O TEMA DA ANUNCIAÇÃO EM ORÍGENES E EM MANUEL … · o fragmento do original grego de Orígenes...
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O TEMA DA ANUNCIAO
EM ORGENES E EM MANUEL BANDEIRA
Lus Carlos Lima Carpinetti (UFJF)
RESUMO
Estudaremos o delicado tema da Anunciao, encontrado no Evan-
gelho de So Lucas, no tratamento que lhe do Orgenes, em suas Ho-
milias sobre So Lucas, e Manuel Bandeira no poema Eu vi uma ro-
sa. Buscaremos, nas definies do gnero lrico e nas relaes intertex-
tuais, o suporte terico para tratar esse tema to caro figura de Maria
na literatura do Ocidente, considerando-se estes dois exmios observa-
dores da beleza de to singular momento da histria humana sobre a
terra. Em Orgenes, vemos uma preocupao em descrever a reao
emocional de Maria perante a apario do anjo e de sua saudao. Em
Manuel Bandeira, assistimos a uma evocao indireta da cena da Anun-
ciao, na contemplao de uma rosa.
Palavras-chave: Anunciao. Maria. Homilia. Poesia lrica.
1. Introduo
Abundantemente representado na pintura, escultura,
msica e literatura, e, por extenso, no teatro e no cinema, a
cena da Anunciao do anjo Gabriel a Maria encontra larga
repercusso na histria cultural e religiosa do Ocidente, em ra-
zo inversamente proporcional ao tempo em que este fato se
manteve em segredo por parte de Maria e de seu esposo Jos,
bem como de Jesus Cristo. Foi depois, a um companheiro de
So Paulo, Lucanus, que conhecemos por Lucas, que Maria
mailto:[email protected]
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confiou o segredo da gerao de Jesus. Especialmente a ele,
pois, dentre os evangelistas, a narrativa de So Lucas a que
representa esse momento de modo mais caracterstico de como
este evento aparece representado nas diversas artes menciona-
das acima.
Diferentemente do Evangelho segundo So Lucas, So
Mateus relata o evento a partir do ponto de vista de Jos, futu-
ro esposo de Maria, a quem se apresentava a dvida se deveria
acolher ou no Maria, que se achava, por uma misteriosa cau-
sa, grvida a partir da ao do Esprito Santo. O anjo apareceu
a Jos em sonho, e disse-lhe:
Jos, filho de Davi, no temas receber Maria, tua mulher,
pois o que nela foi gerado vem do Esprito Santo. Ela dar luz
um filho e tu o chamars com o nome de Jesus, pois ele salvar o
seu povo dos seus pecados. (Mt. 1, 20-21)
Mais adiante, no captulo 13, versculo 55-57, So Ma-
teus nos traz a seguinte referncia acerca de Jesus:
No ele o filho do carpinteiro? No se chama a me dele
Maria e os seus irmos Tiago, Jos, Simo e Judas? E suas irms
no vivem todas entre ns? Donde ento lhe vm todas essas
coisas? E se escandalizavam dele...
Para So Mateus, a origem de Jesus dada a conhecer
de modo um tanto parcial, como para todos os galileus e ju-
deus, que o conheciam como filho de Maria e de Jos. A bem
da verdade, fica patente em So Mateus a paternidade de Jesus
atribuda a Jos como adotiva, reconhecendo este evangelista
que Jesus fora gerado em Maria por obra e ao do Esprito
Santo, no adiantando e no revelando mais nada acerca da
origem de Jesus, seno que este era filho de Maria e de Jos.
No se achando nada sobre a gerao de Jesus no Evan-
gelho de So Marcos e de So Joo, plausvel que Maria te-
nha reservado o segredo da gerao e da cena da Anunciao
ao conhecimento de So Lucas, em cujo texto desvela-se inte-
gralmente o segredo da gerao de Jesus. A cena representada
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nas diversas artes no decorrer dos tempos a que nos oferece,
pois, So Lucas, captulo 1, versculos 26-38.
Como trabalharemos com o texto das Homilias de Or-
genes, traduzido para o latim por So Jernimo, cremos que
seja mais produtivo para este artigo reproduzir a narrativa de
So Lucas da Anunciao em latim, mais que o original em
grego, que colocaremos como anexo, para a apreciao dos
leitores versados em grego, tanto quanto colocaremos tambm
o fragmento do original grego de Orgenes correspondente ao
fragmento da homilia que reproduziremos em latim. Eis o tex-
to da narrativa:
In mense autem sexto, missus est angelus Gabriel a Deo in
ciuitatem Galilaeae, cui nomen Nazareth, ad uirginem despon-
satam uiro, cui nomen erat Ioseph, de domo Dauid, et nomen
uirginis Maria. Et ingressus angelus ad eam dixit: Aue gratia
plena: Dominus tecum: benedicta tu in mulieribus. Quae cum
audisset, turbata est in sermone eius et cogitabat qualis esset is-
ta salutatio. Et ait angelus ei: Ne timeas Maria, inuenisti enim
gratiam apud Deum: ecce concipies in utero, et paries filium, et
uocabis nomen eius Iesum: hic erit magnus, et Filius Altissimi
uocabitur, et dabit illi Dominus Deus sedem Dauid patris eius:
et regnabit in domo Iacob in aeternum, et regni eius non erit fi-
nis. Dixit autem Maria ad angelum: Quomodo fiet istud, quoni-
am uirum non cognosco? Et respondens angelus dixit ei: Spiri-
tus sanctus superueniet in te, et uirtus Altissimi obumbrabit tibi.
Ideoque et quod nascetur ex te sanctum, uocabitur Filius Dei. Et
ecce Elisabeth cognata tua, et ipsa concepit filium in senectute
sua: et hic mensis sextus est illi, quae uocatur sterilis: quia non
erit impossibile apud Deum omne uerbum. Dixit autem Maria:
Ecce ancilla Domini, fiat mihi secundum uerbum tuum. Et dis-
cessit ab illa angelus.40
40 No sexto ms, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazar, a uma virgem desposada com um varo chamado Jos, da casa de Davi, e o nome da virgem era Maria. Entrando onde ela estava, disse-lhe: Ale-gra-te, cheia de graa, o Senhor est contigo! Ela ficou intrigada com essa palavra e ps-se a pensar qual seria o significado da saudao. O anjo, porm, acrescen-tou: No temas, Maria! Encontraste graa junto de Deus. Eis que concebers no teu seio e dars luz um filho, e tu o chamars com o nome de Jesus. Ele ser
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Aplicar-nos-emos a estudar as relaes intertextuais e
de definies de gnero dos textos da Homilia VI sobre So
Lucas, de Orgenes, e do poema Eu vi uma rosa, de Manuel
Bandeira. Os textos ou fragmentos de textos sero colocados
como anexos, no final.
2. O gnero parentico na Homilia VI sobre So Lucas, de Orgenes
Como no foi possvel localizar em alguma bibliografia
especializada a definio do gnero parentico, sendo apenas
possvel localizar em dicionrios a indicao de que se trata
to simplesmente de um discurso exortatrio virtude, sem
maiores esclarecimentos, foi apresentada a necessidade de de-
finirmos ns mesmos a natureza do gnero parentico a partir
da observao dos textos que tnhamos em mira, no caso, as
Homilias sobre So Lucas, as quais, como toda homilia, incita
os expectadores prtica de virtudes crists, como a imitao
das virtudes da Virgem Maria, que acolhe a vontade de Deus
Pai, o Criador, de gerar, por obra e ao do Esprito Santo, a
Jesus, que veio salvar e resgatar do pecado os homens e re-
conduzi-los vida eterna. Pela imitao do acatamento da
vontade divina por parte de Maria, que se colocou como serva
do Pai Eterno, o cristo aprende que deve estar aberto a aco-
lher as mudanas que se apresentam como novidades trazidas
pela vida e pela existncia, como uma possibilidade sempre
grande, ser chamado Filho do Altssimo, e o Senhor Deus lhe dar o trono de Davi, seu pai; ele reinar na casa de Jac para sempre, e o seu reinado no ter fim. Ma-ria, porm, disse ao Anjo: Como vai ser isso, se eu no conheo homem algum? O anjo lhe respondeu: O Esprito Santo vir sobre ti e o poder do Altssimo vai te co-brir com a sua sombra; por isso o Santo que nascer ser chamado Filho de Deus. Tambm Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice, e este o sexto ms pa-ra aquela que chamavam de estril. Para Deus, com efeito, nada impossvel. Dis-se, ento, Maria: Eu sou a serva do Senhor; faa-se em mim segundo a tua pala-vra! E o anjo a deixou. (A Bblia de Jerusalm, 1985).
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presente, desafiando nossas economias e previsibilidade, fato-
res desejveis como instncia de conforto e bem-estar.
Sobre esse ponto de vista, de estar aberto a mudanas e
a projetar-se na existncia como ser vivente e atuante segundo
a vontade divina, necessrio estar preparado para receber as
novidades que a existncia humana sempre nos traz a cada ins-
tante. Nesse contexto, a surpresa uma atitude de quem est
vivo diante do espetculo da existncia, no apenas como ex-
pectador, mas como sujeito de suas aes, de seus atos e pala-
vras. nesse contexto que situamos Maria, a virgem de Naza-
r, noiva de Jos, que misteriosamente gerou sem o concurso
de parceiro masculino a Jesus, apenas por obra do Esprito
Santo.
Criada na cultura judaica e habituada leitura e medita-
o quotidiana da Sagrada Escritura, jamais encontrou em par-
te alguma dos textos sagrados a saudao ouvida em um mo-
mento mstico e nico, do arcanjo Gabriel: Aue, gratia plena41.
Se tivesse lido em alguma parte alguma saudao similar, tal-
vez no tivesse tido a surpresa que teve ao ouvir tal saudao.
Pois em nenhuma outra parte, a nenhum outro homem judeu,
que tenha se celebrizado na cultura judaica, fora dirigida esta
saudao, nunca havia lido Aue, gratia plene42, da o estra-
nhamento e o receio que causaram na fragilidade humana de
Maria, que no poderia imaginar que uma misso de tal enver-
gadura, a de pr no mundo o Salvador da humanidade, lhe era
confiada pelo anncio que lhe trazia o anjo Gabriel com as pa-
lavras de que daria luz ningum menos que Cristo.
comum na Sagrada Escritura o temor diante da apari-
o dos anjos, comum que os anjos digam aos personagens
41 Salve, cheia de graa.
42 Salve, cheio de graa.
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que venham visitar que no tenham medo43. Disso, possvel
inferir que os anjos devem ter uma aparncia terrvel ou me-
donha, pelo que causam aos personagens visitados. Nesse sen-
tido diz Orgenes, na sexta homilia de que falamos, que a sau-
dao do anjo no teria atemorizado a Maria, se, pelo menos, a
tivesse ouvido alguma vez na Sagrada Escritura. Mas s a ela
essa saudao dirigida, pela nica vez na vida do Universo,
ela se encontra sozinha diante das palavras misteriosas do ar-
canjo Gabriel, o arcanjo que traz as novas de Deus Pai, Cria-
dor do Universo. Deste modo, se exprime Orgenes:
Numquam quasi peregrina eam salutatio terruisset. Propter
quod loquitur ei angelus: ne timeas, Maria, inuenisti enim grati-
am coram Deo. Ecce concipies in utero, et paries filium, et uo-
cabis nomen eius Iesum. Hic erit magnus et Filius Altissimi uo-
cabitur.44
Na introduo da edio francesa das Homilias sobre
So Lucas (ORGENES, 1998, p. 11-92), os editores Crouzel,
Fournier e Prichon fazem um estudo sobre a excelncia de
Orgenes em seu conhecimento de Mariologia. O fato de Ma-
ria ser a escolhida para ser a me de Jesus, na ocasio de seu
noivado com Jos, o carpinteiro, protege-a contra a suspeita de
adultrio, o que poderia redundar em pena de apedrejamento
pelas instncias da Lei de Moiss. O fato de Jos t-la acolhi-
do, atendendo ao pedido do arcanjo, fez passar opinio p-
blica a atribuio da paternidade de Jesus a Jos, esposo de
Maria, conforme nos atesta a leitura do Evangelho de So Ma-
teus.
43 Como no livro de Tobias, em que, apario do arcanjo Rafael, arcanjo da cura, ficaram ambos (Tobias e Tobit) cheios de espanto e caram com a face em terra, com grande temor. Mas ele lhes disse: No tenhais medo; a paz esteja convosco! Bendizei a Deus para sempre... (Tobias, 12, 16-17).
44 Nunca a saudao a teria atemorizado como se fosse estranha. por isto que o anjo lhe diz: no temas, Maria, achaste, pois, graa junto a Deus. Eis que concebe-rs em teu tero, e dars luz um filho e o chamars pelo nome de Jesus. Este se-r grande, e ser chamado Filho do Altssimo.
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No mesmo estudo introdutrio, os supracitados editores
sustentam, a partir da heresia de judeus e pagos, a suspeita de
que Jesus no havia sido fruto de uma concepo virginal, e
sim que Jesus era fruto de relaes impuras. A heresia adver-
sria da concepo virginal, qual Orgenes responde com
uma polmica (Contra Celso)45 sustenta que Jesus fora gerado
pela unio de Maria com um soldado romano de nome Panthe-
ras. Nesta verso, tal soldado seria o responsvel pela paterni-
dade de Jesus e Maria era uma mulher do povo, que vivia do
trabalho de suas mos, em uma aldeia judaica. Tendo sido re-
pudiada por Jos, d luz Jesus s escondidas. Este ltimo
aprendeu truques mgicos no Egito, vindo depois, em sua vida
pblica, realizar os milagres relatados nos Evangelhos, sobre-
tudo So Marcos. Este breve comentrio retrata o quanto a
concepo virginal foi tema de debates e heresias na poca de
Orgenes, no sculo III d.C.
Apenas o lugar ocupado por Jesus na histria da huma-
nidade capaz de mensurar a dimenso do momento vivido
por Maria. A virtude de Maria reside no fato de ter aceitado,
apesar do receio, o papel da maternidade divina. Em Jesus se
encerra o segredo de todo o universo, da natureza, e da vida.
Ao conceber a Jesus, Maria recebe a misso da maternidade,
que grandiosa, pois desafia todas as economias e previses
que possamos ter em mente para a conduo da existncia.
Nesse sentido, podemos avaliar seu medo diante do anncio
do arcanjo. No banal, nem trivial o mistrio da maternidade,
tanto quanto maior o desafio de gerar o Filho de Deus e, a
partir da concepo, educ-lo para a sua misso nica na hist-
ria do mundo.
45 Contra Celso, I, 28, GCS 79, 20. (GSC a abreviatura de Die Grieschischen Christlichen Schriftsteller, de Leipsig, citado pelos editores Crouzel, Fournier e Pri-chon, na introduo da edio francesa das Homilias sobre So Lucas, de Orge-nes, p. 26).
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Como gnero literrio, o parentico do texto analisado,
como exortao virtude, reside, pois, no fato de ter aceitado,
apesar do grande receio, ser a geradora do Filho de Deus. Sem
essa aceitao, o mundo talvez no teria conhecido a Jesus. A
virtude de Maria aquela que a faz dizer: Ecce ancilla Domi-
ni, fiat mihi secundum uerbum tuum46.
Por outro lado, no enfatizamos o aspecto intertextual
de Orgenes, em sua apropriao da narrativa citada por So
Lucas, pois tal aspecto chega a cegar pela evidente ocorrncia
de apropriao, e o aspecto de persuaso forte o bastante pa-
ra convencer da certeza da virtude que se quer incutir.
3. O gnero lrico no poema Eu vi uma rosa, de Manuel Bandeira.
Manuel Bandeira, que se autointitulava O poeta me-
nor, brasileiro nascido em Recife (PE), a 19 de abril de 1886,
publicou o poema Eu vi uma rosa na coletnea Lira dos
CinquentAnos, em 194047. Admirado e aclamado poeta mo-
dernista, Manuel Bandeira, em seus poemas, esmera-se pela
inspirao lrica e nos traz no poema Eu vi uma rosa uma
evocao bela e singela da cena da Anunciao.
A poesia lrica tradicional na literatura de todos os
tempos. Assim chamada por ser originalmente composta de
poemas a serem entoados ao som da lira, ctara ou flauta e
acompanhadas de dana, na Grcia teve vrios representantes
como Calino, Arquloco, Tirteu, Mimnermo, Slon, Tegnis,
Focildio, Alceu, Safo, Anacreonte, dentre outros. Em Roma,
temos Catulo, Horcio, Ambrsio, Prudncio, Bocio, Calpr-
nio, Nemesiano, Tibulo, Proprcio, Ovdio, Maximiano, dentre
46 Eu sou a serva do Senhor; faa-se em mim segundo a tua palavra!
47 Aqui utilizaremos a edio de 1980, com o ttulo de Estrela da vida inteira, p. 163-164.
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outros. A partir do legado greco-latino, a literatura ocidental
deu continuidade a essa tradio nas mltiplas literaturas mo-
dernas posteriores. No nos alongaremos no aspecto histrico
da poesia lrica seno para situar esse velho gnero literrio.
Segundo definio de Emil Staiger (1997, p. 19-75), na
obra Conceitos Fundamentais da Potica, o gnero lrico con-
siste na evocao de lembranas e recordaes, qual se aliam
a musicalidade dos textos recitados, a reiterao dos sons que
se repetem em rima, quando essas existem, a repetio de vo-
cbulos que integram a construo de um ritmo e o eventual
acompanhamento de instrumentos musicais (como o caso da
msica popular brasileira, s para citar um exemplo). Segundo
Staiger, todo poema lrico um texto que fala diretamente
afetividade e alma do leitor, e considera o terico que h a
necessidade para a sua fruio, por parte do leitor, de identifi-
cao com a disposio anmica (Stimmung) do autor ao es-
crever o poema. E que, diferentemente da poesia pica, em que
o quando, onde, quem tero que estar mais ou menos esclare-
cidos antes de iniciar-se (STAIGER, 1997, p. 46), a poesia l-
rica pode prescindir dessas conexes lgicas, ressaltando ape-
nas, pelo texto, sua fundamentao.
Passemos leitura do texto Eu vi uma rosa:
Eu vi uma rosa
Uma rosa branca -
Sozinha no galho
No galho? Sozinha
No jardim, na rua.
Sozinha no mundo.
Em torno, no entanto,
Ao sol de meio-dia
Toda a natureza
Em formas e cores
E sons esplendia.
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Tudo isso era excesso.
A graa essencial
Mistrio inefvel
Sobrenatural -
Da vida e do mundo,
Estava ali na rosa
Sozinha no galho.
Sozinha no tempo.
To pura e modesta,
To perto do cho
To longe na glria
Da mstica altura,
Dir-se-ia que ouvisse
Do arcanjo invisvel
As palavras santas
De outra Anunciao.
Passemos sua anlise. A definio de quem possa ser
o eu-potico o pronome eu que d abertura ao poema. Essa
definio contrasta com a indefinio que ocorre na ltima es-
trofe, quando aparece o ndice de sujeito indeterminado se
em Dir-se-ia. Contrariamente ao vazio criado pelo pronome
eu e o pronome se, h ndices que nos remetem inequivo-
camente figura de Maria, como a meno s palavras do ar-
canjo que no se pode ver, e a meno Anunciao. Concen-
trando-nos na determinao versus definio e presena, ainda
que por mera evocao, j que se trata de outra Anunciao,
no a de Maria, somos convidados ao exerccio da dvida pelo
fato de que a Anunciao lembrada com o uso de uma letra
maiscula, o que nos faz crer que a inteno do poeta evocar
a figura singular de Maria, em oposio a um mundo de meros
mortais, sem identidade e sem rosto, apenas observadores da
flor solitria e comentadores do extraordinrio evento narrado
por So Lucas.
O poeta se detm a enunciar a solido da rosa em reite-
radas vezes, primeiramente no galho, em seguida no jardim, na
rua, no mundo, no tempo, em contraste com a natureza que
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existe ao redor, repleta de formas e cores e sons, que constitui
um excesso. Efetivamente, h uma oposio entre a singulari-
dade e a pluralidade na composio do poema.
Quando o poeta se concentra na observao da rosa, na
quinta estrofe, ele se detm a enaltecer sua graa, seu mistrio
que no se traduz em palavras, presentes na rosa solitria no
galho e no tempo. Mas na sexta estrofe, o poeta confere rosa
atributos que no so prprios da beleza reconhecida de uma
rosa, como modstia, humildade, distncia na glria da mstica
altura, o que nos levaria a pensar em uma construo de uma
metfora para a figura de Maria. Mas o poeta cauteloso
quando emprega a construo dir-se-ia, que traduz um as-
pecto potencial da ao de dizer. Na verdade, todo comentrio
cai na condio de possibilidade, at de dvida, j que a forma
verbal pode ser substituda por poderia ser dito que a rosa
ouvia as palavras do arcanjo, mas como se trata de outra
Anunciao, no existe certeza sobre o que dito.
Certos da impossibilidade de esgotarmos o contedo do
poema em suas mltiplas facetas interpretativas, deixamos em
aberto outras possveis colocaes sobre esse ensaio de leitura.
A relao intertextual de Manuel Bandeira com o texto bblico
meramente intertextual, uma vez que a apropriao realiza
uma construo de tenuidade de elos semnticos, alterando a
elevao prpria figura de Maria, na construo da metfora
da rosa, na qual o exerccio da dvida desempenha um papel
decisivo na construo textual. O texto evoca a figura de Ma-
ria na cena da Anunciao, mas no oferece garantias prprias
de um dogma religioso.
4. Concluso
Com esta construo potica, no sabemos se demos
conta de analisar, em todas as suas possibilidades, o poema de
Manuel Bandeira, porque o gnero lrico mais aberto a inter-
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pretaes do que uma homilia, em que a ordem da certeza
mais presente, at pelo fato de que a homilia um gnero de
retrica literria e tem como meta a persuaso dos fiis ex-
posio do contedo religioso, enquanto o texto potico e, so-
bretudo, o poema analisado, no tem necessariamente a inten-
o de convencimento, mas de evocao e fruio esttica.
Neste sentido, este trabalho tem como resultado a colocao
em contraste dos dois textos apresentados.
Desse modo, assistimos a dois momentos culturais da
histria cultural do Ocidente. O primeiro momento caracte-
rstico da Antiguidade Tardia, quando o Cristianismo vivia sob
forte impresso da figura de Jesus Cristo e de Maria, em que o
legado retrico clssico veiculava a mensagem crist com ex-
pressiva e contundente fora, no processo da converso das
diversas camadas sociais existentes nessa poca, em vrios
pontos geogrficos. O segundo momento, o sculo XX no Bra-
sil, traz-nos a novidade de uma leitura mais distanciada e, com
isto, a novidade da sociedade secularizada do Modernismo,
que prope um distanciamento com relao ao legado judaico-
cristo, sem que com isto se ignore tal legado e sua importn-
cia para a vida da social e cultural contempornea.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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MAGNE, A. Princpios elementares de literatura. So Paulo:
Cia. Ed. Nacional, 1935.
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Paris: d. Nathan, 1993.
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et notes par Henri Crouzel, Franois Fournier, Pierre Prichon.
Paris: Les ditions du Cerf, 1998.
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is: Robert Laffont, 1995.
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THE GREEK NEW TESTAMENT. Edited by Kurt Aland, Mat-
thew Black, Carlo M. Martini, Bruce M. Metzger and Allen
Wikgren. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1994.
5. Anexos
5.1. Transcrio do texto grego da Anunciao (So Lucas 1, 26-38):
26
. 27
. 28.
, , , . 29.
. 30. , ,
, . 31.
.
32.
, 33.
http://bentovsales.blogspot.com.br/2012/02/analise-do-poema-eu-vi-uma-rosa-de.htmlhttp://bentovsales.blogspot.com.br/2012/02/analise-do-poema-eu-vi-uma-rosa-de.html
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. 34.
, , ; 35.
,
. 36.
37.
. 38. .
. ' .
5.2. Transcrio do fragmento da Homilia VI, pargra-fo stimo, de Orgenes sobre So Lucas, em latim,
referente Anunciao:
Quia uero angelus nouo sermone Mariam salutauit, quem in
omni scriptura inuenire non potui, et de hoc pauca dicenda sunt.
Id enim quod ait: Aue, gratia plena, quod graece dicitur:
, ubi in scripturis alibi legerim, non recordor, sed
neque ad uirum istiusmodi sermo est: salue gratia plene. Soli
Mariae haec salutatio seruabatur. Si enim scisset Maria et ad
alium quempiam similem factum esse sermonem habebat
quippe legis scientiam et erat sancta et prophetarum uaticinia
cotidiana meditatione cognouerat nunquam quasi peregrina
eam salutatio terruisset. Propter quod loquitur ei angelus: ne
timeas, Maria, inuenisti enim gratiam coram Deo. Ecce
concipies in utero, et paries filium, et uocabis nomen eius Iesum.
Hic erit magnus et Filius Altissimi uocabitur.
5.3. Transcrio do fragmento grego remanescente, re-ferente ao pargrafo stimo da Homilia VI de
Orgenes sobre So Lucas:
a) "" ,
"
".
b) " "
' "" , '
.