O Status Dos Tratados Internacionais de DH No Sistema Constitucional Brasileiro_Renato Braz M....

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 O STATUS DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO  Renato Bra z Mehanna Khamis  Mestre em Dir eito pela Pon tifícia Univ ersidade Ca tólica de Sã o Paulo Professor do Curso de Especialização em Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Professor da Universidade Santa Cecília de Santos Professor da Universidade Católica de Santos Resumo:  O objetivo deste trabalho é apresentar o problema do status  normativo dos tratados internacionais de direitos humanos no sistema constitucional brasileiro, especialmente depois do advento da Emenda Constitucional n° 45. Palavras-chave:  tratados internacionais; direitos humanos.

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O Status Dos Tratados Internacionais de DH No Sistema Constitucional Brasileiro_Renato Braz M. Khamis

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  • O STATUS DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO SISTEMA

    CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

    Renato Braz Mehanna KhamisMestre em Direito pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    Professor do Curso de Especializao em Direito Constitucional da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    Professor da Universidade Santa Ceclia de SantosProfessor da Universidade Catlica de Santos

    Resumo: O objetivo deste trabalho apresentar o problema do status normativo dos tratados internacionais de direitos humanos no sistema constitucional brasileiro, especialmente depois do advento da Emenda Constitucional n 45.

    Palavras-chave: tratados internacionais; direitos humanos.

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    I. Tratados Internacionais

    I.a. Conceito

    De acordo com a Conveno de Viena de 1969, tratado internacional o acordo internacional concludo por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento nico, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominao especfi ca.1

    Complementando o conceito de tratado internacional elaborado em 1969, a Conveno de Viena de 1986 trouxe novos elementos, incluindo entre os sujeitos de direito internacional no s Estados, mas tambm as organizaes internacionais. 2

    A partir do conceito em apreo podemos identifi car os elementos do tratado internacional: primeiro, trata-se de um ato jurdico e, portanto, gera obrigaes entre as partes; segundo, tem por objeto a manifestao de vontade dos sujeitos envolvidos naquela tratativa; e, terceiro, deve ser celebrado na forma escrita.3

    I.b. Classifi cao

    Os tratados internacionais podem ser classifi cados quanto sua forma ou quanto matria neles tratada.

    Pelo critrio formal, os tratados podem ser classifi cados quanto ao nmero de partes ou quanto ao procedimento de aprovao adotado. No que tange ao nmero de partes, eles sero bilaterais se celebrados apenas por duas partes, ou multilaterais, se celebrados por trs ou mais partes. Note-se que por parte queremos dizer centro de interesse. Assim, um tratado internacional celebrado entre um Estado e uma organizao internacional ser bilateral, mesmo que a organizao em questo seja composta por diversos pases. J no tocante ao procedimento os tratados, dividem-se em solenes e de forma simplifi cada. Os primeiros so aqueles que passam por todas as fases necessrias para a sua aprovao, incluindo a anlise do parlamento, enquanto os segundos dispensam formalidades e entram em vigor pela simples assinatura, dispensando a anlise do parlamento.

    Pelo critrio material, os tratados internacionais so classifi cados de acordo com a matria do seu objeto. Nos tratados contratuais, as partes possuem objetivos desiguais que se complementam, como ocorre na ideia clssica de contrato. Os tratados normativos so aqueles que estipulam regras que devem ser obedecidas pelas partes, instituindo, inclusive, direitos e deveres. H tambm os tratados institucionais, que so aqueles que criam organizaes internacionais. Finalmente, existem os tratados que criam empresas para explorao de determinada atividade conjuntamente pelas partes que a instituram (p. ex. hidreltrica binacional 1 Conveno de Viena de 1969, artigo 2, item I, a.2 Conveno de Viena de 1986, artigo 2, Item I, a, subitens i e ii. 3 No obstante a Conveno de Viena determinar como requisito essencial do tratado internacional a forma escrita, a prpria conveno, em seu artigo 3, a, prev que, mesmo quando no respeitada esta formalidade, no estar prejudicada a efi ccia jurdica do acordo.

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    de Itaipu, de propriedade do Brasil e do Paraguai).No que toca aos efeitos dos tratados internacionais, estes abrangem os signatrios ou

    eventualmente terceiros. Os signatrios fi cam obrigados pelo tratado internacional celebrado, sujeitando-se aos seus termos. Isto porque estes passam a integrar o sistema jurdico dos pases signatrios, possuindo a estrutura hierrquica de uma lei nacional - quando no possurem hierarquia maior. J os terceiros, para que possam ser envolvidos no tratado, devem manifestar seu consentimento. Se a previso que envolve terceiro atribuir-lhe um direito, o silncio ser interpretado como aquiescncia. Caso a previso estabelea uma obrigao, o silncio ser entendido como negativa.

    I.c. Procedimento externo de aprovao

    O procedimento para a aprovao de um tratado internacional se inicia com a apresentao da carta de plenos poderes pelo plenipotencirio. Esta carta expedida pelo chefe de Estado, que outorga ao seu portador os poderes necessrios para a celebrao do tratado pretendido. Esto dispensados de portar a carta de plenos poderes o chefe de Estado, o chefe de Governo e o ministro das Relaes Exteriores.

    Logo em seguida, tem incio a etapa de negociaes, na qual os sujeitos internacionais envolvidos buscam estabelecer um denominador comum, que atenda aos interesses das partes envolvidas. nesta fase que deve o ocorrer o acordo entre as partes, sem que haja vcio de consentimento. Afi nal, a existncia de semelhante vcio pode ensejar a anulabilidade da clusula viciada ou a nulidade de todo o tratado.4

    Encontrando-se um denominador comum, ser ento defi nido o objeto do tratado, o qual dever ser possvel, lcito e permitido pelo direito internacional, bem como estar de acordo com a moral.

    Feito isso, passa-se a etapa de assinatura do tratado. A assinatura no tem o condo de gerar obrigaes entre os signatrios. Ela apenas atesta a autenticidade das clusulas pactuadas, as quais sero ainda sujeitas apreciao no mbito interno de cada um deles.

    Se o teor do tratado internacional for aprovado nas instncias internas dos signatrios, ele ser ento ratificado. A ratificao o ato unilateral e discricionrio, proferido no plano internacional, direcionado aos demais signatrios do tratado, no qual a parte expressa a sua vontade em definitivo de responsabilizar-se pessoalmente perante a comunidade internacional nos termos pactuados. Este ato marca o incio da vigncia do tratado celebrado.

    I.d. Procedimento interno de aprovao

    Entre as etapas de assinatura e ratifi cao do tratado no plano internacional, ele passa por um processo de anlise e aprovao no mbito interno do prprio signatrio.

    No Brasil, a competncia do Congresso Nacional para a apreciao do tratado restringe-se aprovao ou rejeio do seu texto. Afi nal, no se admite que este rgo altere o teor do 4 Artigo 52 da Conveno de Viena de 1969: nulo um tratado cuja concluso foi obtida pela ameaa ou o emprego da fora em violao dos princpios de Direito Internacional incorporados na Carta das Naes Unidas.

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    que foi previamente pactuado junto aos demais signatrios no plano internacional. Assim, na etapa de anlise interna, ou o tratado aprovado e vai para ratifi cao, ou o tratado rejeitado e, portanto, no ser ratifi cado.

    Essa anlise inicia-se com a recepo pelo Congresso Nacional de mensagem encaminhada pelo presidente da Repblica, acompanhada de exposio de motivos, elaborada pelo ministro das Relaes Exteriores. A mensagem e a exposio sero seguidas pelo texto com o inteiro teor do tratado.

    Recebida a mensagem, ela ser encaminhada primeiramente para a Cmara dos Deputados, onde tramitar para, posteriormente, caso aprovada, ser remetida para a apreciao do Senado Federal.

    Na Cmara dos Deputados, feita uma leitura em plenrio para que os deputados tomem conhecimento do teor do tratado que se pretende ratifi car. Feito isso, forma-se um processo que receber numerao prpria, e este ser remetido Comisso de Relaes Exteriores, aonde ser designado um relator, o qual proferir um parecer e apresentar um projeto de decreto legislativo.

    O projeto de decreto legislativo, que traz consigo o inteiro teor do tratado, ser ento submetido ao crivo da Comisso de Constituio e Justia.

    Uma vez aprovado nas duas comisses supramencionas, o projeto de decreto legislativo ser submetido votao em plenrio, em turno nico, ocasio em que precisar de qurum de maioria simples (mais da metade dos votos dos deputados presentes na sesso) para que seja aprovado. Uma vez aprovado, ser o projeto de decreto legislativo encaminhado para o Senado Federal.

    Chegando ao Senado Federal, ele ser lido em plenrio para que todos os senadores tomem conhecimento do seu teor. Em seguida, enviado para a Comisso de Relaes Exteriores e Defesa Nacional sendo que, se aprovado pela referida comisso, poder ser includo na ordem do dia para votao em plenrio.

    Uma vez aprovado em plenrio, sem emendas, em turno nico, fi ca dispensada a elaborao de redao fi nal. Assim, o presidente do Senado faz a promulgao do decreto legislativo em nome do Congresso Nacional, atribuindo-lhe um nmero.

    Aps a promulgao do decreto legislativo, o presidente da Repblica expede decreto executivo, dando publicidade ao tratado aprovado. A expedio de decreto executivo condio de validade do tratado no mbito interno, o qual, uma vez publicado, passa a ter fora normativa e revoga as disposies em contrrio.

    I.e. Status normativo dos tratados internacionais

    Uma vez incorporados ao sistema jurdico brasileiro, os tratados internacionais devem ter atribudo a si um determinado status normativo. Afi nal, no mbito interno, a soluo de eventual coliso entre tratado e lei dever passar pela anlise do status normativo, com o qual o tratado foi incorporado ao sistema jurdico.

    Nesse ponto, importante frisar que, salvo previso expressa no Cdigo Tributrio Nacional estabelecendo que os tratados internacionais revogam as leis tributrias em contrrio e vinculam as que lhes forem posteriores5, em nenhum outro dispositivo normativo possvel 5 Art. 98. Os tratados e as convenes internacionais revogam ou modifi cam a legislao tributria interna, e sero observados

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    encontrar disposio semelhante. Desta forma, a defi nio do status normativo dos tratados internacionais em geral - excetuados os tratados com normas de direito tributrio - fi cou a cargo do Poder Judicirio.

    O Supremo Tribunal Federal, rgo incumbido da tarefa, estabeleceu precedente no incio do sculo passado ao julgar, em 1914, um pedido de extradio e declarar em vigor um tratado, apesar de haver lei posterior em contrrio. Na mesma linha, a Apelao Cvel n 7.872, de 1943, estabeleceu que lei no revoga tratado.

    Contudo, em 1977, no julgamento do Recurso Extraordinrion 80.004, o Supremo Tribunal Federal modifi cou o precedente, e passou a admitir a derrogao de tratado por lei posterior em sentido contrrio. A partir da, este passou o ser o entendimento reinante naquela corte.

    II. Tratados Internacionais de Direitos Humanos

    II.a. Status normativo antes da emenda constitucional n 45/2004

    No que se refere incorporao pelo ordenamento jurdico brasileiro dos tratados internacionais de direitos humanos, preciso dizer que sempre existiu discusso a respeito do status normativo com qual os mesmo seriam incorporados. Mesmo antes da reforma constitucional, que incluiu o 3 no artigo 5 da Constituio, muito j se discutia a respeito deste tema.

    Isso porque, para alguns estudiosos, os tratados internacionais de direitos humanos, tendo em vista a matria neles tratada, teriam status de norma supraconstitucional, isto , estariam acima da Constituio. Trata-se, obviamente, de vertente de cunho jusnaturalista, na medida em que atribui a estes direitos de natureza uma posio ainda mais privilegiada do que a da prpria Constituio.

    Por sua vez, outros autores entendiam que os tratados internacionais de direitos humanos possuam status normativo constitucional. Segundo os defensores dessa corrente, o 2 do artigo 5 da Constituio brasileira estabeleceria esta regra na medida em que o dispositivo constitucional invocado determina que os direitos e garantias expressos nesta Constituio no excluem outros decorrentes do regime e dos princpios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil seja parte. Em outras palavras, para os defensores dessa posio, ao determinar a no excluso dos direitos e garantias decorrentes dos tratados internacionais de direitos humanos, estaria este dispositivo atribuindo-lhes status de norma constitucional.

    De outro lad, existiam aqueles que defendiam que os tratados internacionais de direitos humanos deveriam receber tratamento idntico quele dispensado aos outros tratados internacionais, independentemente da matria. Dentre eles, era possvel encontrar duas correntes: a primeira defendia a supralegalidade, porm a infraconstitucionalidade dos tratados internacionais; a segunda preceituava a paridade legal dos tratados.

    Para os que defendiam a primeira corrente, os tratados internacionais, ainda que de direitos pela que lhes sobrevenha.

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    humanos, possuem status normativo superior ao da lei e fundamentam sua posio no princpio da boa-f. Afi nal, no seria possvel o Estado celebrar um tratado assumindo uma obrigao no plano internacional e, posteriormente, eximir-se de cumpri-la, alegando que lei posterior revogou o tratado. Isto, inclusive, est previsto na Conveno de Viena sobre a celebrao de tratados de 1969.6

    J os defensores da paridade legal entendem que a lei interna e o tratado internacional - mesmo que este ltimo verse sobre direitos humanos - possuem a mesma hierarquia, podendo um revogar o outro, utilizando para isto o critrio temporal (lex posterior derogat legi priori).

    No obstante a existncia de quatro correntes distintas, a maior parte da doutrina brasileira polarizou-se em duas delas: a que atribua aos tratados internacionais de direitos humanos status de norma constitucional e a que entendia que estes, assim como qualquer outro tratado, encontravam-se no mesmo nvel das leis, podendo, inclusive, um revogar o outro.

    A discusso chegou ao Supremo Tribunal Federal brasileiro, o qual entendeu que prevalecia o entendimento que atribua aos tratados internacionais de direitos humanos o status normativo de lei, podendo, inclusive, ser revogado por lei posterior.

    Ilustra esse entendimento o julgamento da ADI n 1.480-3/DF, que tinha por objeto a Conveno n 158 da Organizao Internacional do Trabalho (OIT), no qual o Supremo Tribunal Federal considerou que, mesmo se tratando de questo envolvendo direitos humanos, os tratados internacionais esto subordinados Constituio, e esto em situao de paridade normativa com a lei, podendo, inclusive, um revogar o outro.

    II.b. Status normativo aps a Emenda Constitucional n 45/2004

    No ano de 2004 foi promulgada a emenda constituio do Brasil de nmero 45. Esta emenda, dentre outras coisas, incluiu no artigo 5 da Constituio o 3 (antes inexistente), que versa o seguinte:

    3 - Os tratados e convenes internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por trs quintos dos votos dos respectivos membros, sero equivalentes s emendas constitucionais.

    interessante ter em mente que este requisito de votao em dois turnos em cada Casa do Congresso Nacional por qurum qualifi cado idntico ao estabelecido pelo constituinte originrio no artigo 60, 2 para a aprovao de emenda constituio, independentemente da matria:

    2 - A proposta ser discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, trs quintos dos votos dos respectivos membros.

    Um problema se instaurou! Aqueles que defendiam o status constitucional dos direitos

    6 Artigo 27. Direito interno e observncia de tratados: uma parte no pode invocar as disposies de seu direito interno para justifi car o inadimplemento de um tratado. Esta regra no prejudica o artigo 46.

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    humanos comearam a buscar as mais diversas e criativas solues interpretativas para, mesmo com a incluso do 3 no artigo 5 da Constituio do Brasil, manter o status de norma constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos. J os que defendiam a infraconstitucionalidade passaram a afi rmar que, aps a incluso do 3 no artigo 5 da Constituio brasileira, a interpretao sistemtica do princpio constitucional aponta para a seguinte concluso: os tratados internacionais de direitos humanos, assim como qualquer outro tratado internacional ou matria no contrria a Constituio, podero ser alados ao patamar de norma constitucional desde que aprovado pelo qurum qualifi cado previsto para a aprovao das emendas constitucionais.

    II.c. Crtica s interpretaes divergentes

    No obstante o entendimento no sentido de que a nica interpretao que preserva a unidade da constituio ser aquele que pressupe a constitucionalizao formal dos tratados internacionais de direitos humanos, existem outras interpretaes dos dispositivos constitucionais mencionados ( 2 e 3 do artigo 5) que buscam preservar o status de norma constitucional que j era defendido antes por seus interpretes.

    A primeira teoria afi rma que a conjugao dos 2 e 3 do referido artigo estabelecem duas espcies de normas constitucionais. Segundo os defensores desta teoria, os tratados internacionais de direitos humanos aprovados antes da Emenda Constitucional n 45 seriam normas materialmente constitucionais, enquanto os tratados internacionais de direitos humanos aprovados aps esta emenda, com qurum qualifi cado, seriam normas material e formalmente constitucionais. Por conta disso, os primeiros seriam denunciveis, enquanto os segundos no.7

    Isso nos parece uma manobra interpretativa arrojada, porm incabvel no sistema constitucional brasileiro. Afi nal, a noo de materialidade constitucional mencionada pressupe a atribuio de regime constitucional a normas que no esto formalmente na constituio. O problema que, de acordo com a teoria da materialidade constitucional, entre as matrias elencadas como constitucionais, esto os direitos humanos e tambm grande parte das normas de direito eleitoral. Contudo, estas ltimas no recebem o mesmo tratamento por no ser esta a opo da Constituio.

    Ora, admitir a adoo parcial da teoria apenas no que interesse parece-nos casusmo, o que contrrio cientifi cidade do Direito.

    Uma segunda teoria tenta harmonizar a interpretao dos 2 e 3 do artigo 5 da Constituio do Brasil, tambm ela na linha da atribuio do status constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos aprovados antes e depois da Emenda Constitucional n 45.

    De acordo com seus defensores, a emenda constitucional em questo uma manifestao do Poder Constituinte, e por ser uma manifestao de tal natureza, ao incluir o 3 no artigo 5 da Constituio brasileira ela teria ensejado a manifestao do fenmeno da recepo. Em outras palavras, ao incluir o 3 no artigo 5 da Constituio, a Emenda Constitucional n 45 teria recepcionado como norma constitucional os tratados internacionais de direitos humanos anteriormente aprovados, ainda que aprovados sem o

    7 Neste sentido: PIOVESAN, in TAVARES; LENZA; ALARCN, 2005, p. 67-81.

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    qurum qualifi cado.8

    Em que pese o esforo dos defensores dessa corrente, parece-nos que ela sofre de um srio problema estrutural. Isto porque o fenmeno da recepo inerente ao Poder Constituinte Originrio, isto , quele que faz nascer uma nova Constituio e, consequentemente, inaugura uma nova ordem jurdica. Por isso, diz-se que o Poder Constituinte Originrio ilimitado juridicamente.

    Contudo, em que pesem as emendas constitucionais sejam uma manifestao do Poder Constituinte, estas no so manifestaes originrias, mas sim fruto do Poder Constituinte Derivado, ou seja, so frutos de um Poder Constituinte Constitudo, que tem por fi nalidade alterar as normas constitucionais dentro dos limites que a prpria Constituio estabelece. Isto posto, trata-se de um poder limitado e, por sofrer limitao, no pode manifestar o fenmeno da recepo.

    Assim, por ser a Emenda Constitucional n 45 uma manifestao do Poder Constituinte Derivado, no cabe falar no fenmeno da recepo, uma vez que este inerente apenas ao Poder Constituinte Originrio, pois somente este juridicamente ilimitado.

    III. Uma soluo humanista pela Teoria da Constituio

    Segundo parece-nos, o Supremo Tribunal Federal, ao decidir pela paridade legal das normas provenientes dos tratados internacionais, baseou-se num conceito de constitucionalismo arcaico, no mais existente, o qual limita este fenmeno ao simples controle do poder poltico pelo instrumento jurdico da Constituio.

    Todavia, j h algum tempo o conceito de constitucionalismo mudou, pois passou-se a enxergar este fenmeno como possuindo natureza jurdica, poltica e tambm tica.9 Nesta perspectiva, no apenas o controle do poder pelo poder est na essncia da Constituio, mas tambm a garantia dos direitos humanos fundamentais.

    Ao enxergarmos a Constituio como objeto do constitucionalismo, e ao reconhecermos o seu carter tico juntamente com o poltico e o jurdico, somos levados a interpretar o 2 do artigo 5 como estabelecendo o status constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos celebrados pelo Brasil. Por se tratar de norma proveniente do poder constituinte originrio, deve servir como parmetro para o controle de constitucionalidade das emendas constituio que porventura sejam aprovadas.

    Dessa forma, parece-nos que a soluo mais adequada constitucionalmente tambm a mais simples. Tendo por premissa que a Constituio possui um carter tico, poltico e jurdico (simultaneamente), e sabendo que as normas constitucionais servem como parmetro para o controle de constitucionalidade das leis e das emendas Constituio, a anlise do 3 do artigo 5 luz dos dispositivos da prpria Constituio que nos dar a resposta para o problema.

    Como j dissemos, se a interpretao do 2 do artigo 5 que est em consonncia com

    8 Nesse sentido: FRANCISCO, in TAVARES; KHAMIS, 2006, p. 99-105.9 Conceituamos o constitucionalismo como o processo dialtico de natureza tica, poltica e jurdica, que se desenrola no curso da histria a partir de premissas emancipatrias, cuja fi nalidade a criao e a manuteno de uma constituio, a qual dever fi gurar como instrumento de conteno do exerccio do poder pelo prprio poder, e como fonte garantidora da fruio e do exerccio dos direitos fundamentais em sua plenitude. (KHAMIS, 2006, p. 77).

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    o carter tico da Constituio justamente a que atribui status constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos, fi ca claro que o 3 deve ser interpretado tendo por base o contedo jurdico do 2. Assim, est eivado do vcio de inconstitucionalidade o 3 do artigo 5 da Constituio brasileira, includo pela Emenda Constitucional n 45 - uma manifestao do poder constituinte derivado.

    IV. Concluso

    Diante do exposto, parece-nos que uma anlise luz do moderno conceito de constitucionalismo, que reconhece o carter simultaneamente tico, poltico e jurdico da Constituio, leva ao reconhecimento da nulidade do 3 do artigo 5 pelo vcio de inconstitucionalidade. O reconhecimento deste vcio s possvel porque a emenda constitucional que o criou afrontou o contedo jurdico atribudo ao 2 pelo constituinte originrio.

    Bibliografi a

    ALARCN, Pietro de Jess Lora. Reforma do judicirio. So Paulo: Mtodo, 2005.BRASIL. Constitui o da Repblica Federativa do Brasil. 5 out. 1988.CONVENO de Viena sobre Direito dos Tratados. 21 mar. 1986.CONVENO de Viena sobre Direito dos Tratados. 23 mai. 1969.FRANCISCO, Jos Carlos. Bloco de constitucionalidade e recepo dos tratados internacionais. In: TAVARES, Andr Ramos; LENZA, Pedro; KHAMIS, Renato Braz Mehanna. tica, dialtica e constitucionalismo: por uma hermenutica constitucional orientada a valores. So Paulo: PUC-SP, 2006.PIOVESAN, Flvia. Reforma do Judicirio de direitos humanos. In: TAVARES, Andr Ramos; LENZA, Pedro; ALARCN, Pietro de Jess Lora. Reforma do judicirio. So Paulo: Mtodo, 2005.