O SONÂMBULO Antonio Carlos Vera Lucia Marinzeck PDF

89
1 O Sonâmbulo Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho Espírito António Carlos Daniel, que é Nic, o sonâmbulo, tem medo de dormir. Durante o sono, uma força estranha toma conta do seu corpo – e tudo pode acontecer... Entre as sombras, um vulto movimenta-se atormentado. Vítimas da violência, mulheres indefesas perdem a vida na madrugada, nas mãos de um cruel e insaciável assassino. Ao amanhecer, os sapatos de Daniel estão sujos de lama e o seu quarto foi revirado. Desesperado, não sabe o que fazer... Até quando a noite vai esconder tantos crimes misteriosos? Quem é esse homem tão estranho, que não é capaz de declarar o seu amor à única mulher por quem se apaixonou? Sumário Capítulo 1 — Um novo amigo Capítulo 2 — Na fazenda Capítulo 3 — Orfanato Capítulo 4 — Sonambulismo Capítulo 5 — Acontecimentos trágicos Capítulo 6 — O sanatório Capítulo 7 — Um amor Capítulo 8 — De volta ao sanatório Capítulo 9 — Religiões são setas no caminho Capítulo 10 — A mudança Capítulo 11 — Lembranças Capítulo 12 — Perdão Capítulo 13 — Decisão

description

O SONÂMBULO Antonio Carlos Vera Lucia Marinzeck PDF

Transcript of O SONÂMBULO Antonio Carlos Vera Lucia Marinzeck PDF

  • 1

    O Sonmbulo Vera Lcia Marinzeck de Carvalho

    Esprito Antnio Carlos

    Daniel, que Nic, o sonmbulo, tem medo de dormir. Durante o sono, uma fora estranha toma conta do seu corpo e tudo pode acontecer... Entre as sombras, um vulto movimenta-se atormentado. Vtimas da violncia, mulheres indefesas perdem a vida na madrugada, nas mos de um cruel e insacivel assassino. Ao amanhecer, os sapatos de Daniel esto sujos de lama e o seu quarto foi revirado. Desesperado, no sabe o que fazer... At quando a noite vai esconder tantos crimes misteriosos? Quem esse homem to estranho, que no capaz de declarar o seu amor nica mulher por quem se apaixonou?

    Sumrio Captulo 1 Um novo amigo Captulo 2 Na fazenda Captulo 3 Orfanato Captulo 4 Sonambulismo Captulo 5 Acontecimentos trgicos Captulo 6 O sanatrio Captulo 7 Um amor Captulo 8 De volta ao sanatrio Captulo 9 Religies so setas no caminho Captulo 10 A mudana Captulo 11 Lembranas Captulo 12 Perdo Captulo 13 Deciso

  • 2

    Captulo 1 Um Novo Amigo

    Atendendo ao pedido de uma amiga que reside na mesma colnia que eu, fui visitar um interno encarnado num sanatrio judicirio. Deparei-me com um prdio grande, em reforma e envolto em fluidos de angstia, medo e tristeza. Normalmente, em lugares onde doentes se agrupam, a dor resulta nesses tipos de fluidos que citei, tanto que, actualmente, vejo pessoas alegrando esses ambientes e com bons resultados. Bons pensamentos, optimismo, oraes e alegria produzem energias salutares aos que se recuperam. Acima da construo material havia outro prdio, que somente poucas pessoas que esto no plano fsico vem. Era um posto de socorro, local de moradia de socorristas que trabalham l ajudando os encarnados enfermos e os recm-desencarnados. Esse prdio do plano espiritual era bonito, moderno, espaoso, claro e com muitas plantas contrastava com a construo da matria densa. Subi as escadas e bati na porta do posto de socorro. Enquanto aguardava, observei o local. A escada que acabara de subir iniciava-se no ptio ao lado do porto de entrada para o sanatrio. A porta minha frente era simples e de tom claro. Poderia ter volitado e entrado no posto. Mas, quando somos apenas visitantes, normalmente no fazemos isso. No aguardei muito tempo; a porta se abriu e uma senhora sorridente me cumprimentou. Expliquei o motivo da minha visita e ela convidou-me a entrar. Atravessei um pequeno hall e deparei com a sala de recepo muito arrumada. A senhora passou para o lado de trs de um balco, pegou uma ficha e leu alto: Geraldino, sessenta e trs anos, foi casado... deu-me as informaes de que eu necessitava. Agradeci. A atendente gentilmente ofereceu: Antnio Carlos, voc quer que um dos nossos trabalhadores o acompanhe? Sim, quero obrigado respondi agradecido. Ela se afastou para logo retornar acompanhada de um homem jovem e sorridente. Esse Daniel disse ela nos apresentando. Cumprimentamo-nos. Vou lev-lo at Geraldino. Acompanhe-me, por favor falou Daniel. Descemos por uma escada interna at o hospital dos encarnados. Havia muito movimento: enfermeiras e doentes iam e vinham pelos corredores. Chegamos a um pequeno ptio cimentado e paramos perto de um banco em que estava sentado um homem que aparentava ser muito idoso. Este Geraldino! Fale-me mais sobre ele - pedi. J faz trinta e quatro anos que ele est aqui. Alm das doenas mentais, tem outras graves, est muito debilitado. Acha que ir desencarnar logo? - indagou Daniel. Sua filha Jacy me pediu para v-lo - respondi. Ela acredita que ele ir logo mudar de plano.

  • 3

    Quer muito que o pai possa merecer um socorro. Pediu-me para ajud-lo. Jacy a filha que ele matou! - expressou Daniel. Percebendo que fora indelicado, tentou suavizar o que dissera, sem, entretanto, conseguir: Em quem ele bateu e que desencarnou! Geraldino recorda esses factos? - perguntei. Sempre! Ele lembra muito, s vezes com desespero, outras, com angstia e remorso. E ainda tem raiva da esposa. Voc sabe onde a mulher dele est? - curioso Daniel quis saber. A esposa de Geraldino reencarnou - respondi. Est tendo a abenoada oportunidade de um recomeo. Voc sabe o que ele pensa? Todos os que vm aqui para aprender a ser til, tornar-se um atendente e, no futuro, um socorrista, analisam Geraldino por dois motivos: primeiro porque ele tem uma histria interessante e triste, segundo porque pensa muito numa coisa: na tragdia. Estou trabalhando nessa rea em que ele est e assim sei o que ocorreu com ele. Daniel fez uma pausa; depois, continuou a falar: Geraldino era casado e tinha dois filhos: um rapaz e uma moa, a Jacy. Era trabalhador, honesto, porm ia muito num barzinho perto de onde morava. Isso era motivo de brigas no lar. Um dia, estava com os amigos, bebendo, e estes falaram para ele que sua esposa o traa. Deram detalhes, nomes e lugares de encontros. Era mentira, e eles logo iam desmentir. Mas aconteceu um acidente na frente do bar, uma charrete atropelou um garoto. Gritos, discusses, o pai do menino queria esfaquear o charreteiro. Todos saram para ver. Geraldino afastou-se sem que os outros percebessem e foi para casa. Nervoso, impulsivo, j chegou agredindo a esposa, que revidou, aos gritos. Ele apertou o pescoo dela. A filha Jacy foi acudir a me. No conseguindo fazer com que o pai a soltasse, ela pegou uma vassoura para bater nele. Geraldino, deixando a raiva domin-lo mais ainda, jogou com fora a esposa contra a parede e atacou a filha, tomando-lhe a vassoura e golpeando-a na cabea. Resultado: as duas morreram. Os vizinhos, acostumados com os gritos e as discusses, nem se importaram. Mas os amigos de farra, quando resolvida questo entre o pai do garoto e o charreteiro, no vendo Geraldino, concluram que ele fora embora. Resolveram ir atrs dele para desmentir a histria e, quando chegaram l, viram-no assustado, sentado no cho, balbuciando palavras que ningum entendia, e as duas cadas. Ele foi preso. O filho, magoado, nunca mais quis v-lo ou saber dele. Na priso, perceberam que ele adoecera, enlouquecera. Veio para c e nunca se recuperou. Os ex-companheiros de bar tentaram dizer-lhe na priso que mentiram, mas ele no compreendeu. Nunca recebeu uma visita nesses anos todos que aqui ficou. Daniel terminou seu relato.

  • 4

    Olhei para Geraldino, que estava magro, com os cabelos brancos, curvado e com um olhar muito triste. Observe Antnio Carlos - continuou Daniel, esclarecendo-me , que ele aperta o leno na mo. s vezes pensa que est apertando o pescoo de sua mulher. Vi seus pensamentos: uma sala pequena, entre o sof e a parede, uma mulher desesperada tinha o pescoo apertado. Dei-lhe um passe. Transmiti-lhe energias benficas e desfiz seus pensamentos, fazendo-o pensar num jardim florido. Ele se acalmou e se se encostou ao banco. Quando a filha Jacy vem aqui, se ele a sente apavora-se - explicou Daniel. Jacy havia me dito isso. As duas j lhe tinham perdoado, e ela queria ajud-lo, mas no estava conseguindo. Geraldino, sentindo-se culpado, acha que a filha vem para castig-lo, para cobr-lo por t-la assassinado e se desespera. O remorso faz adoecer! - exclamou Daniel. Devemos arrepender-nos de todos os nossos erros - falei mas no deixar que o remorso nos destrua! Necessitamos compreender o erro, ter vontade de repar-lo e, se possvel, fazer o bem a quem prejudicamos. Se isso no for possvel no momento, devemos ser bons para outras pessoas. Lugares de vcios, como o bar que Geraldino frequentava, devem ter desencarnados ociosos querendo confuso. Esses desencarnados devem t-lo influenciado - opinou Daniel. Recebemos muitas influncias. Mas temos o livre-arbtrio de atender a quem queremos. Podemos concluir pela lgica quem so os indivduos com base nos locais que frequentam. Em bibliotecas esto os que querem aprender, os que gostam de leituras; em templos e igrejas, os que normalmente oram; em bares, os que apreciam a bebida etc. Admito, porm, que em todos os lugares h frequentadores de boa e de m ndole. Fiz uma pausa. Vendo que Daniel aguardava atento minha concluso, continuei a falar: Jacy me disse que seu pai escutou os amigos, acreditou neles. Com a confuso na frente do bar, saiu sem que ningum o visse. Desencarnados que ali estavam rindo incentivaram a brincadeira. At disseram a ele para tomar providncias. Como todos saram para a rua, esses desencarnados, curiosos, foram tambm. Quando aconteceu a tragdia, estavam somente os trs na casa. Geraldino, quando compreendeu que tirara a vida fsica das duas, entrou em estado de choque e adoeceu. Olhei para Geraldino, examinando-o. Ele estava com uma doena grave no corao. No sabia determinar quando, mas ele fatalmente iria sofrer um enfarte que resultaria na morte do seu corpo fsico. Voltarei noite e tentarei conversar com seu esprito quando seu corpo estiver adormecido - disse a Daniel. Vai ser difcil - Daniel explicou-me. Geraldino no de falar muito, tem um medo terrvel de quem no conhece.

  • 5

    E ele est tomando uma medicao forte para dormir, o que dificulta o afastamento do seu esprito do corpo fsico. Ento vou tentar falar com ele agora. Aproveitando que o pai de Jacy estava calmo, dei-lhe outro passe, fazendo-o adormecer tranquilo. "Sou mdico" - falei-lhe baixinho e compassadamente. Seu perisprito, afastado centmetros do corpo fsico que dormia sentado no banco, virou-se, observando-me. Continuei: "Geraldino, voc precisa pensar em Deus, nosso criador. Nosso Pai-Amoroso o ama e quer que fique bem." Sou um assassino! - falou com dificuldade. "Voc j foi perdoado! Por que insiste em condenar a si mesmo?" Matei-as! As duas sofreram! Elas vo se vingar, maltratar-me! Mereo! "Sua esposa e sua filha compreenderam-no, perdoaram-lhe e querem que voc esteja em paz." Tenho de pagar! - exclamou Geraldino e suspirou. "J no pagou? Todos os que erram e so julgados pelos seus crimes recebem uma pena, ficam presos e pagam. Voc foi condenado a vinte e seis anos, j ultrapassou essa pena. Ningum lhe cobra nada." Sou infeliz! Matei-as! - repetiu muitas vezes. "Sinta-se perdoado!" - insisti. Vendo-o cansado, no insisti mais. Geraldino acordou, levantou-se tranquilo, colocou no bolso o leno que segurava e, vendo um enfermeiro, aproximou-se dele e indagou: Voc acha que Deus nos perdoa? Ser que j paguei pelo meu crime? Infelizmente o trabalho ali era muito, e a equipe de encarnados nem sempre tinha tempo para dar ateno aos enfermos. Tentei instruir mentalmente o enfermeiro indagado e este atendeu ao meu apelo e respondeu: Sim, Deus nos perdoa sempre porque nos ama! E o senhor j pagou pelo seu crime! No deve se culpar mais! O enfermeiro afastou-se e Geraldino ficou pensando: "Posso ter pagado, mas estou vivo, e elas, mortas!". "Morrer no acabar! Vivemos em outro lugar quando temos nossos corpos fsicos mortos!" - transmiti a ele, olhando firme em seus olhos. Quando se morre, vive-se em outro local! - falou Geraldino baixinho, sentando-se no banco novamente. Que bom! - exclamou Daniel. Nunca vi Geraldino assim tranquilo. Pela primeira vez aceitou uma boa sugesto! Antnio Carlos, Geraldino doente do corpo, e seu perisprito tambm aparenta estar enfermo. Essa doena reflexo de qual: do corpo ou do esprito? Esprito harmonizado tem corpo perispiritual e fsico sadios. Pelo remorso, ele fez adoecer o perisprito e este transmitiu o mal ao corpo fsico.

  • 6

    Quando ele se sentir perdoado e compreender que errou, mas que pagou com a dor esse erro poder sentir-se equilibrado. Seu perisprito se harmonizar, mas o corpo adquiriu uma doena incurvel e no se recuperar mais. Geraldino, quando desencarnar, dever ser submetido a um tratamento para se livrar do reflexo do fsico. Quando nos sentimos quites com as Leis Divinas, a recuperao mais fcil. Marquei com Daniel de ir outras vezes naquele mesmo horrio, logo aps o almoo do sanatrio, para visitar Geraldino. Escolhemos essa hora porque era o momento em que ele ia para o ptio e costumava sentar-se num banco. O pai de Jacy me aceitou, no tinha medo de mim. Eu lhe dava passes e ele adormecia tranquilo, afastava seu perisprito um pouquinho do corpo fsico, que dormia, e ento conversvamos. Depois de algumas conversas, perguntei-lhe: "Geraldino, sua filha Jacy queria tanto v-lo, abra-lo. Voc no a receberia?" Ela no tem raiva de mim? Voc tem certeza de que ela quer me ver? "Quer sim. Amanh vou traz-la." No outro dia, Jacy me acompanhou. Daniel, ao nos receber, informou: Geraldino melhorou, tem estado mais tranquilo. O mdico diminuiu seu medicamento. Jacy ficou de longe me olhando dar um passe em seu pai e ele adormecer. "Geraldino" - falei , "Jacy est aqui. Fique calmo! Receba os beijos de sua filha." Minha amiga aproximou-se devagarzinho. "Papai! Meu pai!" Abraaram-se. Ambos choraram. "Eu lhe perdoo, papai!" - exclamou Jacy. No mereo! - disse Geraldino emocionado. "Eu lhe perdoo!" Era emoo demais para o nosso enfermo. Jacy afastou-se, ele acordou chorando. E chorou por vrios minutos. Nenhum encarnado prestou ateno naquele choro sentido e sofrido. Quando se acalmou, fomos embora. Jacy passou a me acompanhar nas visitas. Geraldino recebia-a com alegria, deixava-se abraar, beijar e, o mais importante, sentiu-se perdoado. Indagou pela esposa e, ao saber que ela tambm lhe perdoara, alegrou-se. O progenitor de minha amiga melhorou visivelmente, sua aparncia era tranquila, sorria e estava mais socivel. Nessas visitas, Daniel e eu conversvamos bastante e tornamo-nos amigos. Antnio Carlos - Daniel me informou , Geraldino tem falado aos mdicos e enfermeiros que recebe a visita da filha. Ningum acredita. E ele est alegre e tranquilo. Daniel, no h mais razo para que eu venha mais aqui - falei. Jacy j pode vir sozinha. Agradeo-lhe pela ajuda que nos deu. Abraamo-nos prometendo nos visitar.

  • 7

    Dias depois, Jacy veio me procurar. Algum problema? - indaguei ao v-la. No com papai. Embora esteja muito doente - faz dois dias que no consegue levantar-se do leito , est tranquilo e com certeza poderei socorr-lo assim que desencarnar. com Daniel, ele est tristonho e preocupado. Eu no quis perguntar o motivo, temi ser inconveniente. Como sei que vocs dois so amigos, achei que voc poderia ajud-lo. Agradeci-lhe. No outro dia fui com Jacy visitar seu pai. Daniel nos cumprimentou sorrindo e nos acompanhou at Geraldino, que estava acamado. Observei meu amigo que, de fato, pareceu-me preocupado. Deixando Jacy com o pai, aproximei-me de Daniel. Est com algum problema, amigo? que tenho de tomar uma deciso importante e no sei como faz-lo - respondeu Daniel. Posso ajud-lo? - indaguei solcito. Pode Antnio Carlos. Se voc puder me escutar e aconselhar, ficaria muito agradecido. S que a histria longa. Gosto de histrias - falei sorrindo. Vamos marcar um encontro? Combinamos de nos encontrar naquela mesma noite, em que ele estaria de folga. Aguardei ansioso o anoitecer, na expectativa de ouvir um relato interessante.

  • 8

    Captulo 2 - Na Fazenda Na hora marcada, fui ao sanatrio. Daniel me recebeu contente e aliviado por eu ter ido. Dirigimo-nos a uma das salas, um consultrio mdico. Aqui estaremos sossegados a essa hora da noite. Antnio Carlos, Geraldino desencarnou. Seu corpo j foi para a sala do velrio e Jacy pde desligar seu esprito e lev-lo para um posto de socorro. Que bom! - exclamei. Sentamo-nos. Olhei para ele incentivando-o a contar o que o preocupava. Daniel suspirou e comeou a falar: Quando encarnado, fui um nictbata! "Nictbata" - pensei, tentando recordar se sabia o sentido dessa palavra. Daniel no esperou para saber se eu conhecia ou no o significado e explicou: Sonmbulo! Sorri e ele continuou a falar: Antnio Carlos, estou indeciso se reencarno ou no. Queria continuar como aprendiz neste trabalho no sanatrio, de que tanto gosto. Fiz planos de estudar, de preparar-me para o retorno ao plano fsico. Quando encarnar, quero ser enfermeiro, um bom profissional. Mas, ele me pediu para voltar matria densa, para reencarnarmos juntos. E eu no sei o que fazer. Daniel fez uma pausa, compreendendo que, para opinar, eu teria de saber tudo o que acontecera com ele. Sendo assim, comeou a contar: Eu no sabia o que era morte. S compreendi seu significado quando me falaram que minha me havia morrido. Com o passar dos dias, senti falta dela, do seu carinho, da sua ateno, e achei que a morte era algo muito ruim. ramos pobres, morvamos numa fazenda em que meu pai era empregado. Nossa casa era simples, sem conforto, mas gostvamos do lugar e ramos felizes. Ali havia muitas rvores, animais, ficvamos soltos - meus irmos, eu e a meninada da fazenda. Corramos e brincvamos perto das casas dos empregados. Nossa vida mudou com a desencarnao de minha me. Meu pai, nervoso, exigiu que eu, o mais velho, fizesse o servio de casa e cuidasse dos meus irmos. Eu no sabia fazer o que ele me ordenava e pela primeira vez me bateu. Chorei muito, queria minha me. Meus irmos tambm choravam, sentamo-nos desamparados e tristes. Gostava muito dos meus irmos. Rodrigo tinha sete anos e Isabel, trs. Minha irmzinha era linda: cabelos claros, olhos castanho-dourados, rostinho rosado, e era muito esperta. Eu estava com quase dez anos e, mesmo sem saber como, tentei fazer tudo o que meu pai me mandava. s vezes duas vizinhas vinham me ajudar. Tive de parar de ir s aulas. Para frequentar a escola, os garotos que moravam ali se levantavam s cinco horas da manh e caminhavam bastante. Voltavam tarde.

  • 9

    Eu no tinha como continuar indo e deixar meus irmos sozinhos. Meu pai, ao chegar a casa depois do trabalho, ia lavar roupas, cortar lenha, cozinhar e estava mal-humorado e triste. Trs meses se passaram e todos ali na fazenda aconselhavam meu pai a arrumar outra mulher. Eu no queria ningum no lugar de minha me, mas estava muito difcil viver daquele modo. Uma noite, meu pai chegou a casa com uma moa e nos disse que ela ia morar connosco. Eullia, assim se chamava, abraou-nos, disse que ramos bonitos, tentou nos agradar. Meu irmo me disse baixinho enquanto meu pai mostrava a casa para ela: No gosto dela! Eu estava to cansado que, quando meu pai me disse que poderia ir dormir e que no precisava lavar as panelas, fui deitar contente. Achei que talvez no fosse to ruim assim ter uma madrasta. Nos primeiros dias em que Eullia ficou connosco foram bons. Ela fez a comida, limpou a casa e eu s cuidei dos meus irmos. Papai estava alegre e todo atencioso com ela. Via-os conversando baixinho, pois no queriam que eu escutasse. Na vspera da folga de papai, ele me comunicou: Daniel, amanh Eullia, Rodrigo, Isabel e eu vamos cidade. Voc fica e cuida de tudo. Queria ir tambm, mas nem pedi, tive receio. Se meu pai j tinha decidido, era melhor fazer o que ele queria. No outro dia, quando saram, estranhei ao ver que levaram as roupas dos meus irmos. Fiquei sozinho, fui tratar dos animais e limpar a casa. Senti uma tristeza que doa o peito e no entendi o porqu. Meu pai e Eullia chegaram noite sem meus irmos. Papai nem esperou que eu perguntasse por eles e explicou: Daniel, dei seus irmos. At que tentei cri-los, mas estava muito difcil para mim. Mas agora temos dona Eullia para ajudar! - exclamei, querendo chorar. Ora, menino! - falou Eullia. Eu no quero cuidar de filhos de outra mulher! Vocs, crianas, do muito trabalho! Fizemos o melhor! Daniel - disse meu pai , eles ficaro bem, esto com outras famlias que iro cuidar deles como filhos. Isso se chama adopo. Ser para eles bem melhor do que ficar aqui - explicou Eullia. Demo-los para pessoas que moram na cidade, que residem em casas boas. L eles tero comida vontade, roupas novas e iro para a escola sem precisar andar tanto. Por que eu no fui? - perguntei. Porque voc j crescido! - explicou Eullia. Ningum quer um garoto com dez anos. Tivemos sorte de uma famlia querer Rodrigo. E depois tenho de ter algum aqui para me ajudar no servio da casa e voc j est acostumado. Chorei, meu pai falou passando a mo na minha cabea, querendo me consolar. No chore Daniel! Tambm senti tristeza em deixar Rodrigo e Isabel l na cidade em casas de estranhos. Mas no teve outro jeito.

  • 10

    No deu certo eu cuidar de vocs sozinho. Sua me morreu e no volta mais. E Eullia tem razo de no querer trabalhar tanto e cuidar dos filhos de outra mulher. Voc ficou e trate de ser obediente! J no gostava mais de morar na fazenda. Sentia muita falta de minha me e de meus irmos. No tinha tempo para brincar. Quis voltar a estudar. Pedi para meu pai para frequentar novamente a escola. De jeito nenhum! - gritou em tom alterado Eullia, que nos escutava. Se voc for para a escola, quem me ajudar nos servios da casa? Voc no precisa estudar mais, j sabe assinar seu nome, eu nem isso sei. Minhas tarefas em casa eram inmeras, eu trabalhava muito, tornei-me um garoto triste e sentia muitas saudades da minha me e de meus irmos. Faa isso direito! Anda menino! Eullia s me chamava de menino e o tempo todo me dava ordens. Como fazia o trabalho de casa, de mulher como diziam os moradores da fazenda, a meninada ria de mim, chamando-me de mulherzinha. No podia nem reclamar, pois, se o fizesse, papai ralhava comigo. Minha madrasta passou a me bater; surrava-me por qualquer motivo. Um dia fui buscar lenha, e dois moos, trabalhadores da fazenda, pegaram-me e estupraram-me. Chorei muito de dor e de vergonha. Ameaaram-me: se contasse para algum, eles diriam que eu estava mentindo e falariam para meu pai me bater. Com receio, fiquei quieto. Tinha medo de pegar lenha no campo, mas, se no fosse, Eullia me batia, e se fosse, os dois me esperavam. Foi um perodo de muita dor e tristeza. Sofri muito. Agora entendo que por meio do sofrimento aprendi uma lio: nunca forar algum a fazer algo que no quer. Minha madrasta brigava muito com as vizinhas, arrumou tanta confuso que o dono da fazenda mandou meu pai embora. Vamos para a cidade! - exclamou Eullia contente. Viver aqui muito ruim. Vamos deixar o menino no orfanato. Ao escutar isso fiquei sem saber se seria ruim ou no para mim. No sabia o que era orfanato. Mas gostei de saber que amos embora da fazenda. Era infeliz ali. Meu pai e minha madrasta arrumaram o pouco que iam levar, o resto venderam para os colonos. Minhas roupas couberam numa pequena sacola. Vamos cidade e l pegaremos o trem para o orfanato. Depois iremos para a cidade grande - disse papai. Fomos cidade de charrete emprestada pelo dono da fazenda. Vi ento uma cidade pela primeira vez. Era um lugarejo pequeno. Encantei-me com as ruas e as casas pertinho umas das outras. Estava com muita fome, mas como aprendera a no pedir nada, fiquei calado olhando tudo e caminhando atrs dos dois, que estavam muito alegres. Aqui a estao - informou Eullia. Vamos comprar a passagem e viajar. muito bom viajar de trem!

  • 11

    Tive medo do trem, da locomotiva. Meu pai precisou me puxar para dentro do vago. Sentei num banco perto da janela. Quando o trem comeou a se movimentar, meu corao batia to forte que parecia que ia arrebentar. Logo me acalmei, gostei e olhei tudo, curioso. Fiquei pensando como podia aquele veculo gigante deslizar pelos trilhos. O barulho que fazia parecia uma msica agradvel, e seu apito me fazia sorrir. Meu pai comprou pes para ns. Fui comendo, estava maravilhado com a viagem. Gostei muito dessa curta aventura. Daniel deu um longo suspiro. Fez uma pausa na sua narrativa. Segundos depois me olhou e indagou: Antnio Carlos, estou aborrecendo-o? No estou falando demais? Est sendo um prazer para eu ouvi-lo - respondi. Sendo assim, sinto-me mais vontade para continuar falando. Quando minha me estava connosco, passamos por muitas privaes, mas foi um perodo tranquilo. Tenho saudades somente dessa fase da minha infncia. Depois, como tudo mudou! Daniel fez outra pausa. Indaguei: Voc encontrou seus irmos? Enquanto encarnado, no soube deles, de ningum de minha famlia - respondeu Daniel. Quando desencarnei, procurei saber deles. Mame provocou um aborto e desencarnara por causa de uma hemorragia. Vagou desesperada por ter de nos deixar e por nos ver sofrendo. Meu irmo Rodrigo e eu teramos de passar pela orfandade, minha me iria desencarnar jovem, mas ela abreviou seu tempo, sofreu com a mudana de planos e com o remorso. Padeceu muito. Depois foi socorrida, ficou pouco tempo num posto de auxlio e teve a bno da reencarnao. Est encarnada e vou v-la sempre que posso. Minha me no sabia que abortar era errado, ela era uma pessoa simples e ignorante, mas sentiu-se culpada quando desencarnou, porque achou que era prefervel ter mais filhos a nos deixar rfos. Visitando meus irmos, soube que meu pai e Eullia os levaram cidade e l ofereceram os dois para as pessoas. Rodrigo ficou com uma famlia que j tinha muitos filhos. Ele cresceu escutando que tinha sido rejeitado e que estava com eles de favor. Dormia nos fundos da casa, comia quando todos j o haviam feito, mas foi escola e aprendeu uma profisso, a de marceneiro. Casou-se bem jovem, d muito valor ao seu lar, feliz, tem quatro filhos e adoptou um menino. Sua me adoptiva desencarnou; seu pai adoptivo ficou sozinho e doente. Os filhos verdadeiros no o quiseram, e meu irmo o levou para morar com ele. Deu-lhe o melhor quarto e o trata muito bem. E esse senhor fala sempre: Tive muitos filhos, mas o adoptivo que cuida de mim! Em uma visita que fiz a Rodrigo, escutei-o conversando com o pai adoptivo:

  • 12

    Meu pai, peo-lhe, por favor, que no trate meu filho adoptivo desse modo. Ele sabe que o adoptamos, no lhe estamos fazendo nenhum favor e no quero que ele se sinta rejeitado. No fazemos diferena entre eles. Todos so nossos filhos! No o tratamos bem, no , Rodrigo? Agora entendo que no fomos bons para voc. Mas me criaram e educaram e sou grato a vocs. S quero que o senhor no faa diferena entre seus netos. Compreendi que Rodrigo sofreu muito, mas superou. Tem um lar onde ama e amado. honesto, uma pessoa boa. Ele, quando ficou adulto, foi nos procurar. Lembrava-se vagamente do lugar onde morvamos. Na fazenda, disseram que tnhamos ido embora e que ningum sabia para onde. Meus pais vieram de outra regio e no tnhamos parentes por ali. E Rodrigo no soube de ns. Isabel teve mais sorte porque foi adoptada por um casal que tinha somente filhos homens, por isso uma menina foi uma alegria para eles. Quando mudaram da cidadezinha, eles a registaram como filha deram-lhe outro nome e ela nunca soube que era adoptiva. Estudou, professora, casou, tem filhos, est bem. Meu pai e Eullia viveram muitos anos numa cidade grande, cometendo erros. Meu progenitor nunca sentiu saudades de ns trs. Nem quando desencarnado quis saber dos filhos. Ambos desencarnaram e vagam no umbral. Espero poder ajud-los quando reconhecerem seus erros e quiserem se melhorar. At isso acontecer, oro por eles.

  • 13

    Captulo 3 - Orfanato Depois de ter me contado o que aconteceu com seus familiares, Daniel continuou a narrar suas lembranas: "Que pena a viagem ter terminado" - pensei "estava to gostoso no trem". Meu pai e minha madrasta conversavam baixinho e pediam informaes para as pessoas que encontravam na rua. Eu estava encantado olhando as pessoas, as casas e as ruas. Paramos numa praa e meu pai falou: Daniel, aqui est seu registo de nascimento; coloque-o na sua sacola. Vou lev-lo a um local onde ficar por uns dias. Depois virei busc-lo. Tive medo, senti um frio na barriga e perguntei baixinho: Vou ficar sozinho? Claro que no - respondeu Eullia. Onde voc vai ficar uma casa grande e bonita, e l moram muitas crianas. Ns o deixaremos na porta, voc bater e pedir para ficar por uns dias. Ns dois vamos arrumar emprego e uma casa para morar. Quando isso acontecer, voltaremos para busc-lo. Choraminguei e ela me deu um belisco. Fiquei quieto e os acompanhei. ali! Agora v! - ordenou Eullia. Adeus, meu filho, que Deus o abenoe! - meu pai falou e me empurrou. Fui andando devagar. Depois de ter dado alguns passos, olhei para trs e vi os dois andando rpido, quase correndo, e virando a esquina. Chorei baixinho. Senti um medo terrvel. Caminhei lentamente at a frente do prdio, parei e bati na porta. Um senhor que passava, vendo que eu batia de leve, bateu com fora. Ele nada disse e foi embora. Que agonia estar ali sozinho num lugar estranho, apavorado e chorando. A porta se abriu e vi uma senhora que sorriu para mim. Chorei mais alto, soluava. Por que est chorando, meu menino? Est sozinho? Entre! Eu no conseguia falar, quando ela me abraou, aconcheguei-me nos seus braos e chorei mais ainda. Uma outra senhora me deu gua. Quando me acalmei, levaram-me para uma sala grande, o refeitrio, onde me ofereceram alimentos. No sabia se comia ou se chorava. A senhora me disse: Chamo-me dona Crmen, no tenha medo de mim... De ns. Conte-nos o que lhe aconteceu. Por que voc est sozinho? De onde veio? Da fazenda Bujo - respondi. Meu pai me trouxe at a esquina, ordenou-me que batesse na porta e pedisse para ficar aqui por uns dias. Ele vai voltar para me buscar. Buscar? Muitos dizem isso e... - disse uma moa, que parou de falar porque dona Crmen a olhou sria.

  • 14

    Como voc se chama? - perguntou dona Crmen. Daniel! - respondi, e lembrando-me do documento que meu pai me dera, abri a sacola e o entreguei a dona Crmen. Aqui est meu registo. Ela pegou, abriu, leu e sorriu para mim. Daniel, vou guardar para voc este documento. Agora coma, meu bem. Parei de chorar e comi bolo e frutas, que achei muito gostosos. Dona Crmen me olhava com carinho. Voc ficar bem instalado aqui - disse. Vamos abrig-lo at seu pai voltar para busc-lo. Ir dormir com outros garotos, no dormitrio, onde ter uma cama e um armrio para guardar seus pertences. Daniel, conte-me o que aconteceu com voc. ramos felizes - disse , embora s vezes no tivssemos o que comer ou roupa para vestir. Mas minha me morreu e tudo ficou difcil. Meu pai no deu conta de trabalhar, cuidar da casa e de ns. No tnhamos parentes, a ele arrumou uma outra mulher e tudo piorou. Deram meus irmozinhos. Meu pai brigou com o dono da fazenda e tivemos de mudar de l. Eles foram procurar emprego e meu pai me ordenou que ficasse aqui. Ele disse que voltar para me buscar. Dona Crmen passou a mo pelos meus cabelos. Eu sorri e senti-me mais aliviado. Vou pedir para a Soninha cortar seus cabelos e para a Terezinha ensin-lo a usar o banheiro. Ir tomar um banho e verei umas roupas melhores para voc. No precisa - falei baixinho. Precisa sim. Gosto de ver a garotada bonita. Venha, no tenha medo. Ainda estava receoso, mas aquela senhora to agradvel me deu segurana e a acompanhei. Nunca havia visto uma casa to grande. Olhei tudo, admirado, achei-a muito bonita e limpa. "Se eu tiver de limpar tudo isso, estou perdido!" - pensei, lembrando que limpava nossa casa na fazenda. Dona Crmen pareceu ler meus pensamentos e explicou: Daniel, neste lar as crianas no trabalham, s os maiores fazem pequenas tarefas. Aqui todos estudam e brincam. Legal! - exclamei. Dona Crmen riu ao me ver alegre. Chegamos a um local com muitas camas e ela me esclareceu: Aqui o lugar que chamamos de dormitrio. Esta a sua cama e este o seu armrio. Coloque sua sacola a. Soninha, uma moa negra, muito bonita, gorda e risonha cortou meus cabelos. Gostei do resultado. Terezinha, uma moa delicada e miudinha, me ensinou a usar o banheiro, pois eu nunca havia visto um. Depois do banho, vesti as roupas que me deram, estavam limpinhas, cheirosas e achei-as lindas.

  • 15

    Ganhei tambm uma sandlia e um chinelo. Agora - disse Terezinha venha conhecer seus novos amiguinhos. Vou ter de devolver estas roupas quando meu pai vier me buscar? Estamos lhe dando e so suas - respondeu ela. Daniel, tudo o que voc quiser saber, pergunte a mim. So muitas novidades e voc poder esquecer. No se acanhe de perguntar. Havia muitas crianas no refeitrio. Dona Crmen, vendo Terezinha e eu entrarmos, apresentou-me: Meninos, esse o Daniel! Boa tarde! - gritou a meninada. Gostei deles e nos tornamos amigos. O medo foi sumindo e fui me adaptando ao orfanato. "Isso que vida!" - pensava alegre. "No trabalho, tenho amigos, posso brincar e ainda vou escola". ramos todos muito bem tratados ali no orfanato. Dona Crmen nos amava e pela primeira vez desde que minha me morrera fiquei alegre. No queria ir embora, nem que meu pai viesse me buscar. Dois dias depois conheci Olavo, um funcionrio do orfanato que trabalhava nos jardins e na horta. Tive medo, lembrei-me da violncia que sofrera com os moos da fazenda, mas logo minhas preocupaes acabaram. Olavo era um senhor bondoso, que gostava da meninada e a respeitava. Nivaldo, Jos Lus e eu tornamo-nos inseparveis, gostvamos uns dos outros. Estou aqui desde que era nen, ningum sabe quem so meus pais. No conheo outra vida, no sei o que ter um lar. Queria ter pai e me, morar uma casinha - lamentou Jos Lus. Nem sempre morar numa casa o melhor - eu disse, consolando-o. Me sim, isso bom. Mas gosto mais daqui do que de morar com meu pai e minha madrasta. Por que voc no pede para dona Crmen para ficar? Se seu pai vier busc-lo, ela pode impedir - opinou Jos Lus. Pensei no que ele me falou e resolvi conversar com ela, fazer meu pedido. Dona Crmen me escutou atentamente e respondeu: Daniel, seu pai tem direitos sobre voc. Mas, pelo que tenho visto, pela minha experincia, acho que ele no vir busc-lo. Mas, se vier, vou pedir ao juiz para que voc fique aqui connosco. Estou contente de saber que voc gosta de morar aqui. Gosto muito! Recebi abraos, o que era muito importante para mim. Gostei de dona Crmen. Para mim ela era como uma segunda me. Na verdade, era isso que ela era para todos ns: uma me. Queria muito aprender, esforava-me tanto que consegui acompanhar a classe. Embora estivesse com dez anos, cursava a segunda srie. Fiz xixi na cama de novo! - exclamou Nivaldo, triste, esforando-se para no chorar. No consigo parar! Percebi que eram muitas as crianas que urinavam na cama. Pela manh, ao acordarmos, escutvamos as reclamaes. Nenhuma delas gostava de amanhecer molhada. Dona Crmen e Terezinha no ralhavam.

  • 16

    s vezes, elas pediam para as crianas ajudarem a trocar as camas e levarem os colches para o ptio para tomar sol. Fiquei com pena do Nivaldo, ele estava realmente aborrecido. Tentei consol-lo e ele acabou por desabafar: Acho que estou preocupado, e por isso que fao xixi na cama. No conheci meu pai nem sei quem ele . Minha me me colocou aqui quando eu estava com oito anos. Ela me disse que no tinha como cuidar de mim. No comeo, vinha me visitar. Agora sumiu. Faz oito meses e dezasseis dias que ela no vem me ver nem manda notcias. O Olavo foi atrs dela, mas ela lhe disse que est muito ocupada para vir at o orfanato. No fique triste, Nivaldo. Sua me deve estar mesmo ocupada. melhor voc se preocupar com a prova de matemtica, e no esquea que a directora da escola nos prometeu uma surpresa no recreio. tarde conheci o senhor Ciro. A meninada me informou que ele era um homem rico e que ajudava muito o orfanato. Vinha sempre visit-lo e, nessas ocasies, trazia doces, frutas e brinquedos. Ele me deu brinquedos. Pela primeira vez tive um brinquedo meu. Como gostei de brincar! No orfanato havia crianas de ambos os sexos que ficavam em dormitrios separados. Mas nos encontrvamos nos ptios, no refeitrio e nas salas, que eram de uso comum. Saamos todos juntos e estudvamos na escola perto do orfanato. Ficvamos eufricos quando recebamos visitas e elas nos traziam presentes ou organizavam festas e brincadeiras. ramos todos carentes; ento, como era importante para ns essas atenes! s vezes, grupos de jovens passavam tarde connosco, organizavam jogos, traziam bolos, balas e brinquedos. Gostava muito quando eles tocavam violo e nos ensinavam a cantar. Como importante para os internos de orfanatos receber essas atenes e carinhos! Hoje, depois de tantos anos, sou grato a essas pessoas que trocaram suas horas de lazer para dedicar-se ao prximo e alegr-lo. Que bem que fazem! Em uma manh de domingo, logo cedo os garotos comentaram: Foram deixados esta noite na porta do orfanato dois bebs: um menino e uma menina! Vamos v-los! E l fomos ns, curiosos, ver os nens. Dona Crmen os mostrou. Esto dormindo, demos mamadeira a eles. Vejam e depois vocs devem trocar de roupa e ir para o refeitrio. Vi os bebs e achei-os lindos. Eram to pequenos! Como pode algum abandon-los? - comentei. No foram abandonados - explicou dona Crmen. Foram deixados aqui. Cuidaremos deles. Aqui no existem crianas abandonadas. Essa casa nosso lar. Amamos vocs! As meninas maiores ajudavam a cuidar dos pequeninos. Mas eles no ficavam muito tempo no orfanato, pois eram logo adoptados, e esses dois, uma semana depois, foram embora com seus novos pais. Lembrei que meu pai falou que dar filhos era adopo.

  • 17

    Senti muita saudade dos meus irmos. Como aprendera a rezar, orei bastante para que estivessem bem. sempre assim - disse Nivaldo. Quase todos os bebs acabam sendo adoptados. Eu no quero ser adoptado, estou bem aqui - falei. Eu no posso porque tenho me e ela no me d para ningum - explicou Nivaldo. Nivaldo era muito bonito e Jos Lus me disse que um casal quis adopt-lo, mas a me dele no deu autorizao. Quando ia um casal escolher uma criana para adoptar no orfanato, era uma agonia. Muitos queriam ser adoptados, outros no, e a preferncia era pelos pequenos e pelos nens. Acho mesmo que no ter um lar uma grande lio para o esprito! - expressou Daniel com um suspiro. Aps uma pausa, continuou: Um dia, um soldado trouxe um garotinho que estava perdido perto de uma estrada. Estava muito machucado. Dona Crmen cuidou dele com carinho, deu-lhe banho, fez curativos, ofereceu alimentos. Ele no falava. Acho que ele mudo! - opinou Jos Lus. Escutei Terezinha falar que pode ser choque - informou Nivaldo. Ser que tem pais? Ser rfo? - perguntei. O mdico veio e logo ficamos sabendo que o garoto era mudo. Como no sabamos o nome dele, dona Crmen o chamou de Jos. Era o Zezinho. Com os cuidados e a ateno de todos, seus machucados sararam, ele ficou corado e brincava connosco. Soninha nos informou: Ningum sabe de onde esse menino veio. Se tiver pais, se ele est perdido ou se foi abandonado. A polcia est investigando. Enquanto isso, Zezinho fica connosco. Ele muito educado: sabe comer com talheres e usar o banheiro. Vinte dias depois, um casal aflito entrou no ptio do Orfanato, onde estvamos todos. Era hora do recreio. A senhora, ao ver Zezinho, gritou: Gerson, meu filhinho! Ele correu para a me e foi aquela choradeira. Lembrei-me da minha me e me deu uma vontade de receber, como Zezinho ou Gerson, um abrao dela. Acho que foi por isso que toda a meninada sentiu e chorou a falta de um abrao maternal. Gerson foi embora com os pais. Soninha nos contou que o garoto estava na frente de sua casa brincando quando um casal desconhecido o pegou. Deduziram que s mais tarde esses sequestradores descobriram que ele era mudo e a o abandonaram. No deveriam nunca tirar uma criana de seus pais! - exclamou Nivaldo. muita crueldade! Que ser que Deus faz com essas pessoas to ms? - perguntei. No sei talvez as faa crianas de novo e outras pessoas as pegam e maltratam - respondeu Jos Lus.

  • 18

    Escutei muitos comentrios das crianas que desejavam que seus pais viessem busc-las como aconteceu com Zezinho. Acho que todos ns queramos isso. Mas logo esquecemos o Zezinho, pois o orfanato era movimentado. Os meninos gostavam de assustar as meninas. Um dia Nivaldo achou um sapinho e o colocamos perto de onde um grupo de garotas estava sentado. Quando elas viram o pequeno animal, foi uma gritaria. Rimos muito. Jos Lus colocou sal no aucareiro e foi o senhor Ciro quem tomou o caf. Ai! Que isso no caf? - perguntou ele. Depois examinou o aucareiro e riu. Quando ele foi embora, dona Crmen ficou brava. O senhor Ciro um homem bondoso, que sempre nos ajuda. O que ele ir pensar de ns? Quem fez isso que se apresente! Seno vou separar os provveis culpados e castigar todos. Jos Lus se apresentou e se desculpou: Dona Crmen, achei que seriam as meninas que usariam esse aucareiro. Desculpe-me. Desculpo, mas voc ir tomar o caf com o seu 'acar'. Colocou caf e sal na xcara e mandou que Jos Lus o tomasse. Mas, como dona Crmen era muito bondosa, colocou pouco caf e sal. Ele tomou fazendo careta e a meninada riu. Havia muitas rvores nos fundos do orfanato. Brincvamos muito nesse espao, fazamos cabanas, esconderijos e nos alimentvamos de seus frutos. Foi um perodo tranquilo para mim, do qual me recordo com carinho e gratido. Admiro aqueles que se preocupam com outras pessoas, que respeitam e educam crianas carentes. Cada uma de ns no orfanato tinha uma histria triste, de acontecimentos infelizes de orfandade, de abandono e de carncia afectiva. s vezes brigvamos. Dona Crmen, Terezinha e Olavo estavam sempre tentando nos harmonizar. Vocs tm de gostar um do outro como irmos! - pedia dona Crmen. Ela nos amava e sabamos disso. Crianas sentem quando so queridas. Meu pai no veio me buscar, nunca deu notcias, eu no soube dele e dei graas por isso.

  • 19

    Captulo 4 - Sonambulismo A expresso de Daniel suavizou com as lembranas agradveis; ele continuou a narrar: Daniel, voc se levanta noite, dormindo! - informou-me Nivaldo. Eu no! mentira sua! - repliquei. Voc se levanta dormindo, sim! - afirmou Paulinho. Eu vi! Voc anda por todo o dormitrio. No me lembrava de nada, mas ficou confirmado que me levantava e andava dormindo. No comeo ficava somente pelo dormitrio. Daniel, voc mexeu no meu armrio! Devolva o meu lpis - ordenou Ronaldo. Abri o meu armrio e l estava o lpis dele. Fiquei envergonhado e Ronaldo queixou-se para dona Crmen, que veio conversar comigo. Daniel, voc no se lembra mesmo que se levantou noite e pegou o lpis do Ronaldo? No, senhora, eu no lembro. Juro! No precisa jurar! Diga somente a verdade. No me lembro de nada - afirmei. Isso se chama sonambulismo. H pessoas que, como voc, levantam-se dormindo, andam, fazem determinadas coisas, voltam para a cama e no se lembram de nada. No quero fazer isso! Por favor, ajude-me! - roguei-lhe. Dona Crmen sorriu, abraou-me e consolou-me. Isso passa. Vou explicar a todos o que isso. Eles vo entender. Ao entrarmos juntos no refeitrio, dona Crmen esclareceu o que era sonambulismo, falou que no orfanato j havia tido uma menina que se levantava dormindo, que isso aconteceu por um tempo e passou. Falou tambm que ningum deveria ter medo de mim, pois existiam muitas pessoas com sonambulismo. Eu sentia que a meninada tinha medo de mim, especialmente os colegas de quarto. Um dia Jos Lus chegou da escola e me deu um pedao de papel. Daniel, copiei para voc o que sonmbulo. Minha professora nos deu o dicionrio para acharmos sinnimos. A primeira palavra que procurei foi sonmbulo e escrevi no caderno. Voc acredita que dona Maria foi conferir? Nem ela sabia que nictobata o mesmo que sonmbulo. Peguei o papel, agradeci e li: Sonmbulo: que, ou aquele que anda, fala ou se levanta dormindo. O mesmo que nictobata. tarde, jogando bola, Jos Lus gritou: Nictobata, vai pegar a bola ou no? Os garotos pararam o jogo para rir. Nic o qu? Nictata? Que isso? Nictobata - explicou Jos Lus. o mesmo que sonmbulo.

  • 20

    Se Daniel sonmbulo, nictobata. Tentei disfarar que achava ruim. No gostava de ser sonmbulo, no queria ser, mas era. A meninada comeou a me chamar de nictobata, mas, como era difcil de dizer, abreviaram e ficou Nic. Todos no orfanato passaram a me chamar assim. At os funcionrios e dona Crmen esqueceram que eu me chamava Daniel, ficou somente Nic. Numa noite em que chovia muito me levantei, sa do nosso quarto, fui sala da frente e abri a janela. No outro dia, a sala estava toda molhada. Descobriram que fora eu, porque deixara um dos meus chinelos l. Foram muitas as manhs em que eu acordava nu, sem o pijama, ou com ele do avesso, com outras roupas, ou at mesmo com o uniforme escolar. s vezes colocava uma roupa em cima da outra ou vestia as roupas dos colegas, e eles achavam ruim, ficavam bravos comigo. Nivaldo e Jos Lus me defendiam. Eu nada respondia, ficava aborrecido e envergonhado. E pensava triste: "Por que fao isso? Por que mexo nos objectos deles? No quero fazer essas coisas!" Se eu era um problema para dona Crmen, ela no demonstrava. Explicava sempre aos meus colegas que sonambulismo era algo natural. E quando eu ia chorar reclamar com ela, dizia para ter pacincia que isso passava. Nosso plano perfeito! - concluiu Nivaldo. Fingimos dormir. Quando a Terezinha for para o quarto dela, Nic, fingindo estar dormindo, vai at a sala de visitas, pega as bolachas e nos traz. Comemos e ningum desconfiar de nada. Isso roubo! - opinou Jos Lus. nada! Por que no podemos usar o sonambulismo de Nic? - perguntou Nivaldo. Nosso plano deu certo. Levantei-me fingindo estar dormindo, peguei as bolachas e comemos nos divertindo. Dona Crmen achou vestgios de bolachas no dormitrio. Voc, Nic, nunca antes comeu dormindo. E depois eram muitas bolachas para comer sozinho. que ele nos fez comer - defendeu Nivaldo. Nic nos chacoalhou e nos fez comer. Tivemos medo e obedecemos. Dona Crmen olhou-nos, nada falou e saiu. Achei que ela no acreditou, mas no se importou com a nossa brincadeira to criativa. Dorinha era uma menina chata, no gostvamos dela. Era briguenta e fofoqueira. Tudo o que ela ficava sabendo contava para dona Crmen, especialmente o que os meninos faziam de errado. Numa manh, no refeitrio, enquanto tomvamos o desjejum, Dorinha comeou a rir de mim. Nic, o sonmbulo! Levantar dormindo coisa do demnio! Voc deve ser to mau que o demnio usa seu corpo para fazer maldades. No fao maldades! - gritei nervoso.

  • 21

    Roubou as bolachas! ladro! - continuou Dorinha, rindo. Avancei, quis dar-lhe uns tapas, mas Jos Lus e Nivaldo seguraram-me. No suje suas mos batendo nessa menina feia! Diabo voc, Dorinha! Linguaruda! - gritou Nivaldo, defendendo-me. Dona Crmen nos levou, Dorinha e eu, para a sua sala. Dorinha - disse nossa directora voc est falando muito! No pode ofender seus colegas. E voc, Nic, no pode agredir ningum. Peam desculpas! Dorinha, fingida, choramingou e disse: No quis ofender! Sou boazinha! Claro que me desculpo. Nic desculpe-me! Senti muita raiva, mas respondi: Desculpo e tambm peo desculpas. Pronto! Podem ir para o refeitrio acabar de tomar o caf! - ordenou dona Crmen. No consegui tomar caf, engolir nada. Fomos escola e Jos Lus falou enquanto caminhvamos mais afastados dos outros: Essa Dorinha precisa de uma lio urgente! E ser voc, Nic, quem a dar. Voc se vingar dela por ns e por voc. Linguaruda! Nivaldo e eu j planeamos tudo. Vamos dar um tempinho. Daqui uns trs dias, voc, fingindo dormir, ir at a Sala dos Deveres, pegar a bolsa de escola dela e rasgar seus cadernos. E como daqui a trs dias sexta-feira, dia em que Terezinha lava as roupas das meninas, no varal como sempre estar o vestido cor-de-rosa dela, de que Dorinha se gaba tanto de que foi presente da madrinha. Se voc no conseguir rasg-lo, d vrios ns. A, quem sabe, essa menina fica com medo do demnio que ela fala que entra no seu corpo e pra de nos atormentar! Se fosse a outra ocasio, eu me negaria, no faria isso. Mas achava que Dorinha estava de facto abusando. E lembrei-me de seu olhar fingido diante de dona Crmen e dos castigos que ela fez os garotos levarem. Aceitei. Daria uma lio em Dorinha. Jos Lus, Nivaldo, e desta vez Ronaldo e Paulinho ajudaram-me. Levantei-me fingindo dormir e fui sala que chamvamos de Sala dos Deveres, local onde fazamos as lies da escola. Uma vez l, abri a bolsa de Dorinha e rasguei dois de seus cadernos. Fui ao quintal directo ao varal, e dei ns no vestido rosa dela. Voltei ao dormitrio e fui parabenizado como heri pelos garotos. Vinguei-me dela por mim e por eles. No outro dia, quando fomos pegar nossas bolsas para irmos escola, Dorinha, ao ver sua bolsa aberta e seus cadernos rasgados, chorou. Aguentamos firmes para no rir. Dorinha - falou Nivaldo srio , voc deve rezar mais! O demnio que pega o corpo de Nic no deve estar contente com voc. No deveria ser to linguaruda! Se eu fosse voc, teria mais cuidado. No ser nada agradvel ver voc toda rasgada como seus cadernos.

  • 22

    Dorinha ficou com medo e, ao ver seu vestido estragado, chorou mais ainda. Mas melhorou o seu comportamento, pelo menos parou de fuxicar sobre os meninos e nem passava perto de mim. Rimos bastante. Pelo menos umas trs ou quatro vezes por ms eu fazia meus passeios nocturnos. Terezinha colocou uma bacia com gua ao lado da minha cama. nesse lugar que voc coloca os ps quando sai da cama. Se voc se levantar dormindo, a gua o despertar. Mas no deu certo. Tirei a bacia do lugar e levantei-me mesmo assim. Ao acordar, no me recordava de nada, nem dos meus sonhos. At que me esforava para lembrar, mas nunca consegui. Numa manh, ao acordar, Jlio Csar queixou-se: Esta noite, Nic, voc quase me matou! Jos Lus e Nivaldo que me acudiram. Eu?! Ai, meu Deus, que foi que eu fiz? - indaguei-lhe aborrecido. Levantei-me para ir ao banheiro - explicou Jlio Csar. Quando voltei para o quarto, voc se levantou da sua cama, aproximou-se de mim e pegou-me, colocando as mos no meu pescoo. Senti muito medo, no consegui gritar, mas fiz barulho e eles me acudiram. Nivaldo puxou voc e mandou que voltasse a se deitar, e voc obedeceu. Todos os meninos acordaram menos voc. Desculpe-me, Jlio Csar. Por Deus, perdoe-me! - roguei com sinceridade. Tudo bem! Acho que para ele realmente ficou tudo bem, mas no para mim. Fiquei alguns dias, aborrecido. Fui queixar-me para dona Crmen, que conversou comigo animando-me. Ela me disse que j havia me visto muitas vezes levantar-me dormindo, e que o fazia normalmente, no com os braos erguidos, como os garotos imitavam. Somente meus olhos ficavam abertos, parados. Nic - disse dona Crmen , tentei uma vez conversar com voc. Perguntei-lhe aonde voc ia e voc me respondeu algo parecido com 'senzala'. Tambm indaguei como voc se chamava, mas no consegui entender o que respondeu. Depois voc falou palavras soltas, como cozinha, mingau e afastou-se. Acho que no devo perturb-lo mais e deixar que d seus passeios nocturnos. Voc no faz nada de mau, devemos esquecer esse assunto. Resolvi atender dona Crmen e no me preocupar mais com esse facto. Gostava do orfanato, l crescia forte, brincava, estudava, estava bem alimentado e tinha amigos. Na adolescncia, comeamos a nos interessar pelas meninas e a trocar confidncias sobre sexo. A me de Nivaldo veio visit-lo depois de ter ficado anos sem v-lo. Meu amigo era bonito, forte, tinha olhos verdes. Agradou-o dando presentes, explicou que ficara doente, que passara por muitas dificuldades, por isso no tinha vindo v-lo. No acredito na minha me - confidenciou-nos Nivaldo. Ela me deixou aqui para no atrapalh-la. Criana d trabalho. Acho, ou melhor, tenho certeza de que ela prostituta. Est ficando velha e me v como uma fonte de renda. Ela acha que vou sustent-la, trabalhar para ela.

  • 23

    Sou mais velho que vocs, vou fazer dezassete anos e vou ter mesmo de sair daqui. Ento melhor ir com ela. E se mame no me der o que quero, fujo e vou viajar pelo mundo. Dois meses depois, a me dele veio busc-lo. Jos Lus e eu choramos ao nos despedir de Nivaldo. Escrevo para voc, prometo! - o expressou, comovido. Senti muita falta desse companheiro, compreendi que Nivaldo nos liderava. Ele era inteligente e sempre achava solues para nossos problemas. Ficamos, Jos Lus e eu, desolados. Nivaldo, como prometera, escreveu-nos. Contou que, de facto, a me era prostituta, e que tinha ido morar com ela numa penso. Na segunda carta meu amigo escreveu que fugira e que fora para uma cidade grande, e a descreveu com entusiasmo. Na terceira missiva disse que arrumara emprego de entregador, morava numa penso e tinha muitas saudades do orfanato. Depois de cinco meses que ele partira, dona Crmen chamou Jos Lus e eu para irmos sua sala. Recebi da polcia - disse ela sria um comunicado, uma notcia muito triste. Encontraram Nivaldo morto! Entraram em contacto connosco porque acharam cartas de vocs dois no bolso dele. Foi morto com dois tiros. Jos Lus e eu choramos muito. Dona Crmen nos abraou chorando tambm. Por qu? Por que algum ia querer assassinar Nivaldo? A polcia sabe quem foi? - perguntou Jos Lus. Acho que Nivaldo foi enganado - opinou dona Crmen. O trabalho que fazia era de entregador de drogas. Ingnuo, no sabia que era perigoso. A polcia no sabe quem foi que o matou. Pode ser algum policial, ladro ou traficantes rivais para ficar com o pacote que ele ia entregar. Vamos orar por ele! A me dele que a culpada! Antes ser rfo que ter uma me como ela! - exclamou Jos Lus. Vo para o ptio, meninos! E no fiquem por muito tempo tristes - aconselhou nossa directora. Mas ficamos. Daniel fez uma pausa, levantou-se e deu alguns passos pela sala. Depois de alguns segundos de silncio, informou-me: Antnio Carlos, depois que desencarnei, encontrei-me com Nivaldo. Ele contou-me que sabia o que entregava, pois esse foi o nico modo que arranjou para se sustentar. S que, de facto, foi ingnuo, pois no sabia que era perigoso. Foi socorrido logo que desencarnou. Faz pouco tempo que reencarnou e filho de um casal que o recebeu com amor. Ele se props a dar valor famlia e aos pais, espero que consiga. Daniel sentou-se, olhou para mim, sorriu e disse: Vou retornar s minhas lembranas. Estou contando a voc, Antnio Carlos, s vezes em que me levantei dormindo e que causei algum problema, pois na maioria das vezes dava apenas passeios nocturnos sem consequncias pelo orfanato. Mas, uma noite, acordei com uma gritaria.

  • 24

    Assustei-me. Estava no meio do dormitrio das meninas. Sa correndo e voltei para nosso quarto. Todos no orfanato acordaram. As meninas reclamaram e, pela manh, no refeitrio, xingaram-me: Voc um sem-vergonha! Achamos que esse seu sonambulismo safadeza! Voc olhou-me de um modo estranho. Tive medo! Parecia que ia nos atacar! Malandro! Ao me ver aborrecido, Jos Lus conversou comigo. Nic, voc no se lembra de nada mesmo? Deve ter visto as meninas de camisola. Estavam bonitas? No me lembro de nada. Estou me detestando. Por que sou sonmbulo? O senhor Ciro continuava indo sempre visitar o orfanato e tentava ajudar a resolver a maioria dos nossos problemas. Ofereceu-se para levar-me ao mdico de uma cidade vizinha que, segundo ele, tinha uma especializao. O senhor Ciro tinha um automvel, e viajar nele foi uma aventura muito agradvel. Tive de contar inmeras vezes para a meninada do orfanato essa viagem. O mdico examinou-me e achou-me saudvel; receitou calmantes que s me fizeram dormir mais. No resolveu meu problema e continuei me levantando noite. As meninas passaram a trancar as portas de seus dormitrios. Dias depois de ter ido ao mdico, acordei em cima da caixa-d'gua. Era um lugar alto e difcil de subir. Senti um medo terrvel e gritei. Foi o senhor Olavo quem me achou. Ai, meu Deus! Que faz a, menino? - perguntou ele l embaixo. No sei! Tire-me daqui! Nic, voc subiu dormindo! incrvel! Como conseguiu? No precisa responder. melhor segurar-se e no se mexer. Vamos tir-lo da! Todos queriam me ver. A meninada se levantou e foi para o ptio. Uns riam, outros se preocupavam, receando que eu casse. E eu l em cima, de pijama, com frio, segurando firme sem me mexer, com medo de cair. O senhor Olavo, a pedido de dona Crmen, foi procurar ajuda. Uns pintores vieram com suas escadas longas e conseguiram me tirar de l depois de duas horas. Terezinha levou-me para tomar um banho quente, que me aqueceu, e deu-me leite morno. Chorei muito. No queria ser sonmbulo. Fizemos muitas simpatias, tudo o que nos ensinavam. O padre me benzeu, tomei remdios, chs de ervas e nada. Continuei com o meu sonambulismo. O senhor Olavo dormia numa casinha no quintal do orfanato. Um dia me disse:

  • 25

    Nic, voc tem andado por aqui, pelo quintal e pelo ptio. Acho at que j saiu para a rua. Ns, os garotos com mais idade, sabamos sair do orfanato. Tnhamos dois locais por onde saamos facilmente. Um deles era s subir num abacateiro e, por um galho, ir ao muro. De l pulvamos e estvamos na rua. Outro jeito era por um portozinho. O senhor Olavo tinha a chave, mas ns sabamos onde ele a guardava. Senhor Olavo, como eu ando? Que fao por aqui? Conte-me - pedi. Voc anda quase sempre devagar, mas s vezes depressa, to rpido que d a impresso de que quer se esconder. Passa pela gente e parece no nos ver. J vi voc andando com os olhos fechados e tambm abertos. Voc tem medo de mim? - perguntei. No, porque dona Crmen explicou-me o que acontece com voc. Mas se ela no tivesse dito, teria medo. Estou preocupado com voc, garoto. Ser que voc no capaz de fazer algo errado? Deus me livre! - exclamei. Voc faz tantas coisas! Jos Lus e eu descobrimos que o senhor Olavo gostava de ficar escondido olhando para as meninas maiores. No confivamos nele e at o vigivamos. Mas nada mais vimos. Nic - disse Jos Lus , tenho medo de sair daqui do orfanato! No conheo outro lar. Quando fizermos dezoito anos, teremos de ir embora. Mas para onde? Fazer o qu? Arrumaremos empregos, namoraremos e casaremos - respondi esperanoso. Deveramos aprender uma profisso. Como iremos arrumar emprego se no sabemos fazer nada? - indagou Jos Lus, preocupado. Resolvemos falar com dona Crmen. Ela elogiou-nos, disse que essas nossas preocupaes eram sinais de que j tnhamos juzo e que ia conversar com o senhor Ciro. E esse senhor, como sempre, achou a soluo, arrumando com os comerciantes e as oficinas locais estgios em que pudssemos aprender a trabalhar. Jos Lus e eu estudvamos pela manh e tarde amos a uma marcenaria. Meu amigo gostou muito de lidar com a madeira, aprendeu rpido, era habilidoso. Eu tinha mais dificuldade. Saindo mais do orfanato, comeamos a ver a vida fora dele. Passamos a olhar as meninas de modo diferente, achando-as bonitas e interessantes. Muitas garotas tambm saram para aprender a trabalhar como domsticas e vendedoras em lojas. O proprietrio da marcenaria pagou-nos. Era pouco, mas foi meu primeiro dinheiro. Comprei presentes: para dona Crmen, Terezinha, Soninha, para quatro funcionrios, e um canivete para o senhor Olavo. Como fiquei feliz em dar presentes!

  • 26

    Captulo 5 - Acontecimentos Trgicos Porm, Antnio Carlos, os anos sossegados terminaram - falou Daniel mudando a expresso. Na escola, a garotada falava com medo. Um tarado estava solta. Houve muitos comentrios sobre o assunto. Algum viu um homem claro de pijama correr pela Rua do Ouvidor. A mocinha que morreu chamava-se Iza. Era bonita, tinha dezasseis anos. Foi encontrada morta na quinta-feira, sem roupas, num bueiro da cidade. Dizem que foi assassinada de madrugada. O que uma mocinha estava fazendo na rua noite? - perguntou Jos Lus. Era uma garota de programa - respondeu um colega. Quatro dias depois acharam outra mocinha em um matagal, morta do mesmo modo. No orfanato, na marcenaria, na escola, no se falava de outro assunto. J morreu faz mais de trinta dias! Tiveram certeza de que era Maria Tereza pela pulseira que usava e pela mala de roupas que estava ao lado do corpo. Maria Tereza era uma moa de vinte anos que trabalhava na cidade prxima. A famlia morava num stio perto da cidade. Ela viera passear, visitar a famlia, ficara uns dias no stio e depois fora embora. Foi a p at a cidade, onde pegaria o nibus para a outra cidade em que trabalhava. Era empregada domstica. Os pais acharam que ela estava no emprego, onde morava. Como Maria Tereza no regressou na data certa, seus patres esperaram uns dias, depois escreveram para o stio perguntando o porqu de ela no ter voltado ao trabalho. Os pais, ento, pensaram que a filha fugira com o namorado, que morava na cidade em que ela trabalhava. Mas, quando o moo apareceu desesperado procura dela, os pais se preocuparam, foram polcia e a comearam as investigaes. Souberam que Maria Tereza no chegara cidade nem pegara o nibus. Comearam a procur-la e encontraram-na morta, sem roupas - fora estuprada. Fiquei chocado, ficava triste ao saber de qualquer violncia. As meninas do orfanato estavam com muito medo, no ficavam sozinhas. Terezinha foi dormir com as garotas maiores. Ao irmos marcenaria, passvamos por uma casa que tinha um quintal enorme. Da rua vamos as rvores frutferas. A laranjeira est carregada! Vamos pedir algumas laranjas para a mulher que mora a? - disse Jos Lus. Pedimos e a mulher deu uma laranja para cada um de ns. Agradecemos e fomos embora. Essa mulher merece que a roubemos! - expressou Jos Lus. Na volta, podemos pular o muro e pegar algumas frutas - sugeri. E assim fizemos. Nos galhos da laranjeira, arranhei o peito, os braos e o rosto. No comentei isso com Jos Lus. Ao tomar banho, vi os arranhes. Estava cansado e fui dormir mais cedo. Acordei com Terezinha chacoalhando-me. Acorde Nic! Dona Crmen quer falar com voc!

  • 27

    O que se passou depois foi um pesadelo. No consegui entender nada. Tonto de sono fui para a sala da directoria puxado por Terezinha. Dona Crmen estava muito preocupada e indagou-me: Voc no se lembra mesmo, Nic, do que faz dormindo? No tem nenhuma lembrana? No, senhora. Que fiz desta vez? - perguntei preocupado. Algo grave! O delegado est aqui, quer falar com voc. Trs policiais esto vasculhando o orfanato. Nic esto acusando voc de ter cometido esses crimes. Esta noite mataram mais uma garota. Ela estava desaparecida desde ontem tarde. No voltou para casa depois das aulas. Acharam-na morta numa casinha abandonada perto de uma estrada. Estava como as outras, sem as roupas. Foi estuprada e morta por estrangulamento. Por que acham que fui eu?! Juro que no fui! - falei gaguejando apavorado. Porque voc sonmbulo! E porque foi visto um homem de pijama, que dizem ser parecido com os que vocs usam, correndo aqui perto na noite em que Iza foi morta. O delegado entrou na sala e examinou-me, senti um medo terrvel, um frio na barriga. Ele pegou meus braos, abriu meu pijama, olhou meu peito. Depois falou para dona Crmen: Meus homens encontraram escondido no quintal do orfanato, perto do muro, um pijama sujo de sangue. Voc, Nic, est com uns arranhes. O que aconteceu? Arranhei-me na rvore! - respondi baixinho. Ou a mocinha tentando se defender arranhou voc? Conte essa histria direito! Queria que fosse um sonho, queria acordar daquele pesadelo. Dona Crmen, chorando, pediu para o delegado no me levar preso. Ele ordenou que pegassem uma roupa minha e Terezinha o atendeu. Mandou que eu me trocasse e me levou preso. Entrei num carro e fiquei entre dois policiais. Na cadeia, fui levado a uma sala. O delegado mandou que me sentasse e disse: melhor falar toda a verdade! Como voc matou as moas? Por qu? Para estupr-las, no foi? Eu no matei! Recebi dois tapas, um em cada lado do rosto. Tonteei, quase ca da cadeira, o sangue veio boca. Delegado, melhor no marc-lo com pancadas. Ele menor de idade e no sabemos se foi ele! - disse um policial. Tenho certeza de que foi ele! - afirmou o delegado. Mas voc tem razo. A directora do orfanato, aquela dona Crmen, capaz de vir aqui defender esse monstro assassino. Diga que foi voc, Nic, e no lhe bateremos mais.

  • 28

    No fui eu! No sou assassino! Por favor, por Deus, acreditem em mim! - gritei. Como pe Deus em histrias sujas? Matou e depois pede por Deus! Ser que suas vtimas tambm no pediram clemncia em nome de Deus? - expressou o delegado. Com um sinal de cabea, dois policiais me pegaram pelos braos, levantaram-me e levei uma surra de basto de borracha. Fale! Confesse! - gritava o delegado. No sabia o que falar, pedi e supliquei. Acho que o delegado cansou, parou e mandou que me levassem. Fui conduzido e deixado numa cela pequena, onde fiquei sozinho, todo dolorido e apavorado. As outras celas, onde trancafiavam muitos detentos, eram maiores. Eles conversavam, riam e me ofendiam. Foi servido o almoo deles, no me deram nada, mas no estava com fome. Apavorava-me quando via um policial. De repente, a cela se abriu, e o senhor Ciro entrou. Joguei-me nos seus braos, chorando. Senhor Ciro, por Deus, ajude-me! Estou aqui para isso, Nic! Assobios e vaias. Os presos riram ao ver aquele acto de desespero. Porque, apavorado como estava, ao ver uma pessoa que sempre ajudou o orfanato, conhecida, abracei-a como se fosse uma tbua para um nufrago. O senhor Ciro afastou-me com delicadeza. Isso aqui um horror! Ai do delegado se deixar voc ficar na cela com esses assassinos! Crmen procurou-me pedindo auxlio. Vim com um advogado, que est falando com o delegado. Eles bateram em voc? O senhor Ciro falava depressa, olhou-me, afirmei com a cabea e ele continuou a falar: Sou amigo ntimo do juiz, vou falar agora mesmo com ele. Fique calmo, Nic, vou resolver isso. E no d confiana a esses presos nem converse com eles. Deu um sinal, um policial abriu a cela. Quis segur-lo para que no me deixasse sozinho, mas fiquei parado, olhando-o sair, sentindo um medo terrvel. Toma aqui, Nic! Mandaram do orfanato comida e roupas para voc. Nada como ter uma pessoa importante para ajudar. - falou o guarda. O senhor Ciro no quer que voc seja mais interrogado, nem que o maltratem! Assustei-me, mas peguei as duas sacolas. Numa havia uma marmita, na outra, algumas roupas minhas. Comi sem vontade. Ao ver o senhor Ciro novamente, meu corao disparou aliviado. Ele voltava com um senhor muito bem vestido. Nic, este o juiz da cidade. Doutor Mrio - disse o senhor Ciro para o homem , este o preso de que lhe falei. Compadea-se deste garoto, que foi abandonado no orfanato, tem somente dezasseis anos, embora v completar dezassete daqui a dois meses. Sei que as evidncias so contra ele.

  • 29

    Embora achando que seja culpado, ele assassinou as moas dormindo. Tem de receber um tratamento, no castigo. Transfira-o antes que seja linchado ou que os policiais o castiguem. O juiz olhou-me demoradamente; depois me indagou: Voc se lembra de alguma coisa? No, senhor - respondi. Voc se acha culpado? No, senhor. Ciro - concluiu o juiz , pela minha experincia, parece que este jovem no mente. Vou mand-lo para o sanatrio. L os mdicos iro analis-lo para dar o diagnstico se est ou no doente. Obrigado, Mrio! - agradeceu o senhor Ciro. O que voc no faz pela Crmen, hein, Ciro? - expressou o juiz sorrindo. Fao pelo orfanato e pelos rfos - respondeu o senhor Ciro. Voc um sujeito bondoso! - disse o juiz. Ajudar com essas suas atitudes seu filho na poltica. Vou comunicar ao delegado a minha deciso e ordenar que Nic fique numa cela sozinho e que no seja molestado. Obrigado, Mrio - o senhor Ciro agradeceu novamente. O juiz foi embora e o senhor Ciro ficou conversando comigo: Nic, no se desespere. Estou tentando ajud-lo. Voc ir para um hospital. Um sanatrio de loucos? Mas no estou doente! - exclamei indignado. Como no? Est doente sim, bom que acredite nisso e, l no hospital, pea e queira se tratar. melhor voc ir para longe desta cidade. As famlias das vtimas querem fazer justia. E voc no pode ficar nesta cadeia. Se esses presos o pegam... O senhor acha que sou culpado? - perguntei. Acho! Muitos factos vieram ao conhecimento do delegado. Que voc fingia estar dormindo para roubar bolachas, alimentos na cozinha, para dar ns na roupa de uma interna. Que estava muito interessado nas meninas. Um colega de quarto contou que voc quis mat-lo apertando seu pescoo. E foi achado um pijama sujo de sangue no quintal do orfanato. Ficamos sabendo tambm que os meninos maiores, principalmente Jos Lus, o finado Nivaldo e voc saam do orfanato com muita facilidade. Depois, voc tem arranhes pelo corpo. Jos Lus confirmou sua verso, que foram roubar frutas, mas que no viu seus arranhes. Voc, Nic, sonmbulo, pode ter assassinado essas mulheres dormindo ou fingindo dormir. Ningum tem dvidas de que foi voc. No fui eu! Juro que no! - falei rogando. Queria que pelo menos ele acreditasse em mim. Voc no se lembra mesmo? Ser que realmente estava dormindo? Se for isso, precisa mesmo de tratamento! Foi embora e fiquei desesperado.

  • 30

    "No fui eu! No pode ter sido eu!" - pensei. Que angstia! Eu estava na cela sozinho graas ao senhor Ciro, porque os presos estavam com muita vontade de me pegar. Ameaavam-me rindo. No vou dormir! No posso dormir! noite, os presos sossegaram. Escutei-os roncarem e ressonarem. Sentia dores fsicas, mas as morais e o medo eram maiores. Cansado, triste e infeliz, acabei dormindo. Acordei com barulho, de manh. O guarda me deu caf com um pozinho e falou: Nic, voc tem sorte. O juiz mandou transferi-lo para um hospital, um sanatrio psiquitrico. Dizem que voc doente! - Voc no pra mesmo! Acordei noite e vi voc andando dormindo. Seus olhos estavam parados! Deve ser verdade, matou dormindo. Que desculpa! Por que no pensei nisso? - falou um preso. Eu soube que iria partir no outro dia, pela manh. Dona Crmen veio trazer meu almoo e despedir-se de mim. Choramos abraados. A senhora acha que fui eu? - perguntei. No sei Nic, quero acreditar que no foi, mas... Talvez se eu tivesse cuidado mais de voc. Se voc for doente, necessita tratar-se. Foi uma despedida muito triste. Ela foi embora chorando e eu senti uma dor to forte que parecia que meu peito ia estourar. Pedi para falar com o delegado, o guarda comunicou meu pedido e ele mandou que me levassem para a sala em que fui interrogado. Ento quer falar comigo? Vai confessar seus crimes? - indagou o delegado. Senhor, no fui eu! Se me levanto dormindo, como posso ter ido tarde encontrar com Maria Tereza, a primeira vtima? Isso voc responderia se pudesse falar, mas o senhor Ciro arrumou um advogado e o juiz me proibiu de interrog-lo. Acho que voc cortejava essas mocinhas, deve ter marcado encontro com elas noite, e as coitadas o esperaram no mato. Foi encontrado ao lado do corpo de uma delas um pedao do tecido do seu pijama. Como sabe que era do meu pijama? S pode ter sido voc! - gritou o delegado. Essa ltima moa que morreu sumiu tarde, e nesse horrio eu estava na marcenaria e no fiquei sozinho - tentei explicar. Isso verdade! Com certeza voc foi noite onde ela estava esperando-o e a matou. Como eu a levei para l? - perguntei. Voc quem tem de nos dar as respostas! Voc a estava namorando? Muitas pessoas viram essa mocinha passar em frente do local em que voc trabalhava e repararam que voc a olhava, cobiando-a.

  • 31

    Olhava como fazia com todas as mocinhas, achando-as bonitas. Foi s isso. Voc no me engana! - falou o delegado em um tom de voz alto e furioso. Fingia ser sonmbulo para tentar esconder seus crimes. Queria as meninas e as matou. Mas no se alegre, pois para onde ir no ser agradvel. Ter o castigo que merece! Sou inocente! - exclamei. Cale a boca! - gritou o delegado, batendo com a mo na mesa. Seno esqueo a ordem do juiz e lhe dou uma surra! Volte para sua cela! Guarda, trancafie esse monstro! No sei como pude falar isso tudo. Acho que foi pelo desespero de ser acusado de algo que no fiz ou que no me lembrava de ter feito. O guarda me puxou e voltei para a cela. No queria acreditar que isso estava acontecendo comigo! Nada disto devia ser verdade! tarde, Jos Lus veio me ver. Oi, Nic! Oi, Jos Lus! Como deixaram voc entrar aqui? O dono da marcenaria me trouxe. Aproveitando que o delegado saiu, ele pediu a um guarda que amigo dele para me deixar entrar. Como est voc? Muito mal, apavorado, desesperado - respondi, chorando. Os outros detentos vaiaram e riram. Estou com medo deles - falei baixinho. Querem pegar-me. Jos Lus, voc sabe que no matei ningum. Pelo menos voc acredita em mim, no ? Acredito! - afirmou meu amigo. Falei para eles que voc inocente, mas tambm no acreditam em mim. Tive medo do delegado. Ele foi ontem tardinha ao orfanato interrogar-nos. Aquele safado do Jlio Csar disse que voc quase o matou apertando o pescoo dele. Nunca ouvi tanto falatrio! Ainda bem que dona Crmen acompanhou o delegado nos interrogatrios. Por ser seu amigo, a polcia insinuou que participei tambm desses assassinatos. Apavorei-me! Jurei que voc realmente se levantava dormindo, que fizemos algumas brincadeiras, mas que de facto era sonmbulo. Nic, perto do cadver dessa ltima moa assassinada encontraram o canivete que voc deu para o senhor Olavo. Ento foi ele! - exclamei esperanoso. Tambm acho - afirmou Jos Lus , s que no pude dar minha opinio. Quando o delegado comentou que foi achado o canivete, ele mesmo concluiu que voc devia ter comprado dois. Dona Crmen disse que isso era fcil de saber, que era s perguntar ao dono da loja. Interrogado, o senhor Olavo falou que o canivete dele havia sumido. Conversando com os meninos, a polcia ficou sabendo que mexamos nos objectos do senhor Olavo, que pegvamos a chave do portozinho, por isso concluram que pegamos outras coisas.

  • 32

    O senhor Olavo acusou-o, disse que o achava culpado, que sempre desconfiou de voc por ser muito estranho. Velho safado! ele quem est sempre olhando as meninas! Mesmo com medo, defendi voc, contei ao delegado que achava que o senhor Olavo era o assassino. Dona Crmen o defendeu. Mandou que me calasse e disse para o delegado que no poderia ter sido seu empregado, uma pessoa de confiana, que trabalhava havia mais de vinte anos no orfanato. Quando ficamos sozinhos, dona Crmen confidenciou-me: Jos Lus, tambm quero acreditar que no foi Nic, mas no foi Olavo. Ele, por um acidente, impotente, no consegue ter relaes sexuais, entendeu? No o acuse mais! No acredito nisso! - exclamei. Nem eu! Para mim o senhor Olavo inventou tudo isso para despistar. O delegado bateu em voc? Pensei que ele ia me bater quando me fez perguntas. Contei o que aconteceu. Que horror! - falou Jos Lus. Voc foi corajoso indo falar com o delegado. Ainda bem que temos o senhor Ciro! Se no fosse ele, o que seria de voc, meu amigo? O melhor voc ir para esse hospital e fazer um tratamento. Talvez voc melhore! um alvio voc acreditar em mim. Nunca menti para voc - disse. Sei que voc no est mentindo, Nic! Mas esto falando que voc matou dormindo e que no se lembra. No posso ter feito isso! No posso! V e se cure amigo. Obrigado! - falei baixinho. Acho Nic, que ficarei marcado para sempre por ser seu amigo! - comentou Jos Lus, desolado. Abraamo-nos e ele foi embora. Chorei e escutei os comentrios dos outros presos e dos policiais: O monstro mata e chora! Como queria peg-lo e castig-lo! Embora com medo, no me importei com os comentrios e chorei at cansar. Sofri muito, estava exausto, desesperado e com dores. noite, temi dormir, mas acabei adormecendo.

  • 33

    Captulo 6 - O Sanatrio Acordei de manh com o guarda trazendo-me o caf. Tomei-o devagar, pensando como seria o hospital para onde me levariam e como seria tratado. Se o delegado falou que iria sofrer, certamente o sanatrio era um lugar horrvel. Nic! Era o senhor Ciro. O guarda abriu a cela e ele entrou com uma mala. Crmen colocou aqui tudo o que seu. No se esquea de colocar nessa mala as roupas que vieram ontem. Partir s dez horas. Senhor Ciro, sou inocente. No fiz nada do que me acusam. Por favor, no tem como eu ficar na cidade e voltar para o orfanato? Nic, as evidncias apontam para voc. Tudo nos leva a acreditar que voc cometeu esses crimes. Se no est fingindo, cometeu-os dormindo. Voc no pode ficar livre, seno matar de novo. E no posso pedir para deix-lo aqui. Esta cela era ocupada por outros e, para que ficasse sozinho, eles foram para outras celas, com outros prisioneiros, mas devero voltar. Se voc ficar com outros detentos, eles o maltrataro. Para onde ir, os internos so doentes e no lhe faro mal. Vou acompanh-lo at a estao. Paguei as passagens para transferi-lo rpido. O senhor Ciro saiu da cela, ouvi-o conversar com o delegado. Arrumei meus pertences. O guarda veio buscar-me. Colocaram as algemas nos meus pulsos. Entramos no automvel do senhor Ciro. Ele pediu que me abaixasse para que ningum na cidade me visse sair. O trajecto foi rpido, quase correndo atravessamos a estao ferroviria e entramos no trem. O senhor Ciro ficou parado, olhando-me, mas eu s consegui dizer: Obrigado! Eu estava muito triste e esse sentimento doa-me no peito. Colocaram-me sentado num banco, algemado, no meio de dois soldados. A viagem foi montona. Quando chegamos estao de uma outra cidade, pegamos um carro que j estava nos esperando e fomos para o sanatrio. Era de tarde, estava frio e nublado, e de cabea baixa, no me interessei em ver nada. Paramos diante de um prdio grande e fechado. O porto se abriu, entramos. Fomos at uma sala, onde sentamo-nos e nos ofereceram gua. Um senhor leu os papis que um dos policiais lhe dera, pediu para me tirarem as algemas, e dispensou-os dizendo-me: Daniel, sou o enfermeiro Antnio. Venha comigo! Atravessei os corredores como se me arrastasse. Aqui o quarto em que ficar. Sabe usar o banheiro? Sim?

  • 34

    Ento tome um banho e coloque outra roupa sua. Aqui temos uniformes, mas como estes so poucos e alguns doentes trazem roupas, eles vestem o que tm. Voc tem agasalho? Est muito frio, se no tiver, pea-me que lhe arrumo um. Trarei uma sopa quentinha para voc. Tomei um banho quente, troquei de roupa e tomei a sopa. Senti-me melhor. Fui para o dormitrio, que era parecido com os do orfanato, s que tinha mais leitos. Deitei-me na cama que Antnio me indicou. Estava cansado. Observei o local. A pintura era velha, como o mobilirio e as camas, feias. Oi! Sou Jos! Eu sou Geraldo! Como se chama? Respondi com monosslabos. O dormitrio era ocupado por homens e achei-os estranhos. "So doentes" - pensei. Arrumaram-se para dormir. Antnio veio e foi dando remdio para todos. Deu-me um comprimido e ordenou: Tome Daniel. Com este remdio dever dormir melhor. Amanh o mdico o examinar. Tomei e dormi. No outro dia, aps o desjejum, um enfermeiro conduziu-me a uma sala onde um mdico j idoso me cumprimentou: Sou o doutor Estevo, bom dia! Daniel, voc sonmbulo! Levantou-se esta noite e andou pelo quarto, apavorando seus companheiros. Nisso, um enfermeiro entrou na sala e os dois me ignoraram - ficaram conversando sobre mim: Ele acusado de assassinar trs moas. Est aqui no relatrio que o juiz nos mandou. Esta noite levantou-se e andou pelo quarto. O enfermeiro Antnio no conseguiu acord-lo. Pode ser perigoso! Sonmbulo normalmente no acorda fcil - explicou o mdico. E no acredito que algum mate em estado sonamblico. Ento ele finge muito bem! - comentou o enfermeiro. Vou tratar dele! um caso novo e digno de estudo. Pode sair, vou examin-lo. O enfermeiro saiu. O doutor Estevo olhou-me, sorriu e indagou: Sente alguma coisa de diferente? Dor? Tenho dores pelo corpo, o delegado me bateu - respondi. Essas dores passam. Para melhor trat-lo, voc no pode mentir para mim. Sou mdico e vou cur-lo! Sim, senhor. S falo a verdade. Tambm quero curar-me - falei esperanoso. Isso bom, a vontade interfere no tratamento. O doutor Estevo me fez vrias perguntas, examinou-me e concluiu:

  • 35

    Seu corpo est saudvel! Um pouco magro, mas nada que uma alimentao adequada no resolva. Por hoje s. Vou receitar uns medicamentos. O remdio me deixou prostrado, ficava somente deitado e meu sono era estranho. Acordava com algum me chacoalhando para que me alimentasse. Sentia-me muito mal. Queria raciocinar, levantar, andar e no conseguia. Mas levantei-me dormindo. Antes de tomar o remdio, fui conduzido sala do mdico. Doutor Estevo - pedi , por favor, no quero ficar assim, s dormindo. Mesmo tomando esses remdios, voc tem se levantado dormindo. incrvel! Piorou com o stress, com todas essas mudanas! Doutor, por favor, por que o senhor no me deixa trancado? Vi uns quartinhos perto do dormitrio. Voc quer ficar trancado? - perguntou o mdico. Aqueles quartos so para pacientes perigosos. Quero ficar l apenas noite, para dormir. Por favor! - roguei-lhe. Est bem, vou suspender sua medicao. Vou ter de conversar com voc para saber que doena tem para depois trat-lo. Vou pedir para arrumarem um daqueles quartinhos e voc dormir trancado. Acho que o melhor a fazer. Assim voc no assustar mais os doentes. Obrigado! Perto dos dormitrios havia um corredor com cinco quartos pequenos com grades nas janelas. Antnio arrumou um para mim, ele tinha um armrio e uma cama. Coloquei com dificuldade meus pertences no armrio e fui dormir. Sem os remdios, dois dias depois estava bem. Percebi que os doentes levavam uma vida muito montona. Havia horrios para tudo: dormir, acordar, alimentar-se, tomar banho e ir para o ptio. Achei-os estranhos e s vezes tinha medo de alguns deles. "So doentes, e se eu no estiver, vou ficar!" - pensava. Vi um doente usando a minha roupa e reclamei para Antnio. Aqui difcil saber o que de quem. S tem um jeito de no misturar suas roupas: se voc mesmo as lavar. Como estava me sentindo bem, fui lavar minhas roupas. No sanatrio, no se passavam as roupas - ns as vestamos amarrotadas. A alimentao no era boa, a maioria dos alimentos era doada. No era um lugar de muita higiene. Existia espao para fazer uma horta, mas nada estava plantado. Havia poucos funcionrios e muito trabalho. Conversei com o doutor Estevo sobre isso. Acho que algumas tarefas para os internos sero como uma terapia. Vou conversar com o prefeito da cidade sobre isso, talvez ele nos ajude - respondeu o mdico. Dois dias depois, dois homens, empregados da prefeitura, vieram com ferramentas e mudas. Ofereci-me para ajudar e outros internos tambm. Somente usvamos as ferramentas com os empregados por perto, vigiando-nos.

  • 36

    Algumas mulheres internas passaram a ajudar na limpeza e na cozinha, melhorando a higiene. A horta logo ficou bonita e tivemos mais opes nas refeies. Tambm pedi tintas para pintar o sanatrio. Vieram outros homens e pintamos o prdio, melhorando seu aspecto. E muitos internos sentiram-se melhor com a terapia do trabalho, como dizia o doutor Estevo. No recebi nenhuma notcia do orfanato, escrevi cartas para dona Crmen e Jos Lus, mas no obtive respostas. Desconfiei que o secretrio do sanatrio no as colocasse no correio, porque eu no tinha dinheiro para os selos. "Mas" - pensava sentido - "eles poderiam escrever-me, mandar selos! Ser que acreditam que sou assassino e no querem mais manter nenhum contacto comigo?" Ficava lembrando-se do dia-a-dia no orfanato, se estivesse l, o que estaria fazendo... A saudade doa! O doutor Estevo, no comeo, conversava comigo uma vez por semana depois, essas consultas foram escasseando, pois eram muitos doentes para um nico mdico. Ele fazia muitas perguntas - sobre minha infncia, o orfanato, sobre os crimes, como eu dormia, e se realmente no me lembrava de nada dos meus sonhos. Continuei me levantando dormindo. Todas as noites o enfermeiro de planto trancava a porta do meu quarto e somente a abria de manh. Sabia que continuava sonmbulo porque mexia nas roupas do armrio, trocava de roupa, acordava no cho, e uma vez o fiz dentro do armrio. Certa vez, acordei com os dedos machucados. Percebi que tentara desparafusar os parafusos da janela. Numa manh, o enfermeiro destrancou a porta do meu quarto. Ele disse que o fez como de costume, e que eu respondi ao seu cumprimento. S que no acordei e levantei-me dormindo. De pijama, fui para a portaria e quase sa do prdio. O porteiro gritou comigo, chacoalhou-me. Acordei apavorado, empurrei-o e ele caiu. Fiquei confuso, envergonhado, pedi desculpas ao porteiro. O doutor Estevo veio depois conversar comigo. Que aconteceu, Daniel? No acordei quando o enfermeiro abriu meu quarto e levantei-me dormindo. Quando finalmente acordei, estava confuso, durante alguns minutos no sabia quem era nem onde estava. Foi horrvel! Isso acontece com os sonmbulos quando so acordados. Sentem-se confusos e podem agredir, achando-se atacados. No perigoso acordar sonmbulos quando eles esto andando? - perguntei. No perigoso - explicou doutor Estevo. O que pode acontecer eles ficarem apavorados e agredir, como voc fez. Se o porteiro tivesse falado com voc normalmente, pedindo para que voltasse a se deitar, certamente voc o teria obedecido. Vou ser castigado? - indaguei com medo. No, pode ir. Os internos indisciplinados eram castigados com medicaes mais fortes ou ficavam trancados nos quartinhos; isso quando no tomavam choques que diziam acalm-los.

  • 37

    Todos os internos temiam os castigos que, para o doutor Estevo, eram tratamento, pois no momento no havia outras terapias. O enfermeiro que me acordava passou a abrir a porta, olhar-me e pedir que eu respondesse se estava acordado, conforme orientao do doutor Estevo. Pedi ao mdico que me deixasse ler. Ele no s permitiu como me trouxe livros e revistas. Eu gostava dos romances, emocionava-me com as histrias, sorria e chorava ao l-los. Numa das conversas com o doutor Estevo, ele me confessou: Daniel, no sei como trat-lo. Aparentemente voc sadio. Por que me levanto noite dormindo? A cincia ainda no nos d uma explicao convincente. No acredito que voc tenha matado dormindo. No h registos de sonmbulos que tenham se suicidado ou assassinado. Acho que teria acordado ao usar de violncia. Doutor, eu falo a verdade, no minto, no finjo! Daniel, voc pode ser doente, ter duas personalidades, ter matado e esquecido. Voc no finge, esquece! Meu Deus! Isso muito triste! No quero ser um assassino! - exclamei chorando. No se desespere! Ainda no consegui diagnosticar seu problema. No sei o que aconteceu. Pelo que est escrito no relatrio que o juiz nos mandou, eles no tm dvida de que foi voc quem assassinou aquelas moas. E voc tem um histrico: sua me morreu e voc sentiu muito essa perda, seu pai deu seus irmos; sua madrasta o maltratou, o abandono do seu progenitor, que o deixou no orfanato. O pior foi a violncia que sofreu sendo estuprado pelos moos da fazenda. Na adolescncia, cobiou as garotas e, como no sabia conquist-las, voc usou da fora de sua outra personalidade. Se fiz tudo isso, por que no me lembro? - indaguei. Porque voc doente e vamos trat-lo e cur-lo. "Se no fao tratamento nenhum, como vou melhorar?" - pensei, somente temendo os tratamentos usados ali, no ousei comentar. Quando vou sair daqui? - perguntei. No sei, quando acharmos que est curado. Voc no um doente comum, acusado de assassinato! Passei o resto do dia no meu quarto, chorando. Conclu que nunca iria sair do sanatrio. Pensei ento em fugir. Era difcil sair dali, o prdio era todo cercado de muros altos, sem rvores por perto, apenas se entrava ou saa pela portaria, que era vigiada. Depois, o castigo era terrvel para os que tentavam. E para onde ir se no tinha nenhum centavo? Distraa-me com os livros e aprendi muito com eles. Sentia falta de conversar. O doutor Estevo quase no conversava mais comigo. Os enfermeiros estavam sempre ocupados, e os internos eram doentes. O hospital em que estava internado atendia enfermos que pagavam pelo tratamento; outros como eu recebiam atendimento gratuito.

  • 38

    Certa vez foi internado no sanatrio um senhor que, conforme me disseram, matou a neta de treze anos. Deram a ele muitos medicamentos que o fizeram ficar dormindo. Senti muita pena ao v-lo. No parece criminoso! - opinei. Quem tem cara de criminoso? - perguntou o enfermeiro Antnio. Passaram-se uns dias, diminuram a dosagem dos remdios e ele ficou mais desperto. Conversei com ele. Para mim, no era doente. O doutor Estevo diagnosticou que ele matou em um surto de loucura. Passamos a conversar e um dia ele me confidenciou: Daniel, no matei minha neta, amava-a muito. No possvel matar e esquecer. No posso t-la assassinado e esquecido! O senhor Jos, esse era seu nome, tinha alguns bens, vivo e teve dois filhos, um casal. O filho e a nora desencarnaram jovens, num acidente, deixando uma filha recm-nascida, a neta, que ele e a esposa criaram. Sua filha casou-se e lhe deu trs netos. A esposa dele desencarnara fazia trs anos, depois de muito tempo doente. Numa manh, acordou assustado com os gritos da empregada e, ao se levantar, viu que estava com as roupas de dormir ensanguentadas. E foi encontrado assim, atordoado e sujo de sangue. Soube ento que sua neta fora esfaqueada na cama dela, e a faca, o instrumento do crime, estava com ele, na cama dele. O desespero foi enorme, foi tachado de louco e internado no sanatrio. Na manso, naquela noite, estavam somente os dois - a neta e ele. A casa no fora arrombada nem roubada. Tive muita pena dele, e ele, de mim. Acho que somos assassinos sem querer - disse-lhe. No possvel! Se fiz isso, sou um monstro! - queixou-se o senhor Jos. Nosso sentimento era o mesmo. Um enfermeiro foi contratado. Achei-o esquisito, mas no tnhamos nada a reclamar dele. Era ele quem estava de planto naquela noite e me trancou. Como estava sem sono, fiquei orando. De repente, vi-me no corredor, fui at o dormitrio do senhor Jos e vi o enfermeiro colocar um pozinho incolor no copo de gua que estava na cabeceira do leito do meu amigo. Em seguida, deu o copo e um comprimido para o senhor Jos tomar. Senti que ele no deveria tomar. Apavorei-me, quis gritar, bater no brao do enfermeiro, mas no consegui. Estava de novo no meu quartinho. Levei um susto, no entendi o que me aconteceu. Senti que algo ruim ia acontecer com o senhor Jos. Bati na porta desesperado, chamando o enfermeiro. Ningum me atendeu. Cansado, adormeci. No outro dia, Antnio, ao abrir a porta, deu-me a notcia: Daniel, o senhor Jos morreu esta noite. De qu? - perguntei entristecido. Achamos que foi do corao. Quer v-lo? A famlia j foi avisada, e a filha vir buscar o corpo agora de manh. Antnio, se eu batesse na porta, voc escutaria se estivesse de planto?

  • 39

    Escutaria e no daria ateno, pois voc normalmente faz barulho no seu quarto