O teatro performativo: a construção de um operador conceitual

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Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes/Teatro. Área de concentração: Arte e Tecnologia da Imagem.Orientador: Prof. Dr. Luiz Otávio Carvalho Gonçalves de SouzaAutor: Leandro Geraldo da Silva Acácio

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  • Leandro Geraldo da Silva Accio

    O TEATRO PERFORMATIVO:

    a construo de um operador conceitual

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Artes da Escola de Belas Artes

    da Universidade Federal de Minas Gerais,

    como requisito parcial para obteno do ttulo

    de Mestre em Artes/Teatro.

    rea de concentrao: Artes Cnicas - Teorias

    e Prticas

    Orientador: Prof. Dr. Luiz Otvio Carvalho

    Gonalves de Souza

    Belo Horizonte

    2011

  • Para o Arthur e para todos aqueles que,

    de alguma forma, contriburam para a

    construo deste trabalho.

  • AGRADECIMENTOS

    CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior), pela bolsa

    que financiou a pesquisa.

    Ao programa de Ps-Graduao da Escola de Belas Artes, seu corpo docente, discente e

    funcionrios, em especial a Zina Pavlowski.

    Ao meu orientador, prof. Luiz Otvio Carvalho.

    prof. Sara Rojo.

    Aos professores Fernando Mencarelli, Ernani Maletta, Antnio Hildebrando.

    A Tarcsio Ramos Homem, Rita Gusmo, Denise Pedron, Nina Caetano, Clvis

    Domingos, Luiz Carlos Garrocho, Guilherme Frossard.

    Central de Produo do ECUM (Encontro Mundial de Artes Cnicas), em especial a

    Guilherme Marques.

    Aos amigos e companheiros do mestrado: Julia Guimares, Michelle Braga, Letcia

    Castilho (Leca), Joo Valadares, Daniel Furtado, Raquel Castro.

    Aos amigos de sempre: Roberson Nunes, Samiri Coelho (em especial, pela reviso do

    trabalho), Viviane Ferreira (Viva), Leonardo Santiago, Carlos Eduardo Guerra Silva

    (Cadu), Eliane Abreu, Rodrigo Fidelis, Wanderley Moreira, Rita Maia, Elenimar

    Accio, Elisa Belm, Marzia Morais Vieira, Fernanda Abreu, Daniel Borges, Bruno

    Cuiabano, Mnica Ribeiro, Jonnatha Horta Fortes, Escandar Alcici Curi, Henrique

    Mouro, Fbbio Guimares, Lcio Honorato, Ricardo Augusto Carvalho, Eliette

    Aleixo, Thiago Franco, Cristiane Lima, Thales Bedeschi, Saulo Salomo, Lissandra

    Guimares, Erica Vilhena, Matheus Silva, Joyce Malta, Davi Pantuzza, Ana Haddad,

    Adrilene Nunes, Gustavo Braga.

    A minha me, Elizabete Conceio de Carvalho Accio; meu pai, Jorge da Silva

    Accio, e meus irmos, Marcelo Henrique da Silva Accio e Ricardo Augusto da Silva

    Accio.

    A Ione de Medeiros e ao Grupo Oficcina Multimdia (BH/MG).

    Ao Ah! Coletivo.

    Ao Obscena - Agrupamento Independente de Pesquisa Cnica (BH/MG).

    Agradecimento especial a Josette Fral.

  • RESUMO

    O objeto desta dissertao o operador conceitual teatro performativo, formulado pela

    pesquisadora franco-canadense Josette Fral. O teatro performativo abordado como

    uma ferramenta de reflexo e anlise sobre algumas prticas cnicas contemporneas.

    Nosso objetivo o de mapear a pesquisa de Fral, que ainda se encontra em processo de

    elaborao.

    Para Fral, o conceito de performatividade est no centro da discusso da arte e do

    teatro contemporneos. A autora faz uso de duas vises de performance para construir

    sua noo de performatividade. A primeira cultural e antropolgica e segue na esteira

    dos Performance Studies, difundidos pelo diretor e estudioso americano Richard

    Schechner. A segunda viso mais voltada para a esfera artstica/esttica e tem como

    fonte o campo da performance art.

    A dissertao apresenta, ainda, uma reflexo sobre uma das marcas do teatro

    perfomartivo atual, que trabalhar com o recurso ao real, instalando na cena a ideia

    de evento (acontecimento). Ao trazer o real para a cena, a obra pode gerar uma quebra

    momentnea com a iluso (teatralidade), provocando um embaamento nos paradigmas

    da representao tradicional no teatro.

    Palavras-chave: Teatro Performativo. Performatividade. Teatralidade.

  • ABSTRACT

    The object of this dissertation is the conceptual analyzer, performative theater,

    formulated by Franc-Canadian researcher Josette Fral. The performative theater is

    approached along this research as a tool of reflection and analysis of some scenic

    contemporary practices. In these circumstances, our goal is to systematize Frals

    research, which is still in process of elaboration.

    To Fral, the concept of performativity is the center of the debate about art and the

    contemporary theater. Fral uses two visions of performance to construct her notion of

    performativity. The first vision is cultural and anthropologic and follows a course by

    Performance Studies, divulged by the American director and intellectual Richard

    Schechner. The second vision is focused around artistic/aesthetic concepts, and it

    sources from the field of performance art.

    The dissertation also shows a reflection of one of the hallmarks of the current

    performative theater which is working with features of the tangibleestablishing the

    idea of event (occurrence). By bringing the tangible (real) to the scene, the performance

    can create a sudden break of illusion (theatricality), thus creating a disorder in the

    paradigms of the traditional representation in theater.

    Key-words: Performative Theater. Performativity. Theatricality.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    QUADRO 1 Atos rituais e artsticos segundo Cohen (1989) .............................. 24

    QUADRO 2 reas e respectivos conceitos relativos ao teatro performativo ........ 59

    QUADRO 3 Alguns aspectos, procedimentos e conceitos relativos ao performer e ao

    ato performativo ................................................................................................. 70

    QUADRO 4 Principais conceitos estudados durante o desenvolvimento desta

    dissertao ................................................................................................................ 71

  • SUMRIO

    INTRODUO ...............................................................................................................9

    Do percurso e das motivaes .................................................................................... 9

    Do processo de pesquisa ........................................................................................... 10

    Entrevistas ................................................................................................................. 11

    A estrutura do trabalho ............................................................................................ 11

    CAPTULO 1 .................................................................................................................13

    ESPECULAES SOBRE TERMOS NO CAMPO DA PERFORMATIVIDADE13

    1.1 Leituras sobre as noes de performatividade ................................................... 13

    1.2 O conceito de performatividade aplicado ao teatro........................................... 25

    CAPTULO 2 .................................................................................................................30

    ABORDAGENS TERICAS SOBRE TEATRALIDADE .........................................30

    2.1 Breve histrico sobre a origem do termo teatralidade ..................................... 30

    2.2 Reflexes sobre acepes em torno do termo teatralidade .............................. 31

    2.3 Teatralidade e mmesis ...................................................................................... 37

    2.4 O espao potencial como fundamento da teatralidade ................................. 39

    2.5 Ideias relativas a teatralidade e ao sujeito performer, por Josette Fral ...... 41

    CAPTULO 3 .................................................................................................................50

    DO TEATRO PERFORMATIVO: A POTICA PERFORMATIVA DE JOSETTE

    FRAL............................................................................................................................50

    3.1 O teatro performativo: aproximaes e caractersticas .................................... 50

    3.2 O performer e o ato performativo ...................................................................... 56

    3.3 A teatralidade e a circunstncia do real no teatro performativo .................... 61

    3.4 O procedimento da colagem relacionado ao teatro ......................................... 68

    ... CONSIDERAES FINAIS? ..................................................................................72

    REFERNCIAS ............................................................................................................74

    Entrevistas ................................................................................................................. 76

    Internet ...................................................................................................................... 77

    Mensagens eletrnicas .............................................................................................. 77

    ANEXOS ........................................................................................................................78

    ANEXO I Correspondncia com Josette Fral ...................................................... 78

    ANEXO II Entrevista com Josette Feral (Professora e pesquisadora) ................ 80

    ANEXO III Conferncia de Josette Fral ............................................................... 87

  • 9

    INTRODUO

    Vrias motivaes podem levar escolha de um tema e

    delimitao de um feixe de interesses: motivaes ideolgicas,

    estticas e at afetivas. Evidentemente existe uma combinao

    desses fatores, mas, talvez, o mais importante seja mesmo a

    identificao afetiva atravs da empatia com a obra e o

    processo criativo de alguns artistas.1

    Do percurso e das motivaes

    No surpreende que grande parte das pesquisas acadmicas esteja inevitavelmente

    inserida em processos passveis de modificao. Seguramente, o trabalho aqui

    apresentado tambm no foge regra: percalos, indagaes, mudana do foco e da

    especificidade do objeto de pesquisa, recortes e mais recortes. Algo no sentido de

    repetir, repetir, at ficar diferente, como j disse o poeta Manoel de Barros. Contudo,

    desde o incio do trabalho, um desejo se mostrava claro: o de pesquisar o trabalho do

    ator/performer em uma linha de teatro que tivesse aproximao com a performance.

    Acredito que esse desejo vem ao encontro de minha trajetria no teatro arte na qual

    mais me engajei , em que me identifiquei com certo tipo de teatro conhecido como

    teatro de pesquisa ou teatro experimental.

    A pesquisa de que resulta esta dissertao apoiou-se em alguns fundamentos

    estabelecidos no trabalho terico da pesquisadora francesa radicada no Canad, Josette

    Fral, em que ela apresenta a noo de teatro performativo. O trabalho de Fral tem-se

    difundido mundialmente no campo da pesquisa em teatro por meio de suas diversas

    publicaes, bem como por suas palestras, cursos e conferncias.

    A sugesto do operador conceitual teatro performativo pode ser vista como uma

    tentativa de definio que d conta das prticas teatrais contemporneas. O que sustenta

    a essncia do estudo de Fral a reflexo de que um espetculo se configura como um

    jogo de tenses entre teatralidade e performatividade, a depender de suas propores e

    dosagens dentro de uma obra. Nesse vis, o teatro performativo coloca-se de forma

    distinta diante da questo da iluso e da referencialidade, trazendo a caracterstica de

    evento(acontecimento), ou seja, daquilo que acontece em cena com e sem mediaes.

    O evento busca no se ater ficcionalidade da narrativa e, por esse motivo, valoriza

    1 COHEN, 1989, p. 19.

  • 10

    mais a ao em si realizada pelo performer e pelas mquinas performativas do que o

    aspecto da representao, no sentido mimtico do termo.

    Do processo de pesquisa

    Lidamos com algumas dificuldades ao pesquisar sobre o operador conceitual teatro

    performativo. Constatamos, desde o incio da pesquisa, a existncia de um vcuo terico

    sobre o tema. Para conceitu-lo de forma mais apurada, utilizamos o artigo de Fral

    Performance et Thtralit: le sujet dsmeystifi (1985) Performance e

    Teatralidade: o sujeito desmistificado, considerado pela prpria autora como um dos

    primeiros passos que ela trilhou para chegar ao termo teatro performativo. Nesse texto,

    a autora aproxima e diferencia o teatro da performance art. Fral parte de trs

    caractersticas fundadoras da performance: o corpo do performer, o

    trabalho/manipulao do corpo do performer, a construo do espao.

    Valemo-nos tambm da obra Cuadernos de teatro XXI, editada na Argentina, em

    2003. Essa publicao traz uma coletnea de textos de Fral intitulada Acerca de la

    teatralidad, em que ela faz uma anlise pormenorizada da questo da teatralidade. O

    estudo de Fral aponta para uma tentativa de definio do termo e, entre outros

    importantes tpicos, a autora comenta a relao entre teatralidade e mmesis.

    Atenta para o estudo da teatralidade h mais de uma dcada, Fral atualmente um dos

    principais expoentes do pensamento sobre essa questo. Como podemos perceber ao

    longo de sua obra, a teatralidade impulsiona a pesquisa de Fral a limites que

    extrapolam o teatro, j que, em seu estudo, encontramos a interlocuo da teatralidade

    com aspectos da vida cotidiana, das artes (teatro, cinema, artes visuais), da linguagem

    artstica da performance.

    Para discutir a questo da importao do real para a cena, aspecto ligado de forma

    bem particular ao teatro performativo, recorremos a outras duas valiosas fontes. A

    primeira foi a entrevista2 que Josette Fral concedeu a mim e jornalista e pesquisadora

    em teatro Julia Guimares, durante o 6 Congresso da ABRACE (Associao Brasileira

    2 A entrevista com Josette Fral foi publicada na revista Urdimento (do Programa de Ps-graduao em

    Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina), n 16, em julho de 2011, perodo em que este

    trabalho estava em fase de finalizao. Disponvel em: .

  • 11

    de Pesquisa e Ps-graduao em Artes Cnicas), na cidade de So Paulo, em novembro

    de 2010. A segunda foi a conferncia O real na arte: a esttica do choque (2010),

    ainda no publicada, proferida por Fral na mesma ocasio.

    Entre os autores brasileiros, utilizamos como referncia a pesquisadora Slvia

    Fernandes, que tambm tem desenvolvido uma importante pesquisa sobre a questo da

    teatralidade. No livro Teatralidades contemporneas (2010), ela tambm recorre

    abordagem de Josette Fral.

    Entrevistas

    Durante a pesquisa, foram realizadas entrevistas com representativos artistas e

    pesquisadores, radicados em Belo Horizonte, que possuem em suas trajetrias um

    interesse (terico ou prtico) tanto pelo teatro quanto pela arte performtica. O material

    resultante dessas entrevistas, embora no tenha sido abordado explicitamente nesta

    dissertao, certamente nos oferece informaes e pontos de vista valiosos sobre

    conceitos, linhas de pensamento, processos criativos.

    Os artistas entrevistados foram: Rita Gusmo (atriz performativa e professora da Escola

    de Belas Artes da UFMG), Denise Pedron (artista, pesquisadora e professora do Teatro

    Universitrio da UFMG), Nina Caetano (dramaturga, pesquisadora, professora da

    Universidade Federal de Ouro Preto/MG e integrante do Agrupamento de Pesquisa

    Obscena/BH/MG), Clvis Domingos (ator, pesquisador e integrante do Agrupamento de

    Pesquisa Obscena/BH/MG).

    A estrutura do trabalho

    O texto da dissertao est dividido em trs captulos e trs anexos contendo a

    correspondncia via e-mail que estabelecemos com Josette Fral, a transcrio da

    entrevista e de sua mais recente conferncia realizada no Brasil, O real na arte: a

    esttica do choque (2010).

    Com o intuito de formular algumas reflexes que nos norteassem antes de chegarmos ao

    termo cunhado por Fral propriamente dito, estudamos, no captulo um, artigos e obras

  • 12

    que trazem noes sobre os termos performativo e performatividade. Buscamos, nas

    origens etimolgica e terica dos termos, uma sustentao conceitual, baseando-nos em

    artigos e obras dos seguintes autores: Richard Schechner (2003, 2006), Diana Taylor

    (2008), Giorgio Agamben (2009), Renato Cohen e Jac Guinsburg (1992), Renato

    Cohen (1989), Hans-Thies Lehmann (2007).

    No nos comprometemos, entretanto, em nos aprofundar nas teorias apresentadas no

    primeiro captulo. Nosso interesse foi levantar alguns aspectos das teorias que embasam

    os conceitos a partir dos quais Fral vai desenvolver sua pesquisa acerca do teatro

    performativo, j que esse sim constitui o objeto da dissertao.

    No captulo dois, focamo-nos nos pressupostos tericos sobre o teatro performativo.

    Nele procuramos traar um panorama do estudo de Fral sobre as questes da

    teatralidade.

    No captulo trs, procuramos ressaltar as principais caractersticas e fundamentos do

    operador conceitual teatro performativo. Tomamos como referncia principal o ensaio

    Por uma potica da performatividade: o teatro performativo (FRAL, 2008). Alm do

    ensaio, recorremos aos seguintes autores: Richard Schechner (2006), Patrice Pavis

    (1999) e Sara Rojo (2010).

  • 13

    CAPTULO 1

    ESPECULAES SOBRE TERMOS NO CAMPO DA PERFORMATIVIDADE

    Segundo Austin, para que exista um ato

    performativo necessrio que sempre exista

    coincidncia entre a palavra e a ao, como no

    enunciado eu batizo. Transladado ao teatro, trata-se, ento, de uma palavra que designa uma

    ao ou de uma ao que performativiza a palavra. Qualquer outro emprego da noo de performatividade uma extenso metafrica.

    por isso que a incorporao desta noo nos

    Estudos da Performance uma total alterao da noo original enunciada por Austin.

    3

    Neste captulo, realizamos apontamentos sobre os termos performativo e

    performatividade, que vo nortear nossas reflexes sobre o termo teatro performativo,

    sugerido por Josette Fral (1993, 2008). No nos comprometemos em nos aprofundar

    nas teorias dos autores trazidos aqui. Essa iniciativa visa apenas tornar o estudo sobre o

    teatro performativo cada vez mais esclarecedor. Para isso, nos valemos de artigos e

    obras dos seguintes autores: Richard Schechner (2003, 2006), Diana Taylor (2008),

    Giorgio Agamben (2009), Renato Cohen e Jac Guinsburg (1992), Renato Cohen

    (1989), Hans-Thies Lehmann (2007).

    1.1 Leituras sobre as noes de performatividade

    Etimologicamente, o vocbulo performativo nasce da palavra inglesa performative,

    criada entre 1950-55, e do verbo to perform, no sentido de executar, realizar, levar a

    cabo; desempenhar-se (como ator, como jogador, msico, danarino etc.)4. Assim, o

    termo performativo indica, por um lado, um adjetivo que qualifica o evento/espetculo

    em que a performance possa ser identificada. Por outro, o termo possui uma conotao

    muito prxima do verbo performar, que sugere um sentido de execuo,

    desempenho.

    A forma objetiva e sinttica como o vocbulo apresentado no dicionrio revela,

    porm, um sentido vernacular um pouco estreito, principalmente quando confrontado

    3 TORO, 2010, p. 159.

    4 PERFORM. In: DICIONRIO Michaelis. Disponvel em:. Acesso em

    25/03/2010.

  • 14

    com os sentidos que os Performance Studies/Cultural Studies, difundidos mundialmente

    por Richard Schechner, atribuem ao termo.

    Richard Schechner (2003, 2006), ao inserir o termo performatividade no campo dos

    Performance Studies/Cultural Studies, inclui nele os rituais, os esportes, o cinema, os

    eventos espetaculares, a poltica, a vida cotidiana, alm de outras abordagens

    antropolgicas.

    Os Performance Studies ou Cultural Studies nasceram nos anos 70, das colaboraes

    entre o ento diretor de teatro Richard Schechner e o antroplogo Victor Turner, e tm

    crescido como um campo de pesquisas acadmicas. Atualmente esses estudos se

    integram a um conjunto de cincias sociais/humanas (sociologia, antropologia,

    lingustica, filosofia, histria) e tambm compem, por si, uma disciplina. Para

    Schechner, performances so aes5. Ele acrescenta que os Performance Studies

    analisam seriamente tais aes em quatro diferentes campos: (1) Comportamento, (2)

    Recepo, (3) Arte, (4) Vida Social e Cultural.

    Alguns se referem aos Performance Studies como uma interdisciplina ou como uma

    ps-disciplina, o que enfatiza a definio segundo a qual a performance se situa entre

    o teatro e a antropologia, e muitas vezes salienta a importncia de serem estudadas

    performances interculturais (rituais indgenas, xamnicos, religiosos), performances

    terroristas (atentados, guerras), performances da vida diria (maneira como os sujeitos

    realizam os aspectos da vida cotidiana), entre outras manifestaes do comportamento,

    como performances ou como se fossem performances.

    Dentro desse amplo estudo de Schechner considerado por muitos pesquisadores uma

    disciplina de incluses , o que nos interessa so os aspectos relativos posio do

    autor acerca do termo performatividade, que contribuir para a anlise sobre a noo de

    teatro performativo.

    5 SCHECHNER, 2006, p. 23.

  • 15

    Schechner, em Performance Studies: an Introduction (2006)6, obra ainda no traduzida

    integralmente para o portugus, dedica todo um captulo ao estudo da performatividade.

    Ele evidencia que tanto esse vocbulo quanto seu termo irmo performativo esto

    em todo lugar: no comportamento cotidiano [na vida cotidiana], nas profisses, na

    internet e nos media [TV, rdio, web, cinema, jornais, revistas], nas artes, [nos rituais],

    na linguagem7.

    A performatividade um tema fundamental dos Performance Studies, por se tratar de

    um campo de pesquisa que forma elos com uma grande variedade de conceitos, teorias,

    termos, discusses. Tais conexes entre disciplinas so, tal como afirma Schechner, por

    vezes complementares, por outras antagnicas, por abranger e colocar lado a lado a

    cincia, as foras armadas, a questo dos gneros (masculino e feminino), a questo das

    raas, a gentica, a filosofia, a performance art 8.

    Nesse importantssimo estudo, Schechner chama ateno para o fato de que, se

    quisermos entender o conceito de performatividade, precisamos nos debruar sobre a

    teoria dos atos da fala segundo os linguistas J. L. Austin e Searle (1962); as diversas

    questes acerca dos media (TV, cinema, rdio, mdia escrita); a simulao; o ps-

    modernismo; o ps-estruturalismo/desconstruo; a construo de gnero (masculino e

    feminino); a construo de raa; e o que ocorre antes, durante e depois da performance

    art.

    Comecemos, ento, por explicitar como Schechner se apropria dos temas ps-

    modernismo e ps-estruturalismo/desconstruo, pois, segundo esse autor, tanto o

    ps-modernismo quanto o ps-estruturalismo so as bases para as teorias acadmicas

    da performatividade9. Ele diz que a prtica do ps-modernismo encontra eco nas artes

    visuais, na arquitetura, na performance art, etc. O ps-estruturalismo, ou

    desconstruo, por sua vez, configura-se como uma resposta acadmica ao ps-

    6 Dessa obra, apenas o captulo 2 foi, at o momento, traduzido para o portugus na revista O Percevejo

    (2003). So nossas as tradues dos trechos dos demais captulos da obra de Schechner. Achamos

    conveniente transcrever, na lngua original (em rodap), apenas as citaes mais longas. 7 SCHECHNER, 2006, p. 123.

    8 A performance art um movimento artstico que surge nos anos de 1960 - 70. Nascida do happening e

    de outras prticas conceituais, a performance art caracteriza-se como uma vertente que abarca um enorme

    guarda-chuva metodolgico e prtico, cujos limites com outras artes (msica, pintura, escultura, cinema,

    vdeo, dana, literatura, fotografia, artes circences, teatro, etc.) no se esgotam. 9 SCHECHNER, 2006, p. 141.

  • 16

    modernismo. Assim, tomados juntos, eles constituem as prticas e teorias da

    performatividade10. Schechner ainda ressalta que os estudiosos e artistas que criaram o

    ps-estruturalismo e praticaram o ps-modernismo foram enfaticamente antiautoritrios.

    Eles reelaboraram as ideias de Austin sobre o conceito de performatividade em

    caminhos outros, que foram filosfica, poltica e esteticamente anti-autoritrios11.

    Para Schechner,

    os ps-estruturalistas [Jacques Derrida, Flix Guatarri e Gilles

    Deleuze, Lyotard, por exemplo] consideram cada fenmeno como

    parte de um fluxo sem fim de repeties e destitudo de uma primeira voz com autoridade mxima. Insistem no processo, pois [...] tudo est em fluxo. O fluxo da experincia e histria o campo de batalha

    para a luta de poder contnua. Quem tem a autoridade de falar na voz do pai? a no ser que haja um pai.12

    Ao mencionar a questo da antiautoridade, Schechner est fazendo uma aluso perda

    da ideia da autoria. No caso dos ps-estruturalistas, por exemplo, essa uma questo

    crucial, pois caracterstico desse pensamento no basear uma anlise em oposies

    binrias entre os objetos analisados. Decerto, o grande mrito do pensamento ps-

    estruturalista instaurar uma ideia de rede e de fluxo, onde no existe mais uma voz

    originria ou a voz do pai, da a necessidade de se formular um pensamento

    antiautoritrio. Schechner acrescenta que hoje os ps-estruturalistas e ps-modernistas

    continuam esse trabalho de subverter a ordem das coisas j estabelecidas13.

    Especulando um pouco mais, o pesquisador considera o termo performativo,

    mutuamente, um substantivo e um adjetivo. Para explicar o performativo como

    substantivo, Schechner parte dos estudos do linguista e filsofo J. L. Austin,

    responsvel por cunhar o termo performative em meados de 1955, quando o conceito

    comea a se configurar como teoria, na poca voltada somente s aes encontradas nos

    enunciados da expresso falada, como podemos perceber na prpria definio de Austin

    para o termo:

    10

    SCHECHNER, 2006, p. 141. 11

    Traduo nossa de [] philosophically, politically, and and aesthetically anti-authoritarian. (SCHECHNER, 2006, p. 141) 12

    Traduo nossa de Poststructuralists regard each phenomenon as part of an endless stream of repetitions with no first voice of ultimate authority. [] In their insistence on process [] everything is in flux. The flux of experience and history is the battleground for ongoing power struggle. Who has the

    authority to speak in the fathers voice except there is no father. (Ibidem, p. 143) 13

    Traduo nossa de Todays poststructuralists and postmodernist continue this work of subverting the established order of things. (Ibidem, p. 141)

  • 17

    O termo [...] performativo derivado, obviamente, do verbo performar [...]: isso implica que a emisso do enunciado a execuo de uma ao. [...] O ato de pronunciar as palavras , de fato,

    o acontecimento principal na execuo do ato.14

    O interesse de Austin era o de pesquisar o performativo somente como contedo

    implcito no enunciado das palavras. Para o linguista, alguns enunciados, por si ss, j

    fazem alguma coisa, j so aes, como podemos observar nas frases lapidares

    citadas por Schechner: Eu denomino esse navio de Rainha Elizabeth, ou Eu aposto

    com voc 10 dlares que vai chover amanh15. Nesses exemplos, a ao j est

    implcita nos prprios enunciados. No entanto, outros enunciados precisariam ser

    confirmados ou se tornariam mais fortes por meio de aes complementares. Tal como

    o sim dito pelos noivos em uma cerimnia de casamento, que normalmente seguido

    pela troca de anis e pela assinatura do casal e de testemunhas para a confirmao do

    ato. De modo geral, tais enunciados estudados por Austin podem ser facilmente

    identificveis nas promessas, apostas, pragas, contratos e julgamentos16. Importante

    observar que Austin j enfatizava a noo de ao como ncleo de sua ideia acerca do

    performativo, como elemento importante para seus estudos sobre os enunciados/atos da

    fala.

    Ao aplicar a teoria dos atos da fala de Austin e Searle ao teatro, a discusso fica

    subordinada ao texto pronunciado pelos atores no momento da representao. No campo

    teatral, Austin considera falsos todos os enunciados ditos por atores/personagens. O

    linguista usava os termos infelicitous (imprprio) ou unhappy (infeliz) ao dizer

    sobre os atos performativos da fala no palco.

    [...] todos os enunciados performativos no teatro eram infelizes. As

    personagens juram, apostam e casam; mas, sendo fico, nada daquilo

    que eles fazem realmente acontece. De acordo com Austin, os enunciados performativos das personagens so parasitas [...] definhamentos da linguagem17.

    14

    Traduo nossa de The term [...] performative is derived, of course, from perform []: it indicates that the issuing of the utterance is the performing of an action. [] The uttering of the words is, indeed, usually a, or even the, leading incident in the performance of the act [] (AUSTIN, 1962, apud SCHECHNER, 2006, p. 124) 15

    Ibidem, p. 123. 16

    Ibidem, p. 123. 17

    Traduo nossa de Austin carried this reasoning further when He argued that all performatives uttered in theater were unhappy. Characters swear, bet, and marry; but, being fictions, none of what they do

    really happens. According to Austin, the performative utterances of characters are parasitic [] etiolations of language. (Ibidem, 2006, p.124)

  • 18

    Para Austin, os atos da fala no teatro tornam-se verdade por estarem dentro dos

    limites de uma conveno. Ele afirma que os atos performativos da fala seriam

    manchados quando aproximados dos limites do teatro. Entretanto, Schechner

    pergunta: A necessidade de os atos performativos da fala serem auxiliados por aes

    aponta para um enfraquecimento ou incompletude deles prprios?18. Alm disso, ele

    afirma:

    Austin no entendia, ou se recusava a apreciar, o poder nico da

    imaginao teatral que se torna verdade cnica [...] O que acontece no

    palco tem consequncias emocionais e ideolgicas para atores e

    espectadores. Os personagens so reais dentro de seu prprio territrio

    e tempo. Tanto atores quanto espectadores identificam-se com as

    personagens, derramam lgrimas reais pelo destino deles, e ficam

    profundamente envolvidos com eles. Na medida em que as

    personagens compartilham suas realidades especiais, seus enunciados

    performativos so eficazes.19

    Por outro lado, a ideia do performativo como adjetivo mais flexvel, e se modifica

    de acordo com o(s) aspecto(s) de uma performance que o termo ir qualificar. Tais

    aspectos podem ser relativos tanto s questes conceituais, filosficas, polticas que

    uma performance suscita por meio de suas aes, quanto s transformaes ou

    atualizaes que uma performance motiva em quem a realiza e/ou presencia.

    Nem todo evento distribui programas ou libretos explicativos e autorreferenciais, porm

    subentende-se que o que compartilhado entre artistas e espectadores foi previamente

    elaborado pelo artista. Por meio dessa elaborao prvia realizada pelos artistas,

    podemos tambm entender o performativo como adjetivo, que, para Schechner, se

    assemelha ao conceito de performative writing (escrita performativa), o qual, na viso

    de Peggy Phelan (1997)20

    ,

    18

    Traduo nossa de Does the need to have performative utterances backed up by actions point to a weakness or incompleteness in the performatives themselves? (SCHECHNER, 2006, p.124) 19

    Traduo nossa de Austin do not understand, or refused to appreciate, the unique power of the theatrical as imagination made flesh. [...] What happens on stage has emotional and ideological

    consequences for both performers and spectators. The characters are real within their own domain and

    time. Both actors and audiences identify with the characters, shed real tears over their fate, and become

    deeply involved with them. Insofar as the characters partake of theirs special reality, their performative

    utterances are efficatious. (Ibidem, p. 124) 20

    Peggy Phelan (EUA) uma das fundadoras do Performance Studies International; ocupou uma cadeira

    na Universidade de Nova York (NYU), no Departamento de Performance Studies, de 1993 a 1996. Ela

    tambm autora das obras Unmarked (1993), Mourning Sex (1997) e Art and Feminism (2001).

  • 19

    [...] diferente de uma resenha crtica ou de um ensaio autobiogrfico,

    embora ela deva muito a ambos os gneros. A escrita performativa

    uma tentativa de encontrar uma forma para o que a filosofia, no obstante, deseja expressar. Em vez de descrever o evento performance em uma significao direta, tarefa que eu acredito ser impossvel e terrivelmente desinteressante, eu quero que essa escrita

    legitime novamente a fora afetiva do evento performance, como ela

    tem sido autenticamente reconhecida h sculos, ativando-se pelos

    processos de alterao psquica (represso, fantasia e algazarra geral

    do inconsciente individual e coletivo), e revigorando-se pela fora

    muscular da represso poltica de toda violncia que muda ao longo

    dos tempos. [...] A escrita performativa impressiona e cheia de

    emoo at mesmo quando ela enrgica e experimental. Alterna o

    ousado e o tmido, o controlador e o involuntrio, essa escrita volta-se

    para si mesma e para as cenas que a motivam.21

    Dessa forma, estamos entendendo aqui que o performativo como adjetivo sugere, de um

    lado, sublinhar as ideias, as questes sobre as quais uma performance artstica se

    sustenta, na tentativa de dizer algo, de passar uma ideia para os que participam da

    experincia. Nesse sentido, o performativo parece cumprir a tarefa de reafirmar e

    reforar a performance enquanto evento e salientar, com essa reflexo, sua fora afetiva

    por meio da relao do pblico e do artista com a obra. A pesquisadora americana Diana

    Taylor (2008), no breve e interessantssimo artigo Hacia una definicin de

    performance22, compara as colocaes de Austin com as de Judith Butler, a qual

    tambm escreve sobre o performativo como adjetivo:

    Sin embargo, el marco en que se basa el uso del trmino

    performativity que hace Judith Butler el proceso de socializacin por el gnero de identidad sexual (por ejemplo) son producidos a

    travs de prcticas regulatrias e citacionales es difcil de identificar porque el proceso de normalizacin lo ha invializado. Mientras que en

    Austin, lo performativo apunta al lenguaje que hace, en Butler va en

    direccin contraria, al subordinar subjetividad y accin cultural a la

    prctica discursiva normativa. En esta trayectoria lo performativo

    21

    Traduo nossa de Performative writing is different from personal criticism or autobiographical essay, although it owes a lot to both genres. Performative writing is an attempt to find a form for what philosophy wishes all the same to say. Rather than describing the performance event in direct signification, a task I believe to be impossible and not terrifically interesting, I want this writing to enact the affective force of the performance event again, as it plays itself out an ongoing temporality made

    vivid by the psychic process of distortion (repression, fantasy, and the general hubbub of the individual

    and collective unconscious), and made narrow by the muscular force of political repression in all its

    mutative violence. [] Performative writing is solicitous of affect even while it is nervous and tentative about the consequences of that solicitation. Alternately bold and coy, manipulative and unconscious, this

    writing points itself and to the scenes that motivate it. (PHELAN, 1997, apud SCHECHNER, 2006, p.123) 22

    No caso das citaes dos textos lidos em lngua espanhola, optamos por transcrev-las na lngua

    original, traduzindo-as em rodap.

  • 20

    deviene menos una cualidad o adjetivo de la performance que del discurso.

    23

    H, tambm, o fato de que o termo assemelha-se noo de performance difundida por

    Schechner em Performance Studies: an Introduction, mais exatamente no captulo O

    que performance?. Nesse texto, Schechner amplia o olhar sobre o conceito de

    performance, e ento nos deparamos com um territrio de hibridismos. Tudo pode ser

    performance, ou melhor, tudo pode ser estudado como se fosse performance,

    conforme podemos perceber na seguinte passagem:

    Alguma coisa performance quando o contexto histrico-social, as

    convenes e a tradio dizem que tal coisa performance. [] Pelo ngulo de observao do tipo de teoria da performance que proponho,

    qualquer coisa performance. Mas sob o ngulo da prtica cultural,

    algumas coisas sero vividas como performances e outras no; e isto

    ir variar de uma cultura ou de um perodo histrico para outro.24

    Nos Performance Studies, os termos performativo e performatividade so tratados

    como conceitos no sistematizveis, que adquiriram um largo campo de significaes.

    Um desses campos de que Schechner nos d indcios em sua teoria da

    performatividade a aproximao entre arte e vida. Essa aproximao tem fomentado

    um grande debate sobre o entendimento da arte e do comportamento humano no mundo

    contemporneo25

    .

    23

    Com certeza, o marco em que se baseia o uso do termo performatividade como faz Judith Butler o processo de socializao pelo gnero de identidade sexual (por exemplo) produzido atravs de prticas

    regulatrias e citacionais difcil de identificar, porque o processo de normalizao tornou-o invivel. Enquanto em Austin o performativo aponta linguagem que faz, em Butler vai em direo contrria, ao

    subordinar subjetividade e ao cultural prtica discursiva normativa. Nessa trajetria o performativo

    define menos uma qualidade o adjetivo da performance que do discurso. traduo nossa (TAYLOR, 2008, p. 31-32). 24

    SCHECHNER, 2003, p. 37. 25 J que estamos nos referindo questo do contemporneo, parece-nos pertinente, neste trabalho, trazer uma sntese sobre o que se tem discutido sobre o tema. Como referncia para o assunto, temos o breve e

    denso ensaio O que o contemporneo? (2009), do filsofo italiano Giorgio Agambem. Na tentativa de responder s perguntas o que o contemporneo?, bem como o que significa ser contemporneo?, Agambem coloca em dilogo autores que, para ns, se encontram a certa distncia temporal (Friedrich

    Nietzsche, Roland Barthes, Michel Foucalt, Walter Benjamin). Para o autor, somente podemos ver a

    temporalidade do presente de maneira imperfeita, suspensa. Nesse sentido, o contemporneo configura-se

    como um eterno retorno que se repete interminavelmente. Esse repetir incessante nunca alcana uma

    origem e, com isso, se aproxima da noo de anacronismo. Agambem cita Roland Barthes, que resumiu a

    questo do contemporneo com a sentena: O contemporneo o intempestivo. Com essa afirmao, Barthes nos lana a ideia do contemporneo numa perspectiva do imprevisto, do sbito, do inoportuno. A

    colocao de Barthes ganha ressonncia com as Consideraes intempestivas de Nietzsche em O

    Nascimento da Tragdia, quando este quer ajustar-se ao seu tempo e posicionar-se diante dele. Para

    Agambem, Nietzsche reivindica sua contemporaneidade, sua atualidade em relao ao presente, mantendo-se ao mesmo tempo desconectado e dissociado deste. Desse modo, verdadeiramente contemporneo aquele que no coincide perfeitamente com este, nem est adequado s suas pretenses e

  • 21

    Para ilustrar esse fenmeno, Schechner recorre a exemplos que podemos encontrar nos

    eventos ao vivo e nos eventos mediados pelos meios de comunicao, sobretudo a TV;

    distino entre digital e original e a toda a discusso cientfica sobre clones biolgicos; a

    performances no palco e performances na vida diria. Com respeito a essas ltimas,

    Schechner diz: Toda a gama de experincias [lutas, revolues, atos polticos]

    compreendidas pelo desenvolvimento individual da pessoa humana, pode ser estudada

    como performance26. No contexto do pensamento de Schechner, a performance est

    tambm ligada s dimenses socioculturais e simblicas do agir humano. Para ele,

    decidir se algo ou no arte, ou se ou no performance, ir depender, sobretudo,

    de contexto, circunstncia histrica, uso e convenes locais27. Como exemplo, o

    autor comenta sobre objetos ritualsticos que em determinada poca eram tidos como

    sagrados e em outros contextos socioculturais foram tidos como obra de arte, tal como

    nos mostram atualmente os museus de artes visuais, repletos de objetos antes

    pertencentes a rituais religiosos ou sagrados.

    Na proposta dos Performance Studies, virtualmente tudo pode ser estudado como se

    fosse performance28. Porm, o fato de um objeto de estudo ser performance tambm

    ir variar de uma cultura ou de um perodo histrico para outro29. Por isso, Schechner

    afirma que rituais, brincadeiras, jogos e papis do dia-a-dia so performances porque

    , portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente atravs desse deslocamento e

    desse anacronismo, ele capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo (AGAMBEM, 2007, p. 58-59). Paradoxalmente, o deslocamento e o anacronismo citados por Agambem nesse trecho sugerem tambm um confronto entre o contemporneo e o passado, para a

    exigncia de enxergar o seu tempo. Contudo, o autor no quer propor nenhuma ideia de saudosismo ou

    nostalgia, mas, pelo contrrio, sua investigao est ancorada numa viso que pressupe um total

    pertencimento do sujeito que no pode fugir ao seu tempo (AGAMBEM, 2007, p. 59). Na discusso do filsofo, o sujeito que experimenta contemporaneidade aquele que dirige fixamente o olhar no seu tempo para nele perceber no as luzes, mas o escuro. O escuro ou as trevas do tempo presente a que se refere o filsofo diz respeito ao sujeito contemporneo e dele exige, alm de coragem, um

    constante questionamento, para tentar perceber uma luz que teima em distanciar-se infinitamente.

    Relacionando a discusso de Agambem com outras de pesquisadores brasileiros, podemos sublinhar uma

    reflexo de Christine Greiner, conceituada pesquisadora e professora do departamento de Linguagens do

    Corpo da PUC-SP, que, em palestra em Belo Horizonte, afirmou: para ser contemporneo preciso no ter muita aderncia ao seu prprio tempo. preciso antever o futuro. Renato Cohen reencontra a questo na obra Work in Progress na cena Contempornea (1998, p. XXVII) e afirma que o contemporneo contempla o mltiplo, a fuso, a diluio de gneros: trgico, lrico, pico, dramtico, epifania, crueldade

    e pardia convivem na mesma cena. Na mesma obra (p. 2), encontramos uma abordagem etimolgica para o termo: contemporneo d uma medida de sincronia de tempo: com (tempo) rneo = sincrnico. Cohen ainda cita trecho da letra da cano Tudo ao mesmo tempo agora, da banda de rock brasileira Tits. 26

    SCHECHNER, 2003, p. 27. 27

    Ibidem, p. 27. 28

    Ibidem, p. 37. 29

    Ibidem, p. 37.

  • 22

    convenes, contexto, uso e tradio dizem que so30. Tomando como referncia o

    teatro, Schechner lembra que a concepo que temos hoje dessa arte (performance

    teatral) no a mesma que a da Grcia antiga, onde as tragdias eram encenadas em

    festivais religiosos e cerimnias competitivas. At mesmo no contexto grego, as

    convenes sociais determinantes sobre o lugar do teatro foram se modificando, pois, ao

    longo do tempo, os aspectos do entretenimento foram se tornando mais fortes, em

    detrimento dos aspectos ritualsticos. Portanto, para Schechner, ser ou no ser

    performance independe do evento em si mesmo, mas do modo como este recebido e

    localizado num determinado universo31.

    Schechner aprofunda sua discusso e busca exemplos mais sutis, observados das aes

    simples, corriqueiras ou ordinrias, como vestir-se, caminhar, conversar com um

    amigo ou, ainda, o modo como uma refeio preparada, ou observando as pegadas

    deixadas por algum ao caminhar no deserto 32. Percebemos, aqui, ecos das ideias do

    americano Allan Kaprow33

    que, segundo Schechner, em meio indefinio em que seu

    trabalho teria sido colocado, como no sendo nenhuma forma de arte, aproveitou o

    ensejo para falar de uma arte-como-vida, diferentemente de uma arte-como-arte. Se

    essa ltima segue a tradio da obra de arte, a outra tem por necessidade o interesse

    pelas sutilezas das pequenas ritualizaes cotidianas, que podem formar, a partir dessas

    experincias possveis, experincias estticas.

    A diluio dos limites entre arte e vida uma importante questo trazida pelos estudos

    da performance. Encontramos, no sculo passado, uma explicao histrica para isso.

    Conforme observado por Schechner, ao longo do vigor artstico localizado no sculo

    XX, no faltaram esforos para tentar fazer desaparecer os limites entre o que era

    performance e o que provavelmente no era uma tentativa que tambm buscou

    distinguir a arte da no-arte e at mesmo os limites entre vida e arte.

    Tal aproximao entre arte e vida procura ver a primeira em relao direta com a

    segunda. Por isso, podemos dizer que se trata de um desmoronamento das fronteiras,

    30

    SCHECHNER, 2003, p. 37. 31

    Ibidem, p. 37. 32

    Ibidem, p. 37. 33

    Allan Kaprow (1927-2006) foi o criador e realizador dos primeiros Happenings em 1959. Os

    Happenings de Kaprow so considerados os precursores da performance art.

  • 23

    que, trazido para o mundo contemporneo, possibilita uma nova viso da arte como

    tambm uma nova viso da vida. Esse novo olhar desencadeia, como consequncia,

    uma interpenetrao desses limites. De um lado desse espectro, est muito claro o que

    uma performance, o que uma obra de arte; do outro essa clareza no existe34,

    escreve Schechner. Nessa colocao, o autor nos lana um problema, pois, se tudo

    performance e se todos ns temos a capacidade (como performers) de transformar

    nossas aes cotidianas em performances, corremos o risco de enfraquecer nossos

    parmetros de anlise.

    Schechner enfrenta, ainda, o problema por outra variao e diz: Na arte, performar

    atuar em um show, num espetculo de teatro, numa dana, num concerto, e acrescenta:

    Na vida cotidiana, performar ser exibido ao extremo, sublinhando uma ao para

    aqueles que a assistem35. O pesquisador se refere ao fato de que ser exibido ao

    extremo, na vida cotidiana, tem se mostrado um forte trao comportamental dos

    indivduos, ou at mesmo uma estratgia cotidiana cada vez mais comum em um mundo

    globalizado. Decerto, o acesso crescente aos aparatos tecnolgicos (webcams, mquinas

    fotogrficas digitais, celulares multifuncionais), usados em parceria com as

    ferramentas que os media proporcionam (internet, TV), contribuem para fortalecer esse

    tipo de estratgia comportamental/performtica. Por toda essa abrangncia de reas e

    interesses, criou-se um amplo leque de significados para a ideia de performatividade, o

    que leva Schechner a caracteriz-lo como um termo difcil de definir36.

    O artista e pesquisador Renato Cohen tambm aborda a discusso sobre arte e vida em

    Performance como linguagem (1989). Para Cohen, a aproximao entre arte e vida

    uma ontologia da performance37. A direo para a qual o termo ontolgico aponta

    nos d a dimenso da relevncia que a discusso sobre os limites entre arte e vida

    impe, sobretudo no campo da arte da performance. Ao voltar-se para o termo

    ontologia, Cohen parece propor uma reflexo a respeito do sentido abrangente do ser

    humano, ou daquilo que torna possvel nossas mltiplas existncias. O autor nos d um

    breve panorama crtico e reflexivo sobre a questo dos limites entre arte e vida no

    seguinte trecho:

    34

    SCHECHNER, 2003, p. 39. 35

    Ibidem, p. 25. 36

    SCHECHNER, 2006, p.123 37

    COHEN, 1989, p. 37.

  • 24

    Tomando como ponto de estudo a expresso artstica performance,

    como uma arte de fronteira, no seu contnuo movimento de ruptura

    com o que pode ser denominado arte-estabelecida, a performance acaba penetrando por caminhos e situaes antes no valorizadas

    como arte. Da mesma forma, acaba tocando nos tnues limites que

    separam arte e vida.38

    Podemos relacionar essa passagem de Cohen com alguns aspectos j mencionados

    acima, a partir das colocaes de Schechner, principalmente no que se refere a uma

    valorizao de situaes cotidianas antes no tidas como arte. Cohen encara essa

    valorizao tambm como um movimento dialtico que quer tirar a arte de uma

    posio sacra e vai buscar a ritualizao dos atos comuns dormir, comer, movimentar-

    se, beber um copo de gua39 , que passam a ser analisados como atos artsticos.

    Para alm da performance art, Cohen recorre a exemplos que perpassam a dana, a

    msica, a literatura, as artes visuais. Cada linguagem artstica, a seu modo, incorpora ao

    seu processo de criao elementos inspirados no cotidiano, que possibilitam um

    aumento de seus potenciais criativos. Organizamos os exemplos dados por Cohen40

    em

    cada campo especfico, no quadro a seguir:

    QUADRO 1

    Atos rituais e artsticos segundo Cohen (1989)

    Linguagens

    artsticas

    Dana Msica Literatura Artes visuais/plsticas

    Teatro/Artes

    Cnicas Elementos

    incorporados

    do cotidiano

    Andar, parar,

    trocar de roupa.

    Personagens

    dirias (e no

    mticas) passam

    a fazer parte das

    coreografias

    (operrios,

    guardas,mulheres

    gordas).

    Referncias: Isadora Duncan,

    Merce

    Cunningham.

    Silncio, rudos

    passam a ser

    vistos como

    formas

    musicais.

    Aleatoriedade.

    Referncias: Eric Satie,

    Stockhausen,

    John Cage.

    Experincias

    tais como a

    proposta

    surrealista da

    escrita

    automtica, em

    que vale o jorro,

    o fluxo e no a

    construo

    formal.

    Referncia: James Joyce.

    Relao

    modificadora com

    o objeto

    representado.

    Referncias: Movimentos da

    arte moderna

    (cubismo,

    dadasmo,

    abstracionismo,

    etc.).

    Quebra com o

    formalismo, com

    as convenes

    que amarram a linguagem.

    Referncias:

    Happening,

    Living Theatre.

    Tambm em artigo posterior, Do Teatro Performance: aspectos da significao da

    cena (1992), Cohen, junto ao professor e pesquisador brasileiro Jac Guinsburg,

    examina tais limites entre arte e vida. Nesse artigo, os autores apontam, como

    38

    COHEN, 1989, p.38. 39

    Ibidem, p. 38. 40

    Ibidem, p. 38-39.

  • 25

    caractersticas desses territrios, a sobreposio das ideias de ato de vida e ato

    artstico. Eles partem da anlise de conceituao mnima do ato teatral, sintetizado pela

    frase um ser atuando num espao/tempo. Com isso, ressaltam o tempo, o espao

    como elementos matriciais das Artes Cnicas, que entrelaam o tnue limite entre arte e

    vida, pois um ser atuando num espao/tempo tanto pode referir-se a um ato de vida,

    como uma pessoa andando na rua, quanto a um ato artstico: um ator caminhando no

    palco. Para eles, a diferena se dar na natureza da inteno41

    .

    Parece-nos bastante til a ideia de intencionalidade trazida por Guinsburg e Cohen, pois,

    por trs de uma inteno, pressupe-se um propsito de algo que o artista queira

    alcanar, um objetivo, um desejo, uma escolha. Assim, pensamos que a inteno do

    artista de colocar em dilogo fragmentos de sua vida e o processo de criao da obra

    contribui com a escrita cnica sob mltiplos aspectos: a representao, a dramaturgia, a

    encenao. Nesse caso, podemos dizer que o artista cnico pode lanar mo de

    materiais de seu cotidiano e de sua prpria vida (habilidades, tcnicas, sentimentos,

    ritualizaes do cotidiano) e us-los como estratgia para tentar fazer disso argumento,

    fazer disso linguagem, fazer disso arte.

    Podemos dizer que esse artista cnico parte de seus elementos autobiogrficos, contudo

    ele tambm pode ir alm. O que dizer das grandes questes abstratas que perpassam a

    vida do homem contemporneo em torno das quais nossa existncia obrigada a girar: a

    Velocidade, a Famlia, o Poder, a Autoridade, etc.? Nesse sentido, arriscamos dizer que

    a performatividade quer unir arte e vida, pois o ato criativo, ao instaurar poticas a

    partir do cotidiano, singular o eu artista passa a ser, simultaneamente, sujeito e

    matria-prima de sua obra.

    1.2 O conceito de performatividade aplicado ao teatro

    Para Fral (1993), em La performance y los media: la utilizacon de la imagen42 (A

    performance e os media: a utilizao da imagem), com a aproximao da

    41

    COHEN; GUINSBURG, 1992, p. 227- 236. 42

    Esse artigo foi escrito por Fral originalmente em francs. Utilizamos como referncia a traduo em

    espanhol publicada em PICAZO, 1993, p. 197-219. Optamos por transcrever na lngua original as

    citaes dos textos estudados em espanhol e traduzi-las em rodap. A traduo nossa, assim como a de

  • 26

    performance, ocorre uma ruptura entre as fronteiras dos gneros e, consecutivamente,

    na relao entre arte e vida. A pesquisadora argumenta que

    toda performance rompe las fronteras entre los gneros e instituye una

    continuidad entre zonas consideradas irremediablementes exclusivas

    de cada gnero; el arte y la vida; las artes mayores y las artes menores,

    los gneros nobles y los gneros vulgares; de igual modo que rompe

    las distinciones, en otro tiempo juzgadas como indiscutibles, entre la

    musica y el ruido, la poesia y la prosa, la realidad y la imagen, el

    movimiento y la danza. Rehusando la ruptura y los comportamientos

    estancos, la performance hace suyo lo que el siglo XIX afirma en su

    totalidad: que la progreson de un nivel a otro, en el seno de la misma

    disciplina, es continua y se hace sobre el modo analgico y no digital;

    afirma que de la danza al andar no hay ms que un paso (cf. el trabajo

    de Pina Bausch), que el sonido de la voz, el martilleo del metal

    son/tienen componentes musicales fundamentales (cf. Meredith

    Monk).43

    Fral destaca duas questes sobre a vasta noo de performance proposta por Schechner

    nos Performance Studies. A primeira delas : Por tanto querer abarcar, no nos

    arriscamos a diluir a noo [de performance] e sua eficcia terica?44. A autora

    defende que a inteno de incluir a ideia de performance no territrio da cultura reflete

    aspectos de uma ideologia originada nos Estados Unidos na dcada de 80 e que ainda

    hoje mantida. Essa ideologia sociolgica e antropolgica quer, sobretudo, investir

    radicalmente contra a separao binria entre cultura popular e cultura de elite, ou

    cultura nobre e cultura de massa. Para alm da arte, os interesses dessa ideologia visam

    o poltico, o cotidiano, o comum, o real. Segundo essa perspectiva artstica, o

    afastamento que ocorre entre a cultura popular e seu contexto poltico e social deve-se a

    uma viso elitista da arte e da cultura popular e que igualmente responsvel pelo

    afastamento da arte das esferas poltica, econmica e social45. Os questionamentos

    sobre a diviso entre cultura popular e cultura de massa so retomados posteriormente,

    todos os outros textos citados em lngua estrangeira. As tradues foram feitas com o intuito de facilitar a

    leitura. 43Toda performance rompe as fronteiras entre os gneros e institui uma continuidade entre zonas consideradas irremediavelmente exclusivas de cada gnero; a arte e a vida; as artes maiores e as artes

    menores; os gneros nobres e os gneros vulgares; de igual modo que rompe as distines, em outro

    tempo julgadas como indiscutveis, entre a msica e o rudo, a poesia e a prosa, a realidade e a imagem, o

    movimento e a dana. Recusando a ruptura e os comportamentos estanques, a performance faz seu o que

    o sculo XIX afirma em sua totalidade: que a progresso de um nvel a outro, no seio da mesma

    disciplina, contnua e se faz sobre o modo analgico e no digital; afirma que da dana ao andar no h

    mais que um passo (cf. o trabalho de Pina Bausch), que o som da voz, o martelo de metal so/tm

    componentes musicais fundamentais (cf. Meredith Monk). traduo nossa (FRAL, 1993, p. 203) 44

    FRAL, 2008, p. 199. 45

    Ibidem, p. 199.

  • 27

    mais exatamente no fim dos anos 80. Dessa vez, as bases que sustentam a reflexo sero

    estticas e filosficas.

    Para Fral, essa noo expandida de performance anuncia, ou pelo menos quer

    anunciar, a morte de um certo teatro, principalmente o teatro dramtico. Da, Fral

    lana a segunda questo: Mas esse teatro est realmente morto, apesar de todas as

    declaraes que afirmam seu fim?46. Para a pesquisadora, a questo merece ser

    colocada, mesmo que ainda no haja resposta para ela. A implicao do teatro

    dramtico estar morto ou no toca em uma questo j anunciada por Lehmann (2007).

    Para ele, essa relao entre teatro ps-dramtico e dramtico no ocorre somente dentro

    de uma postura de negao. Para o pesquisador, considerar o teatro ps-dramtico

    considerar a presena, a readmisso e a continuidade de velhas estticas, incluindo

    aquelas que j tinham dispensado a idia dramtica no plano do texto ou do teatro47.

    Assim, o conceito de performance aplicado ao teatro pressupe uma des-

    codificao/desconveno dos elementos teatrais.

    Na verdade, o que realmente nos interessa compreender no a suposta morte do teatro

    dramtico, mas o tipo especfico de relao que as colocaes sobre o teatro

    performativo (Fral) mantm com o teatro dramtico.

    A noo de teatro performativo48

    apresentada por Josette Fral desenvolveu-se

    principalmente a partir de uma pesquisa que trabalha com duas vises de performance.

    A primeira abarca uma perspectiva antropolgica e intercultural, fundamentada nos

    Performance Studies, de Richard Schechner, que levam em conta aspectos como

    competncia, experincia, poltica, comportamento. A segunda viso, esttica e artstica,

    preserva o legado dos movimentos de vanguarda e da performance art. A partir da,

    Fral prope o operador conceitual teatro performativo, com o objetivo de redefinir o

    teatro que se faz hoje, que, segundo a autora, carrega em seu cerne estas duas

    noes49: teatro e performatividade.

    46

    FRAL, 2008, p. 199. 47

    LEHMANN, 2007, p. 34. 48

    FRAL, 2008, p. 197-210. (Tal abordagem foi tambm apresentada na conferncia realizada na 6

    edio do Encontro Mundial das Artes Cnica (ECUM) - nas cidades de Belo Horizonte e So Paulo, em

    20 e 27 de maro de 2008, respectivamente.) 49

    Ibidem, p. 197.

  • 28

    Para Fral, muitas das caractersticas apresentadas por Hans-Thies Lehmann como

    ps-dramticas, na obra Teatro ps-dramtico, so, sem dvida, performativas. A

    ensasta no se ope anlise de Lehmann, apesar de a palavra-conceito ps-

    dramtico parecer, para ela, inadequada.

    Por certo, o foco da pesquisa de Fral no o de desqualificar o esforo de Lehmann em

    discutir e analisar o teatro contemporneo. No entanto, pareceu-nos relevante trazer, em

    linhas gerais, o ponto de divergncia conceitual entre os dois tericos, para, talvez,

    elucidar melhor o operador conceitual proposto por Fral.

    A inadequao apontada por Fral sobre o conceito de teatro ps-dramtico comea

    pela prpria definio dada por Lehmann para o termo. Citando o pesquisador, a autora

    afirma: O teatro ps-dramtico um teatro que exige um evento [acontecimento]

    cnico que seria, a tal ponto, pura representao, pura presentificao do teatro, que ele

    apagaria toda idia de reproduo, de repetio do real50. Na argumentao de Fral,

    torna-se evidente que no pode existir pura representao do teatro, no mais no

    teatro ps-dramtico que no teatro performativo51. A ensasta defende que o epteto

    ps-dramtico aplica-se a um teatro a operar para alm do drama; isto , que o drama

    nele subsiste como estrutura do teatro normal, numa estrutura enfraquecida e em perda

    de crdito (...)52. A crtica de Fral tese sobre o conceito ps-dramtico parte, a

    princpio, da insistncia de Lehmann em considerar a ideia do drama (como norma

    dramatrgica) como elemento definidor das rupturas que ocorrem nos meios teatrais a

    partir de 1900. Dessa forma, podemos dizer que o ps-dramtico est pautado em outro

    conceito anterior a ele (drama), ou seja, na ideia de ler/pensar a cena a partir de seu

    deslocamento do texto.

    No dilogo entre os dois tericos, encontramos linhas de pensamento comuns, como

    confirma Fral, sobretudo no que diz respeito discusso de Lehmann sobre a

    aproximao entre performance e teatro. Entretanto, apesar das aparncias, para Fral a

    ideia de um teatro ps-dramtico ainda est por vir, pois ela constitui um horizonte

    de espera mais que uma realidade, na medida em que impossvel, para uma forma

    50

    FRAL, 2008, p. 208n. 51

    Ibidem, p. 208n. 52

    Ibidem, p. 208n.

  • 29

    teatral, qualquer que seja, escapar narratividade e, de fato, representao53. Por isso,

    Fral sugere um conceito menos amplo e mais efetivo o de teatro performativo , que

    abarque algumas das prticas cnicas contemporneas.

    53

    FRAL, 2008, p. 208n.

  • 30

    CAPTULO 2

    ABORDAGENS TERICAS SOBRE TEATRALIDADE

    En el teatro dos por dos son tres o bien cinco en

    funcin del grado ms o menos grande de la

    teatralidad puesta en obra.54

    Neste captulo, procuramos traar um panorama do estudo de Fral sobre as questes da

    teatralidade. Utilizamos como fontes principais a obra Cuadernos de teatro XXI

    (2003) de que faz parte a transcrio de um seminrio intitulado Acerca de la

    teatralidad, ministrado por Josette Fral na Argentina, em 2001 , alm de outros

    artigos. O estudo de Fral aponta para uma tentativa de definio do termo teatralidade

    e, entre outros importantes tpicos, a autora comenta sobre a relao entre teatralidade

    e mmesis.

    2.1 Breve histrico sobre a origem do termo teatralidade

    O conceito de teatralidade tem presena constante na pesquisa de Josette Fral. Boa

    parte do material dessa investigao fonte essencial para quem quer estudar o assunto

    foi compilada em um seminrio de cinco dias, ministrado pela prpria pesquisadora

    na Argentina, intitulado Acerca de la teatralidad (Acerca da teatralidade). Nessa

    ocasio, o esforo de Fral foi o de buscar uma definio mais precisa para o termo

    teatralidade, tendo em vista um modo de compreender melhor o teatro (e tambm as

    artes) na atualidade. Para isso, ela utilizou-se tanto de abordagens tericas (filosofia,

    antropologia, artes) quanto de exemplos prticos oriundos de reas como teatro, cinema,

    performance art. A transcrio desse seminrio foi publicada em 2003, na edio

    Cuadernos de Teatro XXI, na Facultad de Filosofa y Letras de Buenos Aires (UBA).

    A origem do conceito de teatralidade atribuda a textos dos encenadores russos

    Nicolas Evreinov e Vsvolod Meyerhold, do final do sculo XIX. Cada um deles,

    porm, utilizou o vocbulo com um significado diferente, conforme consta na

    investigao de Fral55

    . Posteriormente, o vocbulo tambm foi utilizado nos escritos de

    Antonin Artaud, Bertolt Brecht, Adolph Appia. Segundo Fral, nas obras de Constantin

    Stanislavski, nunca foi encontrada alguma referncia ao termo.

    54

    No teatro dois mais dois so trs, ou melhor, cinco, em funo do maior ou menor grau de teatralidade presente na cena (DOSTOIEVSKI apud FRAL, 2003, p.106). 55

    Segundo Fral, a questo da teatralidade como entendida hoje surge nos anos 80. A criao da palavra

    teria se inspirado na literatura, que, a partir dos anos 50, comeou a utilizar a palavra literalidade.

  • 31

    A procedncia do conceito est atrelada a um processo de mudana na maneira de se

    trabalhar a questo da imagem no teatro. No incio do sculo XX, houve um interesse

    em rediscutir a especificidade do teatro, pois suas bases, assim como as de outras

    artes56

    , sofreram mudanas considerveis.

    No caso do teatro, um dos motivos da mudana foi a interferncia progressiva das artes

    visuais na cena. Fral afirma que, de fato, la cuestin de la teatralidad est vinculada

    con la disolucin de los gneros, porque los lmites se hicieron borrosos57. Assim, da

    dificuldade de determinar o que realmente especfico do teatro, surge a necessidade de

    cunhar um termo globalizante (teatralidade), que ajude o teatro a definir-se a si

    mesmo.

    En la medida que se torn ms dificil determinar la especificidad del

    teatro, se intent an ms definirla. No solamente porque la

    teatralidad puede ser encontrada en otros gneros, sino tambin

    porque otras prcticas pueden ser incluidas en el teatro. De manera

    que el teatro se vio obligado a definirse a si mismo.58

    A retomada da importncia do termo teatralidade, principalmente no decorrer do sculo

    XX, se deu pela necessidade de reexaminar as prticas teatrais do sculo anterior,

    pautadas sobretudo no texto, num momento em que, aps as experincias teatrais

    herdadas dos movimentos de vanguarda (futurismo, dadasmo, construtivismo), a

    teatralidade passa a ser vista como um fenmeno visual, ou seja, um fenmeno

    oriundo mais de uma estilizao do que de uma imitao ou cpia da realidade. Fral

    afirma que foram os encenadores Gordon Craig e Meyerhold que defenderam que o

    teatro se convertira en arte a travs de la imagen59, sendo os anos de 1930/40 um

    momento importante para se pensar a questo da teatralidade aps o sculo XIX.

    2.2 Reflexes sobre acepes em torno do termo teatralidade

    56

    A apario da fotografia obriga a pintura a redefinir-se, assim como o advento do cinema (e, junto com

    ele, um novo modo de reproduzir a realidade), exige uma redefinio do teatro. 57

    [...] a questo da teatralidade est vinculada com a dissoluo dos gneros, porque os limites ficaram misturados. traduo nossa (FRAL, 2003, p.47) 58

    Na medida em que se tornou mais difcil determinar a especificidade do teatro, se tentou ainda mais defini-la. No somente porque a teatralidade pode ser encontrada em outros gneros, mas tambm porque

    outras prticas podem ser includas no teatro. De modo que o teatro se viu obrigado a definir-se a si

    mesmo. traduo nossa (Ibidem, p.47) 59

    [...] se converteria em arte atravs da imagem traduo nossa (Ibidem, p. 49)

  • 32

    Fral parte de algumas questes preliminares para aprofundar a discusso sobre a

    teatralidade. Seria a teatralidade um fenmeno especfico do teatro ou tambm existiria

    fora dele? Ou, ainda, seria a teatralidade algo que permite que el teatro exista o, por el

    contrario, si es precisamente porque hay teatro que existe la teatralidad60?

    A ensasta explica que, certamente, o termo teatralidade possui como referncia

    contnua a noo de teatro como lugar de onde se olha. O teatro, dessa forma, carrega a

    noo de teatralidade em seus domnios, quer seja no sentido figurado quer seja no

    sentido literal do termo. Assim, o fenmeno da teatralidade engloba los rituales, el

    carnaval, las cerimnias religiosas, las celebraciones nacionais, las coronaciones, los

    cumpleaos, los desfiles de moda, los deportes, la religin61, extrapolando os limites

    especficos do teatro, devido amplitude de sua aplicabilidade.

    Devido a essa abrangncia, o termo vem sendo utilizado com sentidos muitas vezes

    imprecisos, confusos, em acepes rasteiras, fceis. Da a dificuldade de Fral (e de

    todos os tericos que se debruam sobre o assunto) em definir precisamente a

    teatralidade; trata-se de um conceito amplo e pode ser facilmente confundido com

    outros termos prximos, tais como teatral e teatralizao.

    Tomando como base escritos de filsofos, antroplogos, tericos del

    teatro, nos preguntaremos acerca del concepto mismo de teatralidad,

    tratando de percibir si es una calidad en s misma, si es algo que

    podemos definir con tales o cauales categoras, o si es una cosa

    distinta a una categora tal vez una serie de categoras -, o tal vez un proceso de alguien que trabaja en arte. [...] Es decir, cules son los

    aspectos que se califican con la palavra teatralidad en la

    representacin teatral. Si es el decorado, la escena, el vesturio, la

    actuacin, el uso del espacio, etc. Entonces, un aspecto que vamos a

    estudiar es la teatralidad como producto.62

    Observando-se aspectos como ornamentao, figurino, atuao, uso do espao, a

    teatralidade estar sendo analisada enquanto produto, isto , como resultado do que

    60

    [...] algo que permite que o teatro exista, ou, ao contrrio, se precisamente porque h teatro que existe a teatralidade. traduo nossa (FRAL, 2003, p. 49) 61

    [...] os rituais, o carnaval, as cerimnias religiosas, as celebraes nacionais, as coroaes, os aniversrios, os desfiles de moda, os esportes, a religio. traduo nossa (Ibidem, p. 11) 62

    Tomando como base escritos de filsofos, antroplogos, tericos do teatro, nos perguntaremos acerca do conceito mesmo de teatralidade. Tratando de perceber se uma qualidade em si mesma, se algo que

    podemos definir com tais ou quais categorias, ou se uma coisa distinta a uma categoria talvez uma srie de categorias ou, talvez, o processo de algum que trabalhe com arte. [...] Quer dizer, quais so os aspectos que se qualificam com a palavra teatralidade na representao teatral. Se a ornamentao, a

    cena, o figurino, a atuao, o uso do espao, etc. Ento, um aspecto que iremos estudar a teatralidade

    como produto. traduo nossa (Ibidem, p. 10)

  • 33

    mostrado/visto em cena. Mas, para Fral, a teatralidade deve ser estudada no somente

    como produto, mas tambm como processo. Para isso, tendramos que estudiar

    dnde se inicia y hacia dnde se va y cmo trabajar desde el principio hasta al final del

    proceso teatral63, o que nos possibilita refletir sobre o teatro tanto no aspecto de

    produo quanto no de recepo, conforme iremos discutir mais adiante.

    Fral aponta duas perspectivas, uma negativa e outra positiva, que comumente so

    lanadas sobre a noo de teatralidade. Na viso negativa, a teatralidade se refere a uma

    imagem teatral, ou ainda a pessoas que fazem teatro na vida cotidiana64. Aqui, a

    teatralidade vista como uma atitude de desprezo/desdm. Outra viso negativa do

    termo a sobrestimao, ou seja, a valorizao da teatralidade como uma manera de

    actuacin que no es natural adecuada para formas de teatro que son muy teatrales,

    como a Commedia dellArte65. Ou seja, na viso negativa, ou h desprezo/desdm, ou

    h sobrestimao, e a teatralidade entendida como pouca naturalidade, afetao,

    fingimento, ou ainda associada a uma imagem teatral com apelo ao exagero, ao

    falso, ao caricatural. No entanto, ainda vale perguntar se, no extremo oposto, a cena que

    opta pelo pouco (pelo vazio) estaria se distanciando da teatralidade.

    O grande problema dessa viso de teatralidade que nela est embutido um juzo de

    valor sobre a cena observada. Por que a Commedia dellArte mais teatral? O que

    faz com que um personagem seja mais teatral, nesse sentido pejorativo? Pensando

    dessa forma, tendramos que tener algo para medir la intensidad y cmo podemos

    entonces definir los grados de teatralidad?66. E, aqui, Fral est fazendo uma crtica ao

    usual entendimento de teatralidade, ancorado no sculo XIX, que carrega uma acepo

    antiquada e primeira da palavra, imbuda de velhos parmetros, que, no fundo, querem

    dizer sobre uma imitao, uma cpia malfeita, um teatro.

    Pela viso positiva, o conceito de teatralidade examinado desde sua concepo como

    algo esttico hacia una idea dinmica de la misma67. Nessa perspectiva, a teatralidade

    63

    Teramos que estudar onde se inicia e at onde vai e como trabalhar desde o princpio at o final do processo teatral. traduo nossa (FRAL, 2003, p. 10) 64

    Fral alerta para um cuidado com as palavras. Pessoas histrinicas (Salvador Dali, por exemplo)

    possuem aspecto teatral, mas, para esse caso, existem outras palavras como teatralizao. 65

    [...] maneira de atuao que no natural adequada para formas de teatro que so muito teatrais, como a Commedia dellArte. traduo nossa (Ibidem, p. 12) 66

    [...] teramos que ter algo para medir a intensidade, e como podemos ento definir os graus de teatralidade? traduo nossa (Ibidem, p. 15) 67

    [...]como algo esttico at uma idia dinmica da mesma. traduo nossa (Ibidem, p. 11)

  • 34

    passa a ser vista, ento, como estrutura, ao, movimento, inserida em um jogo de

    relaes no qual entra a figura do espectador, e o sentido de artificialidade colocado

    em segundo plano. Ou seja, para entender a teatralidade como processo, seria necessrio

    levar em conta aspectos intrnsecos ao teatro, tais como o olhar do espectador, a

    inteno de se fazer teatro, a conveno, a representao, a ao construda sobre a

    cena.

    Definir la cuestin de la teatralidad no nos informa sobre la

    teatralidad misma, pero nos permite lograr el anlisis de los cambios

    que afectaron al sujeto y al teatro a travs de los siglos. En otras

    palabras, nos permite hacer um recorrido, la teatralidad aparece como

    un hilo conductor para estudiar el teatro y su historia.68

    A maneira como Fral se refere ao conceito nessa passagem nos leva a perceber que s

    possvel estudar a teatralidade levando em conta os aspectos sociais, culturais, ticos

    e polticos de uma poca. A teatralidade no deve ser considerada, nesse sentido, como

    um conceito universal e imutvel. Talvez da venha certa dificuldade em capt-lo, em

    defini-lo com mais preciso. Fral ainda argumenta que, se se muda a noo de sujeito,

    a noo de teatralidade tambm muda. La nocin de teatralidad nos va a permitir ante

    todo definir nuestra posicin como sujetos69. E, no caso do teatro, tal afirmativa est

    diretamente relacionada com a maneira como o vemos, com os nossos parmetros

    sociopoltico-culturais, e com a ligao que existe entre todas essas questes. Essa

    constatao nos leva a refletir sobre a existncia de uma gramtica teatral ancorada na

    questo da conveno, que se relaciona com a maneira de ver/codificar/decodificar o

    que se est vendo no palco.

    Para que uma conveno se torne efetiva, preciso que haja consenso entre os sujeitos

    nas mais diferentes esferas das atividades sociais. Fral explica que la vida social es

    el resultado de convenciones, de la misma manera que lo es el teatro, significa que los

    68

    Definir a questo da teatralidade no nos informa sobre a teatralidade em si mesma, mas nos permite obter uma anlise das mudanas que afetaram ao sujeito e ao teatro atravs dos sculos. Em outras

    palavras, nos permite fazer um trajeto; a teatralidade aparece como um fio condutor para estudar o teatro

    e sua histria. traduo nossa (FRAL, 2003, p. 17) 69

    A noo de teatralidade nos permitir, antes de tudo, definir nossa posio como sujeitos. traduo

    nossa (Ibidem, p. 17) (Fral se refere ao sujeito no sentido psicanaltico.)

  • 35

    individuos se ponen de acuerdo sobre las convenciones como en el teatro70. As

    convenes sociais so classificadas por Fral em trs tipos principais:

    - Convenes que autenticam/legitimam: o casamento, a primeira comunho na

    religio catlica, as arguies, etc. Esse tipo de conveno autntica perante a Igreja

    (religio), o Estado, as instituies.

    - Convenes retricas: cerimnias de entrega de prmios em olimpadas ou

    jogos, o ritual de ficar em p quando entra o juiz no tribunal, a tradio de vestir toga e

    capelo em cerimnias acadmicas, etc.

    - Convenes como aes: engloba todos os tipos de tratados, sejam eles

    econmicos, militares, de matrimnio, etc.

    Dessa maneira, o estudo das convenes tambm nos fala dos papis que

    desempenhamos em nossa vida social, de nossas representaes, e, por essa razo,

    podemos dizer que tanto o teatro quanto a teatralidade podem ser pensados no como

    sendo a vida, mas como uma metfora da vida. No caso do teatro, estamos nos

    referindo a uma representao duas vezes exercida (representao da vida encenada),

    que assim possibilita gerar a iluso. Fral, refletindo sobre a conveno no teatro de

    Bob Wilson, cita o exemplo de um ator que falava enquanto realizava gestos

    estranhos, sem conexo com o que estava sendo dito. Essa ao tambm consiste numa

    conveno, pois o que est sendo mostrado no deixa de ser uma artificialidade. Nesse

    caso seria uma forma de entender o teatro como um lugar aberto para uma experincia

    relacional da sensorialidade. E nesse sentido que la teatralidad no tiene que ver

    solamente con la historia del teatro, sino que tiene que ver con la historia y con la

    cultura 71. A teatralidade vai depender da forma como ela vista, bem como da forma e

    do meio pelos quais mostrada:

    [...] necesitamos una mnima brecha para construir la teatralidad entre

    la realidad y la ilusin. Esta divisin es fundamental. Donde quiera

    que la encontremos, cualquiera sea su dimensin y su importancia, es

    un principio bsico del teatro y de la teatralidad. Ahora podemos

    plantearnos una pregunta: se debe a que existe esa brecha que existe

    el teatro, y entonces la teatralidad? O es que porque existe la brecha

    70

    [...] a vida social o resultado de convenes, da mesma maneira ocorre com o teatro, significa que os indivduos se pem de acordo sobre as convenes como no teatro. traduo nossa (FRAL, 2003, p. 21) 71

    O que significa que a teatralidade no tem a ver somente com a histria do teatro, mas com a histria e com a cultura. traduo nossa (Ibidem, p. 16-17)

  • 36

    es que existe la teatralidad y luego el teatro? El espectculo mismo es

    que crea la divisin entre la realidad y la no realidad. Esto me lleva a

    una idea de la cual todavia no hemos hablado: la teatralidad

    presupone un acuerdo entre el actor y el espectador.72

    O acordo entre ator e espectador ao qual a autora se refere mais importante para a

    criao da iluso no teatro do que qualquer tcnica ou procedimento (de atuao ou

    esttico) utilizado no palco. Fral cita uma estudiosa americana, Elizabeth Burns, que,

    ao abordar a teatralidade como um estudo das convenes no teatro e na vida social, em

    1972, traz tona o conceito de situao. Podemos compreender a situao como la

    creencia compartida de que nuestras acciones tendrn consecuencias y resultados

    precisos73. Essa ideia de situao pode ser aplicada da mesma maneira no teatro e na

    vida cotidiana. Portanto, essa crena compartilhada entre o ator e o pblico que

    permite ao espectador voltar sua ateno para uma determinada ao realizada em cena.

    Por meio da situao, podemos definir um contexto, um enquadramento.

    La situacin en el teatro es algo totalmente claro. Sabemos que hay

    normas, que hay reglas. Lo interesante es que tambin se aplica a la

    vida real. En sta lo que crea la situacin es la doble conciencia de la

    emergencia de la realidad social y de su relatividad. De manera que la

    situacin en la vida real tambin es en parte ilusin, lo mismo que en

    el teatro.74

    E dessa forma que a situao tambm est ligada ao processo. Havamos

    mencionado a teatralidade vista em seu sentido comum, como resultado ou produto

    (cenrio, figurino, maquiagem, corporeidade e gestos dos personagens). Agora,

    considerando o problema da situao, podemos compreender a teatralidade como um

    processo, tal como proposto por Fral, que consiste fundamentalmente em darle un

    marco a la accin, hecho por el cual concentramos la atencin en una situacin

    72

    [...] necessitamos de uma mnima brecha para construir a teatralidade entre a realidade e a iluso. Essa diviso fundamental. Onde quer que a encontremos, qualquer que seja a sua dimenso e sua

    importncia, um princpio bsico do teatro e da teatralidade. Agora podemos fazer uma pergunta: Seria

    por causa dessa brecha que existe o teatro, e ento a teatralidade? [ou vice versa]. [...] O espetculo mesmo que cria a diviso ente a realidade e a no realidade. Isso me leva a uma idia da qual ainda no

    havamos falado: a teatralidade pressupe um acordo entre o ator e o espectador. traduo nossa (FRAL, 2003, p. 34) 73

    [...] a crena compartilhada de que nossas aes tero consequncias e resultados precisos. traduo nossa (Ibidem, p. 34) 74

    A situao no teatro algo totalmente claro. Sabemos que existem normas, que existem regras. O interessante que isso tambm se aplica vida real. Nesta, o que cria a situao a conscincia dupla da

    emergncia da realidade social e de sua relatividade. De modo que a situao na vida real tambm em

    parte iluso, tal como no teatro. traduo nossa (Ibidem, p. 35)

  • 37

    especfica75, o que nos permite considerar a teatralidade tambm como um

    denominador comum da equao cultura/convenes sociais/ teatro/espectador. Por

    esse motivo que Fral, citando Elizabeth Burns (1972), fala de uma teoria da

    teatralidade que deveria ser lida como uma teoria da percepo. Uma percepo do

    sujeito que olha a cena, sabendo que ali vai haver/h teatro. A teatralidade representa

    tambm o aspecto ldico do teatro, pois

    La teatralidad es el resultado del trabajo potico del artista. Ella es

    juego de ilusiones y de aparncias para el espectador que es llamado a

    centrar su atencin sobre la relacin sujeto/objeto, sobre el

    desplazamiento de los signos que tal relacin presupone.76

    2.3 Teatralidade e mmesis

    Fral estabelece em seu estudo uma aproximao entre os conceitos de teatralidade e

    mmesis, esse ltimo tomado em seu sentido de imitao, conforme a acepo que o

    termo ganhou no campo terico ocidental. Dessa forma, nosso entendimento de

    mmesis, conforme explica Fral, determina a forma como vemos e pensamos a noo

    de representao, conceito que ser importante para nosso estudo a partir deste ponto.

    No iremos nos deter profundamente na questo da mmesis propriamente dita, porm

    parece importante apresentar aqui algumas caractersticas compartilhadas pela mmesis

    e pela teatralidade, segundo a argumentao de Fral:

    1) A abrangncia dos conceitos de mmesis e teatralidade, que extrapolam o

    campo das artes, obriga-nos a refletir tambm sobre aspectos culturais de uma dada

    sociedade.

    2) Os dois conceitos exigem um aprofundamento sobre a ideia de sujeito: a

    mmesis pressupe um sujeito que representa ou interpreta; a teatralidade, um sujeito

    que v.

    3) Tanto na tradio terica filosfica quanto na teatral, mmesis e teatralidade

    so consideradas como pertencentes essncia humana ou ainda como elementos

    fundamentais no modo de funcionamento do ser humano. Em textos antigos,

    75

    [...] dar um enquadramento ao, por meio do qual concentramos a ateno em uma determinada situao especfica. traduo nossa (FRAL, 2003, p. 35) 76

    A teatralidade o resultado potico do trabalho do artista. Ela um jogo de iluses e de aparncias para o espectador, que chamado a centrar sua ateno sobre a relao sujeito/objeto, sobre o

    deslocamento dos signos que tal relao pressupe. traduo nossa (Ibidem, p. 75)

  • 38

    menciona-se o instinto mimtico (que fala de nossa tendncia a imitar ou a

    representar) e tambm o instinto teatral (que fala de nossa tendncia a nos

    transformar). Esse nosso prazer pela representao uma das tpicas diferenas entre os

    humanos e os outros animais.

    4) Mmesis e teatralidade, devido a sua amplitude conceitual e abrangncia de

    campos em que esses conceitos podem ser aplicados, so ferramentas de anlise de

    quaisquer discursos da representao cnica: texto, iluminao, cenografia, figurino,

    atuao.

    5) A forte relao entre as duas noes com o conceito de representao no

    teatro ocorre por duas vias: a primeira a ideia da representao sustentada pela

    trade texto, atuao, histria; a segunda, a ideia de antropomorfismo do ator, j que

    este, conforme explica Fral, faz aluso ao homem em geral, o que no permite ao

    teatro libertar-se da representao.

    Apesar dessa evidente aproximao entre os conceitos de mmesis e teatralidade, Fral

    tambm indica as principais diferenas entre eles, que se do tanto historicamente

    quanto em relao ao funcionamento de cada um dentro do procedimento teatral. Uma

    dessas diferenas est centrada na questo do sujeito, pois

    en efecto, la teatralidad no es outra que una de las modalidad