O SERTÃO QUE AS ARTES AJUDARAM A CRIAR€¦ · – protegido das influências do mundo...

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96 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL O SERTÃO QUE AS ARTES AJUDARAM A CRIAR Maria Hirszman As artes visuais têm uma longa e íntima relação com o sertão. A região não apenas alimentou uma ampla produção de pinturas, esculturas e fotografias relativas ao seu povo e à sua natureza, ajudando a cunhar uma imagem de resistência e simplicidade, como é também a origem – em termos geográficos e simbólicos – de muitos dos mais importantes artistas populares do país. A s artes visuais são amplamente res- ponsáveis pela imagem do sertão formada ao longo do último século no país, fortemente ancorada na ideia de rus- ticidade, miséria e resistência. Imagem que se traduz seja numa temática baseada em figuras simbólicas, como as do retirante, do cangaceiro e do beato, seja numa materiali- dade mais tosca, que remete a certa aspereza na forma e no gesto. Quer na produção local, quer nos diferentes modos de representação visual dessa cultura nas ditas formas cultas, prepondera a noção da força, da resistência às agruras da seca, da pobreza e das ameaças de dissolução de uma cultura tradicional. A aquarela pintada por Charles Land- seer é uma das primeiras imagens relativas ao tema encontradas na Enciclopédia Itaú Cultural e mostra a figura do sertanejo já com o traje típico de couro – necessário ao enfrentamento da vegetação bruta da caa- tinga. Na obra do artista inglês, que integrou uma missão diplomática em visita ao país em 1825, o homem parece integrar-se natural- mente com o solo seco e árido. Essa mesma fusão entre homem e paisagem, em que a brutalidade de um ecoa na secura do outro e o tom de terra predomina, vai se fazer presente em uma ampla gama de representações pro- duzidas ao longo desses quase dois séculos, por artistas nordestinos ou não. Em alguns momentos, domina certa ternura e um sentimento de pertencimen- to, como no caso das gravuras de Pelo Sertão feitas na década de 1940 por Lívio Abramo. Em outros, a denúncia da miséria e da seca, em sintonia com uma ideia de transforma- ção social por meio da arte, se faz presente.

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96 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

O SERTÃO QUE AS ARTES AJUDARAM A CRIAR

Maria Hirszman

As artes visuais têm uma longa e íntima relação com o sertão. A região não apenas alimentou uma ampla produção de pinturas, esculturas e fotografias relativas ao seu povo e à sua natureza, ajudando a cunhar uma imagem de resistência e simplicidade, como é também a origem – em termos geográficos e simbólicos – de muitos dos mais importantes artistas populares do país.

A s artes visuais são amplamente res-ponsáveis pela imagem do sertão formada ao longo do último século

no país, fortemente ancorada na ideia de rus-ticidade, miséria e resistência. Imagem que se traduz seja numa temática baseada em figuras simbólicas, como as do retirante, do cangaceiro e do beato, seja numa materiali-dade mais tosca, que remete a certa aspereza na forma e no gesto. Quer na produção local, quer nos diferentes modos de representação visual dessa cultura nas ditas formas cultas, prepondera a noção da força, da resistência às agruras da seca, da pobreza e das ameaças de dissolução de uma cultura tradicional.

A aquarela pintada por Charles Land-seer é uma das primeiras imagens relativas ao tema encontradas na Enciclopédia Itaú Cultural e mostra a figura do sertanejo já

com o traje típico de couro – necessário ao enfrentamento da vegetação bruta da caa-tinga. Na obra do artista inglês, que integrou uma missão diplomática em visita ao país em 1825, o homem parece integrar-se natural-mente com o solo seco e árido. Essa mesma fusão entre homem e paisagem, em que a brutalidade de um ecoa na secura do outro e o tom de terra predomina, vai se fazer presente em uma ampla gama de representações pro-duzidas ao longo desses quase dois séculos, por artistas nordestinos ou não.

Em alguns momentos, domina certa ternura e um sentimento de pertencimen-to, como no caso das gravuras de Pelo Sertão feitas na década de 1940 por Lívio Abramo. Em outros, a denúncia da miséria e da seca, em sintonia com uma ideia de transforma-ção social por meio da arte, se faz presente.

97Maria HirszManARTES E CULTURA NO SERTÃO

Esse fenômeno se torna bastante evidente, sobretudo na segunda fase do modernismo brasileiro. Pintores como Fulvio Pennacchi, Clóvis Graciano, Henrique Oswald e, sobre-tudo, Candido Portinari – cuja série sobre os retirantes deu visibilidade nacional à triste sina dos refugiados da seca – trans-formaram em tema a tragédia recorrente e corporificaram em imagens uma situação de desalento que já vinha sendo trabalhada de forma intensa pela literatura. O realismo social e a defesa de uma óp-tica regionalista, capaz de dar conta da história local de uma população vitimada pela natureza inclemente e pelo descaso das autoridades, fortemente presentes na lite-ratura da primeira metade do século XX, também tiveram sua contrapartida nas artes visuais, ganhan-do visibilidade por meio de obras de grandes mestres, como Cícero Dias. E continuaram, nas décadas seguintes, a conquistar um es-paço crescente nessa produção.

Foram, por exemplo, as cenas de viagem no pau-de-arara, as vendeiras e os cangacei-ros representados no álbum Cenas da Seca do Nordeste que garantiram a Aldemir Martins o Prêmio Aquisição na 1ª Bienal Internacional de São Paulo e a inserção no circuito artís-tico do Sudeste. É importante frisar que há um duplo movimento nessa incorporação da temática do sertanejo. Ao mesmo tempo que tal absorção permite uma abertura para além dos limites regionais, garantindo uma identidade mais definida a artistas nordes-tinos que migram para São Paulo e Rio de

Janeiro, principais polos culturais do país, ela se torna uma importante bandeira para os movimentos locais que começam a surgir e a reivindicar os temas e as formas de fazer arte no Nordeste como núcleo de um processo de desenvolvimento regional.

É possível citar duas dessas iniciativas que renderam importantes frutos: o Ateliê Coletivo, movimento fundado por Abelardo

da Hora e outros companhei-ros em 1952, e o Movimento Armorial, fundado em 1970 por Ariano Suassuna. Nos dois movimentos há uma cla-ra incorporação de elemen-tos de cultura popular, uma tentativa de integrar arte erudita e raízes populares, buscando desenvolver uma produção regional genuína, que reunisse as tradições lo-

cais, absorvendo processos, técnicas, temas e vivências do povo. Gilvan Samico, um dos mais virtuosos gravadores do país e próximo dos dois movimentos citados, promove uma interessante aproximação entre um universo mítico e arcaico e uma forte tradição da cultu-ra popular nordestina. Essa aproximação en-tre o mundo culto e a riqueza popular tem um duplo sentido. Ao mesmo tempo que artistas com formação profissional e reconhecimento do circuito se alimentam da cultura das ruas, dos hábitos do povo simples, se apropriando de narrativas e formas de fazer, abre-se tam-bém um caminho duro, porém em ampliação, para esses produtores anônimos, responsá-veis pela perpetuação dessas tradições.

O artesanato e a arte dita primitiva, cos-tumeiramente anônimos, vão adquirindo um

Ao mesmo tempo que artistas com formação profissional e reconhecimento se alimentam dos hábitos do povo simples, abre-se um caminho para esses produtores anônimos, responsáveis pela perpetuação dessas tradições.

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estatuto mais elevado, ganhando espaço nas pesquisas não apenas antropológicas, mas artísticas, e conquistando lugar nas cole-ções de arte, nas galerias especializadas e nos espaços institucionais de exibição. Há uma espécie de biografia comum a essas fi-guras: em sua maioria, artistas de baixo es-trato social, com nenhuma ou pouquíssima educação formal, e marcados por um desejo anormal de expressão artística, que os faz desviar do caminho natural de produção de objetos de uso cotidiano para desenvolverem expressões de grande potência plástica. Há uma lista grande de artistas que, por meio da pintura ou da escultura (com destaque para o uso do barro, desviado das olarias, ou da madeira, facilmente en-contrável), acabam forjando formas bastante particulares de criação e adquirindo amplo reconhecimento, muitas vezes até formando escolas.

Um caso paradigmático nesse sentido é o de Mestre Vitalino, que traduz em singelas figurinhas de barro a ampla diversidade da cultura nor-destina, retratando desde figuras emblemáti-cas, como a de Lampião, a festas, profissões e hábitos de sua gente. Com grande maestria, criou modelos que até hoje são seguidos por seus descendentes e por novas gerações de artesãos de Caruaru, com os quais ele sempre compartilhou suas técnicas e sua maneira de dar forma ao barro, que, como muitos, apren-deu a manusear ainda menino, em pedaços subtraídos da mãe, que se ocupava de fazer utensílios para serem vendidos.

No entanto, em 1947, quando suas primeiras peças surgem para além das

barraquinhas da feira que ajudou a notabili-zar, ainda era considerado um ceramista sem identidade. Curiosamente, é nesse mesmo ano que nasce a Comissão Nacional de Fol-clore, um indício do crescente interesse por esse tipo de manifestação cultural. A saída paulatina de Vitalino do anonimato ocorreu de forma quase simultânea a esse processo de resgate de trabalhos como o dele, nos quais predominam grande talento, forte im-pulso criativo e uma verdadeira obsessão em dar formas tangíveis às tradições e vivências da população em seu entorno.

Outro artista cuja notabilidade afirma--se aos poucos, mas torna-se incontornável quando se trata de pensar em cultura popular

sertaneja, é J. Borges. Nascido em Bezerros (PE), frequentou a escola por dez meses apenas. Foi marceneiro, mascate, pin-tor de parede e oleiro, entre outras profissões. Em 1956, começou a vender literatura de cordel e rapidamente se

tornou ele próprio um ilustrador, inicial-mente produzindo as imagens para os fo-lhetos que comercializou e paulatinamente conquistando maior autonomia e reconheci-mento nacional e internacional, tornando-se, nas palavras de Suassuna, o maior gravador popular do Brasil.

Para além desses dois nomes, é possí-vel citar inúmeros artesãos e artistas que foram lentamente conquistando um lugar nesse amplo segmento da arte popular. É in-teressante notar os vínculos existentes entre eles. Nhô Caboclo, por exemplo, foi apren-diz de Mestre Vitalino, antes de definir seu próprio caminho, dedicando-se à escultura

Um caso paradigmático é o de Mestre Vitalino, que traduz em singelas figurinhas de barro a ampla diversidade da cultura nordestina.

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em madeira, na qual reelabora mitos e his-tórias tradicionais. Um outro fenômeno, no entanto, marca essa produção nas últimas décadas: a aproximação entre a obra contem-porânea e a criação popular.

Muitos dos artistas que vêm surgindo na cena contemporânea acabaram por vol-tar, de alguma maneira, seu olhar para as tradições regionais. Essa base é então ree-laborada em poéticas bastante particulares e diversas, mas que indicam, como estopim, uma atenção para a cena local, para os seus hábitos e tradições.

Podemos citar a produção de Juraci Dó-rea, que trabalha suas memórias/acúmulos sobre sua região de origem criando a série Histórias do Sertão. Notam-se nessa série não apenas um interesse em representar as narrativas e tradições nordes-tinas, mais especificamente relativas ao interior da região, mas também uma necessida-de de incorporar e reelaborar formas de expressão tradicio-nalmente vinculadas ao meio em questão. Não se trata somente de narrar aspectos da vida cotidiana, da paisagem, dos animais e das plantas da caatinga, mas também da absorção, na construção plásti-ca, de elementos característicos da cultura local, como a xilogravura de fio, técnica in-timamente relacionada com a literatura de cordel e que remete a expressões mais dire-tas, de cunho popular e que não requerem um conhecimento técnico detalhado por parte do autor. Esse movimento radicaliza e aprofunda o processo de mimese das formas e dos procedimentos dos artistas populares,

chamados outrora de “primitivos”, “rústicos” ou outros termos pejorativos. É indiscutível a importância da escultura tradicional, em especial dos ex-votos, na obra de Efrain Al-meida. Ou a referência às narrativas do in-terior nordestino reelaboradas por Virginia de Medeiros, que viajou pelo sertão da Bahia recolhendo e gravando histórias para depois exibir esses vídeos dentro da Kombi que uti-lizou nessa peregrinação, transformada em uma curiosa sala de projeção.

Seria equivocado pensar a expressão poética e plástica do sertanejo como algo es-tanque, passadista, que fique – e precise ficar – protegido das influências do mundo “ex-terno”. Essa visão conservadora só faz isolar

algo que é potente exatamente por sua capacidade de diálo-go, interlocução e resistência diante das pressões diluidoras do mercado. Um exemplo des-sa inserção ao mesmo tempo inovadora e forte é o trabalho de Cícero Alves dos Santos, o Véio, artista sergipano fas-cinado com as formas, cores

e histórias de sua terra natal (que ajuda a preservar no seu Museu do Sertão, criado em Feira Nova) e autor de uma obra bastante singular, que se apropria de restos de madei-ra para criar trabalhos de grande potência expressiva. Nos últimos anos, a produção de Véio – que teve uma grande retrospecti-va em 2018 no instituto Itaú Cultural – vem recebendo atenção nacional e internacional. Segundo a crítica, sua escultura não apenas expressa uma visão singular do universo cul-tural que a nutre, como remete à liberdade e à síntese da escultura modernista.

Seria equivocado pensar a expressão poética e plástica do sertanejo como algo estanque, passadista, que fique – e precise ficar – protegido das influências do mundo “externo”.

101Maria HirszManARTES E CULTURA NO SERTÃO

Fenômeno diferente, mas não menos importante, desse processo de conhecer, entender e interpretar o sertão é a fotogra-fia. Desde o século XIX, temos importantes registros históricos, vitais para a constitui-ção da ideia que fazemos hoje dessa região, de sua paisagem e de seus principais persona-gens. Apesar de a fotografia ter sido tratada como arte menor durante muito tempo, é impossível não levar em conta legados como os de Benjamin Abrahão Botto, autor de um conjunto amplo de imagens de Lampião e seu bando, e Flavio de Barros, que registra a fase final da campanha do exército contra os revoltosos de Canudos. Mais do que registros visuais que embasam as narrativas literárias, essas fotos são documentos de extrema im-portância, como resultado de um olhar ao mesmo tempo escrutinador e assustado em relação a esse universo.

Décadas depois, com a popularização cada vez maior da técnica fotográfica, muitos autores são tentados a voltar a dialogar com o sertão, por meio de intervenções ao mesmo tempo poéticas e afetivas. Duas mulheres, em especial, se notabilizam por seus trabalhos nessa direção: Maureen Bisilliat e Anna Ma-riani. Cada uma à sua maneira, debruçam-se sobre esse universo. O foco não mais recai sobre a paisagem desolada, em termos cli-máticos e humanos, mas sobre as calorosas fachadas das casas, contrapondo-se à visão estereotipada da região como local desértico e bruto. Questões como o trabalho tradicio-nal e feminino, o percurso literário de João Guimarães Rosa ou o encantamento com a arquitetura vernacular e suas fachadas caia-das de múltiplas cores tornam-se motivos poéticos para esquadrinhar o sertão.

A diversidade de expressões ajuda a dis-sipar os estereótipos, a deixar claro o caráter diverso dos vários sertões. Da mesma manei-ra que não existe um só sertão, são inúmeras as maneiras de representá-lo ou de usá-lo como referência simbólica, poética e mental. Ter consciência dessa pluralidade de sentidos e potências não apenas enriquece a visão so-bre a enorme diversidade da criação artística como amplia ainda mais as possibilidades de uma maior riqueza interpretativa.

Maria Hirszman É jornalista e crítica de artes, colaborando em

diversas publicações, como o Jornal da Tarde, o Es-

tado de S. Paulo e as revistas Fapesp e Arte!Brasi-

leiros. É também pesquisadora em história da arte,

com mestrado pela Escola de Comunicações e Artes

da Universidade de São Paulo (ECA/USP), além de

integrar o Grupo de Estudos Arte & Fotografia da

ECA/USP e o conselho editorial da Enciclopédia Itaú

Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.