fora da sua prpria auto-realizao e autoconscincia, todo homem chega a uma confisso desse EU SOU de Deus, ento a resposta precisa ser: No. De fato o homem tem um senso do ideal, mas todo homem o tem enquanto pecador, em cuja condio tudo anormal. No apenas isso, pois mesmo se ele no fosse anormal por causa do pecado, ainda no seria verdade que todo homem o teria na forma individual. Uma conscincia humana individual inconcebvel um homem no existe exceto em conexo com e enquanto parte de todo o organismo da raa humana. A conscincia humana tem sido dada somente raa humana no seu todo

    Assim, quando falamos da confisso do divino EU SOU em Deus

    como um Ser, essa confisso no encontrada na conscincia individual de A ou B, mas na conscincia da humanidade concebida como uma coleo de indivduos, e tal como dizemos, na forma de graduao, processo, associao.

    7 Abraham Kuyper, Dictaten Dogmatiek, vol. 1, Locus de Deo, 1.5, 131.

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    Em segundo lugar, ns precisamos tambm falar do homem como sendo anormal em conexo com a debilidade que a natureza humana tem padecido debaixo da influncia do pecado. Portanto, Deus faz Cristo, o filho do homem, o representante de toda a raa humana, no como um indivduo anormal, mas completamente normal. A partir de Cristo, portanto, vem a ns um remanescente e testemunho da manifestao normal da conscincia que habita na raa humana. As Escrituras so dadas para limpar a nossa conscincia. E assim pela conscincia humana, em grau, processo e associao, e purificada pela revelao das Escrituras Sagradas, que ns chegamos confisso de que todas as operaes dentro de ns e ao nosso redor irradiam e vm a ns a partir do EU SOU de Deus, que existe em distino a ns e que Ele tem em si mesmo. 8

    O Erro de Kuyper

    Que Kuyper aborda aqui perigosamente o idealismo pantesta de Fichte evidente. Que Kuyper est totalmente errado evidente no apenas a partir das Escrituras, mas tambm a partir da histria da filosofia. Quando o homem natural constri a partir da sua prpria experincia de Deus uma concepo de si mesmo, faz sempre um Deus a partir do seu prprio corao, ou nega em absoluto que Deus . Cristo no aparece na palavra de Deus como o representante da conscincia humana geral em seu estado puro e normal, mas como quem vem do alto, como o Filho de Deus encarnado, e como a luz que brilha nas trevas, embora as trevas no a compreendam (Joo 1:5). Em Cristo ns no temos a mais sublime manifestao da conscincia humana em sua relao a Deus, mas a mais sublime revelao de Deus a ns: H muito tempo Deus falou muitas vezes e de vrias maneiras aos nossos antepassados por meio dos profetas, mas nestes ltimos dias falou-nos por meio do Filho (Hebreus 1:1,2).

    Em Cristo, portanto, ns no temos a expresso da conscincia humana acerca de Deus, mas a expresso divina de Si mesmo diretamente atravs do seu Filho em carne humana. No a partir da filosofia, no a partir da razo humana, no a partir da experincia religiosa, e no a partir da experincia religiosa da raa humana, mas a partir da revelao somente, isto , da palavra do prprio Deus concernente a sua pessoa, que precisamos derivar uma descrio, qualquer que seja a descrio que nos seja possvel fazer a partir da natureza de Deus.

    8 Ibid., 133, 134.

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    Desmo e Pantesmo

    Se consultarmos as Escrituras e formularmos a nossa descrio da natureza de Deus segundo a sua revelao, descobriremos que a palavra de Deus o revela a ns tanto em sua natureza transcendente como imanente, como o Todo Pleno, segundo a nfase de Barth; no entanto, as Escrituras tambm o revelam como aquele que est muito prximo de ns, cuja criatura lhe to familiar que Ele pode ser descrito por termos deduzidos da existncia da criatura.

    Em outras palavras, uma descrio da natureza de Deus baseada nas Escrituras precisa excluir e condenar como falso tanto o pantesmo como o desmo. Ainda que uma nfase na transcendncia de Deus, na sua unicidade plena, na verdade que ele est no cu e estamos na terra, que ele Deus, tenha o seu lugar e mrito; no entanto, uma nfase exclusiva nessa esfera da natureza de Deus o separa completamente de ns e do mundo, torna a revelao impossvel, e de fato o distancia uma vez mais para o reino do desconhecido. Tanto a sua imanncia como a sua transcendncia, a sua similitude e a sua diversidade, nos so reveladas no livro sagrado. Ambos precisam ser mantidos em uma descrio da natureza de Deus. Quando fazemos isso tanto o desmo como o pantesmo so eliminados de uma concepo crist de Deus.

    Desmo, uma filosofia que foi originada junto aos enciclopedistas franceses e alguns pensadores ingleses do sculo dezoito, enfatiza exclusivamente a transcendncia de Deus. Deus est acima do mundo. Ele criou o universo, mas no se envolve com ele. Ele no apenas constituiu a essncia do mundo, mas tambm lhe deu suas leis; agora o universo corre por sua prpria conta e leis. Da mesma forma que um relojoeiro ajusta um relgio, lhe d corda e o deixa correr, Deus criou o mundo, constituiu-o de forma tal que pudesse funcionar independentemente, e o deixa correr sem qualquer interferncia ou controle da Sua parte.

    Pantesmo a viso diametralmente oposta. Segundo o pantesmo, Deus no transcendente. Ele apenas imanente ao mundo; ou antes, identificado com o mundo. Tudo Deus, e Deus tudo; mas acima, alm ou aparte do mundo, no h Deus.

    A Imanncia de Deus

    As Escrituras sustentam a imanncia e a transcendncia de Deus apresentando-o como muito prximo de ns, como sendo to parecido conosco e mesmo como a criatura, que ele descreve a Si mesmo em termos deduzidos da existncia do homem bem como da criao em geral. Embora aquele que fez o mundo e todas as coisas implicadas nisso certamente no

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    resida em templos feitos com as mos (Atos 17:24), ele no est longe de cada um de ns: porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos (vv. 27, 28). Diretamente e alm de toda a existncia e atividade da criatura existe Deus.

    A voz do Senhor ressoa, quebra os cedros do Lbano e os faz saltar como um bezerro, separa as labaredas do fogo, faz tremer o deserto, faz parir as cervas, e descobre as brenhas. Ele se assentou sobre o dilvio, e dar fora ao seu povo (Salmos 29:3,5-11).

    O SENHOR desfaz o conselho dos gentios, quebranta os intentos dos povos. O conselho do SENHOR permanece para sempre; os intentos do seu corao de gerao em gerao. Bem-aventurada a nao cujo Deus o SENHOR, e o povo ao qual escolheu para sua herana. O SENHOR olha desde os cus e est vendo a todos os filhos dos homens. Do lugar da sua habitao contempla todos os moradores da terra. Ele que forma o corao de todos eles, que contempla todas as suas obras. No h rei que se salve com a grandeza dum exrcito, nem o homem valente se livra pela muita fora. O cavalo falaz para a segurana; no livra ningum com a sua grande fora. Eis que os olhos do SENHOR esto sobre os que o temem, sobre os que esperam na sua misericrdia; Para lhes livrar as almas da morte, e para os conservar vivos na fome. (Salmos 33:10-19)

    Nas suas mos esto as profundezas da terra, e as alturas dos montes so suas. Seu o mar, e ele o fez, e as suas mos formaram a terra seca (Salmos 95:4-5). Os seus relmpagos iluminam o mundo; a terra viu e tremeu. Os montes derretem como cera na presena do SENHOR, na presena do Senhor de toda a terra (Salmos 97:4-5). Ele se cobre de luz como de um vestido, estende os cus como uma cortina, pe nas guas as vigas das suas cmaras, faz das nuvens o seu carro, anda sobre as asas do vento, faz sair as fontes nos vales, as quais correm entre os montes para dar de beber a todo o animal do campo; os jumentos monteses matam a sua sede; rega os montes desde as suas cmaras, a terra farta-se do fruto das suas obras, faz crescer a erva, e traz comida para o homem e o gado, o vinho que alegra o corao do homem, azeite que faz reluzir o seu rosto, e po que fortalece o seu corao. Ele ordena a escurido, e faz-se noite; todas as criaturas na terra, no mar e no ar esperam dele que lhes d o seu sustento em tempo oportuno (Salmos 104:2,3,10,11,13-27).

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    Ele abre a sua mo e farta os desejos de todos os viventes (Salmos 145:16). Ele faz justia aos oprimidos, d po aos famintos, solta os encarcerados. Ele abre os olhos aos cegos, levanta os abatidos, ama os justos, guarda os estrangeiros, sustm o rfo e a viva; mas transtorna o caminho dos mpios (Salmos 146:7-9). Ele cobre o cu com nuvens, prepara a chuva para a terra, faz produzir erva sobre os montes, d o sustento aos animais e aos filhotes dos corvos, quando estes clamam, d neve como l, esparge a geada como cinza, lana o seu gelo em pedaos; manda a sua palavra e os faz derreter, faz soprar o vento e correr as guas (Salmos 147:8,9,16-18). Ele o que est assentado sobre o crculo da terra, estende os cus como cortina, e os desenrola como tenda, para neles habitar, e chama a todas as hostes pelo nome (Isaas 40:22,26).

    Ele faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desa sobre justos e injustos (Mateus 5:45). Ele alimenta as aves do cu, e veste a erva do campo com beleza (Mateus 6:26-30). Nenhum passarinho cai em terra sem a vontade dEle, e os cabelos das nossas cabeas esto todos contados por ele (Mateus 10:29,30). Mesmo a sorte que se lana no regao determinada pelo Senhor (Provrbios 16:33). O corao do rei na mo do Senhor como ribeiros de guas: que o inclina a todo o Seu querer (Provrbios 21:1). Deus imanente em todo o mundo; e toda a existncia e atividade da criatura se devem a Sua presena e poder.

    Deus est no apenas em todas as coisas, mas h tambm uma similaridade entre a criatura e Ele prprio, tal que todas as virtudes da criatura so remetidas a ele, especialmente as do homem, criado imagem de Deus. Nesse sentido ele no o Outro de Barth.

    A verdade da imanncia de Deus a base dos freqentes antropomorfismos nas Escrituras. Deus refere a si mesmo como face (xodo 33:20,23); o salmista anseia contemplar a face de Deus na justia (Salmos 17:15); o anjo da sua face (presena) os salvou (Isaas 63:9). Freqentemente as Escrituras falam acerca dos olhos do Senhor (Salmos 11:4; 32:8; 34:15; Provrbios 15:3; Hebreus 4:13) e mesmo das suas plpebras (Salmos 11:4). Elas fazem meno menina dos seus olhos, dos seus ouvidos, nariz, boca, lbios, pescoo, braos, mo direita (ou simplesmente mo), dedo, corao, intestino, peito e p. Diz-se dele como quem regozija, fica magoado, ofendido, temer a ira do inimigo, amar e odiar, ser misericordioso e ficar irado, ser ciumento e arrepender-se, esquecer e vingar-se. Ele se abaixa, menospreza, senta-se e aguarda, ele trabalha e descansa, ele vem e vai, ele caminha e encontra o homem, ele ignora e abandona, ele escreve e ratifica, ele sara e cobre as feridas, ele ri, ele zomba, fala, v, ouve, inclina seu ouvido, mata e faz viver. Ele descrito como um homem de guerra, pastor, homem forte, rei, legislador, construtor e artfice, sol e proteo dele, leo, guia, fogo

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    consumidor, fonte de gua viva, rocha, castelo forte, refgio e abrigo, e mais. 9 To grande essa similaridade, e to estreita essa afinidade, que possvel Deus assumir carne humana, o infinito unir-se com o finito, o eterno prender-se ao tempo. E o Verbo se fez carne, e habitou entre ns (e vimos a sua glria, como a glria do unignito do Pai), cheio de graa e de verdade (Joo 1:14).

    Todas essas expresses nas Escrituras que remetem a Deus sentimentos humanos e virtudes das criaturas, e mesmo membros do corpo humano, no tm em vista sua interpretao literal, nem mesmo passam essa impresso. Se isso fosse esse o caso, Deus estaria se rebaixando ao nvel da criatura, e a distino entre ele e o mundo seria obliterada. Corretamente, a igreja tem sempre considerado essas expresses humanas como figuras de linguagem, antropomorfismos.

    Deus um esprito de infinitas perfeies. O que est presente na criatura est sempre infinitamente presente em Deus. Antropomorfismos no so simples figuras vazias sem base em fatos. No se pode admiti-los de forma que a criatura seja o padro para Deus ou para o nosso conhecimento dele. Pelo contrrio, antropomorfismos baseiam-se na verdade de que todas as coisas so feitas e sustentadas pela palavra de Deus de tal forma que so reflexo da Sua natureza e das Suas virtudes gloriosas, que lhes chamou existncia a partir da Sua vontade onipotente. Deus imanente no mundo: est muito prximo de ns; porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos. Existe afinidade e similaridade entre Deus e a criao.

    A Transcendncia de Deus

    Se frente concepo falsa do desmo a imanncia de Deus deve ser mantida, ento no menos importante manter sua transcendncia em oposio ao pantesmo em todas as suas vertentes. No fcil definir o que se quer dizer por transcendncia quando o termo usado em relao a Deus. Desde Kant, os termos transcendente e transcendental tm se submetido ao emprego filosfico. Transcendncia foi aplicado especulao acerca do que reside alm do escopo do entendimento humano, e portanto tornou-se sinnimo de incompreensvel, ao passo que transcendental denota aquilo que a priori relacionado a todo o conhecimento humano, aquilo que a priori condiciona toda experincia.

    Na teologia, no entanto, transcendncia usada para denotar a supereminncia de Deus sobre a criatura, uma supereminncia que no relativa, mas absoluta. Assim como a imanncia de Deus significa que ele est

    9 Para uma relao completa de referncias, veja Herman Bavinck, The Doctrine of God, trans. William Hendricksen (Grand Rapids: Eerdmans, 1955), 86-88.

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    no mundo e relacionado a ele, tambm a transcendncia essencial de Deus significa que em si mesmo ele infinitamente exaltado sobre o mundo e que h um abismo intransponvel entre o mundo e Seu ser infinitamente glorioso. Ele Deus. Ele o absoluto. Ele transcende toda a existncia e todas as relaes da criatura.

    razovel que tenhamos de falar repetidamente da transcendncia de Deus quando discutimos os nomes e os atributos de Deus. Nessa conexo, portanto, precisamos nos moderar a uma definio geral do termo tal como usado aqui. Talvez no seja suprfluo advertir contra a falsa idia de transcendncia que representa Deus como estando fora do cosmos, ou do ponto de vista do espao ou tempo, em distino sua imanncia em conformidade com aquilo que ele dentro do universo. Segundo tal concepo falsa de transcendncia, simplesmente estendemos infinitamente o universo e damos a Deus um lugar nesse universo estendido. Aplicado ao espao, ns ento concebemos Deus como estando parcialmente dentro do espao limitado do nosso mundo e parcialmente fora desse espao, num espao infinitamente estendido.

    Evidentemente, o erro fundamental dessa representao da relao entre a imanncia de Deus e sua transcendncia que aplicamos o conceito espao a Deus. Isso impossvel. O espao em si uma criao. Deus no est meramente fora do nosso espao, mas transcendente com relao essncia de espao, o que significa que a idia de espao no deveras aplicvel a Ele. Da mesma forma que no podemos admitir acerca da imanncia de Deus como sendo aquela parte do Seu ser que est dentro dos limites do universo, no podemos pensar da Sua transcendncia como a extenso infinita da Sua imanncia no espao infinito. Da mesma forma que a Sua imanncia significa que ele est totalmente, com sua essncia infinita, no universo e em toda parte, relao e momento, Sua transcendncia implica que com Sua essncia plena ele est acima do mundo e acima de todos os seus momentos e relaes.

    O mesmo verdade com respeito relao de Deus com o universo no tempo. Somos inclinados a conceber o nosso tempo como sendo apenas uma parte de todo o tempo, isto , do tempo estendido infinitamente tanto no passado como no futuro. A imanncia de Deus ento significa que Ele est parcialmente no tempo csmico, no tempo estendido do alfa de Gnesis 1 ao mega do dia de Cristo, ao passo que a sua transcendncia ento significa que ele tambm existe infinitamente no tempo. Mas novamente, precisa ser notado que o tempo em si uma criatura, e ele no deve em qualquer sentido ser aplicado a Deus. Sua imanncia no implica que parte do Seu ser est no tempo, pois Ele O imutvel. Antes, significa que com o Seu infinito ser, ele est presente em cada momento do tempo, ao passo que Sua transcendncia

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    denota que Ele essencialmente exaltado sobre todo o tempo e sobre cada momento do tempo. Deus o eterno. Ele Deus.

    verdade que as Escrituras freqentemente descrevem Deus em termos que nos fariam pensar acerca dEle como estando infinitamente estendido tanto no espao como no tempo. dito que Ele est no cu, como sua residncia tpica: Porventura Deus no est na altura dos cus? Olha para a altura das estrelas; quo elevadas esto! (J 22:12). O cu, em distino a terra, Seu trono (Isaas 66:1; Mateus 5:34; Atos 7:49). Mas o nosso Deus est nos cus; fez tudo o que lhe agradou (Salmos 115:3). Somos ensinados a nos dirigir a Deus como Pai nosso, que ests nos cus (Mateus 6:9). Ainda, o cu e o cu dos cus no podem cont-lo (1 Reis 8:27; 2 Crnicas 2:6). s vezes mesmo deixada a impresso que Deus est no cu em distino a terra, onde no est: porque Deus est nos cus, e tu ests sobre a terra; assim sejam poucas as tuas palavras (Eclesiastes 5:2).

    De tudo isso ns podemos concluir que Deus est muito acima de ns, no mais alto dos cus, mas ainda dentro do universo e do espao criado, ao passo que a Sua essncia igualmente se estende alm dos limites mximos dos cus, num espao infinito, algo extra-csmico. O mesmo verdade acerca da relao de Deus com o tempo. No apenas lemos Antes que os montes nascessem, ou que tu formasses a terra e o mundo, mesmo de eternidade a eternidade, tu s Deus (Salmos 90:2), mas freqentemente tambm deixada a impresso de que Deus muda em e junto da natureza mutvel do tempo. Seu conselho apresentado como pertencendo a um perodo anterior fundao do mundo. No entanto ns no devemos esquecer que em todas essas expresses nas Sagradas Escrituras h um elemento antropomrfico.

    No h linguagem humana que possa expressar apropriadamente a natureza distintiva de Deus. Ns precisamos falar de Deus em termos de espao e de tempo. Mesmo o termo transcendncia antropomrfico. Mas isso no significa que na teologia ns possamos definir Sua transcendncia de forma tal que espao e tempo sejam aplicados a ele. Mesmo o Catecismo de Heidelberg cuidadosamente evita qualquer noo desse tipo quando, em sua explicao do destinatrio da Orao do Senhor, faz a pergunta Por que adicionado: Quem est no cu?, e d a resposta Que possamos no ter pensamentos terrenos da majestade celestial de Deus, e no esperemos da Sua onipotncia todas as coisas necessrias ao corpo e alma. 10

    Ns precisamos, portanto, conceber a transcendncia de Deus como essencial, isto , como se referindo supereminncia absoluta e infinita do ser divino com relao a toda a criao. Isso remete ao todo da essncia divina e a todos os seus

    10 Catecismo de Heidelberg. P & R 121 em CC, vol. 3, 352.

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    atributos, no apenas quelas virtudes de Deus que so distinguidas como incomunicveis.

    Especialmente quando falando desses atributos incomunicveis do ser divino, a teologia tem em mente a transcendncia de Deus. A Confisso Belga remete a isso: Todos cremos de corao, e confessamos com os lbios, que h somente um simples e espiritual Ser, que chamamos Deus; e que Ele eterno, incompreensvel, invisvel, imutvel, infinito, todo-poderoso. 11

    Os atributos incomunicveis de Deus no podem ser dissociados dos atributos comunicveis. Ou diferentemente, as virtudes ou perfeies incomunicveis de Deus podem ser assumidos como atributos tambm de qualidades comunicveis. No h atributos em Deus que so eternos, incompreensveis, invisveis, infinitos e onipotentes, ao contrrio de outros atributos temporais, compreensveis, visveis, finitos e limitados. As virtudes da Sua mente, vontade e poder so caracterizados pela mesma infinitude e inteireza das perfeies incomunicveis.

    A transcendncia de Deus, ento, significa que ele absolutamente supereminente em si mesmo e em todas as suas perfeies, que ele o absoluto em distino a toda a existncia relativa, a eternidade e a infinitude em distino a todo ser limitado, o ser puro e auto-existente, o imutvel em distino criatura sempre mutvel, o nico ser simples em distino a toda a variedade do universo. Embora estando muito prximo de ns em sua imanncia, ele est longe de ns em sua transcendncia. Embora estando por um ato do seu prprio arbtrio numa relao imediata com toda a criao, ele permanece em si mesmo absoluto. Embora sendo como ns, ele o Outro. Ele Deus.

    A Espiritualidade de Deus

    Mais dois outros elementos devem ser considerados em nossa descrio da essncia de Deus: sua personalidade e espiritualidade. Que Deus esprito ensinado mais de uma forma nas Escrituras. Indiretamente est implicado no segundo mandamento: No fars para ti imagem de escultura, nem alguma semelhana do que h em cima nos cus, nem em baixo na terra, nem nas guas debaixo da terra (xodo 20:4; Deuteronmio 5:8), que baseia-se na invisibilidade e espiritualidade de Deus. enfatizado aos filhos de Israel que eles no vejam forma de similitude, a fim de que no corrompam a si mesmos e mudem a glria do Deus incorruptvel em imagem de criatura corruptvel (Deuteronmio 4:12, 15-24; Romanos 1:23). O Senhor tambm expressa diretamente essa espiritualidade de Deus nas palavras bem conhecidas: Deus Esprito, e importa que os que o adoram o adorem em esprito e em 11 Confisso Belga, Art. 1 em CC, vol. 3, 383.

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    verdade (Joo 4:24). Em todos os lugares enfatizado que Deus invisvel (Joo 1:18; Romanos 1:20; Colossenses 1:15; 1 Timteo 1:17), especialmente onde o apstolo fala acerca dEle como aquele que tem, ele s, a imortalidade, e habita na luz inacessvel; a quem nenhum dos homens viu nem pode ver, ao qual seja honra e poder sempiterno (1 Timteo 6:16).

    Essa espiritualidade de Deus precisa ser distinguida da subsistncia pessoal da terceira pessoa de Deus, o Esprito Santo. Quando dizemos que Deus esprito, queremos dizer que sua essncia espiritual. Num sentido negativo, isso significa que Deus no material, tal como a criao visvel e que, portanto, ele no est limitado por forma ou extenso. Isso significa tambm que ele absolutamente invisvel, e nesse aspecto, mesmo distinguido dos anjos. Muito embora os anjos sejam invisveis em relao nossa viso terrena e material, no so absolutamente invisveis.

    Num sentido positivo, a espiritualidade de Deus est proximamente relacionada sua simplicidade. Que Deus esprito puro significa que suas perfeies no subsistem em outra essncia pela qual so sustentadas e na qual residem. Deus seus atributos. Conosco isso completamente diferente. Todos os nossos atributos tm seu substrato e so limitados pela natureza fsico-espiritual da qual somos feitos. Mesmo acerca dos anjos, embora Deus os tenha feito espritos, isso verdade. Eles representam uma natureza espiritual criada, e todas as suas virtudes e capacidades esto enraizadas nessa essncia criada. Mas Deus puro e absolutamente espiritual. Ele luz, amor e vida. Ele sabedoria, conhecimento e entendimento. Ele justia, retido e santidade. Ele graa, misericrdia e verdade. Ele poder absoluto e energia pura. Deus Esprito, e importa que os que o adoram o adorem em esprito e em verdade (Joo 4:24).

    A Personalidade de Deus

    A fim de no cairmos no erro do pantesmo, precisamos imediatamente adicionar que Deus um esprito pessoal. Ele no uma essncia vaga, inconsciente, que eleva-se conscincia na criatura, mas em si mesmo uma existncia pessoal, ou ainda para que no pensemos dele como uma entre outras pessoas ele uma personalidade auto-existente, absoluta. Em todo lugar nas Escrituras ele nos encontra como o Ego (EU SOU) em quem a conscincia e a autoconscincia so absolutamente idnticas e uma s.

    Essa subsistncia pessoal de Deus assume a forma da subsistncia da tripla personalidade da Trindade Santa, da qual precisamos falar posteriormente. No entanto precisa ser imediatamente dito que essa existncia trina em Deus nunca tal que frente a Sua criatura ele apresenta-se como trs, ou que ele sempre remete a ns como um sujeito plural. Dentro de si

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    mesmo ele pode falar no plural, como em Gnesis 1:26: E disse Deus: Faamos o homem nossa imagem, conforme a nossa semelhana. A ns Ele se revela e fala como o absoluto Ego (EU SOU). Do Pai, mediante o Filho, e no Esprito, ele nos confronta em sua revelao como o esprito puro que o nico Senhor do cu e da terra, o bem-aventurado, e nico poderoso Senhor, Rei dos reis e Senhor dos senhores (1 Timteo 6:15).

    A isso podemos adicionar que a essncia de Deus perfeio pura, absoluta bondade, e a implicao de todas as perfeies e virtudes possveis. Jesus inquiriu do jovem legalista, Por que me chamas bom? No h bom seno um s, que Deus (Mateus 19:17). E esta a mensagem que dele ouvimos, e vos anunciamos: que Deus luz, e no h nele trevas nenhuma (1 Joo 1:5). Isso implica que ele si mesmo bondade plena e que ele o nico critrio, bem como a fonte de toda a bondade na criatura.

    Nunca verdade que exista um padro de bondade e perfeio, de verdade, retido e santidade, a partir da nossa perspectiva ou mesmo acima de Deus, e que Ele chamado de bom porque se conforma a esse padro. A bondade de Deus absoluta. Ele no nem mesmo o bem supremo, a mais alta bondade. Ele o bom, a bondade absoluta; em sua prpria essncia ele o nico padro ou critrio para toda a bondade. Portanto, Deus que Deus, em distino a todas as criaturas, O Santo. Precisamente porque ele Deus, ele auto-centrado assim como absolutamente auto-suficiente.

    Como o nico bom, a implicao de todas as perfeies, Ele procura e encontra a si mesmo; ele ama a si mesmo e busca a sua prpria glria. Ele fez todas as coisas por amor do seu prprio nome, mesmo o mpio para o dia do mal. Deus o nico, simples, absoluto, puramente espiritual, ser pessoal de infinitas perfeies, todo-imanente em todo o mundo, no obstante essencialmente transcendente em relao a todas as coisas.

    Fonte: Reformed Dogmatics, 2 ed., Vol. 1, p. 63-88.