O SOM E A FÚRIA APRESENTA CARTAS -...

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CARTAS DAGUERRA O SOM E A FÚRIA APRESENTA E MARGARIDA VILA-NOVA COM MIGUEL NUNES UM FILME DE IVO M. FERREIRA

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CARTASDA GUERRA

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CARTASDA GUERRABA S E A D O NA S CA RTA S DA G U E R R A D E A N T Ó N I O L O B O A N T U N E SD ’ e s t e v i ve r a q u i n e s t e p a p e l d e s c r i p t o , o r g a n i z a ç ã o M a r i a J o s é e J o a n a L o b o A n t u n e s

A F O N T E

INTRODUÇÃO AO LIVRO por Maria José e Joana Lobo Antunes

As cartas deste livro foram escritas por um homem de 28 anos, na privacidade da sua relação com a mulher, isolado de tudo e de todos durante dois anos de guerra colonial em Angola, sem pensar que algum dia viriam a ser lidas por mais alguém. Não vamos aqui descrever o que são estas cartas: cada pessoa irá lê-las de forma diferente, seguramente distinta da nossa. Mas qualquer que seja a abordagem, literária, biográfica, documento de guerra ou história de amor, sabemos que é extraordinária em todos esses aspectos.

A escolha de as publicar não é nossa: é a vontade expressa da nossa Mãe, destinatária e conservadora deste espólio até há pouco tempo. Sempre nos disse que as poderíamos ler e publicar depois da sua morte, e esse momento chegou agora.

Os nossos pais conheceram-se e começaram a namorar no Verão de 1966 na Praia das Maçãs. Em 1969 o nosso Pai licenciou-se em Medicina e foi chamado para a recruta, de onde viria a partir para a Guerra Colonial. Decidiram casar-se a 8 de Agosto de 1970, a nossa Mãe ficou grávida no mês seguinte e o nosso Pai partiu para Angola a 6 de Janeiro de1971.

As cartas quase diárias são interrompidas por três períodos: nas férias do nosso Pai em Lisboa (35 dias em Setembro de 1971); entre Abril e Julho de 1972, com a chegada da família a Marimba, até à altura em que a nossa Mãe adoeceu com hepatite e foi hospitalizada em Luanda; e entre Agosto de 1972 e Janeiro de 1973, com o regresso da família a Marimba. A última carta é de 30 de Janeiro de 1973, altura em que mulher e filha voltaram para Marimba, onde estiveram até ao final da comissão, em Março de 1973.

«D’este viver aqui neste papel descripto» era o título que o nosso Pai tinha escolhido para o que veio a ser o primeiro romance publicado. Na altura foi recusado pela editora e todos o conheceram como Memória de Elefante. É uma citação de uma carta de Ângelo de Lima (1872-1921) ao Prof. Miguel Bombarda. Este poeta passou vários anos da sua vida internado nos Hospitais de Conde de Ferreira, no Porto, e Rilhafoles, em Lisboa, onde foi seguido por Bombarda, e onde viria a morrer. As suas Poesias Completas foram publicadas em 1971, e foi sempre um autor muito apreciado pelo nosso Pai e um caso clínico por ele estudado; em 1974 ganhou o Prémio Sandoz de Psiquiatria com «Loucura e criação artística: Ângelo de Lima, poeta de Orpheu», trabalho apresentado à Sociedade Portuguesa de Neurologia e Psiquiatria.

As cartas que aqui se lêem são transcrições integrais dos originais, apenas com a correcção de gralhas e actualização ortográfica. Decidimos eliminar alguns nomes, usando letras que não as iniciais, para não ferir susceptibilidades das pessoas referidas ou das suas famílias.

As notas que apresentamos fazem algumas contextualizações da época e explicam parte das referências feitas nas cartas, como figuras mitológicas, algumas personagens e citações. Seria possível fazer notas muito mais extensas do que as que aqui vão encontrar, mas preferimos não o fazer. Julgamos que o interesse destas cartas vai muito além da identificação de todas as citações, poemas, livros e autores de que nelas se fala, e damos espaço ao leitor para as descobrir se assim o entender.

O glossário trata linguagem relativa a África, à guerra e a alguma gíria usada nas cartas. No texto está assinalada com asterisco a primeira ocorrência de cada palavra, para que o leitor possa encontrar o seu significado durante a leitura.

Este é o livro do amor dos nossos pais, de onde nascemos e do qual nos orgulhamos. Nascemos de duas pessoas invulgares em tudo, que em parte vos damos a conhecer nestas cartas. O resto é nosso.

Maria José Lobo AntunesJoana Lobo AntunesLisboa, Março de 2005

O F I L M E

SINOPSE

1971. António vê a sua vida brutalmente interrompida quando é incorporado no exército português, para servir como médico numa das piores zonas da Guerra

Colonial - o Leste de Angola. Longe de tudo que ama, escreve cartas à mulher à medida que se afunda num cenário de crescente violência. Enquanto percorre diversos aquartelamentos, apaixona-se por África e amadurece politicamente.

A seu lado, uma geração desespera pelo regresso. Na incerteza dos acontecimentos de guerra, apenas as cartas o podem fazer sobreviver.

FICHA ARTÍSTICA

António

Maria José

Major M.

Capitão

Alferes Eleutério

Cabo Hilário

Cabo Carica

Alferes Professor

Soldado Ferreira

Catolo

Miguel Nunes

Margarida Vila-Nova

Ricardo Pereira

João Pedro Vaz

Simão Cayatte

Isac Graça

Francisco Hestnes Ferreira

João Pedro Mamede

Tiago Aldeia

Orlando Sérgio

FICHA TÉCNICA

Realizador

Argumento

Director de Fotografia

Director de Som

Decoração

Guarda-roupa

Caracterização

Assistente de realização

Montagem

Montagem de som e mistura

Correcção de cor

Director de produção

Co-produtores

Produtores

Ivo M. Ferreira

Ivo M. Ferreira & Edgar Medina

João Ribeiro

Ricardo Leal

Nuno G. Mello

Lucha d’Orey

Blue

João Pinhão

Sandro Aguilar

Tiago Matos

Paulo Américo

Joaquim Carvalho

Georges Schoucair & Michel Merkt

Luís Urbano & Sandro Aguilar

E N T R E V I S T ACOM O REALIZADOR

A ideia para fazer este filme nasceu quando ouviu uma pessoa próxima de si a ler cartas de amor escritas por um jovem médico, Alferes Miliciano, durante a guerra, para a sua mulher. Foi por esse paralelo de amor e, sobretudo, pela oralidade que o filme começou?

Tinha vontade de trabalhar a matéria da Guerra Colonial. Só não sabia como, ou se isso alguma vez aconteceria. Um dia, cheguei de viagem e, quando entrei em casa, ouvi a minha mulher a ler as Cartas da Guerra [“D’este viver aqui neste papel descripto - Cartas da guerra”] de António Lobo Antunes, para a sua barriga, onde ainda estava o meu filho Martim. Gosto de contadores de histórias e pensei que era uma história magnífica para contar e filmar: um amor arrebatador, do qual nasce um fruto – uma gravidez –, brutalmente interrompido em 1971 por um Estado que empurrava maridos e filhos para uma guerra, na qual (quase) ninguém acreditava. Os seus protagonistas ganhavam consciência política e o jovem médico tornava-se escritor. O coro cantava o agonizar de um povo e de todo um país atirado para uma guerra estúpida, injusta e absolutamente incompreensível. Ousei, desta maneira, tocar numa História recente de Portugal, da qual ninguém gosta de falar. Era também uma forma de mostrar a união desse amor, nas palavras escritas e lidas, apesar da distância física entre os dois?

As cartas e o filme acompanham o jovem alferes-médico a tornar-se num dos maiores escritores de sempre - António Lobo Antunes -, mas a personagem aparentemente ausente, Maria José, a sua mulher e receptora das cartas (aerogramas), esteve sempre muito presente no livro, no argumento e no filme. Essa intangibilidade era uma matéria de trabalho que me interessava e aprendi com ela durante todo o processo. O espaço entre quem escreve uma carta e quem a lê, esse impasse, acaba por criar uma espécie de personagem intermédia (uma nomenclatura de João Brites!). As imagens de Maria José são projecções de António: dos seus pensamentos, dos seus sonhos, das suas memórias… Mas Maria José é, também, uma personagem concreta que tem um corpo, apesar de ser difícil tocá-la, ao aparecer e desaparecer, sem ligação com a câmara. Talvez seja esse espaço que eu mais gostei de descobrir no filme. Filmo-a como se estivesse prestes a desaparecer, como se fosse alguém, que encontrássemos pelos caminhos da memória, criada pelas palavras das cartas. O filme pode ser descrito como um filme de guerra, porque há uma guerra - uma guerra que realmente aconteceu. No entanto, há algo muito forte neste filme: a ideia de querer encontrar vida no meio disso tudo. Era esse um dos motores que tinha ao fazer este filme?

Era uma das coisas que mais me interessava: as “cartas-jangada”. Alguém que, para sobreviver, tem de inventar um mundo, um vínculo onde seja suportável a existência. Ninguém desiste de viver quando tem de lutar por isso todas as horas do dia.

Não vivi nenhuma guerra, mas acho que consigo perceber essa sensação. Para além disso, interessava-me a progressão da personagem do soldado nesse contexto: alguém que avança e recua, nos dois anos de guerra, mas que vai crescendo. A história de alguém que se vai tornando escritor e homem ao mesmo tempo. É na guerra, apesar de tudo, que a personagem cresce, e isso interessava-me imenso: ver alguém a confrontar-se com aquela situação e a encontrar

eventualmente uma posição política, assim como a sua vontade de viver e escrever, no meio de uma situação desesperante. Um dos maiores cuidados que tive foi na abordagem da intimidade das pessoas, daquele casal e das suas cartas de amor verdadeiras. E, no entanto, quando se faz uma adaptação, mesmo que seja muito fiel ao material de origem, existe sempre a perspectiva de quem está a adaptar.

O filme é a minha interpretação de tudo isso. O preto-e-branco é usado para criar um filtro de distanciamento em relação à realidade do material de origem, para me apropriar da matéria. Foi necessário para ser também o meu filme.

Como foi a colaboração com António Lobo Antunes e a sua família?

Só fiz o filme com a permissão das suas filhas Maria José e Joana, nunca o teria feito de outra forma. Eu, o Edgar Medina e os produtores avançámos conscientes da força e da fragilidade de tudo. Um compromisso: a elegância do tratamento da matéria. Ficaram coisas do quotidiano, também, por exemplo a maneira como Lobo Antunes organiza os cigarros quando está a escrever. Por outro lado, estas não eram cartas que ficaram na intimidade, estava a pegar num livro que tinha sido publicado. O filme de guerra é um género estabelecido na história do cinema. Imagino que tenha visto outros filmes, a título de exemplo, como referências para aquilo que queria ou não fazer. Há uma certa beleza neste filme, um cuidado, aliás, de procurar a beleza no meio da guerra. No entanto, pode também ser uma ideia perigosa. Que cuidados existiram para que não se caísse em algo estetizante?

A beleza de que fala surge naturalmente da elegância com que se trata o assunto, e de como se filma quando se está apaixonado pela matéria, pelos planos, pela vida. No entanto são necessários alguns cuidados, nomeadamente no que toca ao décor, na filmagem das situações mais rápidas ou fragmentadas, na inserção de elementos históricos ou visuais mais identificáveis. Existe o perigo de se cair no lugar comum. Queria fazer um filme que falasse sobre a guerra, mas não queria filmar cenas tradicionais, com um tiro de um lado, um tiro do outro… As minhas referências são as que existem sempre nestes casos. Terrence Malick, com certeza, e o uso da voz-off, “Tabu” de Miguel Gomes, porque olha para África a preto-e-branco, documentários sobre a Guerra Colonial, “Apocalypse Now”… Há algumas coisas em comum com o nosso trabalho neste filme, sobretudo as viagens interiores das personagens. Ao falar do meu filme com um dos meus mestres, Manuel Mozos, falávamos sempre de muitas referências... Mas nunca quis imitar nada, nem gosto de exercícios de estilo. O que existe em comum, tem a ver com uma questão de géneros no cinema, e as guerras partilham sempre qualquer coisa. Há coisas que são válidas tanto nas guerras da Argélia, do Vietname, como na Guerra Colonial Portuguesa.

Aquilo que acaba por conduzir este filme, no fundo, são as cartas.

Absolutamente, mas também a investigação junto de pessoas que integraram aquele batalhão, as muitas entrevistas e as pesquisas nos arquivos militares. Parece existir todo um trabalho à volta da ideia de distância, não só nas cartas entre duas pessoas apaixonadas, mas também porque aquele soldado não está sozinho, está rodeado de outros. E cada um desses soldados vive a sua distância: tanto em relação a uma outra pessoa amada, como em relação a uma ideia de país que eles amam e que, sabemos nós por estarmos a viver o futuro deles, já não existe.

Justamente. Quis retratar a agonia e o drama colectivo de todo um país. O filme também foi inspirado em pessoas que estiveram lá, pessoas que nunca tinham visto um automóvel antes de serem recrutas e que, de repente, encontravam-se numa situação de guerra. Como é que se pode retirar alguém da sua vida e colocá-la numa situação dessas? No filme, ouve-se a voz de Marcello Caetano a apelar aos homens para defender a pátria dos seus inimigos Mas em 1971, era muito difícil sustentar essa ideia. Todo o país via a desgraça em que se estava a cair. A questão que se coloca é: porque é que este filme faz sentido agora? Julgo que há uma série de ideias que passam facilmente para os dias de hoje. Passaram mais de 40 anos, a história não deve ser esquecida, já é altura de falarmos no assunto. Penso que isso é algo que caracteriza, também, os seus filmes anteriores. Como se estivéssemos, através da história dos sentimentos daquelas personagens, a olhar para a história do país.

Sim. Quis misturar a personagem que escreveu aquelas cartas com os outros soldados. Vivem todos a mesma situação, tal como uma população inteira. O filme joga com o que os personagens viveram, como vivem o presente – a guerra - e o que procuram no futuro. Apesar de existir um tom de despedida em várias coisas, de sentirmos a solidão e a distância daqueles homens, há também esse tom de esperança. O que é que acaba por salvar aqueles homens? O amor?

A sobrevivência, a esperança. E sim o amor. Neste caso, o único vínculo que existe com a vida vem daquelas cartas, como se fosse a única coisa que existisse., a esperança de reencontrar a

pessoa amada.

Como na cena em que um soldado canta Puccini, “Un bel di vedremo”.

Sim. O ser humano tem uma capacidade de sobrevivência excepcional. A cena com Puccini veio de uma história de alguém que esteve naquele batalhão. Há muitas coisas que completam a essência das cartas: os livros de Lobo Antunes, as crónicas dele, as histórias de camaradas seus. Há uma guerra para cada pessoa que a vive, cada memória é diferente. E ninguém fala da guerra quando se está na guerra. Politicamente, foi assim que se decidiu tratar desses assuntos, sem debates. Para mim, era a oportunidade de pegar no assunto e torná-lo, para além de um filme português, num filme meu.

As cartas de amor têm sempre um lado intemporal e romântico, mas aqui, partem de uma situação concreta. Filmar a guerra de maneira realista é uma justa homenagem, enquanto adaptação, à sua fonte original.

Trabalhei com os actores de forma a terem contacto com os comandos, em contexto de combate, nem que fosse para saberem pegar numa arma. Pedi para escreverem aerogramas a uma pessoa amada e que respondessem em seu nome. Queria que criassem um mundo dentro das suas cabeças, que tivessem sempre presente o universo que estávamos a trabalhar.Falávamos uns com os outros, sobre as personagens que se estavam a desenhar, e eles iam conhecendo-se melhor uns aos outros. Todos se sentiam atraídos pela história, pelo contexto histórico. Comecei a filmar com uma vontade indómita de levar coisas à frente, de enfrentá-las numa realidade muito dura. Algo que me agradou, ao fazer o filme, foi essa vontade de filmar e de não temer. O cinema só existe assim.

Exactamente.

Entrevista conduzida por Francisco ValenteO Som e a Fúria, Lisboa, Janeiro de 2016

O O L H O F L U T U A N T EPOR RUI CARDOSO MARTINS

“Tenho uma memória terrível. Lembro-me de tudo”. António Lobo Antunes diz isto em entrevistas, mas também o diz à mesa de almoço com amigos. Porque é verdade. Há outra frase irmã desta num dos seus romances, já não sei em qual, nem agora interessa, mas penso que é dita pelo próprio Deus: “O Inferno consiste em lembrarmo-nos a eternidade inteira.”

As cartas que escreveu em Angola são inesquecíveis a vários níveis. A brutalidade da Guerra Colonial, que arranja forma de subir pelos poros do pudor e das cautelas militares do jovem médico que envia os aerogramas para Lisboa. A beleza das descrições de África, a força da criação poética, a inteligência crítica, o crescimento político, o sentido de humor, o domínio da língua e a preparação literária do autor que anunciavam (quase) tudo que aí vinha. A inquebrantável entrega a um amor, a mulher que acaba de se casar com alguém que está convencido de que vai morrer na guerra (mas não lho pode dizer) e que deseja ao menos, na solidão desesperada do soldado, deixar um filho no mundo. E o facto de estes textos terem sido escritos à pressa na frente de guerra, durante dois anos, no intervalo de batalhas, operações no mato, cirurgias improvisadas, vacinações, voos, tédios estéreis, suicídios, massacres, fomes, doenças, frios e calores. António Lobo Antunes nunca pensou, há mais de quarenta anos, que os seus aerogramas de amor seriam publicados em livro, muito menos transformados em filme.

Já entrei muito nos adjectivos e numa ou noutra inconfidência. Só mais um pouco, peço desculpa mas não sei fazer isto melhor: há pouco tempo, o António disse-me que tinha agora lido algumas das cartas e que, afinal, não estavam tão mal como pensava. Mas leu-as na edição espanhola, para não lhe parecerem tão suas, ou melhor, tão de um escritor de quem ele ouviu falar.O Inferno consiste no quê?

Tive a sorte de ver o filme Cartas da Guerra numa sessão privada — sala pequena, só eu e uma pessoa de quem gosto muito a meu lado — e ao sair queria saber: como é que isto será visto pelos soldados que estiveram em África?

Tive a sorte de ter a resposta a 25 de Abril de 2016, num luminoso Dia da Liberdade, em grande ecrã, e numa sala cheia de Lisboa. No fim, vi homens a chorar com soluços anacrónicos de miúdo, e homens que riam ao abraçar o realizador Ivo M. Ferreira: Aquilo era mesmo assim!, disse um.Só faltam os jacarés!, disse outro.

Quando lhe contei isto, no entanto, António Lobo Antunes disse-me (à distância do telefone) que afinal os jacarés não se viam em Angola, só o olho do jacaré a brilhar no rio, um olho flutuante.Um olho flutuante. É uma boa imagem para Cartas da Guerra, com argumento do próprio Ivo M. Ferreira e de Edgar Medina, produzido por Luís Urbano d’O Som e a Fúria, baseado nos

aerogramas que António Lobo Antunes enviou à sua mulher Maria José (1946-1999). E — para fechar esta mínima ficha técnica — coligidas pelas filhas Maria José e Joana Lobo Antunes, nas edições Dom Quixote.

O olho do espectador — e o cérebro e o coração — flutuam sobre estas cartas íntimas de amor escritas, repito, sem pensar que entrariam num livro ou filme. Um homem apaixonado, que não sabe se vai voltar vivo, com uma filha que não vê nascer: recebe a notícia na mata. Descobrimos com estas imagens, de uma forma nova, o que uma guerra sem sentido desfaz à juventude, e o que faz a um grande escritor que se está a fazer. A maneira como o oficial médico se apercebe de que a guerra o está a mudar por dentro. Faça o que fizer, o futuro está condenado. Ele tem uma memória terrível. E um dia mais tarde, em Lisboa, desviado para narrador de romance (Memória de Elefante), tentará de novo escrever a essa mulher:

“Amo-te tanto que te não sei amar, amo tanto o teu corpo e o que em ti não é o teu corpo que não compreendo porque nos perdemos se a cada passo te encontro, se sempre ao beijar-te beijei mais do que a carne de que és feita, se o nosso casamento definhou de mocidade como outros de velhice, se depois de ti a minha solidão incha do teu cheiro, do entusiasmo dos teus projectos e do redondo das tuas nádegas, se sufoco da ternura de que não consigo falar, aqui neste momento, amor, me despeço e te chamo sabendo que não virás e desejando que venhas do mesmo modo que, como diz Molero, um cego espera os olhos que encomendou pelo correio.”

Anos antes, no filme, pela voz de Maria José (Margarida Vila-Nova), estamos às vezes no maravilhamento puro, como na bela carta de 14/07/1971:

“Adoro-te minha gata de Janeiro meu amor minha gazela meu miosótis minha estrela aldebaran minha amante minha Via Láctea minha mãe minha esposa minha margarida meu gerânio minha princesa aristocrática minha preta minha branca minha chinesinha minha Paulina Bonaparte minha história de fadas minha Ariana minha heroína de Racine minha ternura meu gosto de Luar meu Paris minha fita de cor meu vício secreto minha torre de andorinhas três horas da manhã minha melancolia minha polpa de fruto meu diamante meu sol meu copo de água minhas Escadinhas da Saudade minha morfina ópio cocaína minha ferida aberta minha extensão polar minha floresta meu fogo minha América e meu Brasil minha vela acesa minha candeia minha casa meu lugar habitável minha mesa posta minha toalha de linho minha cobra minha figura de andor (...).”

E por aí vai até à posse inteira do Mundo pelo corpo e alma da sua mulher ausente.

Pelo meio, temos a estupidez política do regime imperial de Salazar e os assassínios da sua PIDE, a fraude hipócrita da chamada “primavera marcelista”, enfim, o cardápio completo de uma das páginas mais duras da história de Portugal.

Não vou dizer mais sobre o filme, não consigo sintetizar experiência tão bem produzida de texto, de actores (Miguel Nunes como Lobo Antunes, por exemplo), dos cenários naturais angolanos, da música, da luz e escuridão da fotografia a preto e branco. Aposto que quase todos os portugueses e (agora fala-se assim, mas com o António é bem verdade...) todas as portuguesas, quererão assistir a Cartas da Guerra. Nem sequer os que só vêem telenovela ficarão de fora de obra tão bela. Fraco slogan, desculpem. Mas preparem-se, não é a novela das nove da noite, aproveitem o Verão, guardem as lágrimas verdadeiras no saquinho.

Será possível entender o alcance de mais frases de Lobo Antunes, lanternas que mergulham e reemergem nos seus livros e entrevistas: “Não se sai vivo de uma cruz.”

“É difícil pedirmos uma mentira e darem-nos a verdade.”

E, já agora, porque todo o bom filme de guerra tem silêncios e qualquer coisa de western: “É sempre ao crepúsculo que as desgraças começam.”

Alguns dos velhos camaradas do jovem médico de batalhão eu conhecia, de um almoço há muitos anos. Um deles, aliás, tinha-me entregue em mãos um pijama vermelho que lhe fora oferecido pelo médico, e que assim aparece na Fotobiografia de António Lobo Antunes, escrita por Tereza Coelho.

Um pijama na guerra. Espreitar para dentro de uma bota porque às vezes há coisas é outra frase do escritor.

Espreitar para dentro da bota de soldado desta longa-metragem: está lá muito do que somos e do que vamos ser.

António perguntou-me entretanto, várias vezes, se o filme é mesmo bom. Não gosto de me repetir, senão para dizer coisas novas (acontece na chamada vida). Tenho que respeitar o perigo — para um amigo — de reviver num ecrã liso, em 105 minutos, tantas semanas tortas, anos perdidos que ainda aí estão, densos como a cacimba. Lobo Antunes é um memória de elefante, como sabem. E um sentimental de génio. Mas não desisto de o convencer. Por isso, na próxima ocasião ponho um par de olhos de jacaré, mas olhos em que já flutuaram lágrimas verdadeiras, acreditem, e digo-lhe:

António, é tão bom que é melhor não ver.

Rui Cardoso MartinsJunho de 2016

B I O G R A F I A S

IVO M. FERREIRA

Nasceu em Lisboa, em 1975. Filho do actor e encenador Cândido Ferreira e da actriz Carmen Marques, cresceu no seio teatral. O gosto pelo cinema instala-se desde muito novo: depois do Curso de Imagem e Comunicação Audiovisual da Escola de Artes António Arroio, ingressa na London Film School, e na Universidade de Budapeste, que interrompe para viajar.

Numa viagem à China, co-realiza e produz o seu primeiro filme documentário. É depois convidado pela Expo 98 a realizar um segundo filme.

Uma breve mas marcante passagem por Angola, em colaboração com o Teatro Elinga, desperta o seu interesse pelo país e pelos PALOPS, onde realiza documentários antropológicos. Além das curtas e dos documentários, Ivo realizou duas longas-metragens: Águas Mil em 2009, que estreou no Festival de Cinema de Roterdão, e Em Volta em 2002, apresentado no Festival Internacional de Cinema de Banguecoque.

Neste momento, vive em Macau, República Popular da China, o que se reflete no seu filme precedente, encomendado por Guimarães 2012 - Capital da Cultura.

CARTAS DA GUERRA é a sua terceira longa-metragem e o seu maior projecto.

F ILMOGRAFIA

• Na Escama do Dragão (Longa metragem, 2013)

• O Estrangeiro (Curta metragem, 2010)

• Águas Mil (Longa metragem, 2009)

• Vai Com o Vento (Documentário, 2009)

• Fios de Fiar (Documentário, 2006)

• Salto em Barreira (Curta metragem, 2004)

• À Procura de Sabino (Documentário, 2003)

• Soia di Príncipe (Documentário, 2003)

• Em Volta (Longa metragem, 2002)

• Angola em Cena (Documentário, 2001)

• O Que Foi? (Curta metragem, 1998)

• O Homem da Bicicleta - Diário de Macau (Documentário, 1997)

ANTÓNIO LOBO ANTUNES

António Lobo Antunes nasceu em Lisboa em 1942. Licenciou-se em Medicina, com especialização em Psiquiatria.

Em 1971 Lobo Antunes, parte para Angola ao serviço do Exército Português na Guerra Colonial (1961-1974), e regressa a Lisboa em 1973. A experiência enquanto oficial do exército na Guerra do Ultramar marcou profundamente os seus primeiros romances.

Em 1979, publica os seus primeiros romances, Memória de Elefante e Os Cus de Judas. Hoje, Lobo Antunes conta com mais de 30 livros publicados e tornou-se um dos escritores portugueses mais lidos, traduzidos e premiados em todo o mundo.

António Lobo Antunes continua a escrever.

MARGARIDA VILA-NOVA

Maria José

Margarida Vila Nova, estreou-se no cinema com 6 anos, em 1988, com o filme Dédé de Jean Louis Benoît. Desde então nunca mais parou.

No teatro estreou-se em 2001 e afirmou-se com o sucesso de ConfissõesdeAdolescentes, que produziu e interpretou. Representou desde Shakespeare a Heinrich von Kleist, passando por Luísa Costa Gomes e Frederico Garcia Lorca, autor do seu último trabalho O Público, vencedor de um Globo de Ouro para Melhor Espetáculo de Teatro em 2013.

Popularizou-se na televisão como protagonista de várias novelas e telefilmes. A sua última participação foi na novela Mar Salgado, exibida na SIC entre 2014 e 2015, no papel de Leonor.

FILMOGRAFIA (selectiva)

• Mistérios de Lisboa, Raul Ruiz (2010)

• Filme do Desassossego, João Botelho (2010)

• A Corte do Norte, João Botelho (2008)

• Corrupção, João Botelho (2007)

• O Milagre Segundo Salomé, Mário Barroso (2004)

• A Falha, José Mário Grilo (2000)

MIGUEL NUNES

António

Nascido em 1988. Iniciou a carreira enquanto actor de televisão com 12 anos. Ganhou popularidade quando se junto ao elenco da novela Morangos com Açúcar.

Em 2009, ingressou na Escola Superior de Teatro e Cinema, onde obteve o seu diploma de Teatro - Actor.

Fez parte do elenco principal do filme Cisne, da aclamada realizadora Teresa Villaverde, desempenho que lhe valeu o Prémio Jovem Talento do Lisbon & Estoril Film Festival ‘11. Depois disso trabalhou com realizadores como João Pedro Rodrigues e Dinis Costa.

FILMOGRAFIA (selectiva)

• A Rapariga das Luvas Brancas, João Botelho (2016)

• O Fantasma do Novais, Margarida Gil (2012)

• Cisne, Teresa Villaverde (2010)

• E o Tempo Passa, Alberto Seixas Santos (2009)

• O Que Há de Novo no Amor?, Hugo Martins (2009)

O SOM E A FÚRIA

Produtora

O Som e a Fúria surge em 1998, para se dedicar à produção cinematográfica, estabelecendo um vínculo forte com o cinema de autor e independente. Destacou-se, nos seus inícios, pela promoção de uma nova geração: Sandro Aguilar (A Zona, 2008), Miguel Gomes (Aquele Querido Mês de Agosto, 2008) ou João Nicolau (A Espada e a Rosa, 2010). A qualidade das propostas cinematográficas e a respectiva valorização do universo singular dos seus autores, são as traves mestras desta Produtora.

As suas longas metragens marcaram presença em festivais como a Berlinale, Cannes – Quinzena dos Realizadores, Locarno ou Veneza, entre outros, tendo sido várias delas premiadas. Conheceram estreias comerciais em França, Alemanha, Reino Unido, Bélgica, Suíça, Brasil, Argentina, Chile, México, Estados Unidos, Japão, entre outros.

A distribuição das obras que produz surge naturalmente em 2003. Desde 2008, filmes como Aquele Querido Mês de Agosto, A Religiosa Portuguesa, Ruínas, Tabu e As Mil e Uma Noites marcam presença habitual nas listas de melhores filmes do ano em publicações internacionais como “Cahiers du Cinema”, “Sight & Sound”, “The Guardian”, “New Yorker”, “New York Times”, “Film Comment” ou “Clarin”.

FILMOGRAFIA (selectiva)

• Cartas da Guerra, Ivo Ferreira (Longa metragem, 2016)

• Eldorado XXI, Salomé Lamas (Documentário, 2016)

• John From, João Nicolau (Longa metragem, 2015)

• As Mil e Uma Noites, Miguel Gomes (Longa metrageme, 2015)

• Volta à Terra, João Pedro Plácido (Documentário, 2014)

• Campo de Flamingos sem Flamingos, André Príncipe (Documentário, 2013)

• Terra de Ninguém, Salomé Lamas (Documentário, 2012)

• O Gebo e a Sombra, Manoel de Oliveira (Longa metragem, 2012)

• Tabu, Miguel Gomes (Longa metragem, 2012)

• A Espada e a Rosa, João Nicolau (Longa metragem, 2010)

• A Religiosa Portuguesa, Eugène Green (Longa metragem, 2009)

• Ruínas, Manuel Mozos (Documentário, 2009)

• Aquele Querido Mês de Agosto, Miguel Gomes (Longa metragem, 2008)

• A Zona, Sandro Aguilar (Longa metragem, 2008)

• A Cara que Mereces, Miguel Gomes (Longa metragem, 2004)

v en d as i nter n a c i o n a is c o m o a po i o d istr i b u i ç ã o

pr o d uzi d o po r

em ass o c i a ç ã o c o mfi n a n c i a d o po r c o m a pa rti c i pa ç ã o d e

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