o Serialismo Dodecafonico (Palestra)

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1 O SERIALISMO DODECAFÔNICO NA SEGUNDA ESCOLA DE VIENA 1 Fernando Kozu Introdução Apesar de não necessitar justificativas para considerar o dodecafonismo vienense como um dos aspectos que marcaram a música do século XX, visto a considerável influência que este desencadeou nas práticas e teorias musicais posteriores — composição, análise, interpretação e audição — , apresentaremos nesta introdução um breve panorama da trajetória da teoria tonal, focalizando os elementos que contribuíram para a sua dissolução, passando pelo brevíssimo período do atonalismo, até desembocar no dodecafonismo. O objetivo desta exposição é contextualizar o dodecafonismo historicamente como uma conseqüência inevitável e necessária do sistema tonal, já que este se encontrava em crise diante do desgaste de seus constituintes que lhe garantiam a sua consistência. É óbvio que muitas outras tendências foram exploradas paralelamente ao dodecafonismo, mas que, apesar de serem aspectos que também marcaram a música do século XX, não constituem o foco deste estudo. Só para citar alguns compositores mais significativos, temos na França Debussy, na Rússica Stravinsky, na Hungria Bartók, e na América Ives e Varèse. Assim como o dodecafonismo dos vienenses, essas outras vertentes também estavam experimentando novos paradigmas para solucionar o evidente impasse em que se encontrava o tonalismo na virada do século XX. Tomaremos como ponto de partida a apresentação de Juan Carlos Paz, que no prefácio do livro O que é a música dodecafônica?, de Herbert Eimert, faz uma síntese bastante objetiva e clara a respeito do contexto histórico da música pré-dodecafônica: A técnica da composição dodecafônica constitui um ensaio de reestruturação lógica, conseqüente e efetiva, uma vez que, ao ponto final de uma extensa trajetória, em que a música da civilização ocidental, após o desgaste progressivo de seus elementos básicos — tonalidade e formas resultantes — , empreende a lenta, continuada e obrigatória tarefa de superá-los com outros recursos mais avançados, mais necessários e mais eficazes. (Paz, in: Eimert, 1973:7) Paz aponta para o fato de que já nos primórdios da música tonal podem ser detectados alguns dos elementos que refutam a teoria, como nas 1 Ciclo de Palestras: Aspectos da Música do Século XX. NMC - núcleo de música contemporânea – CEC/CECA/UEL - 05.10.2000/Londrina.

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O SERIALISMO DODECAFÔNICO NA SEGUNDA ESCOLA DE VIENA1

Fernando Kozu Introdução Apesar de não necessitar justificativas para considerar o dodecafonismo vienense como um dos aspectos que marcaram a música do século XX, visto a considerável influência que este desencadeou nas práticas e teorias musicais posteriores — composição, análise, interpretação e audição — , apresentaremos nesta introdução um breve panorama da trajetória da teoria tonal, focalizando os elementos que contribuíram para a sua dissolução, passando pelo brevíssimo período do atonalismo, até desembocar no dodecafonismo. O objetivo desta exposição é contextualizar o dodecafonismo historicamente como uma conseqüência inevitável e necessária do sistema tonal, já que este se encontrava em crise diante do desgaste de seus constituintes que lhe garantiam a sua consistência. É óbvio que muitas outras tendências foram exploradas paralelamente ao dodecafonismo, mas que, apesar de serem aspectos que também marcaram a música do século XX, não constituem o foco deste estudo. Só para citar alguns compositores mais significativos, temos na França Debussy, na Rússica Stravinsky, na Hungria Bartók, e na América Ives e Varèse. Assim como o dodecafonismo dos vienenses, essas outras vertentes também estavam experimentando novos paradigmas para solucionar o evidente impasse em que se encontrava o tonalismo na virada do século XX. Tomaremos como ponto de partida a apresentação de Juan Carlos Paz, que no prefácio do livro O que é a música dodecafônica?, de Herbert Eimert, faz uma síntese bastante objetiva e clara a respeito do contexto histórico da música pré-dodecafônica:

A técnica da composição dodecafônica constitui um ensaio de reestruturação lógica, conseqüente e efetiva, uma vez que, ao ponto final de uma extensa trajetória, em que a música da civilização ocidental, após o desgaste progressivo de seus elementos básicos — tonalidade e formas resultantes — , empreende a lenta, continuada e obrigatória tarefa de superá-los com outros recursos mais avançados, mais necessários e mais eficazes. (Paz, in: Eimert, 1973:7)

Paz aponta para o fato de que já nos primórdios da música tonal podem ser detectados alguns dos elementos que refutam a teoria, como nas

1 Ciclo de Palestras: Aspectos da Música do Século XX. NMC - núcleo de música contemporânea –

CEC/CECA/UEL - 05.10.2000/Londrina.

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resoluções harmônicas inesperadas das obras do compositor renascentista Carlo Gesualdo. Em Bach e Schütz, compositores que representam o período barroco, também é possível verificar elementos estranhos ao sistema, assim como no breve período clássico de Mozart e Haydn. Mas foi com os compositores do período romântico que as “anomalias” do “paradigma” tonal se manifestaram com maior intensidade:

...inspirados em princípios de libertação política-social, econômica, artística e religiosa, se manifestou, na música, na expressão de conteúdo anímico, na dissolução [prefiro o termo ampliação ou superação] das formas clássicas, na instabilidade harmônica, no aumento progressivo da sonoridade e dos processos dissonantes característicos da expressão romântica, (...) gerando uma tensão constante, uma espécie de suspensão que se mantém às vezes ao longo de toda uma obra... (Paz, 1973:8)

Paz cita os compositores Weber, Beethoven e Schubert como os precursores do movimento romântico. Logo em seguida, com Liszt, Brahms, Frank, Reger, Wagner, Mahler e R. Strauss, o sistema tonal atinge os seus limites e chegamos então às fronteiras da tonalidade, na qual em alguns casos esta só é tomada como referência para o ponto de partida e de chegada. Schoenberg, em sua primeira fase composicional (1896-1907), contribui significativamente com essa estética pós-romântica. Em obras como Verklërte Nacht (1899), Pelleas und Melisande (1903), Gurre-lieder (1901) e o Quarteto de cordas op.7 (1905), encontramos as mesmas características das obras de Brahms, Wagner e Mahler que contribuíram para levar ao extremo a crise do diatonismo: a modulação cromática e enarmônica, a modulação perpétua e o uso intenso de “harmonias flutuantes”, quer dizer, acordes de tensão e função ambígua que anulam os centros de atração, ou resolução. A progressão evolutiva das pesquisas de Schoenberg, que o levou ao dodecafonismo, parte de um vocabulário pós-wagneriano para chegar a uma suspensão da linguagem tonal, ou utilizando a classificação corrente, na sua fase atonal2 (1908-1915). As suas três peças para piano, op.11 (1908), marcam definitivamente o desaparecimento dos axiomas da teoria tonal na escrita de Schoenberg. Ela é caracterizada por um “cromatismo absoluto” (Paz, 1973:14) que libertam as notas dos princípios unificadores das leis da tonalidade. O compositor é então impulsionado a se guiar por normas intuitivas de ordem psicológica, a uma intervalística empregada de maneira apriorística e a uma temática extremamente fragmentada, da qual geram as harmonias e as derivações melódicas subseqüentes. Encontram-se em profusão intervalos de maior tensão, ou no termo cunhado por Boulez, os “intervalos anárquicos” (1995:240), como as 2as. e as 9as. menores, as 4as. e as 5as. aumentadas e as 7as. maiores, sendo considerados como de passagem todos os intervalos consonantes: uma inversão total dos axiomas tradicionais. (Paz, 1973:14) 2 Schoenberg não concordava com este termo pois o conceito “atonal” pode ser literalmente traduzido como

“privado de som”. Ele prefere utilizar a expressão “tonalidade suspensa”, ou “pantonal”. (cf. Webern, 1984:113)

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A dissonância é finalmente emancipada, ou seja , não mais busca a justificativa da resolução — anulação do axioma consonancia-dissonância; Os acordes ganham autonomia e independência, e a harmonia se desprende de sua obrigação de resolução evitando a todo custo o uso do acorde perfeito — anulação das zonas polares da harmonia funcional; A melodia se escapa dos processos simétricos-cadenciais das formas clássicas na procura de uma liberdade maior de articulação, mais próximas da fala (Sprechgesang); O timbre começa a ser empregado de forma a estabelecer funcões estruturais em algumas peças (Klangfarbenmelodie), como na terceira parte de suas cinco peças para orquestra, 0p.16 (1909). A obra mais importante desse período, onde encontramos reunidos os principais procedimentos composicionais, observados acima como característicos do atonalismo, são os 21 melodramas de seu Pierrot Lunaire, op.21 (1912). De acordo com Boulez, esta é a sua fase mais fértil e inovadora; no que diz respeito à escrita instrumental em si, Schoenberg chega ao ápice de sua invensão e de sua originalidade utilizando uma linguagem livre, organiza-a em função das figuras sonoras de tendências mais ou menos temáticas, empregando às vezes, ao mesmo tempo, as formas mais severas do contraponto. (1995:316) Incomodado com a falta de um sistema coerente e fixo que garanta a unidade estrutural de suas composições, Schoenberg vai estabelecendo um tipo de escrita serial como uma possível solução de um novo paradigma para a linguagem musical. É a terceira fase composicional de Schoenberg (1923-1935). Essa preocupação em encontrar um elemento de base, típico da ortodoxia schoenberguiana, que garanta a unidade e a coerência composicional dentro de um sistema pré-estabelecido, leva a uma espécie de paradoxo, ou contradição estética entre uma atitude reacionária e ao mesmo tempo tradicional. Talvez não seja por acaso que Boulez tenha escrito em um artigo, sem economizar o vocabulário, a famosa frase: SCHOENBERG MORREU. (1995:239-245) Veremos logo adiante como Schoenberg retrocede no seu modo de compor logo que estabelece as normas do seu sistema dodecafônico3. Será preciso que um de seus discípulos mais próximos, Anton Webern, leve adiante a proposta revolucionária do pensamento serial dodecafônico concebida por Schoenberg, que estando limitada ao parâmetro das alturas e às estruturas temáticas da música tradicional, necessitam de um novo meio de articulação mais coerente com os reais princípios do pensamento serial.

3 Lembremos que Schoenberg não deixou escrito nenhum tratado teórico da técnica da composição

dodecafônica. Seu único escrito a respeito constitui num artigo publicado no livro O Estilo e a Idéia, entitulado

A composição com doze sons, relativo a uma conferência dada na Universidade da California em 1941.

Schoenberg não se considera como o criador de um “sistema” da escala cromática, preferindo chamar a este

procedimento apenas como método de compor com doze sons relacionados entre si. (1963:148)

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SCHOENBERG e o método dodecafônico Paul Griffiths afirma que Schoenberg não possuia o espírito de um verdadeiro vanguardista. Schoenberg encarava sua incursão pela atonalidade como inevitável conseqüência do que viera antes, e se sentia impelido a seguir em frente, mesmo contrariando sua vontade consciente. (...) [A]bandonar a harmonia diatônica era privar-se da principal sustentação da música que mais venerava, a da tradição austro-germânica de Bach a Brahms4. (Griffiths, 1994:25) Na formulação “clássica” de Schoenberg, sobre o método dodecafônico, cada peça está baseada numa dada ordenação dos doze tons temperados – tomados abstratamente como a série de doze notas, ou seja, sem referência à oitava ou ao registro – e a própria obra é uma exposição ou realização desta estrutura de ordenamento. Segundo Schoenberg, nenhuma nota deve ser repetida dentro da série; e utiliza-se somente uma série para cada composição, pois, a construção da série tem por objetivo retardar o maior tempo possível o retorno de um som já escutado; o destaque colocado sobre uma nota dada, pelo fato de que ela é duplicada ou repetida antes da hora, periga investir essa nota da categoria de tônica. A operação sistemática de uma série de doze sons dá a cada uma a mesma importância e afasta assim todo o risco de supremacia de algum deles.(?) Na Escola de Viena a série é geralmente considerada como um princípio unificador de base, ligada às formas clássicas do contraponto (formas em ‘espelho’). Teremos então, as seguintes ‘operações básicas’ que são aplicadas em uma Série Original [SO]: a) lendo-se da direita para a esquerda: forma retrógrada, ou Retrógrado do

Original [RO]; b) invertendo-se a direção dos intervalos (os ascendentes tornam-se descendentes,

e vice-versa):forma inversa, ou Inversão do Original [IO]; c) lendo-se da direita para a esquerda a forma invertida: o Retrógrado da Inversão

[RI]. 4 Só para justificar esta afirmação de Griffiths, o próprio Schoenberg deixa evidente, em uma carta enviada a

Webern, a sua veneração pelos mestres da tradição a ponto de encarar a composição dodecafônica como

extensão direta dos esteriótipos da música tradicional: ...Gostaria somente de recomendar que, se possível,

ordene as análises de tal maneira que pela escolha das obras o desenvolvimento lógico em direção à

composição com doze sons seja evidenciado. Por exemplo, os franco-flamengos e Bach para o contraponto;

Mozart para o fraseado e também para o trabalho motívico; Beethoven, mas também Bach, para o

desenvolvimento; Brahms, e, eventualmente Mahler, para o tratamento da complexidade e da variação. Creio

que essas grandes linhas são essenciais.(in: Webern, 1984:113)

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Cada uma da 4 versões da série (SO, RO, IO e RI) pode ocorrer nos 12 níveis transposicionais. Assim sendo, a “família” dodecafônica compõem-se de 48 membros. A “matriz 12x12” é uma forma simples de exposição de todos os membros de uma série: 12 transposições, 12 inversões, 12 retrógrados e 12 retrógrados das inversões. Escreve-se a série horizontalmente e, a partir do primeiro elemento, escreve-se a sua inversão verticalmente. Partindo de cada elemento da inversão, escreve-se então, horizontalmente, as várias transposições da série. [ver anexo: análise 1] As 12 colunas, portanto, lidas de cima para baixo, representam as 12 inversões; lidas de baixo para cima, os 12 retrógrados das inversões. A matriz, portanto, presta um grande auxílio (tanto ao analista quanto ao compositor) na identificação das formas da série numa composição; no traçado do perfil estrutural de uma peça. Compor com a série dodecafônica significa, portanto, redefinir, continuamente, a série básica (original). As formas de realização musical dos 48 membros são infinitas, quando se pensa em interpretá-los com relação à textura, altura, ritmo e dinâmica. (Nogueira, 1994) Tendo delineado em seus traços gerais a teoria dodecafônica, tal qual concebida por Schoenberg, vejamos agora como ele realiza em um trecho de uma de suas composições a aplicação do seu método de composição. Conforme salienta Boulez, a utilização da série em Schoenberg está ligada ainda a um fenômeno temático, e por isso ele diz que a série é, para ele, um “ultratema”; até o fim da sua vida a série deverá assumir um papel equivalente ao do tema na música tonal. (1995:270) Analizando o tema de suas Variações para Orquestra, op.31 (1926-28), geralmente considerada como a obra em que Schoenberg atingiu o domínio completo de seu método (Barraud, 1975:89), é possível verificar claramente esta estrutura temática altamente delineada, com a exposição dos seus motivos e frases, com o desenvolvimento motívico na seção central contrastante, e com a reexposição da primeira seção. Igual à estrutura formal dos clássicos e românticos. A única diferença é que não temos uma tônica na exposição, uma dominante na seção contrastante, e novamente a tônica na reexposição. O que garante a unidade dessa estrutura temática, em relação ao material melódico e harmônico, é justamente a exposição da série combinada com as suas respectivas formas espelhadas e transpostas, onde cada seção ou segmento do tema corresponde a uma forma particular da série; em relação à textura, retoma-se a nossa velha conhecida melodia acompanhada. [anexo: análise 1]

Sabendo que o objetivo de Schoenberg era utilizar a série para compor como antes (...), como os grandes compositores austro-germânicos sempre fizeram (cf. Griffiths, 1994:82), a breve análise que apresentamos só vem a confirmar a conquista desse objetivo. Talvez por causa deste “recuo”, conforme enfatiza Griffiths, Schoenberg teria sido alvo de severas críticas por compositores posteriores. (idem, p.85) E talvez Pierre Boulez tenha sido o mais radical de todos, por um lado com as suas ironias, mas por outro, com as suas críticas objetivas e

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racionais. Ele critica principalmente o fato de que Schoenberg não havia se dado conta completamente a respeito do fenômeno serial, que servindo de base à estrutura composicional, deveria abranger desde a concepção dos elementos componentes — a concepção da série e suas matrizes — até a arquitetura global da obra — o tratamento serial das notas no espaço, além do tratamento serial dos outros componentes sonoros, como duração, intensidade e timbre. (1995:242) Com toda certeza não se pode tirar o mérito de Schoenberg por causa dessas críticas, pois foi ele quem realmente abriu as portas para o serialismo. E talvez Berg tenha fechado as portas da tradição romântica, como o último dos românticos. O serialismo para ele se integrou pacificamente ao serialismo e ao atonalismo como formas de expressão bastante heterodoxas. Mas me parece que Webern saiu silenciosamente pelas portas dos fundos, abrindo o caminho para o serialismo integral, com o seu espírito da exatidão. É o que tentaremos observar em seguida. BERG e o método das pluralidades Alban Berg acabou descobrindo seu próprio caminho através de uma expansão complexa e pouco ortodoxa do método, trabalhando com séries diferentes mas correlatas e combinando operações seriais à rica harmonia tonal que nunca estivera totalmente ausente de sua música. Foi na Suíte Lírica (1925-26) que Berg utilizou pela primeira vez a técnica dodecafônica. Essa obra para quarteto de cordas compreende seis movimentos. Os únicos movimentos consistentemente de doze sons são o 1º, o 3º e o 6º, mas a configuração de 12 sons estão incluídas entre os principais temas dos movimentos não seriais intermediários; episódios dodecafônicos e não-dodecafônicos ocorrem na mesma obra, não apenas de movimento para movimento, mas também às vezes dentro do mesmo movimento – pode-se constatar aí uma vontade de opor ao emprego desta técnica estrita uma organização cromática mais livre e não codificada. As idéias contidas nesses movimentos não são apenas temas, no sentido tradicional, mas também coloridos e formas expressivas; um aspecto que Berg realça pelo fato de dar qualidade às indicações de andamento através de designações fortes e associativas, segundo uma terminologia “significativa”- vamos citá-los por serem particularmente reveladores da estética de Berg: Allegretto gioviale, Andante amoroso, Allegro misterioso, Adágio appassionato, Presto delirando e Largo desolado. No 3º movimento, o Allegro misterioso, Berg utiliza-se da série não tanto como um princípio estrutural quanto de uma maneira para “colorir” a música a partir do seu interior – todas as cuidadosas e precisas manipulações que se acham na página impressa não são mais do que um grande murmúrio sussurrado. [anexo 2a]

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O Concerto para Violino e Orquestra, terminado a 11 de Agosto de 1935, foi o último trabalho de Berg. Ele traz como dedicatória a frase “à memória de um anjo” e apresenta-se como homenagem fúnebre a Manon Gropius. Nesta obra se afirma a preocupação em unir o sistema dodecafônico e o sistema tonal. Com relação a isso, é particularmente significativa a escolha da série, que é composta por tríades menores e maiores e uma seqüência de três tons inteiros. Com a audição simultânea dos sons desta série, reunidos em grupos de três, obtem-se acordes perfeitos maiores e menores que pertencem ao vocabulário do sistema tonal. Além disso, se intercalarmos as notas da série obtemos intervalos de 5as. justas, constituindo a afinação das cordas do violino (G-D-A-E). E por isso Berg evidencia essa estrutura de quintas na introdução do concerto, fazendo uma alusão ao instrumento da jovem violinista. [anexo 2b] Mas isso não é tudo. Voltemos agora a esta sucessão de três tons inteiros que finaliza a série. Ela reproduz a seqüência de três tons inteiros que está no início de um coral de Bach. Não esqueçamos que a obra é dedicada à memória de uma jovem morta aos dezoito anos. O que significa que, por volta do final do último movimento, Berg faça uma longa citação deste coral, nas próprias harmonias de Bach, alternando-as com as suas. WEBERN e o método da exatidão Em Anton Webern, pode-se constatar que o emprego da série unifica o vocabulário e lhe dá maior coesão, mas não muda fundamentalmente seu pensamento criador: sua estilística era revolucionária antes da série, e assim continua depois dela. Desde logo devemos observar que, se todos os antecedentes estilísticos de Webern são mantidos, eles passam a se organizar de modo definitivo por uma coerência maior, um emprego mais rigoroso, um controle mais desenvolvido dos meios de escrita. Em Webern a série assume desde logo o aspecto de uma função de intervalos, dando sua estrutura de base à própria composição. O seu desejo em elaborar uma composição inteira a partir da menor unidade tornou possível a criação de obras em que o menor ítem de estrutura de intervalos poderia ser relacionado a uma ou duas idéias básicas, através do princípio da variação, ou, nas palavras de Webern: “variações sobre um tema – essa é a forma original que está na base de tudo. Algo que na aparência é totalmente distinto, mas que de fato é o mesmo na essência, sempre diferente e ainda sempre o mesmo. Disso resulta a forma mais abrangente de coerência.” Mas “como é que um grau de coerência tão abrangente pode ser alcançado na música de doze sons?”

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O primeiro meio de atingir este objetivo é organizar as séries de maneira conseqüente. Webern singulariza o seu tratamento da série radicalizando o princípio do espelho (as variações de um mesmo tema, citado acima): ele procura configurações intervalares de doze sons que já sejam, elas mesmas, a condensação de um espaço simétrico; (uma série que já contenha, em avesso do avesso, os seus próprios espelhos). Vamos analizar algumas destas séries de Webern:

a) Sinfonia, opus 21 (1928) – exemplo de uma série palíndrome:

A-F#-G-Ab-E -F-B-Bb-D-C#-C-Eb Nº 3 1 1 4 1 6 1 4 1 1 3

Semitons

b) Concerto, opus 24 (1931-34) - exemplo de uma série composta por quatro segmentos de três notas, os quais se constituem em diferentes formas transpostas de uma figura inicial, seu retrógrado, a inversão e o retrógrado da inversão:

[figura inicial] [RI] [RO] [IO]

B-Bb-D Eb-G-F# G#-E-F C-C#-A -1 +4 +4 -1 -4 +1 +1 -4

c) Quarteto de Cordas, opus 28 (1936-38) - exemplo de uma série palíndrome, composta por três segmentos de quatro notas; figura inicial, inversão e transposição:

[figura inicial] [inversão] [transposição]

Bb-A-C-B D#-E-C#-D Gb-F-Ab-G -1 +3 -1 +4 +1 -3 +1 +4 -1 +3 -1

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d) Variações para Orquestra, opus 30 (1940) - exemplo de uma série palíndrome, composta por: 3 segmentos de 4 notas palíndromes; 2 segmentos de 6 notas, os quais se constituem em formas de figura inicial e retrógrado da inversão.

[figura inicial] [retrógrado da inversão]

<A-Bb-Db-C B-D> <Eb-Gb F-E-G -Ab> +1 +3 -1 -1 +3 +1 +3 -1 -1 +3 +1

Para que as propriedades especiais das séries de Webern pudessem ser percebidas à superfície, era claramente necessário que cada elemento auditivo, melódico ou harmônico fosse parte ou todo de um motivo serial, ou grupo de motivos seriais. Assim, uma exposição serial não é, como freqüentemente ocorre em Schoenberg, o elemento de ligação entre melodia e o acompanhamento; em Webern, as vozes simultâneas são quase sempre ligadas por um prazer em enfatizar as coincidências motívicas que estão sujeitas a resultar do uso de suas séries altamente simétricas.[anexo 3] Webern não extraiu idéias melódicas não consecutivas das séries, da forma que Schoenberg e Berg comumente o fizeram. E, também diferente deles, ele não fez retornos à prática não serial. Tudo sugere que no serialismo ele havia alcançado seu ideal, os meios para atingir uma completa coerência, a “lei” que ele tanto respeitava.

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Conclusão Como pudemos observar através destas brevíssimas análises, a série foi explorada em sentidos bem diferentes por Schoenberg, Berg e Webern:

Schoenberg Berg Webern unificada

(uma série para cada peça)

um só espaço (dodecafônico)

“ultratema”

não-unificada (várias séries)

vários espaços (dodecafônico/tonal/atonal)

formas expressivas

unificada (uma série para cada peça)

um só espaço (dodecafônico)

função de intervalos Schoenberg, em sua última fase composicional (1935-1951), busca uma espécie de “conciliação”, nas quais se esforça por operar uma síntese entre os dados tonais e as exigências da série, tal qual fez Alban Berg. (Boulez, 1995:318) Sendo assim, Webern foi o único dos três músicos da 2ª Escola de Viena que verdadeiramente levou até o fim a tarefa de criar um novo mundo sonoro, e inspirou os futuros alunos de Messiaen na década de 50, Boulez e Stockhausen, a praticarem um serialismo generalizado estendido a todos os parâmetros — o serialismo integral: não só séries de alturas, mas de timbres, intensidades, durações, modos de ataque. Apesar de ter criticado Schoenberg, Boulez tem plena consciência do legado que ele e a sua escola deixaram para a música, até os dias de hoje. Não só Boulez, mas também Messiaen, Stockhausen, Nono, Cage, Bério, Feldman, Stravinsky, Ferneyhough, Santoro, Krieger, Willy, Gilberto Mendes, Silvio Ferraz, e tantos outros...

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Anexos – Análises Análise 1: Tema das Variações para Orquestra – op.31 de Arnold Schoenberg. A série Original:

[SO] (Bb-E-Gb-Eb-F-A-D-C#-G-Ab-B-C) A matriz 12X12:

Bb E Gb Eb F A D C# G Ab B C E Bb C A B Eb Ab G C# D F F# D Ab Bb G A C# F# F B C Eb E F B C# Bb C E A Ab D Eb F# G

Eb A B Ab Bb D G F# C C# E F B F G E F# Bb Eb D Ab A C Db F# C D B C# F Bb A Eb E G Ab G C# Eb C D F# B Bb E F Ab A C# G A F# Ab C F E Bb B D Eb C F# Ab F G B E Eb A Bb Db D A Eb F D E Ab C# C F# G Bb B

Ab D E Db Eb G C B F F# A Bb Schoenberg construíu esta série básica de maneira em que os seus seis primeiros sons, combinados com os seis primeiros sons de uma forma invertida resultem no total cromático; (ídem para as duas metades restantes das duas formas). Este é um procedimento estrutural que permite entre outras coisas o desenvolvimento simultâneo de duas formas seriais sem dobramentos de oitavas. (Leiowitz, 1981:111)

[SO] <Bb-E-Gb-Eb-F-A><D-C#-G-Ab-B-C> [IO] <G-C#-B-D-C-Ab><Eb-E-Bb-A-F#-F>

a) compassos 34 – 38 (seção A - antecedente): [SO] na melodia (Cello); [IO] na harmonia;

b) compassos 39 – 45 (seção B - conseqüente): [RI] na melodia; [RO] na harmonia;

c) compassos 46 – 50 (seção C - contrastante): [RO] na melodia; [RI] na harmonia;

d) compassos 51 – 57(seção D - reesposição): [IO] na melodia (Violino); [SO] na harmonia; [SO-transposta] na melodia (Cello).

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