O Tema e o Problema

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10 SUMARIO HALFORD MACKINDER E O FIM DO "BREVE SÉULO XX" Os últimos anos do século A obsolescência de Mackinder : CONSIDERAÇÕES FI. AIS A atualidade de Mackinder A baleia, o urso e o dragão Bibliografia r" \.::~'"'-'-\. vy,. r, "V')'" tXr<-, 177 177 193 213 213 217 225 ; . I o TEMA E O PROBLEMA A definição do tema H á quase um século, HalfordJohn Mackinder (1861-1947) esboçou as linhas mestras de sua teoria do poder terrestre ao proferir, na Real Sociedade Geográfica de Londres, a célebre conferência intitulada "The Geographical Pivot of History", em 25 de janeiro de 1904 1 , Essa teoria tinha como idéia-chave a existência de uma rivalidade secular entre dois grandes poderes antagônicos que se confrontavam pela conquista da supremacia mun- dial: o poder terrestre e o poder marítimo. O primeiro se- diava-se no coração da Eurásia e, mediante uma expansão centrífuga, procurava apoderar-se das regiões periféricas do Velho Mundo e obter saídas para os mares abertos. O segundo, situado nas ilhas adjacentes ou nas regiões margi- nais eur asianas, controlava a linha circunferencial costeira do grande continente e, mediante uma pressão centrípera, procurava manter o poder terrestre encurralado no inte- rior da Eurásia. I Mackinder, Halfordj. "The Geographical Pivot of History", Geographicallournal; 23:421·37, 1904-. 11

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10 SUMARIO

HALFORD MACKINDER E O FIM DO"BREVE SÉULO XX"

Os últimos anos do séculoA obsolescência de Mackinder

:

CONSIDERAÇÕES FI. AISA atualidade de MackinderA baleia, o urso e o dragão

Bibliografia

r"\.::~'"'-'-\.vy,.

r,"V')'" tXr<-,

177177193

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o TEMA E O PROBLEMA

A definição do tema

Há quase um século, HalfordJohn Mackinder(1861-1947) esboçou as linhas mestras de sua

teoria do poder terrestre ao proferir, na Real SociedadeGeográfica de Londres, a célebre conferência intitulada "TheGeographical Pivot of History", em 25 de janeiro de 19041,

Essa teoria tinha como idéia-chave a existência de umarivalidade secular entre dois grandes poderes antagônicosque se confrontavam pela conquista da supremacia mun-dial: o poder terrestre e o poder marítimo. O primeiro se-diava-se no coração da Eurásia e, mediante uma expansãocentrífuga, procurava apoderar-se das regiões periféricasdo Velho Mundo e obter saídas para os mares abertos. Osegundo, situado nas ilhas adjacentes ou nas regiões margi-nais eur asianas, controlava a linha circunferencial costeirado grande continente e, mediante uma pressão centrípera,procurava manter o poder terrestre encurralado no inte-rior da Eurásia.

I Mackinder, Halfordj. "The Geographical Pivot of History", Geographicallournal;23:421·37, 1904-.

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Exposta inicialmente numa monografia densa e concisa,a teoria do poder terrestre foi retomada na Primeira GrandeGuerra e desenvolvida mais extensamente por Mackinderno livro Democraiic Ideais and Reality, editado durante as ne-gociações de paz da Conferência de Paris, em 19192. No au-ge da Segunda Guerra Mundial, por solicitação da ForeignAfJa irs , o geógrafo britânico realizou um último balanço dasua já então clássica teoria, revisando-a em vários aspectos eadicionando-lhe novas contribuições, no artigo "The RoundWorld arid the Winning of the Peace", publicado em 1943~.

Para o estudioso de relações internacionais não constituiapologia, mas fato reconhecido, afirmar que Mackinder éhoje considerado um clássico nos campos da geopolítica eda estratégia. Sua teoria do poder terrestre transformou-se,ao lado de suas congêneres do poder marítimo e do poderaéreo, num dos três grandes pilares do pensamento geopolí-tico deste século. Ademais, a visão continentalista mackinde-dana produziu também uma verdadeira "revolução coperni-cana" na estratégia em voga desde o século XIX.

, Para l~l<~iorc~areza, g.copolítica e e~tra:égia serão .util.iza-das dOI nvante po sentido a elas atribuído por ZbigniewBrzezinski: a primeira refere-se à combinação de fatores geo-gráficos e políticos que determinam a condição de um Esta-do ou região, enfatizando o impacto da geografia sobre apolítica; a segunda refere-se à aplicação ampla e planejadade medidas para alcançar um objetivo basilar ou a recursosv,itais de importância militar".

, Idem. Drmocratic ldeals arul Realits (ioit}: udditional !'''IJers), Nova York: The NorronLibra! r, 1962,

s Ib idem, p. 20,,·78,1 Brzezinski, Zbigniew, EUA x URSS: o grande desafio. Rio de Janeiro: Editorial

Nórdica, s.d., P: 10.

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Quanto ao aspecto geopolítico, é preciso recordar que aWeltanschauung vitoriana, impregnada pela ideologia colo-

, nialista da "missão civilizadora" da raça branca, era essen-cialmente ocidentalista e eurocêntrica. Essa visão de mundoremontava ao começo dos tempos modernos, quando o geó-grafo flamengo Gerardus Mercator (1512-1594) transpôs paraa projeção cartográfica que leva seu nome a centralidadeconquistada pelo continente europeu na cultura, na políticae na economia mundiais a partir do século XVI. Com efeito,nos quatrocentos anos seguintes, denominados época colom-biana por Mackinder, a cartografia plana distorceu e alteroua massa e a posição geográfica relativa dos continentes, trans-ferindo para o mapa-múndi a situação basilar que a Europaocupou nos assuntos internacionais até a Primeira GrandeGuerra. !

Coube a Mackinder o mérito de subverter essa cosmovi-são da geografia oficial que situava a Europa no umbigo domundo. O geógrafo britânico substituiu a secular visão eu-rocêntrica por uma nova abordagem que questionava radi-calmente o tratamento geoistórico tradicional dispensadoaté então à Europa. Esta era vista como um continente àparte, com um processo histórico endógeno e auto-suficien-te que remontava à Antigüidade greco-romana e ao mundomediterrâneo.

A original proposta de Mackinder rclativizou a ceuuali-dade histórico-geográfica européia, submetendo-a a umadrástica revisão em três aspectos cruciais:

a) a Europa foi deslocada do centro para o oeste do planis-Iério:

li) tornou-se parte integrante ele um sistema político fecha-do de âmbito mundial;

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c) sua história foi subordinada à dinâmica da história asiá-tica.

Essa abordagem baseou-se numa singular concepção geoís-tórica que enfatizava especificamente a interação da geogra-fia com a história e estabelecia entre ambas um nexo de cau-salidade que se tornou a chave da teoria mackinderiana dopoder terrestre.

No que tange à questão estratégica, vale lembrar que asguerras da Revolução e do Império (1792-1815) subverte-ram o sistema de Estados e o equilíbrio de poder estabeleci-dos na Europa, pela Paz de Vestfália, depois da Guerra dosTrinta Anos (1618-48). Após a derrota de Napoleão, o Con-gresso de Viena estabeleceu as bases do novo equilíbrio eu-ropeu e organizou o sistema internacional que assegurou aocontinente um dp~-adouro período de trégua e estabilidade,que se estendeu ~te a Grande Guerra de 1914. O equilíbrio depoder entre as grandes potências continentais - Áustria, Prús-sia, Rússia e França - permitiu à Inglaterra insular desenvol-ver uma política internacional bifronte, isolacionista em re-lação à Europa e ill1l)erialista nas outras reziôes do globo

b ("..

A Pax Briturmica foi o corolário do sistema regional, mul-upolar c homogêneo, que durante um século impediu a eclo-são de uma guerra generalizada na Europa. O fecho da abó-bada desse sistema era a Crâ-Brctanha, cuja economia indus-trial, parlamentarismo monárquico, império ultramarino ecomércio internacional, estavam protegidos pelo escudo daRoyal Navy. A vitória sobre o poder terrestre francês repre-

I . r d d ~. dsentou O trrunto O po er marrtimo e a estratégia navalbritânicos, que se tornaram dominantes no século XIX. Essaestratégia baseava-se no postulado de que a segurança dasIlhas Britânicas era garantida por uma posição geográfica

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insular e um poderio marítimo, que, controlando os ocea-nos com a esquadra de guerra, a marinha mercante e a redezle.oases espalhada por todo o planeta, constituíam a chaveda hegemonia mundial da "pérfida Álbion",

Paradoxalmente, não foi um súdito de Sua Majestade, maso almirante americano Alfred T. Mahan (1840-1914), o pai-fundador da teoria do poder marítimo". Na virada do século,o Sea Pouier, de Mahan, tornou-se a bíblia dos defensores dodestino manifesto estadunidense e dos partidários da políticade expansão do poderio naval norte-americano.

Em 1898, a conquista de Porto Rico e das Filipinas, assimcomo a instauração do protetorado sobre Cuba, após a vitó-ria na Guerra Hispano-Americana, consolidaram o podermarítimo ianque no Caribe e no Pacífico. A política do BigStick aplicada aos países centro-americanos e car ibenhos teveseu corolário na secessão do istmo e na abertura do canal doPanamá, em 1914. No plano geopolítico e estratégico, a cons-trução de um canal interoceânico na cintura do continenteamericano - possibilitando a junção das frotas do Atlânticoe do Pacífico - transformou os Estados Unidos numa gran-de potência marítima e insular: a ilha-continente do hemisfé-rio ocidental.

Ouando o almirante Mahan faleceu em 1914 (no mesmo.•...•ano da inauguração do canal do Panamá), os discípulos elo"evangelista do poder naval" encarregaram-se de implemen-tar sua visão do papel da ilha-continente norte-americana noconcerto das grandes potências. De acorelo com essa visão,os Estados Unidos deveriam assegurar uma incontestável he-

'. Mahan, Alfrec\ T. Tlie Influence of Sea Pouier upon. Hülory (1660·1783). Londres:Methuen & ce, 1965. I

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16 O TEMA E O PROBLEiv!A

gernonía no continente americano, conter o expansionismojaponês no Extremo Oriente e, a médio prazo, arrebatar daInglaterra a supremacia marítima mundial.

A partir desse pano de fundo, quando os mais argutosobservadores já vislumbravam graves rachaduras no sistemainternacional, é que Mackinder realizou sua "revolução co-pernicana", ao colocar em xeque a consagrada teoria dopoder marítimo. Essa revolução consistiu na formulação dateoria do poder terrestre, cuja pedra angular era o papeles!tratégico atribuído a Piuot Arca - a região-pivô _ na políti-ca de poder das grandes potências. O termo Pivot Area de-signava o grande núcleo do continente eurasiático e seuslimites correspondiam, em linhas gerais, ao gigantesco terri-tório da Rússia czarista.

Segundo Mackinder, a exploração dos imensos recursosdaquela região basilar daria ao Estado que a controlasse con-dições para desenvolver uma economia autárquica c um inex-pug nável poder terrestre. Entrincheirado no coração doVelho Continente, esse poder terrestre auto-suficiente pode-ria resistir ao assédio e às pressões do poder marítimo, cujoraio de ação limitava-se às ilhas próximas e regiões costeirasda Eurásia.

Se a fortaleza continental eurasiana conseguisse apossar-Se de uma vasta frente oceânica, o poder terrestre poderiacanalizar pane de seus vastos recursos para o desenvolvi-mento ele um poder marítimo. A ascensão de um poder an-fíbio, sem rival no continente eurasiático e capaz de rivalizarcom a Inglaterranos oceanos, acabaria finalmente por su-plantar o poder marítimo britânico na luta pela preponde-rância mundial.

A possibilidade de transformação do poder terrestre num

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A , O TEMA E o PROBLEMA 17

A EXI' r\1'S,,\O NAVAl. DOS ESTADOS UNIOOS

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~ Tetrltorlo~ocup.do

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. I B 10S Aires: PieamarFonte: Balmaceda. Geopolitica y relaciones iniernaciona es, uei . ,1981. p. 79.

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18 O TEII'lA E O PROBLEtvlA o TEMA E O PROBLEMA 19

POSlçAo 11.\ Ai'lTlC;:\ URSS NA C;EOl'oLíT1CA DE MACKli'DERpoder anfíbio, que viesse ultrapassar o poder marítimo britâ-nico, foi uma preocupação constante e recorrente na reflexãogeopolítica e estratégica do geógrafo britânico. E, na visão deMackinder (1962 e 1943), isso poderia vir a acontecer caso aRússia, que controlava a Pivot Area eurasiana, se aliasse à Ale-manha, o mais poderoso Estado continental europeu".

A formulação do problema

Para usar uma metáfora de Raymond Aron, a baleia ame-ricana venceu em 1989-1991 a Guerra Fria contra o ursorusso. Enquanto os Estados Unidos emergem da confronta-ção Leste-Oeste como a única superpotência global multidi-mensional do planeta, a Rússia pós-soviética assume a feição~e uma superpotência unidimensional de âmbito regional.

!Dito de outra forma, enquanto os Estados Unidos são simul-taneamente uma superpotência política, econômica, militare tecnológica, a nova Rússia é unicamente uma superpotên-cia militar às voltas com a tentativa de restaurar sua influên-cia sobre o "estrangeiro próximo", ou seja, as repúblicas não-russas que se desligaram do ex-império soviético.

A Guerra Fria - ou, como foi denominada por alguns fal-cões, a "terceira guerra mundial" - entre as superpotênciasinsular americana e continental soviética culminou na vitóriado poder marítimo sobre o poder terrestre. A era pós-colom-biana do poder terrestre, que presumivelmente seguir-se-ia àera colombiana do poder marítimo, parece ter sido posterga-da às calendas pelo curso elos acontecimentos no século XX.

Mackinder, Haifo!:dj. Democmlic Ideais atld Realiiy (with additional jJajJe1'S),NovaYork: The NortOl~ Library, 1962, p, 262, Ver também, do mesmo autor, "TheRound Worid & the Wil1ning of lhe Peace". Ibidern, P: 272-3. Fonte: Pinochet, Augusto. Geopolitica de Chile. Buenos Aires: Pleamar, 1979,p, 183,

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20 O TEMA E O PROBLEMA o TE/-.'fA E O PROBLEMA 21

Em resumo, por três vezes ao longo deste século "7 1918, 1945c 1991 -, os fatos da história real parecem ter replicado dura-mente a filosofia da história do geógrafo britânico.

No plano da reflexão teórica, as duras réplicas da históriaj'í. haviam sido registradas por Raymond Aron quase trêsdécadas antes ela queda do Muro de Berlim. Em 1962, quan-do foi publicado Paz e Guerra Entre as Nações, o pensadorfrancês empreendeu um balanço crítico da teoria de Mac-kinder, passando em revista seu suposto "esquematismo geo-gráfico", o fracasso de sua zona-tampão separando russos ealemães, assim como sua influência sobre a ideologia geo-gráfica do espaço vital, desenvolvida pela Geopolitik alemãsob os auspícios do general Karl Haushofer e da Escola deMunique. Aofime ao cabo, o veredito do pensador francêssobre a obra de Mackinder foi deveras incisivo:

limo, ampliado à escala do mundo contemporâneo. Con-tudo, o poder aéreo acrescenta uma outra dimensão àquelediálogo; o domínio científico do espaço pelos novos mei-os de transporte e de comunicação atenua a oposição clás-sica dos estilos marítimo 'e ter restre.?"

Aliás, bastaria citar outros trechos para verificar que asanálises baseadas na concepção teórica, na visão estratégicae nos conceitos geopolíticos de Mackinder são a tal pontorecorrentes que tornam lícito levantar o benefício da dúvidasobre o incisivo balanço crítico aroniano. A reprodução detrês passagens, dentre várias outras possíveis, é suficientepara ilustrar esta afirrnaçào.

Por exemplo:

"Relido em 1960, o geógrafo britânico parece ter tido apior das sortes possíveis para um conselheiro do Príncipe:foi ouvido pelos estadistas, mas ignorado pelos aconteci-mcntos."

"Ajuda a imaginar o mapa do campo diplomático deacordo com o esquema sugerido por Mackinder: a repú-blica norte-americana está situada numa ilha, comparávelà posição da Gr ã-Bretanha com respeito à Europa e se cs-

1· I . d . '''1força por proteger a 1111acosteira a massa eur asiana ..

Paradoxalmente, entretanto, Arem (1986a) parece relativi-zar a contundência de sua avaliação quando, ao analisar osistema universal da idade termonucJear, afirma que:

"i\~loé iJpOSSíVe! interpretar a conjuntura atual à luzcios conceitos de Mackinder, vendo a rivalidade entre aUnião Soviética e os Estados Unidos como um episódiodo cliSlogo eterno entre o poder terrestre e o poder mar í-

Em seguida:

"A confrontação a que assistimos na Ásia tem o caráterda luta eterna entre o urso c a baleia, entre o poder terres-tre e o marítimo. Os Estados Unidos aparecem aí comopotência essencialmente marítima, com um cinturào debases insulares, do Japão até as Filipinas, passando por

Arou, R:lpllOJld. }J(L;: f' guerra. entre as nações. Brasílin: Editora C~B, 1986, p. 2G8." Ibidcrn, p. '170." Ibidcm, p. "Ti.

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22 O TEMA E O PROBLEMAo TEt-lA E.O PROBLEMA 23

Okinawa e por Formosa. No continente asiático contudo, ,só dispõem de uma cabeça-de-ponte: a Coréia do Sul."!"

ria mackinderiana que, em alguma medida, consideravaúteisà compreensão de certos problemas ocasionados pela políti-

• c(b,de poder no mundo contemporâneo.A visão do mundo como sistema político fechado e a con-

cepção histórico-geográfica do conflito entre o poder maríti-

mo e o poder terrestre são algumas das categorias mackinde-rianas que Aron utiliza para analisar, no contexto do sistemainternacional da Guerra Fria, a rivalidade americano-soviéti-ca e a confrontação Leste-Oeste. Essa visão, formulada pionei-ramente por Mackindcr no início do século, é empregada noenquadramcnto do conflito comunismo uersus capitalismodentro da rízida moldura de um sistema internacional global,

b

bipolar e heterogêneo, em cujo interior coexistem contradito-riamente dois grandes subsistemas imperiais.

A idéia da pugna oceanismo.versus continentalismo per-passa a análise das relações entre as duas superpotências ri-vais - os Estados Unidos e a União Soviética -, que coman-dam aqueles subsistemas imperiais: o "mundo livre" e a "cor-tina de ferro". A primeira, uma potência de tipo insular: ailha-continente que lidera um império oceânico, cujo eixo éo Atlântico Norte; a segunda, uma potência de tipo conti-nental: o Estado-pivô que dirige um império terrestre, cujocerne é o coração da Eurásia. É, portanto, difícil negar queas contribuiçôes de Mackinder para a abordagem de Arouacerca das relações interestatais do período da Guerra Friasão, sob cenas aspectos, bastante consideráveis.

Porém, diante da suposta evidência dos fatos e da incisivacrítica aroriiana, que parecem colocar Mackindcr na contra-mào da história, seria o caso ele abandonar esta pesquisa c

dá-Ia por encerrada?A justificativa para perseverar nesta ernprei tada é arrar

Finalmente:

"Muitas alianças são e não podem deixar de ser tempo-rárias; a rivalidade entre os Estados Unidos e a Rússia terianascido, depois do esmagamento da Alemanha e do Japão,mesmo que não houvesse um regime soviético na Rússia;com efeito, as duas grandes potências - uma continental, aoutra marítima ~ se chocariam em todas as partes do mun-do, devido ao desaparecimento das zonas intermediárias.Há outras alianças que são permanentes, ou pelo menosduradour~s, como a que existe entre a Grã-Bretanha e osEstados Unidos, porque estão associadas à situação geopo-lítica e ao parentesco cultural. Se a Grã-Bretanha não domi-na os mares nem se alia à potência que domina os mares,passa a ser um apêndice do continente europeu, um satéli-te do Estado dominante no continente."!'

Ressalte-se jque os trechos transcritos não constituem ex-pediente abusivo ou mero exercício de erudição, mas recur-so legítimo para comprovar a lógica do argumento em ques-tão. A recorrência reiterada às formulações geopolíticas dogcógrafo britânico demonstra cabalmente a importância que,a despeito de sua postura crítica, Aron conferia às contribui-ções teóricas de Mackinder. Mesmo considerando-a refuta-da pela história, Arem incorporou aspectos essenciais da teo-

ItI lbidc.u, p. -187·ij.

ti Arou, Ruymond. Estudos politicos. ~." eel. Brasília: Editora c:--;n, 1985. p. 475.

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24 O TEMA E O PROBLEMAo TEMA E O PROHLEMA 2~)

o desafio ele repensar as mesmas evidências históricas à luzde outro tipo de abordagem e de questionar o próprio vere-dicto aroniano, ainda que reconhecendo a estatura e a legiti-rnidade intelectual de quem o formulou. Isso posto, os crité-rios que inspiram o prosseguimento desta tarefa são a ado-ção de uma postura de dúvida sistemática e a busca de umafundamentação teórica e empírica que alicerce futuras con-clusões.

A premissa que constitui o ponto de partida deste livro é aconvicção intelectual de que Mackinder não é "cachorro mor-to" - como dizia Marx sobre Hegel. Êm outras palavras, mes-mo após o fim do sistema de equilíbrio bipolar - com a desin-tegração do bloco socialista, a implosão da União Soviética eo advento da Pax Americana -, é possível que o pensamentodo ~'cógrafo bri~ânico não esteja de todo ultrapassado p.elasrealidades emergentes do pós-Guerra Fria. A proposta é sub-meter o pensamento mackinderiano ao crivo das recentesmudanças geopolíticas e estratégicas, bem como das voláteisrelações internacionais que se desenvolvem no âmbito da novaordem mundial. O propósito é resgatar da reflexão de Mac-

kinder clquclas contribuições teóricas que por ventura perma-ncçam válidas c atuais, expurgando-as, ao mesmo tempo, detudo o circunstancial, contingente e passageiro.

Embora aparentemente desmentido pelos fato~, é possí-

vel que algo elo pensamento de Mackinder tenha sobrevivi-do às mudanças radicais c às bruscas guinadas do curso dahistória ao longo dest.e século. Se assim for, será de grandeutilidade analisar () passado recente e as transformaç~es emcurso à luz ela teoria, dos conceitos e da filosofia da históriarnackindcrianos. Claro está que, levando em conta os even-tos das últimas décadas, isso significa enfrentar uma série

ele problemas que nem sequer se colocavam no horizonte dogeógrafo britânico na primeira metade deste século.

Porém, o fascinante desafio de investigar o colapso dosistema bipolar da Guerra Fria e essa fase de transição -Jcle~ominada nova ordem mundial - à luz de uma aborda-gem geopolítica e estratégica afigura-se como razão legítimapara justificar a continuidade desta pesquisa, cujo objetivocentral é responder à seguinte indagação:

EM QUE MEDIDA PERMA~ECE ATUAL

OU TOR:-;OU-SE OBSOLETO, ~ESTES lJLTIMOS ANOS DO SÉCULO,

o PE1\S""~lENTO GEOPOLÍTICO DE MACKINDER?

Os quase cem anos da publicação ele "The GeographicalPivot of History" constituem hoje um longo espaço de tem-po, que propicia o distanciamento e a perspectiva não ape-nas necessários, mas também suficientes para um oportunoe imprescindível ajuste de contas com o pensamento do geó-grafo britânico. Nesse sentido, o principal escopo desta in-vestigação é revisitar Mackinder, seu pensamento e sua obra,de acordo corn a seguinte estrutura:

1. Primeiramente, efetua-se uma relcitura da obra de Mac-

kindcr, com o intuito de refazer () percurso de seu pens;l-mcnto geopolítico e realizar um balanço crítico do que seconvencionou denominar teoria do poder terrestre.

') Scc ue-se um intennezzo. (1ue analisa sucintamente ,\5 re-_. - \:)

laçC>esentre a geopolítica inglesa e a GeoJJOlitih alernà, cen-trando seu foco especialmente nas controvertidas conexôes~1aclzincler-Haushofcr e l1aushofer-Hitler,

?,. Investiga-se, em seguida, a provável influência de Mac-kinder sobre dois destacados expoentes da geopolítica nor-

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