O sinhô de todos os Anjos -...

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1 O sinhô de todos os Anjos De: Rafael Magalhães

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O sinhô de todos os Anjos

De: Rafael Magalhães

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Personagens

Neto do Catolé

José Sereno

Deuzêncio

Idália

Jaciara

Deus

Asmodeu

Enésimo

Romualdo

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PRIMEIRO ATO

CENA I

ASMODEU –

Gira a roda, a roda gira

Gira a roda do acaso

Gira a roda, a roda gira

Deixe a roda girar

Já vi sujeito trapaceiro

Embolador, gaitista e Gaeteiro

Já vi quem se diz cantor

E só canta no chuveiro

Dei chupeta para o tempo

Vivi mais de dez mil anos

Conheci Exúm Caveira

Zé Pelintra e Zé Beltrano

Fui amigo de prefeito

Presidente e senador

Mas de toda essa gente

Que o acaso profanou

Eu lhe garanto sob jura

Em tua vista, vista pura

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Sobre as curvas da puta

A minha vista, vista turva

Fita, pisca, perde a vista

Sujeitinho pior que esse

DEUS –

Sujeitinho pior que esse

Eu lhes mostro Asmodeu

De farsa, trapaça

Danação e enganação

De injúria à luxúria

Gaiatice e maldição

De trambique, e Inventice

Embolada e Batidão

Num campeonato desses

Não precisa concorrente

Com dois passos à frente

Asmodeu. És campeão!

E fica o dito pelo dito

ASMODEU –

Mas o dito é todo teu (SAEM)

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CENA II

EM CENA ROMUALDO E ENÉSIMO, ROMUALDO FAZ UMA VARREDURA NO ESPAÇO

ROMUALDO – Nada capitão

ENÉSIMO – Isso eu tô vendo

ROMUALDO – Seja lá onde aquele um tenha se escondido, fez o serviço bem feito

ENÉSIMO – Se eu pego aquele sujeito

ROMUALDO – Mas capitão, por bem dizer, o cabra é ligeiro nessas coisas de pensamento

ENÉSIMO – O Quê é isso soldado, defendendo desordeiro?

ROMUALDO – é não, é que...

ENÉSIMO – É coisa nenhuma

ENTRA ZÉ SERENO, AO VER ENÉSIMO, DÁ MEIA VOLTA

ENÉSIMO – Volte aqui cabra safado

ROMUALDO – “cabra safado”

ENÉSIMO - Fique parado aí mesmo se num quiser ficar todo furado.

ROMUALDO - Se ficar todo furado, teu nome vai passar de Zé Sereno pra Zé Peneira (ri

junto com Enésimo)

ZÉ SERENO – Coronel, como vai a sua pessoa?

ENÉSIMO – Capitão! E sobre o acontecido na praça...

ROMUALDO – “o acontecido”

ZÉ SERENO – já disse que não tive culpa de nada...

ENÉSIMO – fique calado seu calango seco

ROMUALDO – “calango seco”

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ZÉ SERENO – (para Romualdo) tu num ouviu o homem dizer? É capitão!

ENÉSIMO – Eu sou o capitão!

ROMUALDO – Eu sou o capitão!

ENÉSIMO – O quê?

ROMUALDO – O senhor, o senhor é o capitão

ENÉSIMO (PARA ZÉ SERENO) – Quanto ao acontecido na praça, diga ao seu amigo que eu

tô doido pra botar minhas mãos nele e quando isso acontecer sabe o que eu vou fazer?

ROMUALDO – “sabe?”

ZÉ SERENO – sei não, mas pelo visto num há de ser coisa boa

ENÉSIMO – Vai não

ROMUALDO – Num vai

ENÉSIMO – Vou torcer o pescoço dele até ele conseguir olhar os próprios fundos

ZÉ SERENO – Sim senhor

ENÉSIMO (PARA ROMUALDO) – vamos embora animal!

ROMUALDO – vamos animal! Não! Quer dizer... O senhor é o animal... Não!

ENÉSIMO – Chega!

CENA III

IDÁLIA – eu tô tiririca com Neto, é o dia todo aprontando com os outros

JACIARA – Num sobra ninguém, se até Zé Sereno, seu melhor amigo, Neto já engambelou

IDÁLIA – Nem me fale desse outro, é mais covarde que bezerro sem mãe, nunca vi ninguém

correr com tanta rapidez

JACIARA – O infeliz é ligeiro, mais ligeiro que ele, é o quengo de Neto pra inventar história

IDÁLIA – O povo bem viu, o jeito que ele passou os soldados da volante pra trás

JACIARA – Num se fala em outra coisa na cidade

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IDÁLIA – Nem tem como falar de outra coisa, aos que não sabem Neto fez questão de contar

o causo

JACIARA – Espalhou pros quatro cantos que passou pra trás os homens de Enésimo e ainda

disse que aqui nessa cidade num tem quem lhe faça frente

IDÁLIA – Esse é outro que num quero ouvir falar

JACIARA – Neto?

IDÁLIA - Não

JACIARA – Zé Sereno?

IDÁLIA - Não

JACIARA – Então só pode ser Enésimo

IDÁLIA – Esse mesmo, o infeliz não me dá sossego

JACIARA – Isso é porque o pobre tá arriado e de quatro por tu

IDÁLIA – Isso nem se eu quisesse ia conseguir não ver

JACIARA – Também é tanta flor

IDÁLIA – roubada do cemitério

JACIARA – tanto presente

IDÁLIA – cacareco velho, comprado na venda de Seu Raimundo

JACIARA – tanta coisa bonita, dita nas declaração que ele lhe faz

IDÁLIA – uma ruma de frase brega, que ele pega dos pára-choque de caminhão

JACIARA – Assim não tem jeito, num tem nada que lhe agrade

IDÁLIA – Tu bem sabe o que me agrada

JACIARA – Zé Sereno

IDÁLIA – O que num me agrada em Zé, é essa covardia

JACIARA – Ora, mas todo mundo tem um defeito

IDÁLIA – Pois Zé, num se contentou em ter o defeito, ele quis o defeito só pra ele

JACIARA – Cabra egoísta!

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CENA IV

NETO ANDA PELAS AROEIRAS QUANDO É SURPREENDIDO POR ASMODEU

NETO – Valei-me, meu São Francisco. Padrinho Padre Cícero! Me socorre, meu São José de

Ribamar

ASMODEU –

Oi boi tatá, boi tatá

Bicho da cara preta

Olha a cara do menino

Á dar de frente com o capeta

Esse menino é gaiato

Garapeiro, endiabrado

Torce o rabo da porca

Pra quebrar o mau olhado

Cobra quarenta mil réis

Pra trazer o amor de volta

Com mais dez contos de réis

Entrega ele em sua porta

NETO – Me acuda Menino Jesus!

ASMODEU – Neto do Catolé?

NETO – Saí de reto! Coisa ruim!

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ASMODEU – Pare de berrar como se fosse um cabrito, homem! Vai-me dizer que esperava

ver Deus?

NETO – Só se tivesse morto

ASMODEU – Pois lhe digo que esse tu num vai ver nem quando morto

NETO – Valei-me que morri e fui pro inferno

ASMODEU – Deixe de bobagem, tu não morreu, ainda, e aqui não é o inferno

NETO – Então só pode ser uma visagem, se eu esfregar os olhos...

ASMODEU – Não vai adiantar, eu vim pessoalmente pra lhe ver

NETO – com tanta gente nesse mundo carecendo da tua visita...

ASMODEU – É verdade.

NETO – Pois então, eu não tenho pressa, se quiser voltar outra hora

ASMODEU – Eu podia ficar aqui e me divertir com esse teu fricote, mas tenho muita coisa

pra fazer

NETO – então pode ir cuidar dos teus afazeres, não carece gastar vosso tempo comigo

ASMODEU – tu não tá curioso, pra saber quais os assuntos que vim ter por aqui?

NETO – Nunca que vou me meter nas tuas atividades

ASMODEU – Vim pra lhe provar que tu num é o quengo mais ligeiro daqui, nem de canto

nenhum

NETO – E como é que vai ser isso?

ASMODEU –

No prazo de seis novenas

No passo de uma jornada

Mau agouro e desencontro

No tempo de uma embolada

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Na linha da tua vida

Eu pego, embolo e dou um nó

Vou lançar em ti catita,

Um imbróglio e um qüiproquó

NETO – Veja bem seu capeta...

ASMODEU –

Se teu quengo for ligeiro

Se tu for o mais sabido

Vai com astúcia e ligeireza

Se livrar do desferido

Mas se do burro for parente

Digo; se for pouco inteligente

Vai ter que pôr teu nome

Num contrato, lavrado

Todo ele autenticado

Assumindo a ausência

Da dita inteligência

Que o senhor dizia ter

NETO – E o vencedor?

ASMODEU – O cabra vencedor terá fama e respeito

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SEGUNDO ATO

CENA I

IDALIA ENTRA, ENÉSIMO E ROMUALDO FAZEM A RONDA, ENÉSIMO FAZ SINAL

PARA QUE ROMUALDO SAÍA

ENÉSIMO - Venha cá meu docinho de rapadura, deixe eu lhe "dá" um cheirinho nesse

cangote gostoso.

IDÁLIA- Nem pense, fique paradinho por aí mesmo

ENÉSIMO - mas como posso ficar parado aqui, se o meu desejo é ficar parado aí juntinho

mais tu?

IDÁLIA - num sei não... Se num gosta daí fique em outro lugar, desde que seja bem longe de

mim

ENÉSIMO - Eu num entendo, eu lhe dou de um tudo, lhe dou carinho, lhe trato como uma

flor em meio à caatinga e tudo que recebo é...

IDÁLIA – É o que merece. Olhe capitão, tudo que preciso é...

ENÉSIMO – diga que eu vou buscar agorinha mesmo

IDÁLIA – é de um homem que me pegue pelo braço...

ENÉSIMO – Assim?

IDÁLIA – Isso! Me olhe nos olhos

ENÉSIMO – Assim?

IDÁLIA – Não, tem que ser bem bravo

ENÉSIMO – Desse jeito?

IDÁLIA – Isso! E me diga umas verdades na cara

ENÉSIMO – Umas verdades?

IDÁLIA – Diga que eu num presto... e que... Que preciso de uma lição

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ENÉSIMO – Mas isso num é verdade

IDÁLIA – Tá vendo é disso que eu tô falando! Saía pra lá!

ENÉSIMO SAI DE CENA, ENTRA JACIARA

JACIARA – Que cara é essa Idália?

IDÁLIA – Só queria entender, porque que tudo tem de ser tão complicado

JACIARA – Se acalme mulher, tá aí quase parindo... Do que é que tu tá zurrando?

IDÁLIA – Zurrando não que não sou burro.

JACIARA – Tá certo, e do que é que a senhora tanto se queixa?

IDÁLIA – Da vida! Enésimo é doido por mim, usa farda, é capitão da volante, tinha tudo pra

ser um homem... Mas parece mais um...

JACIARA – Um remendo de homem

IDÁLIA – Isso. E Zé Sereno, é todo troncho, sem futuro, gaiato e...

JACIARA – E lhe roubou o coração

IDÁLIA – roubou é nada, que o quanto eu puder me segurar, eu vou...

JACIARA – Deixe de besteira, se tu gosta daquele troncho, sem futuro, gaiato

IDÁLIA – chega! Fica pior quando é dito por outra pessoa

JACIARA – Isso é coisa da tua cabeça

IDÁLIA – Não é! A vida toda quis um homem de farda, mas que fosse valente, que fosse

homem de coragem, de atitude!

JACIARA – Então, se case com Enésimo, que só falta mesmo a coragem, porque Zé Sereno

nem farda tem...

IDÁLIA – Nem com um nem com outro, se pôr na balança nem sei quem é o mais frouxo

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CENA II

ASMODEU – mas acontece que...

DEUS – não tem “mas” nem meio “mas”, eu lhe dei uma ordem...

ASMODEU – e onde é que fica a imparcialidade divina?

DEUS – Deus não é imparcial, eu sou justo

ASMODEU – Pois num é o que tá parecendo

DEUS – O quê?

ASMODEU – Com todo respeito, Neto é um problema grave, é necessário corrigi-lo, antes

que seja tarde demais

DEUS – Tarde demais?

ASMODEU – Antes que não haja mais jeito nem maneira de desentortar o sujeito

DEUS – Eu lhe conheço muito bem Asmodeu, me diga qual é o teu verdadeiro interesse em

Neto

ASMODEU – Nenhum, há não ser lhe dar um corretivo

DEUS – Está enciumado por Neto, ser como ele mesmo diz o quengo mais ligeiro do sertão?

ASMODEU – Com todo respeito, mas o Senhor, não entende nada de enganação, Gaiatice e

fuleragem

DEUS – Não entendo mesmo

ASMODEU – Se entendesse saberia que Neto não me faz frente

DEUS – Isso é vaidade, seguido de soberba, Asmodeu, isso é pecado...

ASMODEU – Oxe, mas num é só o que eu faço? Eu não sou o rei da folia? O anjo rebelado?

O Pecador...

DEUS – Isso vai acabar indo longe demais

ASMODEU – Não tem com o que se aperrear é só o passo desse infeliz, quer dizer sujeito

aprender uma lição

DEUS – veremos, saiba que estou com os dois olhos grudados nas tuas costas

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CENA III

NETO ESTÁ EM CENA AFLITO

NETO - Valei-me meu São Francisco... Ah! Meu pai do céu

IDÁLIA ENTRA EM CENA

IDÁLIA - Deu pra falar sozinho agora, foi?

NETO – Idália! Tu quase me faz ter um troço...

IDÁLIA – Aposto que tu aprontou mais uma das suas

NETO – Nem venha com graça que hoje eu tô nos cascos

IDÁLIA - Eita! Parece até que viu defunto

NETO – Não só vi o defunto, como vi o chefe do bando

IDÁLIA – Eu não tô entendo nadica de nada

NETO – eu tô falando do cabronhoso, do chibungo, do belzebu...

IDÁLIA – Tá certo, eu já entendi

NETO – eu não acredito que tu num tenha visto ele

IDÁLIA – Pior que eu vi

NETO – viu?

IDÁLIA – Eu vi sim ele tava aqui agorinha mesmo

NETO – Aqui?

IDÁLIA – E tava com a gota

NETO – Tava?

IDÁLIA – Tava e mais brabo que mulher traída

NETO – Valei-me que agora é mesmo o meu fim

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IDÁLIA – e tá doidinho atrás de tu

NETO – Valei-me meu São Francisco...

IDÁLIA - se lhe pegar nem sei o que há de ser

NETO - Ah! Meu pai do céu.

NETO SAI E JACIARA ENTRA PELO LADO OPOSTO A SAÍDA DELE.

IDÁLIA – Neto! Que sujeito mais esquisito!

JACIARA – Ora, deu pra falar sozinha agora Idália?

IDÁLIA – Ave Maria Jaciara, quase que meu coração salta pela boca

JACIARA – É que...

IDÁLIA – é que tu me aparece assim, como se fosse uma, uma...

JACIARA – Visagem?

IDÁLIA – Não, Assombração mesmo

JACIARA – Valei-me, é que lhe vi falando sozinha...

IDÁLIA – Que sozinha! Tava falando com aquele destrambelhado de Neto

JACIARA – Por um instante eu pensei que tu tava variando

IDÁLIA – Deixe de conversa!

JACIARA – E então?

IDÁLIA – E então o quê?

JACIARA – Deu o recado ao destrambelhado?

IDÁLIA – que recado?

JACIARA – Ora mais, que Enésimo mais Romualdo, tão na captura dele, por conta das

inventices que ele fez hoje lá na praça

IDÁLIA – Valei-me que esqueci, mas nem precisou...

JACIARA – Como não?

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IDÁLIA – Ele disse que sabe. Até chamou Enésimo de uma ruma de nome feio...

JACIARA – Que nome?

IDÁLIA – Nem presta dizer.

CENA IV

ROMUALDO – Capitão, eu num tô gostando nem um pouco dessa história

ENÉSIMO – Deixe de ser frouxo, já lhe disse que tenho tudo arquitetado, aqui no quengo

ROMUALDO – Mas capitão, os cangaceiro já tomaram parte da cidade, num demora nada,

eles tão estourando por aqui

ENÉSIMO – Pois deixe que venham! Já lhe disse que num há porque tanto rebuliço

ROMUALDO – e como é que vai ser quando os homem do cangaço chegarem?

ENÉSIMO – tu mais uma meia dúzia de soldado vão fazer uma barricada lá na praça...

ROMUALDO – Capitão, isso num vai dar certo, eu tô com um medo da gota

ENÉSIMO – Rapaz! Deixe de tanta frescura. Tu e os outros soldado da volante tem as

mesmas arma que esses cangaceiros da moléstia.

ROMUALDO – Isso é bem verdade

ENÉSIMO - então por causo de que tanto medo?

ROMUALDO – as arma até podem ser igual capitão, mas a coragem que tem do lado de lá,

falta do lado daqui

ENÉSIMO – Tenha vergonha, um cabra desse tamanho, nem parece honrar as calças que

veste

ROMUALDO – Capitão? Tem uma coisa que eu não entendi

ENÉSIMO – Diga e que num seja mais uma de tuas asnices

ROMUALDO – Onde o senhor vai estar quando a volante estiver fazendo a barricada lá na

praça?

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ENÉSIMO – Que pergunta mais sem cabimento vou estar na delegacia, cumprindo o meu

serviço ou por acaso é o senhor que vai abrir a porta das selas pros cangaceiro entrar?

ROMUALDO – Se o capitão preferir eu posso...

ENÉSIMO – Pode deixar de conversa besta e ir pra rua fazer o que lhe mandei

CENA V

NETO E ZÉ SERENO ENTRAM EM CENA JÁ NO MEIO DE UMA DISCUSSÃO

NETO – Eu tenho mais o que fazer Zé

ZÉ SERENO – Ora mais, quem vê, pensa que tem mesmo. Tu vive de brisa e trambicagem

Neto

NETO – Olhe Zé, mulher é feito divida, a gente começa com uma e quando vê já tá com tanta

que até perde a conta

ZÉ SERENO – eu só quero saber de uma, Neto, e essa uma é Idália

NETO – Eu não acredito que tu tenha se esquecido de Rosinha

ZÉ SERENO – (com ar de recordação) Rosinha... (caindo em si) Esqueci sim!

NETO – E de Conceição?

ZÉ SERENO – (com um profundo suspiro) Conceição... Esquecer, esquecer, eu ainda não

esqueci, mas troco Rosinha, Conceição e todas as outras por Idália

NETO – Mas Zé, tinha que ser logo Idália?

ZÉ SERENO – Idália, Neto, é a coisa mais linda que eu já vi no mundo, e se Deus fez uma

coisa ainda mais linda, guardou só pra ele.

NETO – Tinha que ser justamente Idália... Logo Idália, Zé?

ZÉ SERENO – Eita Homem pare de repetir isso; “logo Idália?” – “logo Idália?” – O que tem

Idália?

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NETO – Idália adora homem de farda e isso não se faz segredo pra ninguém

ZÉ SERENO – Pois eu vou ser o homem que vai domar Idália, mesmo sem farda

NETO – Homem deixe de crendice besta, tu abilolou de vez, num é mesmo?

ZÉ SERENO – Neto veja Enésimo, ele vive correndo atrás de Idália...

NETO – Mais parece porquinho correndo atrás da teta da mãe porca

ZÉ SERENO – Tu tá dizendo que Idália é uma porca?

NETO – Não, eu só disse que...

ZÉ SERENO – Olhe! Enésimo vive atrás de Idália, mas ela só pisa no pobre e olha que o

infeliz usa farda e tu sabe por que ela faz isso?

NETO – Espere aí, tu num vai me dizer, que acha que Idália faz isso, porque sente alguma

coisa por...

ZÉ SERENO – e que outra razão houvera de ser? Se não fosse mesmo por amor?

NETO – Bobagem! Enésimo trata Idália a pão-de-ló, por isso ela não quer nada com ele, o

que Idália quer é alguém que lhe ponha no cabresto

ZÉ SERENO – Conversa!

NETO – conversa é isso tudo que tu tá pensando. Enésimo tem a farda, mas perto de Idália

perde toda a valentia, já tu num tem nem a farda, nem ao menos a valentia

ZÉ SERENO – Isso eu sei e num se faz segredo pra ninguém, mas se for assim, como vou

fazer pra conquistar Idália?

NETO – Valentia ou se tem desde nascido ou não se tem

ZÉ SERENO – Eita desgraceza, pense em alguma coisa pra me ajudar homem de Deus

NETO – Se inventaram um jeito de criar valentia, ainda não me chegou nos ouvido

ZÉ SERENO – Deixe de má vontade e me ajude, faça isso pela nossa amizade

NETO – e se tu fizer que nem o Seu Nicanor Da Dona Ana?

ZÉ SERENO – O papudinho que vive tropicando nas pernas?

NETO – Esse mesmo, depois do quarto copo de pinga, ele virava o cabra mais valente da rua

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ZÉ SERENO – Isso num vai dar certo comigo não, Seu Nicanor morreu de Cirrose e deixou

D. Ana na flor da idade livre pros sem vergonha se aproveitarem...

OUVE-SE UMA ESPÉCIE DE UIVO, NETO SE ASSUSTA E VAI SAINDO DE CENA

DEVAGAR, ZÉ SERENO VAI SEGUINDO-O, FALANDO ENQUANTO SAI

ZÉ SERENO – e eu não vou deixar Idália pra qualquer um... Fora que quando eu bebo fico

numa moleza que até pareço cachorro manso

TERCEIRO ATO

CENA I

JACIARA ESTÁ A ESPERA DE IDÁLIA, PELO SEU LADO DIREITO VEM CORRENDO

IDÁLIA E PELO SEU LADO OPOSTO VEM CORRENDO ROMUALDO, IDÁLIA E

ROMUALDO SE CHOCAM

IDÁLIA - Eita tu num olha por onde anda não? Lesado!

ROMUALDO - A culpa foi toda sua, podia lhe prender agora mesmo, por atrapalhar o

trabalho de um oficial

IDÁLIA - Eu podia me queixar do senhor por ter ferido uma pessoa inocente e quase tê-la

levado a morte

JACIARA - Idália não exagere

ROMUALDO - pois isso é uma sandice sem tamanho, fique sabendo que o seu caso é muito

pior por ter atrapalhado um oficial que corria a serviço da lei

IDÁLIA - O seu é bem pior, pois o senhor é um soldado atrapalhado por si mesmo, num

precisa de mais ninguém pra fazer isso pelo senhor não

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JACIARA - Parem os dois com isso, soldado desculpa pelo acontecido

IDÁLIA - Jaciara! Não peça desculpa a esse boçal não, se alguém aqui tem de pedir desculpa

esse alguém é ele

ROMUALDO - Isso mesmo não peça desculpa não, pois a senhorita nada tem a ver com o

acontecido, se alguém aqui tem de se desculpar, esse alguém é essa destrambelhada aí

JACIARA - Eu me desculpo por ela, pois ela ainda tá um pouco assustada com tudo isso, nos

desculpe soldado, agora pode ir

ROMUALDO - (para Idália) Destrambelhada

IDÁLIA - (para o soldado) trapalhão. (para Jaciara) Jaciara tu num sabe o que me

aconteceu, cheguei em casa e vi as porta e janela tudo aberta e um homem saindo de lá (o

soldado pára e ouve a conversa)

JACIARA – Valei-me, por isso que tu veio nesse perreio todo?

IDÁLIA – Foi, quando entrei em casa vi que os meus anjinhos tinham sumido

JACIARA – Teus anjinhos?

IDÁLIA – (observa o guarda e fala em silêncio) A estatueta que guardo todo meu dinheiro

JACIARA – então, o tal homem roubou...

ROMUALDO – Roubo? Valei-me que os cangaceiro já tão na cidade

IDÁLIA – Cangaceiros?

ROMUALDO – Uma ruma de mal feitor, que invade as cidade atrás de dinheiro, comida e

mulher

IDÁLIA – A gente sabe o que é um cangaceiro guarda

JACIARA – Então, deve ter sido um desses que tu viu saindo da tua casa

IDÁLIA – O cabra que vi saindo de minha casa num parecia nada com os cangaceiro que vez

ou outra estouram por aqui

ROMUALDO – E como era esse um?

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IDÁLIA – Ele usava uma casaca vermelho sangue, uma calça marrom e tinha também um

óculos escuro, tão escuro que mal dava pra ver a cor dos olhos

ROMUALDO – Pronto, fez-se a desgraça de vez! Nos acode meu pai!

JACIARA – Mas o que foi seu guarda, o senhor reconheceu o infeliz?

ROMUALDO – Pois pelo dito da destrambelhada aí, só pode ser Deuzêncio

JACIARA – E quem é esse?

ROMUALDO – Um cabra da moléstia, matador andarilho, mata em troca de dinheiro ou por

divertimento

IDÁLIA – Seja lá quem for eu quero os meus anjinhos de volta

JACIARA – Idália tá certa, a guarda tem de fazer de tudo pra recuperar a estátua dela

ROMUALDO – De jeito maneira, num tem jeito nenhum disso acontecer

IDÁLIA – E posso saber por que não?

ROMUALDO – Eu acabei de dizer que Deuzêncio, é um cabra violento, que mata por puro

divertimento, a volante num vai se meter com um sujeito desse não

IDÁLIA – E como é que fica?

ROMUALDO – num fica

JACIARA – A guarda tem de fazer alguma coisa, pra que é que serve essa farda que tu e os

teus amigos usam?

ROMUALDO – A volante não vai fazer é nada, se tratando de Deuzêncio, só mesmo sendo

doido ou não sabendo que esse infeliz já matou mais de 200 pessoas...

IDÁLIA – Então, vai ser assim?

ROMUALDO – Sem tirar nem por e eu já vou me escafeder daqui, antes que ele apareça por

esses lados, dizem que Deuzêncio tem uma raiva de homem fardado

(SAI DE CENA CORRENDO)

IDÁLIA - (para o soldado) Seu infeliz! Volte aqui! (vai atrás)

JACIARA - Idália venha cá, ô Idália!(sai)

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CENA II

ENÉSIMO – Então, eu lhe encontrei seu amarelo safado!

NETO – Capitão Enésimo!

ENÉSIMO – Tava esperando por quem? Eita miséria que tu chega desbotou, tá branquinho

mais parece mesmo ter visto o capeta

NETO – e vi! Olhe capitão, eu não tenho agüentado mais, pra todo canto que olho, eu penso

ter visto alguém atrás de mim, me esgueirando, me tocaiando...

ENÉSIMO – Isso é culpa, fica inventando gaiatice pra Deus e pro mundo

NETO – Olhe Capitão, me leve preso, assim eu vou ter sossego

ENÉSIMO – Deixe de besteira, que nesse caso teu sossego seria minha dor de cabeça, meu

desassossego falando no popular

NETO – Valei-me que sempre achei que a vontade do capitão era de me enjaular sem prazo

pra soltura

ENÉSIMO – Era, mas a coisa mudou de rumo, eu preciso de tua ajuda, vaguei feito um doido

atrás de tu

NETO – Eita que agora o capitão embaralhou as minhas ideias de um jeito que nem sei se

entendi direito o que o senhor disse

ENÉSIMO – Num é segredo pra ninguém que tô arriado por Idália, mas a diaba num me dá

um fiozinho de esperança e é aí que vou precisar da tua ajuda

NETO – Capitão eu sinto demais, mas num vou poder lhe ajudar, Zé Sereno também é doido

por Idália e me pediu a mesma coisa, e ele é meu...

ENÉSIMO – Eu num quero saber de Zé Sereno, e fique sabendo que ou tu me ajuda com

Idália ou lhe faço pagar por todas as tuas presepadas

NETO – Ora mais, o senhor acabou de dizer que me enjaular ia lhe dar muita dor de cabeça

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ENÉSIMO – E vai, o dinheiro que o governador manda pros presos, acaba sendo repartido

com os soldados da volante, sabe como é, num tendo nenhum preso o dinheiro ia acabar

ficando sem utilidade

NETO – E como vou pagar pelas presepadas que o senhor diz que aprontei? Dinheiro mesmo

eu só vejo na mão dos outros

ENÉSIMO – Vou lhe cortar o coro, tira por tira, só pelo prazer de lhe deixar sem ele, até

consigo lhe vê amarrado de cabeça pra baixo em pele viva, banhado de sangue, chorando de

tanta dor

NETO - Num tem jeito mais rápido e menos dolorido de matar alguém não?

ENÉSIMO - teu corpo vai tá coberto de mosca e todo tipo de bicho que só de pousar sobre

ele vão lhe fazer gemer que nem um porco antes de virar presunto

NETO – Valei-me meu Padrinho Padre Cícero

ENÉSIMO - os urubus avoando o céu e esperando o momento certo da tua morte e tu

rezando pra Deus acabar logo com teu sofrimento

NETO – Então, pedindo desse jeito, com tanto apreço, eu lhe ajudo sim

ENÉSIMO – é assim que eu gosto. Agora vamô embora que a gente num podemos perder

tempo

CENA III

UMA MESA DE BOTECO, SOBRE ELA, UMA GARRAFA DE PINGA E UM COPO, UM

BANQUINHO DE BOTECO E SOBRE ELE DEUZÊNCIO ESTÁ SENTADO BEBENDO, EM

SEGUIDA ENTRA ZÉ SERENO, JÁ EMBRIAGADO

ZÉ SERENO – Seu João! Seu João! Salta uma branquinha ligeiro! Quero ver se tem macho

aqui nesse boteco que hoje eu tô mamando na onça. Já passei em três boteco e botei pra correr

dois cabra que me olharam torto e agora eu quero saber se aqui tem macho, que hoje eu tô

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com vontade de meter a bolacha em alguém. Pelo visto de macho mesmo, aqui, só tem um,

que sou eu, de resto só sobra um bando de mulherzinha.

DEUZÊNCIO – Tome sua cachaça em paz e depois que tomar vá embora, antes que eu perca

a cabeça

ZÉ SERENO – Tô vendo que o sujeito é muito corajoso ou perdeu de vez o juízo. Ou num

sabe com quem tá falando

DEUZÊNCIO – Tô falando com um corno de uma figa, que tá tomando um banho de

cachaça pra ver se esquece a vadia que num lhe dá confiança

ZÉ SERENO – Escute uma coisa seu cabra safado, ninguém fala assim de minha Idália! Se

levante pra comer na chibata

DEUZÊNCIO – Rapaz, eu vou me levantar sim, mas a chibata vai comer depois que essa tua

bebedeira passar, porque num só homem de me aproveitar da embriaguez de corno nenhum

ZÉ SERENO – Corno é... É...

DEUZÊNCIO – Preste atenção seu filho de uma égua, mais tarde eu vou passar por aqui e

quero que essa bebedeira tenha passado, pra modo da gente acertamos as nossas conta...

ZÉ SERENO – Olhe pensando bem, nem carece tanto num é mesmo...?

DEUZÊNCIO – Nem pense em picar a mula, pois eu vou atrás de tu, só pra separar essa tua

língua cumprida da boca.

CENA IV

NETO – Idália, eu tô lhe dizendo a verdade

IDÁLIA – Neto, eu num vou acreditar numa história sem pé nem cabeça que nem essa tua

NETO – Eu sei que vez ou outra eu conto umas verdades com umas pinceladas...

IDÁLIA – Neto, eu nunca vi um presepeiro como tu, até o pobre de teu amigo tu já passou

pra trás

NETO – Idália, eu num tenho mais ninguém, faça alguma coisa por mim

25

IDÁLIA – Mas eu nem mesmo sei o que fazer, nunca tinha ouvido antes uma história dessas

NETO – Pois pense em alguma coisa, deve de ter um jeito

IDÁLIA – Eu só conheço simpatia pra mal olhando, uma ou outra pra quebranto, outra pra

amarração

NETO – Pois faça tudo junto, mande vê na macumba que a coisa tá brava, em todo canto que

meus olhos pousam eu sinto que ele me esgueira

IDÁLIA – Neto, isso é uma sandice só, é tudo coisa da tua cabeça

NETO – Que coisa da minha cabeça, agora tudo desandou a dar errado, é Zé Sereno me

pedindo isso, é Enésimo me jurando de morte...

ENTRA ZÉ SERENO TROPEÇANDO NAS PRÓPRIAS PERNAS DESESPERADO

IDÁLIA – Valei-me minha Nossa Senhora, o que foi que lhe aconteceu homem?

NETO – Nem precisa dizer, tomou um banho de cachaça e já até bem sei por quê

ZÉ SERENO – olhe aí, meu melhor amigo e o amor de minha vida, no mesmo lugar, assim

eu num perco tempo com a despedida

IDÁLIA – Se despedir por que, por acaso tá pensando em sair de viagem é?

ZÉ SERENO – Pensando mesmo eu num tô não, mas pelo visto vão comprar uma passagem

só de ida lá pra terra dos pés juntos

NETO – Que diabo... Quer dizer; Que história da gota, é essa, Zé?

ZÉ SERENO – eu vou lhe contar tudinho, mas acho que dessa vez, nem tu o quengo mais

ligeiro do sertão vai dar jeito

IDÁLIA – Bora levar teu amigo pra curar essa bebedeira

NETO – Vamô sim, mas me diga aqui, tu vai me ajudar com o que lhe pedi?

IDÁLIA – Vou Neto, mas tem uma coisa que quero em troca

NETO – E o que é? Pode pedir que eu faço na hora

26

IDÁLIA – Quero que tu pegue de volta a estátua com S. Miguel, S. Rafael e S. Gabriel que

roubaram lá de minha casa

NETO – Valei-me Padrinho Padre Cícero mais essa...

CENA V

ENÉSIMO ESTÁ EM CENA, AGITADO, ESPERANDO PELA CHEGADA DE ROMUALDO,

QUE INSTANTES DEPOIS CHEGA TRAZENDO CONSIGO UM EMBRULHO, DENTRO

DO EMBRULHO TEM 3 ROUPAS DE CANGACEIRO, NUMA SACOLA OS ACESSÓRIOS,

COMO CHAPÉUS E ETC.

ENÉSIMO – E então abestado, trouxe o que lhe encomendei?

ROMUALDO – Trouxe sim capitão, até que num foi tão difícil conseguir isso como eu

imaginei que seria

ENÉSIMO – Sendo difícil ou sendo fácil, o teu trabalho é cumprir o que lhe mando fazer, me

deixe ver isso aqui

ROMUALDO – Tá aqui capitão, eu só não entendi que diabo o senhor vai fazer com isso

ENÉSIMO – Na hora certa tu vai saber, e num é o que eu vou fazer, mas sim o que tu e eu

vamô fazer com elas

ROMUALDO – Capitão, eu num quero graça com essa gente aí, é tudo pessoa sem valor,

que mata a torto e a direito...

ENÉSIMO – Deixe de besteira, pois vou precisar da tua ajuda e tu á de me ajudar

ROMUALDO – Certo capitão, mas num pode ser numa outra missão? Isso tudo tá muito

esquisito, que missão é essa que vai fazer precisão desses trapos?

ENÉSIMO – Já disse que quando chegar a hora certa, tu vai ficar sabendo, por agora o que

posso lhe adiantar é que num vai ter perreio nenhum

27

ROMUALDO – Pois se o capitão diz, eu confio, mas que tô achando tudo muito esquisito,

ah! Isso eu tô mesmo

QUARTO ATO

CENA I

ASMODEU - Primeiro eu lhe mandei Enésimo, depois lhe mandei Zé Sereno, os dois bestas

de quatro pela mesma mulher

NETO – Tu só pode ter colocado mel no periquito de Idália

ASMODEU – De um lado um que lhe jurou de morte se tu num fizer sua amada lhe ter

apreço, do outro lado teu amigo, que num vai lhe perdoar quando souber que tu preferiu o

capitão Enésimo...

NETO – Eita, que vida mais desgraçada! É muito atrapalhamento até mesmo pra quem vive

de enrolação.

ASMODEU – Então, isso quer dizer que tu tá de quatro pedindo arrego...

NETO – Valei-me Meu São Francisco! Num me deixe abrir as pernas pro coisa ruim

ASMODEU – Dessa tu num vai se livrar, ainda tem um tal sujeito que veio pra cidade pra

causar reboliço, mas acabou pegando teu amigo se afogando no amansa corno e agora jurou o

infeliz de morte

NETO - Desgraça nunca vem só, nem adianta pagar pra vê, porque a bicha sempre vem

acompanhada

ASMODEU – É só se livrar de tudo isso e eu reconheço sem pestanejar que tu é mesmo o

quengo mais ligeiro do sertão

NETO – Como se fosse fácil

ASMODEU – E devia ser! Tu num diz que é o quengo mais sabido do sertão?

28

CENA II

IDÁLIA ENTRA EM CENA CARREGADA DE ACESSÓRIOS PRÓPRIOS PARA MACUMBA,

COLARES, FOLHAS DE LOURO E ETC. ELA TRAZ TANTAS COISAS QUE ATÉ

CAMINHA COM DIFICULDADE. EM SEGUIDA ENTRA ROMUALDO.

IDÁLIA - Olhe lá se não é o soldado lesado

ROMUALDO - Olhe lá se num é a destrambelhada

IDÁLIA - Eu pensei ter ouvido um zumbido

ROMUALDO - Agora deu-se a tragédia, além de destrambelhada ainda ficou surda, agora de

nada vai servir gritar pra sair do meio do caminho, pois a pobre que já num tinha muita

ligeireza agora que "ensurdou" então

IDÁLIA - Se eu num tenho "ligeireza" imagina um certo soldado, que é mais atrapalhado que

velho cagado que tenta mais num sabe como esconder o que fez

ROMUALDO - Eita! Olhe aí, num é que a infeliz voltou a ouvir, o que deveria lhe acontecer

era no lugar de ficar surda ficar muda

IDÁLIA - E por que posso saber?

ROMUALDO - Ora mais! Pra poupar os ouvidos alheios de suas asnices. Que mal lhe

pergunte pra que essa ruma de coisa esquisita nessa tua sacola?

IDÁLIA – Num é de sua conta, porco bom é porco morto e assado na brasa, e que além de

tudo morre sem dar um piozinho que seja

ROMUALDO - Eu que num quero entrar numa prosa de doido, ou melhor, de doida que é

essa tua, onde até porco aprendeu a pia

IDÁLIA - Olhe seu...

ROMUALDO – Se lembre que sou uma autoridade

IDÁLIA - E o que tem isso?

29

ROMUALDO – Tem que posso lhe prender por desacato

IDÁLIA – Ladrão que é bom esse povo da volante não prende

ROMUALDO – Ainda isso? Já lhe disse pra esquecer essa tal estátua

IDÁLIA – Pois saiba que já encontrei alguém que vai trazer de volta os meus anjinhos

ROMUALDO – E quem é o abilolado que vai peitar Deuzêncio?

IDÁLIA – Neto

ROMUALDO – Neto? Aquele calango? Pois é bom ele ter pensado numa ideia mais dá

moléstia mesmo, porque se vacilar acaba virando adubo

IDÁLIA – Saiba que ele vai trazer os meus anjinhos de volta pro lugar deles

ROMUALDO – num deve de ser bom dos miolo mesmo! Dizem que Deuzêncio já matou

tanto miserável que se pusessem tudo num buraco só, esse buraco ia ser tão fundo que além

das almas, os corpos também iam ser entregue di-re-ta-men-te ao chibungo e...

IDÁLIA - e chega de falar, tu num sabe fazer outra coisa a não ser falar, diabo de homem

mais fuxiqueiro

ROMUALDO - Olhe, se o Cabronhoso tiver mulher ela deve de ser igualzinha a tu, deve "de

tê" os olhos virados e cabelo nas ventas (SAI DE CENA)

IDÁLIA – Eu que não vou perder meu tempo, pois tenho que preparar o descarrego de Neto,

pior que nem sei como fazer isso...

CENA III

DEUZÊNCIO ESTÁ SENTADO BEBENDO UM COPO DE CACHAÇA ESPERANDO ZÉ

SERENO, NETO ENTRA EM CENA VESTIDO DE CANGACEIRO

NETO – O amigo aí, deve de ser muito corajoso, o povo dessa cidade se escafedendo e o

amigo aí tomando uma branquinha

30

DEUZÊNCIO – Num tenho por que fugir e também num tenho amigo nessa vida

NETO – É... tu deve de ter as costas largas ou pacto com o coisa ruim

DEUZÊNCIO – num gosto de sociedade, meu trabalho faço eu mesmo, sozinho

NETO – Pois e se eu lhe disser que teu trabalho tem atrapalhado o meu?

DEUZÊNCIO – Lhe digo que o sol lhe tem feito muito mal pra vossa moleira

NETO – Antes de tua chegada eu era o cabra mais temido por essas bandas, agora num se

fala de outra coisa que não dos teus feitos

DEUZÊNCIO – O povo gosta de falar do que num sabe

NETO – O que é que tem na sacola?

DEUZÊNCIO – Num é de sua conta, eu num me meto em tua vida e tu num se mete na

minha

NETO – é justo, mas quem faz o recolhimento dos bens das pessoas da cidade é o meu bando

e não quero concorrência

DEUZÊNCIO – Só tô de passagem, passei pela cidade porque fica no caminho pra onde eu

vou, parei numa casa e avistei uma estátua com os três servos de Deus, os anjos de Nosso

Senhor, juntos...

NETO – Tu é dado a essas crendices?

DEUZÊNCIO – Tenho minha fé e quando pousei os olho naquela estátua, foi como se Deus

tivesse falado comigo...

NETO NOTA A CHEGADA DE ROMUALDO E ENÉSIMO, AMBOS VESTIDOS DE

TAMBÉM DE CANGACEIROS, QUE AO PERCEBEREM A PRESENÇA DE DEUZÊNCIO

PENSAM EM IR EMBORA

31

NETO – Pois eu lhe digo sujeitinho de uma figa, tome logo tua cachaça e vá embora dessa

cidade e é bom que a gente num se esbarre, porque numa nova dessas, eu num respondo por

mim

DEUZÊNCIO – Quem lhe deu essa ousadia de falar com a minha pessoa nesse tom? Eu lhe

pego de açoite e lhe viro do avesso com as próprias mãos

NETO – Então venha, que hoje eu lhe digo que tu vai dormir com o couro quente filho de

uma rapariga manca

DEUZÊNCIO NOTA A PRESENÇA DE ROMUALDO E ENÉSIMO DEVIDAMENTE

VESTIDOS DE CANGACEIROS

DEUZÊNCIO – Valei-me São José de Ribamar! Os três... Vestido de cangaceiros... Esse um

com o facão em punho (retira da sacola a estátua). Só pode ser um milagre (olha para a estátua

e para os três)

ROMUALDO – Eita que o homem abilolou

NETO PERCEBE O QUE ESTÁ ACONTECENDO E TIRA VANTAGEM

NETO – (para Enésimo) Miguel. Miguel!

ROMUALDO – Capitão, acho que ele tá falando com o senhor

NETO – (para Enésimo) Miguel pegue a estátua, porque esse um num merece esse presente

divino, um sujeito que parece que nem teve mãe...

DEUZÊNCIO – Mas anjo Rafael, me dê outra oportunidade, Deus bem sabe que por tudo

que vivi mereço mais uma chance

NETO – Deuzêncio tu já teve muitas chances e num soube aproveitar, Gabriel intercedeu

muito por tu

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DEUZÊNCIO – (para Romualdo) É mesmo anjo Gabriel?

ROMUALDO – é... Tu me deu uma canseira danada. Agora vá embora (ele sai)

NETO – Me dê a estátua Miguel.

ZÉ SERENO ENTRA EM CENA VESTIDO COM A FARDA DE ENÉSIMO

ZÉ SERENO – Cambada de vagabundo! Tão todos os dois presos

ENÉSIMO – Que brincadeira é essa seu cabra safado?

ZÉ SERENO – Olha como fala com a autoridade! Estou fazendo o meu trabalho, sou capitão

da volante e estou dando voz de prisão pros dois cangaceiros... (á parte) Pode levar esses dois

pra jaula

ENTRA ALGUNS HOMENS FARDADOS E PEGAM ENÉSIMO E ROMUALDO PELO

BRAÇO, ENQUANTO AGUARDAM AS ORDENS DE ZÉ SERENO

ROMUALDO – Que diabo é isso?

ENÉSIMO – Por acaso num tão reconhecendo o capitão de vocês?

ROMUALDO – E por que Neto também não foi preso?

ZÉ SERENO – Eu deixei esse infeliz ir embora, porque ele nos avisou de toda a armação

desses dois e nos ajudou a prender esses presepeiros de uma figa

NETO SAI DE CENA

ENÉSIMO – (para Romualdo) Esses filhos de duas éguas, passaram a perna em nos dois

ROMUALDO – Eu disse que isso num ia dar boa coisa capitão!

33

CENA IV

ASMODEU – Não foi uma disputa justa, nem justa, nem honesta

DEUS – Como não? Se Neto do Catolé, lhe venceu o desafio se valendo apenas de seus

engenhos

ASMODEU – Engenho? Engenho uma pindoba! Isso foi puro açoite da sorte e num duvido

nada se esse açoite não tiver ter sido dado por um certo Pai

DEUS – Asmodeu, tu tá dizendo que eu... Olhe bem, se Neto do Catolé lhe deu uma volta, lhe

ensinou com quantos paus se faz uma jangada, lhe fez de...

ASMODEU – Tô dizendo mais nada, mas que não me cheira bem Neto ter saído assim, na

maior, não me cheira

DEUS - quem não pode com o pote não pega na rodilha Asmodeu!

ASMODEU – Pois lhe digo que isso não há de ficar assim! Eu não vou entregar o couro ás

varas! Peço uma interseção!

DEUS – E por acaso eu posso saber quem á de interceder por tu?

ASMODEU – Qualquer um que tenha um pouco de juízo, pois tendo vencido o desafio Neto

do Catolé vai ficar cartando alto que só urubu de binóculos e...

DEUS – e não tem mel, nem cabaça!

ASMODEU – Então, vai ficar assim?

DEUS – E num tem jeito nem maneira de ficar de outro modo

ASMODEU – mas... (DEUS SAI) Ah! Que eu tô fumando numa quenga!

34

ÚLTIMO ATO

CENA I

IDÁLIA ESTÁ NO CENTRO DO PALCO. MUNIDA COM TODOS OS APETRECHOS DE

MACUMBA...

IDÁLIA – Onde será que se enfiou aquele...

NETO ENTRA

IDÁLIA – Ave Maria! Que susto! Tá que nem Jaciara agora é?

NETO – Jaciara?

IDÁLIA – Deixe pra lá! E então?

NETO – Eu que lhe pergunto, tu tem certeza que isso vai prestar?

IDÁLIA – Não só vai como nunca mais aquela... Aquela... Aquela visagem vai lhe aparecer

na vida

NETO – E na morte?

IDÁLIA – Que morte?

NETO – Na minha! Pois eu num quero saber daquele um, nem mesmo depois de eu bater as

botas

IDÁLIA – Num se aperreie, borá tire a roupa

NETO – Idália, eu lhe pedi foi pra fazer uma.. Uma coisa que me livra-se do cabronhoso, não

pra gente...

IDÁLIA – Deixe de sandice Neto! Tire a roupa pra poder tomar o banho com a poção que eu

lhe preparei

NETO – Eu vou ter que me banhar nessa água suja aí?

35

IDÁLIA – Que suja que nada, essa poção é tiro e queda, com um banho dela tu num há de ter

visagem nenhuma pelo resto dos seus dias

NETO – que sejam muitos dias meu Padrinho padre Cícero

ENTRA ZÉ SERENO QUE ESBARRA EM NETO. ZÉ SERENO CAI NA BACIA.

NETO – Arri égua! Destrambelhado de uma figa! Olhe só o que tu fez!

ZÉ SERENO – Neto! Ô meu padrinho padre Cícero! Neto! Valei-me Meu padrinho padre

Cícero!

IDÁLIA – Chega homem, desembucha de uma vez, o que foi que lhe aconteceu?

ZÉ SERENO – Enésimo e Romualdo conseguiram soltura lá do xilindró

NETO – Valei-me! Num me diga!

ENÉSIMO E ROMUALDO VÃO ENTRANDO EM CENA DEVAGAR

IDÁLIA - Os dois tão vindo pra cá

ZÉ SERENO – Isso mesmo, tão todos os dois atrás de tu

NETO – pra me tirar o couro

ZÉ SERENO – Exato, tirinha por tirinha, ô meu pai

IDÁLIA – Deixe de tanta frescura! Nem mesmo vestido com a farda da volante, tendo nas

mãos uma arma, tu num se encoraja a ser homem? Zé Sereno!

ZÉ SERENO – Tenha calma, num é Idália? Tô usando a farda num faz nem vinte minutos,

essas coisas precisam de tempo pra surtir o efeito

ENTRA POR DETRÁS DE ZÉ SERENO, ENÉSIMO E ROMUALDO, ENÉSIMO

PERMANECE PRÓXIMO DAS COSTAS DE ZÉ SERENO

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NETO – Capitão Enésimo!

ZÉ SERENO – Neto, tem razão, veja “Enésimo” que passou a vida toda usando essa farda,

empunhando essa arma (ACERTA A CARABINA EM ENÉSIMO QUE CAI AO CHÃO) e é um

covarde de marca maior

IDÁLIA – Vala-me São José de Ribamar, tu matou o homem

ZÉ SERENO – Eu o quê?

ROMUALDO – Capitão! Capitão! Acuda meu povo!

NETO – Zé! Se escafeda daqui homem

IDÁLIA – Venha Zé! Eu sei onde tu pode se esconder

ELES SAEM - ENÉSIMO COMEÇA A RECOBRAR OS SENTIDOS

ROMUALDO – Capitão! Capitão!

ENÉSIMO – Eita homem, num venha com saliência não, que num gosto de homem me

bulindo não

ROMUALDO - Ô meu Deus, só pode de ter sido milagre!

NETO – Milagre só se for pra ele

ROMUALDO – Capitão, eu fiquei num perreio só, achei até que o senhor tinha partido pra

terra dos pé junto

ENÉSIMO – Capitão? Eu?

ROMUALDO – Capitão, o senhor num brinque com uma coisa dessas

ENÉSIMO – Quem é que tá de brincadeira aqui? Eu posso num me alembrar quem eu sou,

mas sei que faz tempo que deixei de ser menino

ROMUALDO – pronto, fez-se a desgraceira. Valei-me meu pai do céu, o que é que vai ser de

mim, meu Deus? Me diz meu pai!

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ENÉSIMO – Eu num me alembro de nadica de nada. Num há se quer uma gota de lembrança

jorrando nesse quengo

NETO – capitão, num se faz todo esse perreio, esse cabra aí do vosso lado é seu pau mandado

ROMUALDO – É o que homem?

NETO – Quer dizer; é Romualdo, soldado da volante do qual o senhor é o capitão

ENÉSIMO – rapaz eu num consigo me lembrar de nada, nem mesmo de meu nome

NETO – já lhe disse capitão que não há porque tanto perreio, vosso nome é Enésimo e o

senhor é capitão da volante do estado...

ROMUALDO – Capitão num dê trela pra esse calango seco não, isso aí vive enrolado, mais

parece rabo de porco

ENÉSIMO – parece é que levei uma surra

NETO – parece não, foi bem isso que aconteceu

ENÉSIMO – Valei-me se eu sou um homem da lei, isso foi um desrespeito

NETO – E dos grande, a sorte é que eu tava passando por aqui, e botei os cabra pra correr

ROMUALDO – mas capitão, imagina se esse um, ia ser capaz de fazer...

NETO – não só fui capaz capitão, como só num furei o bucho dos cabra, porque os 6 saíram

numa carreira danada, tudo desembestado, gritando por socorro

ENÉSIMO – o amigo há de concorda que foi uma covardia da moléstia, 2 pra cada um de nós

NETO – Na verdade, 3 pra mim e outros 3 pra vossa pessoa

ENÉSIMO – E esse um aí do lado?

NETO – Capitão, isso aí é mais medroso que menino perdido no mato

ENÉSIMO – Se eu num tivesse com o corpo todo moído, eu metia a faca no bucho desse um

agora mesmo...

NETO – Capitão, eu bem pensei em fazer isso, mas deixe estar porque cabra medroso que

nem esse morre é de susto, num é mesmo?

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ENÉSIMO – tá certo, e se num for assim eu mesmo faço o serviço e quero cegar da gota

serena se num lhe digo a verdade...

NETO – eu vou lhe ajudar a se lembrar de tudinho que aconteceu

ENÉSIMO – o golpe deve de ter me acertado na moleira de forma certeira

NETO – Eu num gosto de me gabar, mas se num fosse a minha pessoa, o senhor á essa altura

já tinha batido as botas

ENÉSIMO – Eu lhe devo a minha vida

ROMUALDO – Capitão!

NETO – Capitão, isso é coisa que já me acostumei

ENÉSIMO – Quer dizer que eu vivo tomando chibata de vagabundo?

NETO – De jeito maneira, o senhor é um cabra valente, quem anda pelas ruas levando

catiripapo é esse teu pau mandado

ROMUALDO – Olhe aí capitão

NETO – Esse um aí, é a vergonha da volante, já cansei de salvar a vida desse infeliz

ENÉSIMO – E é?

NETO – Se é. Já distribuí tanta chibata pra salvar esse aí, que tem vagabundo por aí me

chamando de “Neto duas quente e uma fervendo”.

ENÉSIMO – Bem se vê. E assim que minha cabeça desanuviar, eu vou tomar as providência

ROMUALDO – Que providência, capitão?

ENÉSIMO – Ora mais, uma volante que se preze, num pode aceitar um soldado frouxo

NETO – E bota frouxo nisso! (OS DOIS SAEM)

ROMUALDO – Deu-se a desgraceira mesmo!

39

CENA II

IDÁLIA - Vai homem te enjeita que o pior já passou

ZÉ SERENO – Idália sobre o acontecido lá na praça...

IDÁLIA – O que é que tem?

ZÉ SERENO – Eu só queria... É que... Tu sabe que...

IDÁLIA – Desembucha Zé!

ZÉ SERENO - Tu bem sabe que eu num tive...

IDÁLIA – Num teve outro jeito que não matar Enésimo

ZÉ SERENO – isso! Num tive outro jeito que não... Como é?

IDÁLIA – Ora mais, ou era Enésimo ou era Neto. E num precisa ter muito quengo pra saber a

tua escolha.

ZÉ SERENO – Falando assim parece até que fiz tudo de caso pensado, a sangue frio, que

nem que igual faz um...

IDÁLIA – “Um...”?

ZÉ SERENO – um... Eita! Pare de falar essas coisas!

IDÁLIA – Eu num disse um “A”!

ZÉ SERENO – Fique calado, coisa ruim, cabronhoso, chibungo, capeta, tinhoso, bode velho!

IDÁLIA – Zé tu tá me assustando com essas tuas coisas

ZÉ SERENO – Lhe assustando com essas minhas coisas de... De...

IDÁLIA – De...? Ande homem deixe de fazer hora

ZÉ SERENO – De matador. Já posso ouvir o coisa ruim falando nos meus ouvido.

IDÁLIA – Matador?

ZÉ SERENO – E da moléstia! É o que eu virei depois de ter mandado Enésimo pra terra dos

pés junto!

IDÁLIA – Matar como tu matou, num lhe faz um matador

40

ZÉ SERENO – No fim termina tudo do mesmo jeito, com Enésimo estirado no chão, morto.

Morto pelas minhas mãos

IDÁLIA – Nunca que ouvi tanta sandice! Tu só fez impedir o capitão de matar o teu amigo

ZÉ SERENO – E o que eu fiz pra isso? Mandei aquele infeliz pra ver São Pedro de perto!

IDÁLIA – o que tá feito, já tá feito e num tem como voltar atrás, deixe de tanto chororô

ZÉ SERENO – Tu me respeite! Se me der no quengo eu lhe desço a peia e sabe por quê?

IDÁLIA – Por quê?

ZÉ SERENO – Porque depois que me pus naquelas vestes eu senti o que é ser macho.

IDÁLIA – Eita que agora, tu dizendo essas coisas me subiu um calor, é uma coisa revirando

aqui embaixo

ZÉ SERENO – Isso é frescura! Eu já senti muito isso nos tempo que era frouxo

IDÁLIA – Não! É uma coisa que queima, que dá vontade de tirar a roupa...

LASCA UM BEIJO EM ZÉ SERENO E OS DOIS SAEM EMBOLADOS

CENA III

ENÉSIMO – Dona Jaciara!

JACIARA – Capitão Enésimo! Quero lhe dizer de todo meu coração que num tenho parte

nenhuma com o acontecido na praça...

ENÉSIMO – Arri égua! Nem havia como tê, uma moça delicada como á senhora, jamais

poderia fazer parte do mesmo grupo que aquela ruma de vagabundo

JACIARA – Pois é, num é?

ENÉSIMO – Se é. Mas o acontecido lá na praça foi o acontecido lá na praça, eu queria

mesmo era a atenção da senhora pra lhe falar de outro assunto

JACIARA – Outro assunto? E qual assunto seria esse, Capitão?

41

ENÉSIMO – Veja bem Dona Jaciara, por conta do acontecido na praça, minhas ideias

ficaram um pouco anuviadas e algumas coisas ficaram embaralhadas aqui no meu quengo

JACIARA – Me desculpe Capitão, mas num tô entendendo o rumo dessa prosa

ENÉSIMO – Dona Jaciara, como eu lhe dizia, as ideias ficaram todas atrapalhadas na

moleira e só vieram a se endireitar com a ajuda do amigo Neto

JACIARA – Amigo Neto?

ENÉSIMO – Pois sim, Neto do Catolé, um magrinho, valente que só a peste...

JACIARA – tava reconhecendo até o magrinho, mas valente?

ENÉSIMO – E ponha valente nisso, cabra macho, sujeito bravo, daqueles que bebem leite

diretamente nas tetas da onça

JACIARA – Se o senhor tá dizendo...

ENÉSIMO – Num tem precisão de me chamar de senhor, afinal de contas nós já temos certa

intimidade

JACIARA – Como é Capitão? Que história é essa?

ENÉSIMO – Pois era justamente o que eu queria lhe falar

JACIARA – Então desembuche porque agora eu quero saber disso tintim por tintim

ENÉSIMO – O amigo Neto, disse que vossa pessoa ficaria um pouco brava com essa prosa

JACIARA – E o senhor ainda não viu nada, continue

ENÉSIMO – mas saiba a senhora que foi de extrema precisão que ele me dissesse essas

intimidades, tudo pra que eu pudesse endireitar as ideias

JACIARA – E de que intimidade é essa que Neto falou?

ENÉSIMO – Eu até lhe peço perdão

JACIARA – Em nome de Neto?

ENÉSIMO – em nome meu mesmo, porque o culpado fui eu, de tê falado pro amigo Neto,

nossas...

JACIARA – Arri égua! Capitão isso tudo é uma grande...

42

ENÉSIMO – uma grande safadeza de minha parte, eu num sei onde eu tava com a cabeça,

isso num é coisa que se espalhe por aí

JACIARA – Mas Capitão, essas coisas foram tudo...

ENÉSIMO – Tudo feita com amor, o amigo Neto me certificou disso

JACIARA – Ave Maria! Como é que pode uma coisa dessas, essa história...

ENÉSIMO – Essa história vai ter o final que deve ter, isso eu lhe juro por meu padrinho

padre Cícero e por meu São José de Ribamar

JACIARA – E o senhor tá falando de quê?

ENÉSIMO – Que num vou deixar a vossa pessoa, mal falada, por conta do que lhe provoquei

a fazer

JACIARA – E como é que é isso?

ENÉSIMO – Que é justo depois de tanto tempo lhe cortejando, lhe atiçando, lhe querendo e

lhe...

JACIARA – nem precisa continua que já sei onde é que isso vai parar

ENÉSIMO – E então diga que aceita o meu pedido

JACIARA – Que pedido? O senhor ainda não pediu nada

ENÉSIMO – Então lá vai! Jaciara aceite se casar mais eu

Ela desmaia nos braços de Enésimo. Entra Zé Sereno e Idália

ZÉ SERENO – Eita que agora deu-se a desgraceira mesmo! Que tô vendo o fantasma de

Enésimo vindo buscar Jaciara

IDÁLIA – O pior de tudo é que eu tô vendo a mesmíssima coisa

ENÉSIMO – Andem acudam a minha senhora!

ZÉ SERENO – Tua senhora? Como é que é isso?

ENÉSIMO – acabei de fazer o pedido!

43

IDÁLIA – Eita Zé, o homem parece até outro homem

JACIARA RECORDA OS SENTIDOS

JACIARA – Zé Sereno? Idália?

ENÉSIMO – Zé Sereno? Rapaz eu queria muito lhe conhecer! (Solta Jaciara no chão) Veja

bem, há pouco tomei uma sova de um bando de vagabundo... E só num bati a caçuleta por

conta da valentia do compadre Neto

IDÁLIA – Compadre?

JACIARA – Pense não, até á pouco era só amigo...

ZÉ SERENO – Eu só quero que o senhor saiba que eu mesmo num tive parte nenhuma

nisso...

ENÉSIMO – Arri Égua! Isso o compadre Neto me contou e me contou também que o amigo

seu Zé Sereno é um dos cabra mais valente da cidade

ZÉ SERENO – Vosso amigo Neto lhe contou isso?

ENÉSIMO – Não só isso como me disse também que o senhor sempre quis ser da volante do

estado. E só não fez por falta de...

IDÁLIA – Coragem

ENÉSIMO – Como é?

ZÉ SERENO – Foi nada não, continue á vossa pregação, quer dizer á vossa história...

ENÉSIMO – Chega de volta! Eu quero que o amigo Zé Sereno aceite comandar a volante do

estado mais eu

ZÉ SERENO PÕE A MÃO NO PEITO, SE AGACHA DEVAGAR.

IDÁLIA – Ande homem! Diga alguma coisa! Num vai perder a macheza logo agora

44

ENÉSIMO – O amigo se quiser pode pegar uns dias pra pensar...

ZÉ SERENO – Pensar coisa nenhuma! Eu lhe digo; sim! E tô aceitando só pelo prazer de

açoitar vagabundo, de mandar bala em bandido, de furar bucho de cangaceiro

ENÉSIMO – Eita que agora a volante tá bem servida de sujeito macho, um bando de cabra da

peste enraivado que só a gota, fumando numa quenga!

TODOS SAEM DE CENA. ZÉ E ENÉSIMO SAEM ABRAÇADOS, COMEMORANDO A

PARCERIA.

CENA IV

NETO ESTÁ Á ESPERA DE ASMODEU, PROCURA PELO SUJEITO DE UM LADO Á

OUTRO, MOSTRA CERTA ANSIEDADE E EXALA UM AR DE CONFIANÇA.

DEUS – Neto do Catolé.

NETO – (assustado) Ave Maria, já perdi a conta de quantas vezes meu coração quase saltou

pela boca...

DEUS – Pois se acalme, venho em missão de paz...

NETO – E que mal lhe pergunte, quem o amigo e como é que sabe meu nome?

DEUS – Eu sei tudo sobre a sua pessoa, eu escrevi a tua história...

NETO – Valei-me que essa prosa tá com mais curva que mulher gorda...

DEUS – Neto, eu sou Deus...

NETO – Se fosse ontem, eu lhe digo que jamais ia acreditar nessa conversa...

DEUS – Fico feliz por ter passado a acreditar em mim...

NETO – No senhor eu sempre acreditei, nunca acreditei que fosse aparecer logo pra mim...

DEUS – Tome, acho que isso lhe pertence... (entrega um envelope)

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NETO – (abre o envelope retira dele uma folha) O senhor vai me desculpar, mas do que é

que se trata?

DEUS – Essa é a tua prenda por ter vencido o diabo, esse é o reconhecimento dele de que tu é

o quengo mais sabido do sertão.

NETO – Olha aí, e porque é que o senhor... Desculpe a ousadia...

DEUS – O diabo é muito vaidoso... deixou isso na repartição celestial... Na certa, está com

vergonha de te encarar.

NETO – Pois é bom que tenha mesmo, pois eu Neto do Catolé...

DEUS – (rindo) Neto, escute. A tua vitória foi justa, foi uma disputa honesta do qual o mais

sabido saiu vencedor, mas não se esqueça que a humildade dignifica o homem...

NETO – Pode deixar, “a humildade dignifica o homem”, (DEUS SAE) é até bonito, mas

aproveitando que o senhor está por essas bandas... (nota que Deus não está mais ali)

ENTRA ZÉ SERENO

ZÉ SERENO – Eita cabra, ainda num perdeu essa mania de ficar falando sozinho...

NETO – Ave Maria quem vê pensa que sou abirobado... Pois eu tava falando com... Ah!

Deixe pra lá...

ZÉ SERENO – Tô carecendo da tua ajuda...

NETO – Pois me diga que é uma presepada das brabas...

ZÉ SERENO – E bota braba nisso...

NETO – Me diga que é um enrosco dos grande...

ZÉ SERENO – Maior que olho gordo.

NETO – Diga que é um salseiro dos bom..

ZÉ SERENO – melhor que briga de amante.

NETO – Eita! Diga lá o que é que já tô curioso.

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ZÉ SERENO – O que é o quê?

NETO – Arre égua, homem! Tu quer minha ajuda pra quê?

ZÉ SERENO – Pois tá vindo pra cá um tal de Coronel que vai me fazê um teste...

NETO – Teste de quê?

ZÉ SERENO – e num é de valentia?

NETO – E eu que sei? Quem te disse isso?

ZÉ SERENO – Pois num foi Enésimo?

NETO – Então lascou-se...

ZÉ SERENO – Lascou-se de verde e amarelo.

NETO – A tua sorte é que tu é amigo do quengo mais ligeiro do sertão e agora com

certificado

ZÉ SERENO – Tu falou uma biblioteca eu num entendi um livro.

NETO – É por isso que EU sou o mais sabido do sertão! E se acalme, pois a gente vai... (não

consegue completar o raciocínio) tu tem que (engasga) é que...

ZÉ SERENO – Ave Maria homem, que diabo é isso?

NETO – Zé, as ideias se secaram, se foram, se escafederam.

ZÉ SERENO – E como é que é isso?

NETO – Se foi o quengo mais ligeiro... se foi as inventices, as gaitices...

OS DOIS SE SENTAM A LUZ CAI EM RESISTÊNCIA

FIM

Fundação Biblioteca Nacional

Nº do Registro: 424.753 Livro: 794 Folha: 413

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