O tempo e a vida - Nós no meio

196

description

Livro que foi transcrito, editado e ilustrado com fotocolagem digital por Arth Silva em 2014. É o resultado de um trabalho em que Arth Silva se sentou ao lado de mais de 60 idosos de Ituiutaba/MG que participam do CRAS e dos Asilos e, diante da deficiência visual ou analfabetismo de alguns idosos, como um artesão esculpiu no papel todas as emocionantes aventuras narradas, unindo pontas da infância à velhice e transformando-os em verdadeiros escritores.

Transcript of O tempo e a vida - Nós no meio

Page 1: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 2: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 3: O tempo e a vida - Nós no meio

Arth Silva Transcrição – Edição – Colagem digital

O TEMPO E A VIDA- nós no meio -

Reviver histórias e emoções – Volume 5

Secretaria Municipal de Desenvolvimento SocialDepartamento de Proteção Social BásicaDivisão de Integração e Apoio ao idoso

1ª EdiçãoItuiutaba, Dezembro de 2014

Page 4: O tempo e a vida - Nós no meio

O TEMPO E A VIDA - nós no meio -

Reviver histórias e emoções – Volume 5

Dedicado à parceira Ludmylla Arantes, pela ajuda no Lar do Idoso Pa-dre Lino José Correr, à toda equipe dos CRAS de Ituiutaba e à Secretaria de Desenvolvimento Social de Ituiutaba, sem as quais esse trabalho não poderia ser realizado.

Trabalho literário produzido por idosos integrantes do Lar do Idoso Pa-dre Lino José Correr, Casa dos Velhos Adolfo Bezerra de Menezes e da “Ofici-na literária”, realizada nos Centros de Referência e Assistência Social (CRAS) de Ituiutaba/MG.

Secretaria Municipal de Desenvolvimento SocialDepartamento de Proteção Social BásicaDivisão de Integração e Apoio ao Idoso

©2014 Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social/Departamento de Proteção Social Básica

Produção editorial: JP Gráfica e EditoraCapa e Diagramação: Ricardo Paixão - www.fabricadoslivros.com.brCompilação de textos, transcrição e edição: Arth SilvaRevisão: Mariana RamosColagem digital: Arth SilvaFoto: Janio ClaudioTítulo do livro: Wilson Gorj

A vida e o tempo – nós no meio - Reviver histórias e emoções – Vo-lume 5 – Ituiutaba, MG; JP Gráfica e Editora, 2014.196 p., ilust.

ISBN –

Vário autores1. Contos brasileiros - Coletâneas

Secretaria Municipal de Desenvolvimento SocialRua 24 nº 553 – Centro – Ituiutaba/MG38300-132

Todos os direitos reservadosÉ proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia autorização do editor e da

Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social de Ituiutaba/MG.

Page 5: O tempo e a vida - Nós no meio

Sumário

CRAS Brasil 12

Aqueles nego 15

Baile na roça 18

Mamando na vovó 22

Comida salgada 24

Esconderijo embaixo da cama 26

Filho branco 28

Me casei com um macumbeiro 31

A novela da minha vida 35

O menino do facão 38

Praga de puta pega 41

Traquinagem até o pescoço 44

CRAS Natal 50

Aliança no dedo 53

Aquele motorista 57

Brincadeira Dançante 59

O gato 62

Madrasta Malvada 65

Page 6: O tempo e a vida - Nós no meio

No escurinho da esquina 68

O judas 70

Os perigos do caminho mais curto 73

Parto 76

Salvando os Jabutis 79

Teste da palmatória 82

Caboclo d’água 85

CRAS Ipiranga 90

A bola de fogo 93

Amor impossível 96

Bebuns mirins 100

Meu sonho de ter uma boneca 102

Meu primeiro fuxico 105

Namorado secreto 108

O dia que desapareci 111

O segredo do espírito 114

Pai herói 117

Reencontro 121

Pó de mico 124

A vingança 127

Page 7: O tempo e a vida - Nós no meio

CRAS Alvorada 132

A menina e a onça 135

Beijo apanha barriga 138

Boi que não vale nada 141

Caldo de cutinho 143

Casa assombrada 146

Casamento sem namoro 149

Com a GRAÇA de Deus 152

Feitiçaria 155

Forró cheio de barro 157

Gravidez de 1 ano 159

Janta de onça 161

John Travolta Negro 163

Melancia furada 166

Pequenos ladrões 169

Por você eu roubaria tudo 172

Ladrões de melancia 173

Surra na rede 175

Lar do Idoso e Casa Lar 180

Incêndio do defunto 183

Meu grande amor 186

Vascaíno que jogava no Fluminense 189

Page 8: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 9: O tempo e a vida - Nós no meio

Prefácio

O tempo, parceiro da vida, nos conecta com a his-tória do homem que, usando o recurso da memória, revive suas dores e amores nas oficinas de literatura dos CRAS, tão bem conduzida pelo professor Arth Silva.

O projeto de fazer literatura com os idosos dos CRAS e das nossas instituições de longa permanência apresenta resultado significativo para a sociedade quando mostra um idoso capaz e feliz. É justamente isto que que-remos.

Parabéns aos envolvidos no sucesso desta quinta edição da “Oficina Literária” e agradecimentos a todos que se esforçam para fazê-la a cada ano melhor.

Abraço carinhoso.

Sônia Maria Clemente Correa do CarmoSecretária Municipal de Desenvolvimento Social

Page 10: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 11: O tempo e a vida - Nós no meio

Prefácio

Ituiutaba 2014. A cidade se transforma e seus ha-bitantes com ela. Novas oportunidades são criadas e, com isso, adaptações são necessárias e construções são essen-ciais.

Gerir desenvolvimento humanizado, liderar pesso-as para servir com transparência, acreditar que é possível fazer melhor tem sido metas permanentemente ativadas. E, ante toda esta dinâmica, surge a beleza deste livro ela-borado por idosos, que querem viver mais e melhor. A literatura e a Secretaria de Desenvolvimento Social têm propiciado isto.

Parabéns a todos que colaboraram para a realização deste projeto.

A missão continua, nosso trabalho é para você.

Grande abraço.

Luiz Pedro Correa do CarmoPrefeito Municipal de Ituiutaba

Page 12: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 13: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 14: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 15: O tempo e a vida - Nós no meio

15

Aqueles nego

Rosa Azevedo (Dona Rosa)

Minha família morava na fazenda Santa Rita, em Ituverava, éramos agregados lá e nosso patrão se chamava seu Gregório.

Certo dia, o seu Gregório deu uma torta de cana para a vaca campeã dele, que era a maior leiteira da fazenda, um xodó do seu Gregório, só que, para o azar dele, ela embuchou com aquela comida, deu uns “piripaques”, engasgou e caiu ali mesmo. Seu Gregório quis morrer quando viu aquilo, até chorou de desgosto.

Page 16: O tempo e a vida - Nós no meio

16

Com lágrimas nos olhos, ele pegou um trator, amarrou a sua vaca campeã e deixou lá no meio do campo.

Passado uns dias, nós que trabalhávamos lá, olhamos para o céu e vimos aquele tanto de urubus voando em cima do corpo da vaca.

- Isso é um desaforo! – Gritou o seu Gregório quando viu aquilo – Olha lá o tanto de nego cumeno a minha vaquinha!

Para resolver isso, ele chamou o vaqueiro e deu a ordem:

- Vai lá na venda, compra formicida Tatu e coloca no corpo da minha vaca premiada! Esses nego vão pagá caro por mexê comigo!

Os vaqueiros foram lá, abriram a vaca e encheram de formicida. Não deu outra, um dia depois, quando os empregados passaram lá perto do corpo da vaca, o chão estava pretinho de urubu, tudo cambaleando, prontinhos para morrer.

Como lá na cocheira do curral tinham várias imagens dos santos protetores: São Benedito, Santo Antonio, São Lázaro e São José, revoltado com a morte da sua vaquinha, seu Gregório deu mais uma ordem:

- Manda tirá esses santo tudo ali da cochera! Esses santo num protege é nada! São tudo protetor do Diabo!

Conforme ele pediu, nós empregados fomos lá e tiramos todas as imagens.

Page 17: O tempo e a vida - Nós no meio

17

Não passou nem três dias e o boi chamado Criminoso, que era um reprodutor premiadíssimo que o seu Gregório tinha comprado recentemente em Franca, comeu e engasgou igualzinho a falecida vaca premiada.

Era outra perda. Seu Gregório queria morrer de novo.

Como de costume, seu Gregório levou o boi morto lá para o meio do pasto, perto da ossada da sua querida vaquinha. Para surpresa de todo mundo, no chão não tinha nenhum urubu morto, eles estavam todos vivinhos ali do lado, em cima da árvore só esperando trazerem a comida para eles.

Com sangue nos olhos, seu Gregório olhou para os urubus e disse:

- Esses nego num morrêro! Se formicida num derrubô eles, dessa vez vou derrubá eles é na bala!

Page 18: O tempo e a vida - Nós no meio

18

Baile na roça

Terezinha Vilhana

Quando eu era criança, eu sonhava em ser bailari-na, adorava dançar. Eu já tinha meus 15 anos, era casada e estava grávida, mas, mesmo com o barrigão, eu não perdia um forró.

Por isso, eu tinha combinado com meu marido de irmos ao forró lá no São Lourenço, só que instantes an-tes de sairmos montados na lambreta, a fábrica de papel, onde meu esposo trabalhava, precisou com urgência dos seus serviços e, mesmo contrariado, ele teve que me deixar ali sozinha.

Page 19: O tempo e a vida - Nós no meio

19

Ah! Mas, não seria isso que iria me afastar do baile!Minha sorte era que meu sogro tinha uma carro-

ça encostada e eu não pensei duas vezes, chamei minha cunhada e meus cinco sobrinhos pequenos, subi aquela molecada na carroça, peguei a rédea e fui tocando rumo ao São Lourenço para o Forró.

No caminho, comecei a sentir umas dores e co-mentei com a minha cunhada:

- Acho que esse passeio não fez bem pro meu bebê, ele tá chutando com muita força... Tô sentindo umas có-licas...

Chegou a um ponto que eu não aguentei. Quan-do saímos da estrada e entramos na fazenda, onde já dava para avistar o baile a alguns quilômetros, eu parei a carro-ça e desci respirando fundo.

- Vocês podem ir que eu vou andando... – Entre-guei as rédeas para o meu sobrinho mais velho, de nove anos de idade, e ele tocou para o rumo do baile.

Não passou dez minutos que eu caminhava chorando pela estradinha de chão quando senti a minha bolsa estou-rando. Uma dor imensa e aquela fraqueza tomou conta de mim, até que olhei para baixo e vi meu bebê caindo na grama enquanto eu também caía e abraçava aquela criança ensan-guentada e presa pelo cordão umbilical.

Fiquei ali segurando meu filho e olhando aquele me-nino lindo que chorava sob a luz da lua. Era muita alegria.

Page 20: O tempo e a vida - Nós no meio

20

Depois daquele susto, não chorei, apenas sorri com meu pri-meiro filho nos braços.

Fiquei ali sentada no mato olhando para ele durante uma meia hora, até que veio passando a cavalo um fazen-deirinho, o Sô Oripe que, quando me viu, me disse:

- O que cê tá fazeno aí no chão, Dona Tereza? Vâmo pro baile!

- Eu tive um filho, Sô Oripe!Quando ele ouviu isso, ele quase caiu do cavalo.

Desceu correndo e me viu enrolada naquele cordão um-bilical.

- Temos que cortar esse cordão! – eu disse.- Eu corto cordão umbilical dos bezerros! Vô cortá

do seu fío tamém!Ele acendeu uma fogueira, esquentou o canivete,

cortou o cordão, tirou sua camisa, amarrou e enrolou no meu menino, dali fomos andando até o baile.

Chegando lá, todo mundo quando me viu veio cor-rendo ver meu filho e ouvir a história, enquanto o sorriso não saía da minha boca. Demos um banho no menino e eu não perdi tempo, fui comemorar aquela data! Deixei meu filho na cama com aquele tanto de gente o vestindo e o pajeando, tomei um banho e fui curtir aquele baile inesquecível. Dancei a noite toda.

Meu menino, Maxon Mario Motta, que prati-camente nasceu no baile ouvindo forró, não poderia ter

Page 21: O tempo e a vida - Nós no meio

21

crescido diferente; se tornou um dançarino nato, com o forró na ponta dos pés, ele dançou durante todos os seus 28 anos de vida, e hoje, com certeza, está dançando lá no céu, olhando por todos nós.

Page 22: O tempo e a vida - Nós no meio

22

Mamando na vovó

Maria Leucádia

Quando minha avó teve meu último tio, o Alfredo, a família ficou muito preocupada por ele ser um bebê que chorava muito durante a noite, quando ia dormir junto com a minha avó. Encucado com aquilo, um dia, meu avô resol-veu passar a noite acordado para descobrir por qual motivo o Alfredo chorava tanto nas madrugadas. Arredou um banco e se sentou lá para ver o filho dormir ao lado da minha avó.

Foi quando ele viu uma cobra vir serpenteando bem devagar pelo chão, subir na cama e entrar por debaixo do

Page 23: O tempo e a vida - Nós no meio

23

cobertor. A cobra colocava a pontinha do rabo na boca do bebê, enquanto ela mamava no peito da minha avó.

Meu avô, vendo aquilo, ficou chocado e, para não provocar a cobra que estava junto com minha avó e ao lado do bebê, ele esperou a cobra encher a barriga e ir embora; ficou olhando aonde a cobra iria se esconder, viu ela indo para dentro de um pote de barro que ficava no quarto. Quando ela entrou, ele rapidamente tampou com um prato que estava por lá.

Com pressa, meu avô chamou a minha avó e con-tou tudo que estava acontecendo e por que o pequeno Alfredo estava chorando. Minha avó riu e disse que ele estava louco e que não era para quebrar aquele lindo pote que enfeitava o quarto.

Aí meu avó, já com raiva e determinado, pegou sua garrucha que estava no armário, mirou e disparou dois ti-ros no pote que estava tampado.

Minha avó ficou bravíssima quando viu que o pote agora estava furado com duas marcas de bala. Enquanto ela resmungava reclamando do meu avô ter atirado nas coisas no meio da madrugada, vovô simplesmente apon-tou o dedo indicador para o rumo do pote que fez a minha avó se calar.

No pote ficaram dois buracos que repentinamente começaram a escorrer leite.

Page 24: O tempo e a vida - Nós no meio

24

Comida salgada

Célia dos Santos

Certa vez, quando eu era pequena, a mamãe pôs ar-roz na panela para fazer o almoço, em seguida acrescentou água e tempero, depois disso falou para eu tomar conta da panela no fogo enquanto ela ia buscar água no rego.

A gente quando é menino pequeno não pensa direi-to, né? Por isso, no momento em que eu vigiava a panela, pensei “Ah, esse tempero não está bom, tenho que colocar mais sal”, aí fui lá e enchi a colher de pau com sal, subi no fogão a lenha e coloquei tudo dentro da panela. “Agora

Page 25: O tempo e a vida - Nós no meio

25

sim o almoço iria ficar mais gostoso, será uma surpresa que mamãe vai adorar” – eu pensei.

Logo que mamãe chegou e serviu toda a comida no nosso prato, eu já fiquei ansiosa para ver a cara dela assim que provasse a delícia que eu tinha temperado. Quando ela colocou a primeira colher de arroz na boca, vi no seu rosto uma careta tão grande que quase gritei de susto. Aí mamãe olhou para mim e perguntou brava: - Quem colo-cou sal nesse arroz?

Eu, bem depressa e toda encolhida, já fiz que não com a cabeça e fechei os olhos; quando abri, vi mamãe vomitando tudo ali no chão da cozinha.

- Não tem Cristo que aguente comer isso! – mamãe gritava.

Naquela noite, mamãe ficou sem jantar.Aí minha mãe vendo que aquele arroz não tinha

mais salvação, jogou tudo para as galinhas que vieram correndo desesperadas de fome e rapidinho limparam a panela.

Depois de alguns minutos, só vi aquele bando de galinha atacando com força o rego d´água, ainda bem que era água corrente, senão elas iriam secar a água da mina.

Para não correr o risco de levar uma surra por cau-sa daquilo, enquanto mamãe vomitava, eu, passo a passo, fugi escondido lá para a casa da vovó.

Page 26: O tempo e a vida - Nós no meio

26

Esconderijo embaixo da cama

Oraides Maria da Silva

Quando eu tinha 12 anos de idade, lá na Fazenda de Brejinho, em Uberaba, meu pai já queria arrumar namorado para eu me casar. É que por mais que eu fosse nova, já tinha corpo de mulher e deixava a peãozada da fazenda louca.

Nas brincadeiras de casinha embaixo dos pés de manga, eu já dava um monte de beijos nos meninos, até que um dia meu pai ficou sabendo e, para acabar com isso, me arrumou um pretendente, um rapaz que morava na

Page 27: O tempo e a vida - Nós no meio

27

fazenda vizinha, de uns vinte e poucos anos de idade; era um negro alto que quando recebeu o convite de meu pai, veio correndo a cavalo.

Quando fiquei sabendo que ele estava vindo me ver, fiquei preocupada, olhei pela janela e vi aquele homem esquisito chegando, moço feio feito o cão, todo desarrumado, parecia o Mazzaropi; Aí eu pensei “eu, hein?” Corri e me escondi debaixo da cama, ninguém me achou, fiquei lá a tarde inteira, só quando já estava anoitecendo que saí toda desconfiada para saber se ele já tinha ido embora. E essa fuga durou muitos dias, toda vez que ele aparecia eu socava debaixo da cama.

Mas, quer saber? Nem adiantou muito. Alguns anos depois, quando eu já tinha meus 19 anos de idade, eu me casei com outro negrinho, tão feio e esquisito quanto o primeiro, só que pelo menos esse era bem arrumadinho.

Page 28: O tempo e a vida - Nós no meio

28

Filho branco

João Antonio da Silva

Eu morava lá na vila Natal, em Ituiutaba, e lá co-nheci uma mulher, essa mulher era custosa que só; tinha marido, mas vivia pulando a cerca.

Era uma rapariga bonita, branca de cabelo preto bem escorrido, chamava a atenção onde passava ali na vila. Apesar de ela ser casada, um dia, eu, mesmo sendo um negão sem muita grana no bolso, não resisti e a cha-mei para conversar. Conversa vai, conversa vem, tomei co-ragem, cheguei perto dela e intimei sem medo:

Page 29: O tempo e a vida - Nós no meio

29

- Vâmo lá pra casa pra nois coisá?Para minha surpresa, ela respondeu rápido: - Vâmo! A partir daquele dia, já ficamos pareados. Quando

eu queria, a porta estava sempre aberta para mim.Passado algum tempo, eu e ela perdemos contato

e eu nem ouvi falar mais dela; pensei que nunca mais iria ver aquela mulher, até que um dia, sem avisar, ela apare-ceu lá na porta da minha casa e já foi logo falando:

- João, eu tive um fío seu, vô trazê ele pra morá com ocê, ocê vai criá ele.

Fiquei muito surpreso com aquela revelação. Eu quase não acreditava no que ela estava falando, mas se o mal já estava feito, então eu tinha que assumir.

- Traiz esse minunu que eu crio! – Eu falei já com voz de pai.

Ela falou que o traria o quanto antes e que já era para eu ir preparando tudo para a chegada dele.

Aí eu já fui até a casa da minha tia Jerônima e con-tei toda a história para ela. Ela ficou comovida e feliz por ter mais uma criança na família, por isso me disse conten-te que me ajudaria a criar o menino.

Fiquei ansioso para conhecer meu filho. No dia seguinte, quando a mãe do meu filho vinha passando na porta da minha casa com o menino no colo enrolado em uma flanela, eu a chamei para dentro de casa e fui logo pegando meu filho no colo para conhecê-lo.

Page 30: O tempo e a vida - Nós no meio

30

Quando tirei a flanela, levei um susto!O menino era branquinho feito neve e tinha o ca-

belo preto lisinho, bem corrido, parecia linha preta.Fui para frente do espelho com a criança. Olhei

para minha cara preta com traços africanos de olho mais preto que sapato de garçom, depois bati o olho naquela criança branquinha feito fantasma, de olhos azuizinhos, parecia filho de rico; aí olhei para a mãe do menino e falei:

- Ocê tá de brincadeira, né?Ela ficou me olhando e eu ainda completei:- Esse mininu num é fío meu! Oia a cor desse mi-

ninu! Isso num faiz sentido!- Ocê tem certeza, João? - Ela ainda me questionou.- Claro! Olha pra cara desse menino! É mais bran-

co que o branco do meu olho!- Mas, é seu sim, João!- Mais fácil sê do seu marido ou de algum otro bran-

quelo com quem ocê saiu por aí! Num brinca comigo que eu num sô bobo!

Com cara de choro, ela, nessa hora, pegou o me-nino do meu colo e se pôs a correr dali com a criança nos braços. Depois disso, nunca mais vi essa mulher, dizem que ela foi morar em uma fazenda com um moço; tomara que ela tenha achado o pai da criança.

Mesmo que eu tenha certeza de que esse filho não era meu, às vezes, ainda me pego pensando... Será que eu realmente tive um filho branco?

Page 31: O tempo e a vida - Nós no meio

31

Me casei com um macumbeiro

Maria Clementina (Tinica)

Eu tinha uns 11 a 12 anos de idade e tomava conta da casa na Fazenda do Pontal, lá para o lado de Capinópolis, quando eu vi um senhor bonito que estava visitando a fazenda.

“Nossa, mas que homem mais lindo, moreno com um bigodão...” – pensei. Mais tarde, descobri que ele era macumbeiro; acho que naquele dia ele me jogou um feitiço, por isso só de ver ele minha “piriquita” já coçou! Naquele dia, ficamos só trocando olhares.

Page 32: O tempo e a vida - Nós no meio

32

No dia seguinte, ele voltou para a fazenda bem cedinho e me encontrou na porta da cozinha, onde eu estava começando a arrumação do dia, aí ele falou:

- “Morena, vamo lá no curral tomá leite com farinha?”.

Eu, muito assanhada, aceitei na hora. Bebemos, nós dois, todo o leite com farinha em um copo só. Depois daquele copo de leite, ele me visitava sempre, não falhava nem um dia. O nome daquele senhor era João Hilário. Mas, nós nem pegávamos na mão naquela época, muito menos beijávamos. A minha patroa sempre ficava pajeando a gente pela janela para saber tudo que estava acontecendo, até que um dia depois de ver tanta visita do João e eu com sorriso de boba na cara, ela me disse:

- “É Tinica, ocê tá apaxonada... mas cuidado, esse homi já foi casado cinco veiz e tem dez fío.. é iguar varegera, onde ele senta os fío fica”...

- “Isso tem probrema não, ele tá largado!” – Eu falei confiante.

Na noite seguinte, ele me trouxe saia, blusa, sutiã, calcinha, esmalte, batom, bojo, pente, escova, Colgate e um vidro de água de colônia. Depois daqueles presentes, eu fiquei doida nos pés do velho. Ah é, não falei, ele devia ter uns 50 anos de idade na época.

Foi quando, viente de já ter conquistado meu coração, o homem me deu uma ordem sem medo de eu dizer não:

Page 33: O tempo e a vida - Nós no meio

33

- “Num quero mais ocê trabaiano pro zoto! Nóis vâmo nos casá! Pode arrumá tudo e levantá as coberta pra cima!”.

Sem pensar duas vezes, eu larguei meu serviço e fui morar com a minha mãe em Soledade, perto de Canápolis, exibindo a minha aliança de noivado nos dedos. Aí meu noivo me disse: - “É Tinica, acho que não vai dá pra gente casá mais, não... aqui em Canápolis, em Ituiutaba, Uberlândia, Centralina e Monte Alegre eu já sou casado...”.

Aí eu falei: - “Então vâmo se casa em Cachoeira Dourada!”.

Ele foi lá de bicicleta, organizou tudo com um padre que era veado, mas era o único que tinha. Estava marcado o casamento!

João me comprou um lindo vestido branco, véu, grinalda, sapato, meia e tudo mais. Eu iria me casar muito linda.

No dia do casamento, me vesti de noiva e arrumamos duas caminhonetes para levar todo mundo. Para chegar em Cachoeira Dourada, a primeira caminhonete entrou numa balsa e atravessou o rio, na outra balsa, foi a minha caminhonete, levando eu e os meus paraninfos. Quando estávamos no meio do rio, a balsa começou a tombar e balançar. A balsa ia afundar! “Não é possível que eu iria morrer vestida de noiva!” - pensei.

A outra balsa, a do meu noivo, já tinha chegado à igreja e a nossa estava ali afundando no meio do rio.

Page 34: O tempo e a vida - Nós no meio

34

Começamos a gritar desesperados, em alguns minutos estaríamos debaixo d’água, aí a outra balsa voltou para nos buscar antes que fosse tarde. Meu casamento estava a salvo!

Chegando lá, nós nos casamos na igreja que ficava na beira do rio, eu toda de branco e meu noivo de preto. Tinha pouca gente na igreja, mas foi lindo! Três anos depois, a varejeira do meu marido já sentou e deixou seu primeiro filhote.

Seguindo a regra dos filhos do João pelo mundo, que eram 10 meninos, tivemos um lindo filho que dei o nome de Divino Aparecido, essa foi a melhor coisa que já fiz nessa vida.

Passado 13 anos, como o meu marido João fez com todas as famílias dele, ele foi pousar em outro canto e me deixou para criar meu filho sozinha. João foi se casar em outra cidade de Minas, onde ele ainda não era casado, nem tinha filho... Se é que existia algum lugar nesse mundo onde esse homem não era casado nem tinha filho...

Page 35: O tempo e a vida - Nós no meio

35

A novela da minha vida

Antônio Pedro

Sempre pensamos: Qual a mulher perfeita e como ela aparece em nossas vidas? Pensamos em uma cena de novela que achamos linda e queríamos que acontecesse com a gente. Mas, claro que essas coisas são bastante di-fíceis de acontecer, afinal o mundo real é bem diferente.

Pelo menos é o que eu pensava.Ela era uma mulher humana que parecia um anjo,

apareceu no meu horizonte quando fui morar e trabalhar fora. Eu precisava de alguém para lavar as minhas roupas

Page 36: O tempo e a vida - Nós no meio

36

de trabalho e lá estava ela, se apresentando diante dos meus olhos e se oferecendo para lavar as minhas roupas. Aquilo parecia um sonho e, talvez por parecer impossível, me ima-ginei podendo um dia ganhar um beijo daquela mulher que de tão linda parecia deixar sem palavras não só eu, mas qual-quer dicionário. Foi aí que, mesmo mudo diante daquele anjo, tomei coragem e conversei com ela. Naqueles minu-tos de conversa, vi que não era linda apenas por fora, aquela mulher era perfeita por completo, era inteligente e bastante guerreira por saber vencer cada obstáculo que surgiu em sua vida, além de ser muito educada e saber me fazer sorrir como ninguém.

Com o passar dos dias, suas qualidades apenas cres-ciam, ela cuidava super bem das minhas roupas, cuidava tão bem dos meus uniformes que cheguei a ter inveja deles. Por isso, mesmo sabendo que receberia um “não” como respos-ta, eu tomei coragem e a chamei para namorar.

Para minha surpresa, ela aceitou.Aquele foi um dos instantes mais felizes da minha

vida. Naquele momento, o mundo todo girava em torno de nós. Alguns dias depois, a convidei para morar comigo e mais uma vez ela aceitou. A partir daquele momento, passamos a dividir tudo: o teto, a comida, a cama, os so-nhos. Aquela história de amor, que parecia coisa de nove-la, durou três longos anos que guardo comigo até hoje no melhor espaço que tenho na memória.

Page 37: O tempo e a vida - Nós no meio

37

Mas, infelizmente, assim como em todo sonho bom, um dia temos que acordar e a história de amor tem que chegar ao fim.

Com essa história, aprendi que na vida real, assim como nas novelas, um dia a trama chega ao fim e temos que nos preparar para o último capítulo. E hoje fico feliz por ela ter continuado sua vida feliz mesmo que sem mim ao seu lado, e claro, eu também continuei a minha vida, sendo o personagem principal dessa novela chamada vida que continuo encenando, a cada dia, repleta de amores, decepções, alegrias, vitórias e emoções, mas sem nunca me esquecer de que a mais linda história de amor que já assisti foi a da minha própria vida.

Page 38: O tempo e a vida - Nós no meio

38

O menino do facão

Cabo Basílio

Quando eu era pequeno, na faixa de uns sete a oito anos de idade, meu pai e minha mãe saíam bem cedinho para trabalhar na lavoura de cana de açúcar lá no muni-cípio de Conquista e eu ficava em casa cuidando das mi-nhas irmãs até a hora do almoço, quando saíamos e íamos almoçar com nossos pais na lavoura da Usina Mendonça, que era pertinho da nossa casa. Depois do almoço, eu fi-cava por lá para ajudar meus pais a colher cana, enquanto minhas irmãs ficavam numa barraquinha construída de

Page 39: O tempo e a vida - Nós no meio

39

folha de cana pelo meu pai para proteger elas do sol. Elas ficavam ali até o fim da tarde brincando com as bonecas feitas de sabugo de milho até que eu as levasse de volta para casa.

Numa dessas, quando eu “lá envinha” da lavoura com elas, encontramos com uma menina, que devia ter uns 10 anos de idade, bem em cima da uma ponte de ma-deira. Apesar da idade, a menina era maior que todos nós, foi aí que, querendo se aproveitar do seu tamanho, ela nos parou e disse para a minha irmã mais nova:

- Eu quero sua boneca! Me dá essa boneca! Minha irmã fez que não com a cabeça e a menina

com cara de brava fez uma ameaça olhando para mim.- Se eu não ganhar essa boneca, eu vou jogar suas

duas irmãs da ponte!Aí eu fiquei nervoso e falei: - Se você fizer isso eu vou sentar esse facão em

você! - Coloquei a mão no correão da minha cintura que prendia o facão e a menina já ficou com medo e se afastou.

Aí deixou nós passarmos, mas não parou de amea-çar e xingar:

- Seus negrinhos à toa! Eu vou bater noceis seus vagabundos, oceis vão ver, vou dá uma surra noceis proceis deixá de ser preto!

Foi quando eu olhei para trás com raiva e falei para ela calar a boca, senão eu ia sentar o facão nela.

Page 40: O tempo e a vida - Nós no meio

40

E ela atrevida respondeu: - Então vem!E eu fui mesmo! Sentei o facão sem dó no meio da

cabeça dela. Só vi o sangue jorrar e a menina gritar. Saí correndo no mundo abraçado com minhas irmãs e o facão escorrendo sangue.

Depois de um tempo, já em casa, a mãe da menina veio correndo gritando que queria matar minha mãe, por-que eu tinha machucado a filha dela. E o meu pai, como um homem sério e grandão que era, só falou:

- Meus filhos não mexem com ninguém, se fizeram isso é porque sua menina fez alguma coisa com eles. E pra brigar com a minha esposa você tem que passar por mim primeiro e eu também tenho um facão amolado igual ao do meu menino!

A mãe da menina já ficou com medo e vazou.Depois daquele dia, eu fiquei conhecido como “O

menino do facão” e ninguém mais teve coragem de mexer comigo ou com as minhas irmãs, porque sabiam que ali a mão não tinha dó e o facão era certeiro.

Page 41: O tempo e a vida - Nós no meio

41

Praga de puta pega

Dionísio Guimarães

Eu tinha mais ou menos uns 16 anos nessa época lá na Fazenda Lagoa da Pedra, no município de Solânea, no Norte do Brasil, e morava com um senhor, sogro de um tio meu. Meu irmão mais velho, que trabalhava com terraplanagem de estrada de rodagem e estava trabalhando lá perto, aproveitou e me fez um convite para ir trabalhar com ele e passarmos um tempo juntos. Como eu gostava muito do Antonio, meu irmão, aproveitei a oportunidade. Era domingo e fomos lá para a cidade de

Page 42: O tempo e a vida - Nós no meio

42

Solânea, aí meu irmão, vendo aquele meu porte franzino e tímido de morrer, deu um sorriso e me fez uma proposta: - Dionísio, vou te levar no cabaré hoje!Eu era tão tímido que nem tive coragem de falar não.Eu fui acompanhando meu irmão Antonio até uma casa, só que não era uma casa comum, era uma casa tocando forró bem alto e com muita, mas muita mulher em todo canto. Meu irmão já chegou cumprimentando todo mundo, ele já era conhecido ali, e eu, só seguindo ele, todo tímido e encolhido.Aí meu irmão chamou uma das damas e ela veio bem rápido; ela não era muito velha nem nova,de vestido curto, cabelo longo bem lisinho, pele clara, não era nem magra nem gorda, ela era média. Não era muito bonita, mas também não era feia, era de se olhar. Ela era mais forte que eu, claro, eu era tão magro que parecia um grilo.Aí meu irmão chegou ao ouvido dela e cochichou algo que eu não pude ouvir, só ouvi o final quando ele disse: - Ensina tudo pra ele.Eu que era molecão bobo, de boca aberta, só fiquei parado com os olhos arregalados, sem entender nada, enquanto a dama segurava na minha mão e me arrastava pelo salão.Ela me levou para um quarto e, quando entramos, ela fechou a porta com força, girou a chave e a colocou no meio dos peitos. Naquele momento, eu vi que não iria sair tão fácil dali.

Page 43: O tempo e a vida - Nós no meio

43

Quando ela me mandou tirar a roupa, um suor frio escorreu da minha testa, mesmo assim eu fui fazendo o que ela mandava... Aquela noite foi uma aula, uma aula de besteira, claro... E eu aprendi tudo certinho.Na minha timidez, nem sei como aquilo aconteceu, mas fui perdendo a vergonha e o “vuco vuco” começou. Ah! Agora era a hora do “Sapeca Iáiá”!

Nem fiquei muito tempo lá, só que quando saí, estava até bambo, com um sorriso maior que a cara. Naquela noite, eu conheci a felicidade.Porém, meu irmão já me avisou: - Dionísio, hoje eu paguei pra você, mas cuidado, não pode sair sem pagar ou ficar devendo, fica esperto, porque praga de puta pega!Depois daquele aviso, para não apanhar nenhuma praga eu, que agora iria trabalhar com meu irmão, já sabia com o que eu iria gastar meu primeiro salário.

Page 44: O tempo e a vida - Nós no meio

44

Traquinagem até o pescoço

Maria da Penha Guimarães

Um dia, mamãe e papai foram se aventurar na feira para comprar a comida da semana lá em casa e deixou eu e meus irmãos sozinhos trancados em casa. Mas, acabou que ficamos com muita fome, porque só tínhamos jantado e ain-da estava muito longe da hora da janta. Como nossos pais estavam demorando demais, então eu chamei meus irmãos, Antonio e Biapino para pularmos a janela e irmos para a roça catar olho de batata para comermos. Olho de batata é o ramo, o broto da batata, que achávamos uma delícia.

Page 45: O tempo e a vida - Nós no meio

45

Depois que comemos aquele tanto de olho de bata-ta e ficarmos de barriga cheia, eu tive outra grande ideia:

- Vamos para a beira do rio e lá cavamos um buraco para nos enterrarmos?

Meus dois irmãos toparam na hora. Aí, fomos lá em casa, pegamos as enxadas e corremos para o rio. Na areia molhada, cavamos um buraco bem fundo que coube o corpo inteiro do meu irmão Biapino de pé.

Quando ele já estava lá dentro do buraco, eu e An-tonio começamos a jogar terra em cima. Fomos colocando terra no buraco até o enterrarmos na altura do pescoço, foi aí que Biapino começou a gritar desesperado:

- Me tirem daqui! Me tirem daqui!Eu e meu irmão começamos a tentar desenterrá-lo,

mas todo tanto de terra que tirávamos não adiantava; Biapino estava preso em pé dentro do buraco, só com a cabeça para fora.

E os gritos não paravam.- Me tirem daqui! Me tirem daqui! Vocês vão ver!

Vou contar tudo para a mamãe! Me tirem daqui!Foi quando nosso tio Manoel vinha passando e o cha-

mamos para nos ajudar antes que nossa mãe chegasse da feira. Tio Manoel se esforçava e também tinha dificulda-

de para tirar Biapino do buraco- Vocês têm é que panhar uma surra para não fazer

mais estas maldades com seu irmão – dizia meu tio, ten-tando desenterrar o Biapino.

Page 46: O tempo e a vida - Nós no meio

46

Quando finalmente conseguiu tirá-lo de lá, mamãe já apontava no horizonte.

Aí eu e meus irmãos disparamos na correria para chegar em casa antes dela. Biapino estava marrom como um boneco de terra.

Chegando lá em casa, pulamos a janela, entramos no quarto e nos trancamos.

Antes que minha mãe entrasse em casa, tio Manoel contou tudo para ela.

- Vai depressa, os meninos lá iam matando o Biapi-no! Eles merecem uma pisa severa!

Mamãe chegou em casa empurrando tudo e bateu na porta do quarto que estava trancada:

- Abra essa porta que vou dar uma coça em vocês que nunca mais vão esquecer!

Eu estava com tanto medo de apanhar que sem que-rer até pisei no pinico que ficava ao lado da cama, mas abri a porta.

-De quem foi essa ideia de enterrar Biapino? – per-guntou mamãe com raiva.

Meus dois irmãos apontaram para mim.Assim que mamãe entrou, puxou meu braço e co-

meçou a me bater, meus dois irmãos puseram a chorar porque eu estava apanhando demais.

- Tadinha mãe, não bate tanto nela!

Page 47: O tempo e a vida - Nós no meio

47

Quando minha mãe ouviu isso, ela parou de me bater, olhou para os dois e partiu para cima dos meus ir-mãos; pegou um por um.

Naquele momento, eu fiquei aliviada por ter esca-pado da surra e eles apanharam a noite toda, só por ter pena de mim.

Page 48: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 49: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 50: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 51: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 52: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 53: O tempo e a vida - Nós no meio

53

Aliança no dedo

Lourdes Divina

Nós morávamos na Fazenda Monjolim, no municí-pio de Ituiutaba, e por lá tinha muitas casas dos trabalha-dores da fazenda que tocavam roça de café, amendoim, arroz, milho e algodão. Pra alegrar toda essa moçada, todo sábado tinha baile pra podermos dançar forró.

Num desses bailes, vi um sanfoneiro nortista bonito que só fazia o show sorrindo pra mim. Ficava assim a noi-te toda. Até comentei com minha irmã: “Nossa! Aquele tocador de sanfona é bonito demais, só que acho que eu

Page 54: O tempo e a vida - Nós no meio

54

sou muito nova pra ele...”- Nessa época, eu tinha só uns 14 anos de idade e ele já tinha uns 39; e eu nunca tinha namorado...

Até que em um momento do show, aquele sanfo-neiro desceu do palco e veio na minha direção - Nossa! Meu coração disparou! - chegou bem perto de mim e me chamou pra dançar. Enquanto dançávamos, íamos con-versando e eu me encantando.

O nome dele era Dedé e, depois de muita conversa e eu completamente conquistada, ele me pediu em namo-ro. Eu sem pensar duas vezes disse SIM. A partir dali, todo sábado nós nos encontrávamos pra viver nosso amor. Eu estava apaixonada.

...Um dia, eu e minha mãe saímos pra ir à cidade

de Bastos. Sempre íamos a pé e pegávamos o atalho da Serra da Furna; subíamos e atravessávamos a serra até o Córrego da Chácara. Nessa caminhada, a água das nossas cabacinhas acabou e pra nossa sorte, avistamos umas casi-nhas beirando o trieiro que estávamos; paramos na primei-ra casa pra pedir água e batemos palma, quando batemos palma adivinha quem nos atendeu?

Meu amado!Quando ele me viu fez cara de assustado e depois

ficou sério novamente pra conversar com minha mãe. Dei um sorrisão, mas aquele sorriso largo se apagou na hora no

Page 55: O tempo e a vida - Nós no meio

55

momento em que vi a esposa ao lado dele, segurando na sua cintura.

Ao ver aquela cena, meu mundo desabou.O amor da minha vida era casado! Não podia ser!Não aguentei e nem entrei na casa, fiquei lá fora

pra tomar um ar. Até que ele veio me pedir a cabaça pra encher d’água e segurou minha mão – cheguei a tremer nesse momento! Vai que a mulher dele visse isso, ou mi-nha mãe. Deus me livre. –

- Temos que conversar Lourdes! – Ele disse bem sério – Estou largando minha mulher e quero te levar pra São Domingos pra você viver comigo. Amanhã bem cedo vou passar na sua casa. Quando eu chegar lá fora, vou as-soviar três vezes pra você sair e podermos fugir.

No outro dia, era uma sete horas da manhã quando eu estava na cozinha com minha mãe e eu ouvimos um assovio forte.

- Lourdes, que assovio é esse? – Minha mãe per-guntou.

Aí eu fui lá na janela, abri só um pouquinho e vi o Dedé com dois cavalos arriados e uma mala bem grande. Eu fiquei sem fôlego e voltei correndo pra perto da minha mãe.

- Que assovio era aquele Lourdes? Por que você abriu e fechou a janela tão rápido?

- Ah, acho que era passarinho mãe! – Eu respondi fazendo cara de desentendida.

Page 56: O tempo e a vida - Nós no meio

56

Quando minha mãe foi pro quarto dela, eu corri de novo lá pra janela e dessa vez abri tudo. Aí ele em cima do cavalo acenava pra eu ir.

Friamente eu respirei fundo, fiquei bem séria e, com o dedo indicador, só fiz um sinal de não.

Naquele momento, ele arregalou os olhos, franziu a testa e lentamente baixou a cabeça e seguiu rumo ao horizonte por onde o sol nascia com seus dois cavalos.

...Uns 15 anos depois, por coincidência eu reencon-

trei Dedé em um baile. O sorriso se estampou na cara dele. Me chamou pra dançar e me falou que não estava mais casado e que dessa vez eu deveria fugir com ele. Na-quele instante, fiz o que não havia feito quando era moci-nha e, discretamente, olhei pra o dedo dele onde estava uma dourada aliança de casamento. Sem medo, olhei nos olhos dele e novamente só levantei o dedo indicador e fiz sinal de não enquanto saía pra nunca mais voltar a ver aquele homem.

Page 57: O tempo e a vida - Nós no meio

57

Aquele motorista

Divina Rodrigues

Meu pai morava lá no Baixadão, em Ituiutaba. Nós tínhamos uma chácara lá. Todo fim de mês eu ia lá fazer uma visita; sempre pegava o ônibus na rodoviária e seguia até o Baixadão.

No ônibus que eu ia, tinha um motorista muito sim-pático, de vez em quando, eu nem pagava passagem porque aquele motorista bonitão, sem me avisar, falava ao cobrador para colocar na conta dele; eu, menina tímida que era, só dizia obrigado bem baixinho e ia embora sorrindo.

Um dia, chegando à rodoviária, todo mundo des-

Page 58: O tempo e a vida - Nós no meio

58

ceu e ficamos só nós dois ali dentro; conversamos bastante e eu fiquei invocada naquele rapagão que usava chapéu.

Um dia depois, nos encontramos novamente, dessa vez em um baile de casamento lá no Baixadão, onde dan-çamos até o amanhecer. Ô festa boa!

No dia seguinte, eu estava lá em casa na Avenida 36, quando um rapaz chegou e me entregou um bilhete. Aquele rapaz era o irmão mais novo do motorista bonitão, e o bilhete me convidava para ir lá na casa da mãe dele, com a data e a hora.

Sem pensar duas vezes, eu me aprontei e subi a pé lá para o bairro Progresso para conhecer melhor aquele motorista interessante.

Chegando lá, conheci toda a família dele e depois fomos lá para fora, onde nos sentamos num banco e fica-mos sorrindo e conversando de mãos dadas.

Até que um dia, fomos visitar a irmã dele; ficamos sentados em um sofazinho lá na cozinha da casa dela enquanto ela cozinhava de costas para nós. Quando eu menos esperava, ganhei um beijo na boca. Meu coração bateu forte e eu nem soube o que fazer, apenas o beijei também, bem ali, naquela cozinha inesquecível enquanto a irmã dele, agora minha cunhada Zélia, cozinhava e nem fazia ideia da emoção que se passava naquela cozinha.

Depois do nosso primeiro beijo, eu não tive dúvi-das; nunca mais larguei aquele motorista de chapelão.

Com esse motorista, viajo até hoje nessa viagem emocionante que dura 50 anos.

Page 59: O tempo e a vida - Nós no meio

59

Brincadeira Dançante

Ana Rosa Mendes

Todo sábado tinha baile no Palmeira Clube em Ituiutaba, e os Mardenienses, uma banda formada por alunos da escola Marden, que faziam o melhor samba, pa-gode e músicas populares daquela época iriam tocar no próximo fim de semana. Aquela seria uma noite e tanto!

Mas, meu pai era muito ciumento, morria de medo das suas oito filhas virarem mulher. Não deixava a gente sair de jeito nenhum, mas eu e minhas irmãs, a Vilma e a Lenice não iríamos por nada perder essa brincadeira

Page 60: O tempo e a vida - Nós no meio

60

dançante no Palmeira Clube, que na época ficava ali na avenida 17, lá onde é hoje a Abecad.

Esperamos meu pai ir para o boteco beber e fomos para o quarto, fechamos a porta e apagamos a luz para dor-mir, mas na verdade nós nos aprontamos todas, colocamos nossos melhores vestidos e pulamos pela janela rumo a grande festa da noite.

Chegando lá, não perdemos tempo, caímos na dan-ça e na paquera. Brincamos e conversamos a noite toda. Eu não era muito boa de samba, mas dancei até cair bica de suor do meu cangote.

Até que no meio da noite, enquanto eu dançava sem parar, olhei lá para o outro lado do salão e vi meu pai com uma enorme cara de bravo, sangue nos olhos e um rolo de corda na mão perfeita para deixar vergão nos lombos das filhas.

Quando o vi, já saí abaixadinha entre o povo e fui andando agachada até encontrar a porta do Palmeira Clu-be e fugir no mundo de volta para casa. Minhas irmãs fica-ram lá e, quando viram meu pai se assustaram, mas pensa-ram que só levariam uma bronca e nunca apanhariam no meio do povo. Se enganaram dolorosamente.

Elas apanharam feio no meio de todo o baile. Fo-ram cordadas para todo lado. O povo até se afastou para as minhas irmãs apanharem no meio da roda. As costas delas ficaram todas riscadas pelas cordadas.

Page 61: O tempo e a vida - Nós no meio

61

Quando chegaram em casa, minhas irmãs já ti-nham a cara inchada de tanto chorar e meu pai já veio entrando e gritando meu nome:

- Anaa Roosaaa!Quando abriu a porta me viu deitada e dormindo

feito um anjo, talvez por ter visto que eu, ao contrário das minhas irmãs custosas, não tinha saído de casa ou por ter ficado encantado com a minha doçura debaixo da coberta ou ainda porque já estava com os braços cansados de tanto bater na Vilma e na Lenice, que desistiu de me dar o coro que ele tanto almejava.

Quando ele fechou a porta do quarto, eu abri ape-nas um olho e sorri. Mal sabia ele que por baixo da coberta eu ainda estava com meu lindo vestido de festa. O mesmo que passei aquela noite inesquecível no Palmeira Clube.

Page 62: O tempo e a vida - Nós no meio

62

O gato

Arildo Guimarães (Candinho)

Lá na fazenda de Solidade, aqui pertinho do mu-nicípio de Canápolis, papai cuidava do gado e eu, com meus 11 anos de idade, cuidava dos porcos. Éramos seis irmãos e minha mãe e os vizinhos diziam que eu já era o rapaz mais bonito ali das fazendas; olhos azuis, ca-belo loiro, pele boa e com físico atlético; minhas tias que moravam em Ituiutaba falavam que eu era um gato, quando crescesse mais, eu seria um sucesso com as mu-lheres.

Page 63: O tempo e a vida - Nós no meio

63

Lá em casa, papai sempre comprava carne e, um dia, ele jogou os bifes crus recém-comprados em cima da mesa da cozinha do lado do nosso bom e velho papagaio que sempre ficava por lá. Ô papagaio falastrão! Falava o nome de todo mundo e ainda catava piada.

O problema foi que o gato lá de casa sentiu o chei-ro daquela carne e sorrateiramente foi lá comer, dar umas mordiscadas sem ninguém ver; quando o gato chegou lá, o papagaio já ficou com medo e começou a bater as asas sem parar, aí o gato com seu instinto de caçador, preferiu atacar a carne viva do que a carne morta em cima da mesa. Atacou o papagaio e nesse ataque furou o papo do coitado que, por sorte, conseguiu escapar voando. Como o papagaio era muito querido lá em casa, quase um membro da família, quando papai ficou sabendo do que o felino fez com nosso papagaio, não pensou duas vezes: - Vou matar esse maldito gato!

Pegou sua velha espingarda calibre 28 de um cano só, carregada com balas de chumbinho de matar veado, e saiu raivoso lá de casa.

Caçou e caçou na fazenda inteira até que final-mente o encontrou. Viu o gato passando calmamente pelo terreiro e já empunhou sua espingarda fazendo a mira! “Agora esse gato vai ver no que dá mexer com meu papa-gaio!” - ele pensou.

O primeiro problema é que papai tinha péssima mira, mal conseguia acertar um veado grandão, imagina um gato!

Page 64: O tempo e a vida - Nós no meio

64

Quando ele atirou! BANG!O gato fingiu que nem ouviu o barulho e conti-

nuou andando calmamente. O segundo problema é que naquele momento eu estava ali bem pertinho capinando ao redor de um chiqueiro. Quando ouvi o barulho, antes que eu me virasse o tiro pegou certeiro no meu queixo. Caí no chão na hora... Desesperado meu pai me carregou e me levou ao hospital. Depois de tratado o lugar do tiro, ainda fiquei com aquela bala de chumbinho no queixo durante 13 anos.

Naquele dia em que levei o tiro, as moças da colô-nia da fazenda comentaram: - Esse Juca, pai do Candinho é bão mesmo, hein! Sai pra caçar um gato e acabou acer-tando foi outro gato, o maior dos gatos da fazenda.

Page 65: O tempo e a vida - Nós no meio

65

Madrasta Malvada

Magna Lúcia

Depois de muito tempo separado do 1º casamen-to, papai arrumou uma namorada lá na cidade de Ouro Preto, por nome de Florentina. O problema é que assim que papai saía pra trabalhar como pedreiro bem cedinho, a Florentina acordava puxando eu e a minha irmã Luci pela orelha e fazia nós duas irmos lá pra feira pedir es-mola; se nós voltássemos sem nada pra casa, ela nos dava uma surra de pano molhado e nos colocava de castigo. E, se nós contássemos alguma coisa pra o nosso pai, ele não

Page 66: O tempo e a vida - Nós no meio

66

acreditava e nós acabávamos apanhando dos dois, pois ele achava que era invenção nossa; pra ele era Deus no Céu e Florentina na Terra.

Até que um belo dia, pra nossa salvação, mamãe, que morava na cidade de Frutal, finalmente descobriu pra onde meu pai tinha levado as suas filhas e foi correndo ao nosso encontro. Arrumou serviço de doméstica em uma casa próxima a nossa e ficou por lá apenas nos observan-do; tudo isso em absoluto segredo, papai não podia ficar sabendo.

No dia que nós a vimos, foi só choradeira, tanto nossa quanto da mamãe. Foi emocionante ver nossa mãe novamente, chorávamos por revê-la e por não vivermos mais ao seu lado. A partir desse dia, nos encontrávamos com ela quase todos os dias no cemitério da cidade pra que papai e Florentina não soubessem. Contamos pra mamãe tudo que a madrasta nos obrigava a fazer. Mamãe muito revoltada com tudo que falamos, resolveu dar um abasta naquela mulher. No dia seguinte, ficou de tocaia lá na porta de casa, só esperando papai sair pro trabalho. Quando ele saiu, ela entrou. Aí os vizinhos só ouviram os barulhos de móveis quebrando; mamãe jogou a Florentina nas paredes dos quatro cantos da casa, bateu doído na mal-vada e depois a agarrou pelos cabelos e a atirou pela jane-la. Florentina se levantou toda machucada e foi correndo mancando até onde papai trabalhava.

Page 67: O tempo e a vida - Nós no meio

67

Com agilidade, mamãe arrumou uma pequena trouxinha de roupas pra mim e pra minha irmã e fugimos pro ponto de ônibus. Iríamos escapar das garras daquela madrasta e vivermos com quem mais amávamos, que era nossa mãe. O problema foi que o ônibus atrasou alguns minutinhos e, pro nosso azar, papai surgiu lá no horizonte com um monte de policiais. Naquele instante, nosso pai nos segurou enquanto chorávamos e víamos o ônibus que iria nos salvar passar bem na nossa frente. A polícia, sem nenhuma piedade, levava nossa mãe que gritava e estendia a mão pra nós...

Obrigaram mamãe a abandonar o emprego e voltar pra Frutal. Por pouco não havíamos escapado e realiza-do nosso sonho, mas mesmo diante daquela decepção de perder a mamãe, ainda surgiu uma notícia boa. Depois de algum tempo, a malvada da Florentina parou de puxar nossa orelha pra irmos mendigar e nunca mais encostou um dedo em nós; mas o medo que ela tinha de levar outra surra era tão grande que, alguns dias depois, ela arrumou as malas e fugiu pra nunca mais voltar.

Nesse dia voltamos a sorrir novamente.

Page 68: O tempo e a vida - Nós no meio

68

No escurinho da esquina

Creuza Soares

Eu e minhas amigas não perdíamos um forró. Não fal-távamos um sábado nos bailes do bairro Natal de Ituiutaba. Dançávamos até! Nessa época, eu tinha uns 15 anos e os passos de dança não saiam do meu pé. Ali naqueles bailes, eu sempre arrumava uns namoradinhos, sempre uns rapazes mais velhos, de mais ou menos uns vinte e poucos anos de idade, só que “no escondido”, porque meus irmãos mais velhos eram muito bravos e não aceitavam que eu ficasse de namorico com rapaz nenhum. Tinha dia que amanhecíamos no forró.

Page 69: O tempo e a vida - Nós no meio

69

Certo dia, arrumei um namorado desses pra lá de bom. Eu encontrava com ele toda semana. Bem bonito, simpático e ah... como dançava bem! Parecia perfeito.

Pra minha família não ficar sabendo dos meus na-morinhos, nos fins de semana à noite, eu sempre os levava pra esquina da minha casa lá no escurinho atrás do poste; ali rolava beijos e abraços a noite toda. Foi quando um dia levei esse meu novo namorado do baile praquele escurinho da esquina. Era beijo que não acabava mais. Ah, que coisa boa!

Lá estava eu no melhor da noite quando, de repen-te, enquanto eu beijava meu namorado, olhei por cima do ombro dele e vi a minha irmã, Maria Obertina, vindo com os punhos até fechados de tanta raiva.

Ela foi rápida e não deu outra! Virou o braço em mim e deu um pescoção sem dó no rapaz.

- Vagabundo! Some daqui troço! Minha irmã não tem idade pra namorar – Minha irmã gritava e me batia enquanto meu namorado assustado cascava fora.

Aí ela me arrastou pra casa e foi lá que o pior da noite começou. Apanhei de correão até ficarem as marcas nas mi-nhas costas. Era tanta pancada que não dava nem pra contar.

- Sem vergonha! Toma vergonha na sua cara! - Ela gritava.

Cada correãozada era um vergão, mas que não me faziam tirar o sorriso da cara de pensar que mesmo o depois daquela surra, eu ainda iria ver meu bem... Só esperava que aqueles vergões nas minhas costas não atrapalhassem os abra-ços apertados que eu iria dar no dia seguinte...

Page 70: O tempo e a vida - Nós no meio

70

O judas

Antonia M. Santos

Quando eu tinha meus dez anos, morávamos na fazenda Ponte do Salto, e, em um dia da Semana Santa, meu padrinho Adão, muito esperto, convidou o povo lá de casa para passar um pedaço da noite rezando com eles na casa do meu outro padrinho Jucelino.

Só que na verdade eles queriam é tirar nós de casa para que pudessem colocar o Judas lá no nosso quintal. E eles sabiam que meu pai passava a noite vigiando nosso terreno para ninguém fazer isso.

Page 71: O tempo e a vida - Nós no meio

71

Para quem não sabe, o Judas é um boneco de pano com cabeça de cabaça e, se colocado em uma casa, aquela casa tem que ser palco de um baile na noite de Sábado de Aleluia, que no caso seria a noite seguinte. Se o dono da casa que colocassem o Judas não fizesse isso, uma praga de azar cairia sobre aquela família durante várias gerações.

Chegando lá na casa do meu padrinho, papai per-guntou desconfiado: - Cadê o compadre Adão, o Divino e o Chiquinho? - Aí, para o meu pai não desconfiar, a mãe deles que já sabia de tudo, disse que eles foram para a cida-de fazer alguma coisa que não me lembro. Mal sabia meu pai que aquilo era um trote, e os três já estavam no mato fazendo um Judas para levar lá para nossa casa.

A verdade é que meu pai só gostava de festa e forró na casa dos outros, porque sabia que a bagunça sempre ficava para os donos da casa. Além disso, meu pai era san-foneiro e preferia que tivesse baile na casa dos outros, pois quando era na casa dos outros, ele recebia pra tocar.

Depois de toda a reza, quando deu meia noite, fo-mos embora. Chegando lá em casa, papai já parou na por-ta e ficou desconfiado olhando para os lados com medo de alguém aparecer querendo colocar um Judas ali. Por isso, durante a madrugada, toda hora que o cachorro latia ele saía correndo lá para fora para poder vigiar e não deixar ninguém entrar. Só descansou de manhãzinha quando viu

Page 72: O tempo e a vida - Nós no meio

72

o sol nascer e pôde dormir tendo a certeza de que nin-guém entrou ali para colocar o Judas.

De manhã, quando minha mãe foi aguar as plan-tas, levou um susto danado! Ela deu de cara com o Judas lá no meio da horta e que tinha um bilhete na mão di-zendo assim: “Ei cumpadre, ocê saiu de casa, eu cheguei primeiro que ocê!”.

Aí meu irmão foi correndo lá na roça dar a notícia para o meu pai, que quando ouviu, só baixou a cabeça e disse: - Malditos, eles me enganaram. Mas, agora que o mal já tá feito... fazê o quê, né? O jeito é fazê o baile...”.

Naquela noite de Sábado de Aleluia, foi gente de tudo quanto é fazenda da região lá para casa. O baile co-meçou às oito horas da noite e foi até o raiar do dia.

E meu pai? Dançou e tocou sanfona a noite toda com cara de bravo, mas guardou bem guardado aquele Judas, porque no ano seguinte, ia ter vingança, ah, se ia!

Page 73: O tempo e a vida - Nós no meio

73

Os perigos do caminhomais curto

Aparecida Lelis

Quando eu tinha meus 12 anos e morava na fa-zenda, certa vez, eu e minha prima Maria José, em uma véspera de “Sexta-feira da paixão”, resolvemos ir visitar uns parentes lá do outro lado da serra que tinha perto da nossa casa. Quando ficou sabendo disso, meu irmão mais velho nos avisou para darmos a volta e não irmos por cima da serra, porque era perigoso. O problema é que pela estrada era muito longe e eu e minha prima querí-amos chegar lá rápido. Aí prometemos obedecê-lo, mas

Page 74: O tempo e a vida - Nós no meio

74

como toda criança sapeca, assim que saímos, já fomos correndo pelo caminho mais curto e fácil.

Só que nós andávamos e andávamos e não chegá-vamos em lugar algum. Quando já era meia noite, com os olhos cheios d’água, admitimos que estávamos perdidas. Desesperadas, tentamos achar o caminho de volta, mas nem esse conseguíamos.

Já era umas quatro horas da manhã quando encon-tramos em cima da serra uma tapera que todos diziam ser assombrada, aí já começamos a tremer de medo e fala-mos uma para a outra: - Vamos fechar os olhos porque aí a gente não vê as assombrações. - pegamos uma na mão da outra, fechamos os olhos e fomos em frente, passo a passo rumo à tapera abandonada. Foi quando senti um frio na espinha e um vento forte nos meus pés. De repente, ouvi o grito da minha prima!

Abri os olhos e a vi deitada no chão, chorando com a mão na perna. A luz da lua clareava tudo e eu podia ver uma mordida de cobra na canela dela.

Fiquei desesperada enquanto minha prima gritava. Não sabíamos o que fazer até que, como num passe de má-gica, um senhor apareceu para nos ajudar. Ele de forma bem ágil matou a cobra que ainda estava por lá e ficou nos olhando. Quando eu fui conversar com ele para contar sobre a picada da cobra, um galho atrás de mim se mexeu, eu desviei o olhar e quando fui olhar de novo para o homem, ele simplesmente

Page 75: O tempo e a vida - Nós no meio

75

sumiu como se fosse uma assombração. Olhei para todo lado daquele campo aberto onde estávamos e nada do moço.

Como minha prima ainda gritava e eu não tinha tempo a perder procurando esse senhor, eu corri para o mato e busquei capim verde para amarrar em cima do machucado e, como desde pequena eu fumava, também peguei meu cigarrinho, tirei o fumo e cuspi em cima do machucado; para o veneno da cobra não subir, eu rasguei minha blusa e amarrei na coxa da minha prima. Nesse momento, minha prima suava frio e já não conseguia an-dar, por isso, saí correndo e fui buscar ajuda.

Quando cheguei perto de casa, vi que todo mundo da minha fazenda estava nos procurando e, sem pensar duas vezes, os levei até onde estava minha prima que, por sorte, ainda estava bem, pôde ser levada para um médico e sobreviveu àquela jornada perigosa que só por um milagre escapamos e hoje posso contar essa história.

Page 76: O tempo e a vida - Nós no meio

76

Parto

Francisca Maria dos Santos

Eu morava com meu marido Paulo lá na Cabeceira do Cipó, nessa época eu já estava grávida de nove meses; sabia que o bebê iria nascer naquele mês, mas não sabia o dia certo.

Foi aí que um dia fui passear na casa da mãe e, quando estava lá, enquanto eu segurava a lamparina e ela costurava as roupinhas do neném na máquina de costura, de repente senti uma for de cabeça danada e clamei ajuda pra minha mãe.

Page 77: O tempo e a vida - Nós no meio

77

Aí ela arrochou um pano quente na minha cabeça, mas que infelizmente não resolveu, por isso me colocaram no carro e me trouxeram pra Ituiutaba. Já era umas 22 horas quando cheguei na cidade e fui pro Hospital Nossa Senhora da Abadia. Sem dinheiro pra fazer a cesariana, teria que ser no parto normal mesmo.

Nessa hora eu já gritava.Foi quando tudo apagou. Minha pressão subiu e

desmaiei ali mesmo. Tive o que os médicos chamam de pré-eclâmpsia. O doutor já disse assustado: - Agora com essa situação da mãe inconsciente, provavelmente iremos conseguir salvar apenas um deles.

Pra mim tudo tinha apagado.Quando abri os olhos, vi que eu estava dentro de

um quarto de hospital e tomava soro; Tinha quase uma multidão a minha volta, minha mãe, meu pai, meu mari-do, meu irmão João, o Vicente e mais um monte de gente, alguns que eu nem conhecia.

No meio de tanta gente, olhei pro chão e vi um pano. Aí falei pra a minha mãe: - Mãe! Me dá esse pano que aí está no chão!

Ela respondeu: - Não minha filha, não é pano não, é seu filho!

- Meu? – Eu respondi assustada.Naquele instante, coloquei a mão na barriga e vi

que faltava alguma coisa, ela estava murcha. Foi quando

Page 78: O tempo e a vida - Nós no meio

78

minha mãe levantou o pano que estava no chão e, pra mi-nha surpresa, eu vi que o pano não estava no chão e sim em cima de uma caminha baixa.

Minha mãe colocou aquele bebezinho lindo no meu braço e meu sorriso abriu que nem menina nova quando ganha brinquedo. Como eu nunca havia tido fi-lho algum, fiquei tão exibidinha com aquele bebezinho no braço... Neném da gente é tão bom de pegar e cheirar...

Foi algo maravilhoso ter dormido e acordado com um presente tão lindo como aquele a minha espera. E o melhor foi descobrir que Deus foi tão bom pai que me sal-vou de uma tragédia e permitiu que eu acordasse sorrindo. Esse meu primeiro sorriso foi tão gostoso que dei o nome dele de Genivaldo José dos Santos.

Page 79: O tempo e a vida - Nós no meio

79

Salvando os Jabutis

Silvana Damasceno

Devido à grande dificuldade da minha mãe e avó para cuidarem de mim e mais três crianças, ainda bem pe-quena, tive que ir morar com minha tia no estado do Pará, lá na cidade de Altamira.

Lá era tudo muito diferente do que eu estava acos-tumada em Minas Gerais. O bom disso é que como a mi-nha tia, além de professora também era costureira, ela en-feitava e costurava roupas encantadoras para mim e para minhas primas podermos passear naquela região linda do

Page 80: O tempo e a vida - Nós no meio

80

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - IN-CRA - onde morávamos, lá tinham centenas de casas, to-das iguais, onde moravam os funcionários desse instituto.

Minha tia era ocupadíssima, dava aulas durante o dia e fazia faculdade à noite. Por isso, eu tinha toda a liber-dade para fazer o que queria ali na casa dela enquanto as outras meninas iam para a escola ou trabalhavam e eu fi-cava sozinha com a empregada. Meu passatempo favorito era subir num pé de cupuaçu e ficar lá em cima cantando a música “Amor perfeito”, do Amado Batista, repetia a can-ção várias e várias vezes até as duas beatas que moravam na casa vizinha do lado direito gritarem ranzinzas: “Muda de cantor! Canta Roberto Carlos!”

Numa dessas subidas no pé de cupuaçu, reparei que na outra casa vizinha, do lado esquerdo, tinha uma festa animada. Aí fiquei escondida lá em cima da árvore espiando com atenção aquela farra. Foi quando levei um susto! É que tinha uns homens bebendo cachaça e fazen-do churrasco, só que não era carne normal que estavam colocando na churrasqueira, estavam assando jabutis, e o pior de tudo é que os bichinhos estavam indo para o fogo vivos! Isso mesmo! Os malucos colocavam os pobrezinhos vivos dentro da brasa da churrasqueira.

Com os olhos cheios d’água, eu fiquei chocada com aquilo. Os bichinhos inocentes tentando sair do fogo, enquanto aqueles homens riam e os empurravam para

Page 81: O tempo e a vida - Nós no meio

81

dentro da churrasqueira novamente. Inconformada com aquilo, no outro dia, como de costume, subi na árvore e percebi que não havia ninguém na casa ao lado e, então, com toda a minha agilidade de menina, subi no muro e pulei no quintal vizinho. Com muita pressa peguei todos os jabutis que estavam lá presos em uma gaiola e joguei para o lado da minha casa. No meio da correria, acabei achando por acaso um saco cheio de caranguejos, todos vivos. Joguei também! Então peguei os jabutis, coloquei em um saco e soltei todos na margem do Rio Xingu. Os ca-ranguejos eu soltei num terreno próximo do rio, só que os burros ao invés de entrarem na água correram na direção contrária e se esparramaram pela rua. As crianças da vizi-nhança fizeram a festa com aquela caranguejada que não teve a mesma sorte dos jabutis e foram todos devorados.

Os vizinhos quando chegaram e não encontraram os jabutisinhos em casa, ficaram umas feras. Um culpando o outro enquanto eu ouvia e ria dos gritos deles lá de casa. Minha sorte foi que eles nunca desconfiaram que a culpa-da da soltura dos jabutis era eu, a menina de oito anos que morava ali do lado. Depois dessa vez, sempre que eu podia eu pulava lá na casa deles e livrava os bichinhos da morte.

Nessa vida, talvez eu não tenha sido uma pessoa tão boa, mas sei que por essa história eu tenho um lugar especial lá no “Céu dos jabutis”.

Page 82: O tempo e a vida - Nós no meio

82

Teste da palmatória

Antonia Alves Batista

Eu morava lá na Fazenda do seu Delmino Morais, per-to do Córrego da picada. Foi nessa época, quando eu tinha uns seis anos de idade mais ou menos que fui pela primeira vez na escola; tinha umas 30 crianças dentro de sala, e ali eu aprendia de tudo com um único professor, que era um velho bem enér-gico e sistemático chamado Polinário; ele era pai da minha vizinha Joaninha que se casou com o Sr. Moisés Baliano.

Eu gostava muito dessas aulas, lá tinha até um pé de mexerica que o professor adorava e, por isso, sempre

Page 83: O tempo e a vida - Nós no meio

83

que pedíamos pra ir ao banheiro, quando voltávamos, ele cheirava nossa mão pra saber se tínhamos mexido nas fru-tas. Mas, o mais interessante e doído era um jogo ou teste ou brincadeira, quem sabe punição que o professor Poli-nário aplicava na nossa sala. Esse teste era o seguinte: o professor passava no quadro negro uma palavra pra cada aluno ler, se alguém errasse ou não conseguisse ler a pala-vra que estava escrita no quadro, levava uma palmatória do coleguinha que se sentava do lado como punição. Assim, o professor Polinário ia passando um a um, se o primeiro errava e o segundo acertava, o segundo batia no primeiro, mas como éramos quase todos amigos ali, porque tínha-mos sido criados juntos por morarmos perto um do outro, aí dávamos a palmatória bem de leve pra não ter choro.

Mas, tinha uma menina lá na sala que eu era im-plicada. O nome dela era Gasparina e, como eu era boa nesse teste oral da palmatória, resolvi me sentar atrás dela. Eu corria risco. Se ela acertasse e eu errasse, ela que me batia, mas eu sabia que eu iria acertar. Quando chegou na vez da Gasparina, o professor Polinário escre-veu no quadro a palavra COPO. Gasparina olhou pro quadro confusa... começou a suar e balançar os dedos nervosa, baixou a cabeça com vergonha e disse a palavra CADEIRA. O professor Polinário olhou pra a ela com cara de bravo e passou a mesma palavra pra mim que já estava com um sorriso enorme na cara. Eu acertei e

Page 84: O tempo e a vida - Nós no meio

84

ele me entregou aquela régua de madeira que tinha uma ponta redonda pra eu acertar a Gasparina. Quando ela me estendeu a mão, eu sem dó nem piedade, ao contrá-rio dos meninos que batiam de leve pra não machucar, sentei a palmatória na mão dela com toda força que eu tinha, coloquei tanta força que quase caí. Quando olhei pra frente, só vi os berros da Gasparina que tinha a mão vermelhinha. E eu apenas sorria com minha cara de criança, feito um anjinho endiabrado.

Hoje, 60 anos depois dessa história, de vez em quando, vejo a Gasparina na rua aqui em Ituiutaba e, sempre que ela me vê, bem devagarzinho e com medo, ela ainda encolhe os dedos e esconde a mão no bolso...

Page 85: O tempo e a vida - Nós no meio

85

Caboclo d’água

Antônio Garcêz

Lá no Rio Tejuco, acima da “ponte nova”, havia uma caverna por debaixo do barranco em que eu estava com um amigo chamado Ailton, que tinha o apelido de “Fote”. Cada um de nós com uma varinha, anzol e muita isca pra uma boa pescaria; tudo isso em julho de 1979DC.

Uma certa hora, me afastei um pouco do meu ami-go e fui pescar um lá pra cima do rio, bem próximo da ponte; de repente senti um puxão na vara... era uma Ca-ranha! Quando consegui puxar o bicho, tirar do anzol e todo feliz segurar o peixe, levei uma ferroada tão forte que

Page 86: O tempo e a vida - Nós no meio

86

soltei a Caranha na hora e pro meu azar ela escapuliu de volta pro rio.

Tornei a colocar outra minhoca no anzol e espe-rei... até que, de repente, a vara tremeu novamente e outra Caranha surgiu! Quando eu puxei a vara e consegui pegá-la, vi que o peixe já tinha outro anzol preso na boca; então era a mesma Caranha que eu tinha acabado de pescar al-guns minutos antes. Que sorte a minha, ou realmente tava com pouco peixe naquele rio...

Feliz com o peixão na mão, olhei pro meio do rio e vi uma coisa estranha... Era como se alguém estivesse vindo nadando em uma velocidade muito rápida que su-peraria qualquer nadador das Olimpíadas. Era tão rápido que parecia deslizar por cima d’água, como se a correnteza abrisse pra ele poder passar. Mas, esse era um nadador di-ferente, era um menino meio que de um metro de altura com olhos brilhantes feio gato e de cabelos com fartura na cabeça, tudo extremamente liso e brilhante, e a pele era lisa e escorregadia, bem preta, preta mesmo, não dava pra confundir com uma pessoa negra, era quase azul... era lindo! Fiquei encantado por estar vendo aquilo.

Naquele instante, ouvi os gritos do meu amigo Fote: - Tonicooo! Toniiicooo! Sai daí desse barranco! O caboclo d’água vai te pegar!

O Caboclo d’água era aquele menino que vinha deslizando por cima d’água e me olhava com seus olhos felinos, bem no fundo dos olhos, mesmo ele estando ainda longe, enquanto fazia um barulho com a boca em uma

Page 87: O tempo e a vida - Nós no meio

87

língua que desconheço, como se mexesse sua língua pra todos os lados sem parar.

Eu fiquei paralisado com aquele barulho, estava admirado e imóvel. Não conseguiria me mexer, nem se eu quisesse. Quando o Caboclo d’água se aproximou, ele que vinha deslizando por cima d’água, mergulhou e entrou por baixo do barranco.

Nessa hora, o Fote colocou os dedos na língua e começou a assoviar bem alto! Era um assovio longo e dois curtos bem fortes. Naquele instante, meio que acordei daquele fascínio pela beleza do caboclo d’água e senti o barranco tremer.

O Fote gritava desesperado: - Acorda logo Tonico! Acorda pelo amor de Deus! O Caboclo d’água tá quebran-do o barranco pra te derrubar e te comer lá embaixo!

O Caboclo d’água estava realmente cavando por debaixo do barranco, dava pra sentir pelo tremor no chão e por ver algumas pedras já caírem na água; aí eu dei um passo pra trás no mesmo instante que o chão se abriu e todo o barranco foi engolido pelo rio.

A terra que caiu por cima da água fez o rio ficar ver-melhinho. Eu tinha escapado por pouco! No meio daquela água escarlate vi apenas a ponta da cabeça do Caboclo d’água com seus olhos de gato me olhando com cara de decepção... Me encarou por uns instantes, fez aqueles barulhos estranhos com a língua, se virou e mergulhou, feito um peixe...

Um peixe que quase levou minha vida pra dentro d’água.

Page 88: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 89: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 90: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 91: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 92: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 93: O tempo e a vida - Nós no meio

93

A bola de fogo

Antonia M. dos Santos

Depois de um dia de trabalho na fazenda e as crian-ças brincando pelos pastos, minha avó, meu avô e mais alguns amigos vizinhos se sentavam nos bancos do terreiro para prosear até anoitecer.

De repente, quando olharam no alto do horizon-te, em cima do morro próximo, viram uma luz imensa se movimentando e parecendo querer descer na direção das casas. Isso fez com que o povo quase caísse das cadeiras e assustados corressem feito loucos gritando, até consegui-rem se trancar nas suas casas de pau a pique.

Page 94: O tempo e a vida - Nós no meio

94

- O bicho do fogo tá vindo! – Gritavam.Com medo daquela bola de fogo, muitos tropeça-

ram e se esconderam chorando de medo atrás da primeira carroça que acharam.

Como, no dia seguinte, todos que ali moravam ti-nham de trabalhar e passar próximo àquele descampado no alto do morro onde viram o a bola de fogo, em um surto de coragem e valentia, meu avô empunhou sua foice e com um grito convocou os homens valentes da roça!

- Vâmo matá esse bicho corredô de fogo!Em meio àquele vendaval que soprava na noite,

com foices e facões na mão, os homens subiram o morro com a raiva e o medo nos olhos. Quando chegaram final-mente no local, todos ficaram arrepiados!

Era a ossada de uma vaca com cabeça chifruda fla-mejante.

Conforme esperado, todos partiram para cima do monstro e o acertaram ferozmente com foices e macha-dos. Depois de eliminar a criatura de fogo, aqueles ho-mens corajosos desceram o morro, vitoriosos e ansiosos para poder contar para todo mundo como haviam derro-tado aquela fera do mal, que de tanto medo ficou imó-vel, sem mexer um dedo, enquanto eles a atacavam para proteger suas famílias.

...

Page 95: O tempo e a vida - Nós no meio

95

Hoje, anos depois, eu, Antonia, ao conversar com um biólogo, ouvi a explicação do que era aquele monstro.

É que a decomposição do animal, mais os ossos e muita folha seca, além de dejetos que já estavam ali no chão fértil e seco da região, podem provocar uma combus-tão na ossada que o vento assoprava e fazia o fogo dançar na direção das casas. Tudo não passava de uma combustão.

Essa é a única história de terror verdadeira que eu conheço, fruto do que gera os maiores medos no homem, a combustão da imaginação.

Page 96: O tempo e a vida - Nós no meio

96

Amor impossível

Inoemes das Graças

Em 1970, eu estava com 19 anos de idade e morava com minha mãe e irmãos na Vila Cristina, que hoje se chama Bairro Maria Vilela, em Ituiutaba. Nessa época, conheci um moço clarinho, por nome de José, que mora-va quatro ruas abaixo da minha casa.

Naquele tempo, meu bairro não tinha energia elé-trica, por isso era difícil de sairmos, dessa forma meu pas-seio e das minhas amigas era andarmos pela Vila Cristina antes de anoitecer e, às vezes, irmos à praça da prefeitura

Page 97: O tempo e a vida - Nós no meio

97

à noite. Nesses poucos passeios pela vizinhança, eu sem-pre via o José, que tinha o apelido de Pamonha, mas não porque ele era preguiçoso ou molenga, pelo contrário, ele era muito trabalhador e cuidava sozinho do “Chiqueirão”, que era um famoso ponto de ônibus. Lá ele plantava al-gumas verduras e sempre que podia levava algumas para minha família.

Quando minha mãe fazia pamonha, meu irmão mais velho, o Oclécio, chamava-o para saborear conosco e eu ficava toda feliz em vê-lo, porém não podíamos con-versar. Por algum motivo que eu não entendia, minha mãe sempre brigava comigo ou me chamava quando eu final-mente tinha a chance de conversar com o Zé Pamonha.

Ele sempre me olhava, sorria; aí eu sorria de volta e ficávamos nos olhando por longos minutos... Meu coração disparava e nossos olhos brilhavam feito estrelas cadentes.

No dia que a mamãe e meu irmão mais velho fica-ram sabendo que eu estava gostando do Zé, ou melhor, que eu estava apaixonada no Zé pamonha, a casa caiu.

Me colocaram contra a parede e me fizeram jurar que não existia amor meu por ele. Da minha parte, claro, eu neguei tudo, porque eles eram muito severos comigo.

Me fizeram sentar na cama enquanto minha mãe gritava: - Que negócio é esse de você estar gostando do Zé Pamonha? Nunca mais queremos ouvir isso aqui em casa ouviu Inoemes? Nunca mais você vai olhar pra ele!

Page 98: O tempo e a vida - Nós no meio

98

Chorando, eu baixei o rosto e confirmei com a ca-beça.

Depois daquele dia, sempre que ele me olhava, eu tinha de resistir e desviar o olhar e nunca mais trocamos flertes ou sorrisos, assim nosso amor platônico morreu e o meu sonho romântico se desfez, até que ele desistiu e nunca mais nos vimos.

Tempos depois fui descobrir que o problema é que minha mãe e irmão não aceitavam que eu namorasse um rapaz branco.

Muitos anos se passaram e, depois disso, vivi inú-meros amores, vitórias e decepções. Um casamento que durou só 90 dias, o nascimento dos filhos e muita gente que conheci nessas avenidas da vida, mas em todos esses anos o Zé Pamonha nunca saiu da minha cabeça.

Em 1980, depois de me mudar da casa da minha família, onde, até então, eu sempre havia morado, minha irmã me disse que o Pamonha passou por ali, e que agora morava em Brasília e era casado com uma linda moça ne-gra, conforme era o sonho dele desde garoto, quando nos conhecemos.

Naquele instante, fiquei feliz por ele ter realizado seu sonho e triste por eu ter desistido tão fácil do meu.

Talvez por nunca ter acontecido e nunca termos enfrentado os problemas que todo relacionamento tem, que achamos que os amores impossíveis ou frustrados da

Page 99: O tempo e a vida - Nós no meio

99

nossa vida tenham sido os melhores ou maiores, por mais que nem tenham realmente acontecido a não ser na nossa imaginação onde tudo é lindo e perfeito.

A vida é assim: às vezes, o maior amor é aquele que nós não cultivamos.

Page 100: O tempo e a vida - Nós no meio

100

Bebuns mirins

Emília Martins

Eu tinha seis anos de idade e morava com e meus irmãos, que tinham meio que a minha idade, na cidade de Iturama. Em nossas férias, íamos todos para a fazenda da minha avó encontrar nossos priminhos que também iam ou moravam lá.

Na fazenda, vovó nos fazia tomar gemada e muito leite da vaca todos os dias, sem falar que depois do almoço tínhamos que tomar o Biotônico Fontoura, só depois disso que podíamos passear pela fazenda. Eram oito crianças correndo e brincando pelos pastos.

Page 101: O tempo e a vida - Nós no meio

101

Ali perto tinha um engenho de cachaça para onde vovó e todos os empregados da fazenda avisavam para nós não irmos. Só que falar que não pode tal coisa para criança... sabe como é, né? Isso só atiçava nossa curiosidade.

Foi aí que, um belo dia, fomos matar essa nossa curiosidade no engenho e, como, naquele horário, o rapaz que cuidava do galpão ainda estava almoçando, resolvemos entrar e tomar a tal da cachaça. A bebida ainda estava processando, mas mesmo assim experimentamos e achamos docinha, uma delícia! Enchíamos a colher de concha e íamos tomando, só paramos quando já estávamos cambaleando. Ficamos assustados com aquele mal estar, pensamos que estávamos doentes, por isso fomos para casa.

Quando chegamos, a minha avó já sentiu nosso cheiro e perguntou brava:

- O que está acontecendo?! Eu já falei pra vocês não irem naquele engenho, cambada! Agora, vocês vão aprender o tanto que é bão beber cachaça! - Pegou o correão e já foi na nossa direção.

Naquele dia, não conseguimos nem correr da surra, estávamos todos tão bêbados que a maioria de nós nem se lembra dessa história nem da surra. No outro dia, só acordamos de ressaca e com os vergões nas costas.

Page 102: O tempo e a vida - Nós no meio

102

Meu sonho de ter uma boneca

Dalva Augusta

Minha infância foi maravilhosa. Morava na fazen-da e lá eu, meus irmãos e amigos aprontávamos muitas travessuras, subíamos em árvores, jogávamos bola, brincá-vamos de biloca, matávamos passarinho com estilingue, soltávamos pipa, tudo junto com meus irmãos.

Umas das melhores coisas da minha vida foram os meus padrinhos Lomico e Nenzinha. Meu padrinho era muito trabalhador, tinha sete filhos e era bem de situa-ção. Me lembro, como se fosse hoje, de um dia quando

Page 103: O tempo e a vida - Nós no meio

103

eu tinha só três aninhos e minha mãe nos levou em uma quermesse em Ipiaçu; lá encontramos com os meus pa-drinhos e seus filhos. Ir passear com eles era uma mara-vilha, íamos às barraquinhas e meu padrinho Lomico nos comprava muitos refrigerantes, salgados e guloseimas para comermos.

Até que estávamos passando na porta de um bazar cheio de brinquedos e pelúcias e meu padrinho me disse:

- Dalva, escolhe uma daquelas bonecas, que o pa-drinho vai lhe dar.

Tinha bonecas tão bonitas, grandes e pequenas. Fi-quei namorando todas elas por longos minutos, até que vi um barrigudinho atrás das outras e lhe disse:

- Padrinho, eu quero aquele!Eu havia escolhido algo diferente de todas as outras

bonecas, eu havia escolhido um boneco. Meu padrinho tirou o presente da prateleira e eu abracei toda satisfeita o meu boneco, que dei o nome de Moreno.

Com o passar dos anos, brinquei muito com o Mo-reno e passei a sonhar em dar uma companhia para ele; uma boneca grande e bem linda para ele namorar. Assim, comecei a trabalhar com nove anos de idade para ajudar meus pais e poder realizar meu sonho que agora era o de ter uma boneca grande.

Meus dois irmãos mais velhos vendiam doce para ajudar em casa e, um dia, me ouviram falar para mamãe

Page 104: O tempo e a vida - Nós no meio

104

que eu queria ganhar do Papai Noel uma boneca grande para fazer companhia para mim e para o Moreno; esse era meu sonho.

Como infelizmente não tínhamos muito dinheiro em casa, minha mãe ouviu meu pedido e, mesmo saben-do que não teria condições de me comprar uma boneca, ela me disse que se eu fosse uma boa menina talvez Papai Noel me trouxesse uma linda boneca no fim do ano.

Comovidos com aquele meu sonho, depois desse dia, meus dois irmãos sempre que saíam para trabalhar e achavam um pedaço de boneca na rua, no lixo ou ga-nhavam, pegavam e iam juntando. Em casa, tentavam montar com os pedaços encontrados uma boneca inteira para mim. Às vezes, traziam pedaços que não serviam, que eram pequenos ou grandes demais, aí o jeito era procurar outros pedaços. Quando finalmente conseguiram montar uma boneca para mim, mamãe fez um lindo vestido de chita florado com sua máquina de mão.

Minha linda boneca não era novinha nem limpinha, mas me fez sorrir de forma tão sincera e pura como poucas coisas na nossa vida conseguem. Eu brincava de casinha com ela todo dia e, para combinar, coloquei o nome dela de Morena. Infelizmente, com o passar dos anos, eu a perdi, porém o Moreno eu tenho até hoje no meu quarto, ele tem 54 anos e eu tenho 57. Hoje ele me faz companhia e me relembra aqueles tempos tão bons que não voltam mais.

Page 105: O tempo e a vida - Nós no meio

105

Meu primeiro fuxico

Guaraciaba Medeiros

Desde pequena, eu queria ser costureira, sonhava com tecidos, tesouras, agulhas e linhas de todas as cores. Minha mãe sempre ocupada trabalhando, não tinha tem-po para me ensinar a costurar e, como eu era muito esper-ta e curiosa, comecei a tentar costurar sozinha.

Um dia, me sentei em um banco e, mal alcançan-do os pedais da máquina de costura, tentei fazer meu pri-meiro vestido. Peguei uma colcha de fuxico prontinha da minha mãe que estava guardada no baú de trabalhos dela

Page 106: O tempo e a vida - Nós no meio

106

e cortei um monte de retalhos de uma colcha que eu lá achei; desmanchei tudo que tinha e comecei a costurar tudo igualzinho aos modelos que a minha mãe fazia. Fi-cou uma belezura, era um vestido bem vermelho com bo-linhas brancas, muito lindo!

Quando mamãe chegou, não perdi tempo, fui logo mostrar meu trabalho da tarde. Quando minha mãe viu aquele fuxico bem feitinho na minha mão, ela disse:

- Nossa que bonito! Quem fez?Ai eu respondi orgulhosa: - Fui eu mamãe! Aprendi sozinha!Minha mãe ficou muito feliz porque a roupa tinha

ficado perfeita.Depois de algumas horas, minha mãe foi organizar

seus trabalhos que entregaria para as clientes naquela semana e acabou achando os restos daquela colcha que eu havia pega-do os pedaços para aprender a costurar. Estava toda recortada e destruída! Brevíssima, ela não pensou duas vezes. Apanhou uma vara na goiabeira e me deu uma surra que dói até hoje.

Mesmo depois dessa surra, eu não desisti de costu-rar e continuei pegando pedaços de pano dos trabalhos já prontos da minha mãe para fazer lindos vestidos para mim, e camisas para os meus irmãos. Quando me tornei moça, me casei e criei meus filhos, continuei fazendo roupas bo-nitas para os meus meninos e para outras pessoas. Assim, me tornei uma costureira profissional.

Page 107: O tempo e a vida - Nós no meio

107

Hoje sou uma costureira muito realizada e conse-gui sustentar toda a minha família com muito trabalho e honestidade. Sempre feliz e rodeada de amigos, familiares e, claro, muitos tecidos e linhas de todas as cores, sem nun-ca me esquecer daquele fuxico que me rendeu uma surra, mas que mudou minha vida.

Page 108: O tempo e a vida - Nós no meio

108

Namorado secreto

Cida Cunha

Eu morava lá na fazenda Serra da Aroeira, para o lado de Capinópolis, eu tinha por volta dos meus 17 anos e, nessa época, eu era custosa que só, não parava quieta. Como meu pai era muito bravo, não deixava nenhuma das suas filhas na-morar, só de ver eu e minhas irmãs perto de algum homem ele nos olhava e fazia com a mão o sinal de coro.

Uma vez, na venda da Fazenda Pontinha, onde aconteciam os rachas de futebol, eu fui assistir a um jogo e conheci um rapaz muito lindo e, para minha sorte, aquele

Page 109: O tempo e a vida - Nós no meio

109

rapaz não tirava os olhos de mim. Depois do jogo, quando chegamos pertinho um do outro, ele falou que me achava muito bonita e perguntou se poderia ir à minha casa; eu respondi toda feliz que ele podia ir sim, mas era para ele tomar cuidado, porque meu pai era muito bravo.

No domingo seguinte, ele foi a cavalo até a minha fazenda. Chegando lá, foi bem recebido, só que, justa-mente naquele dia, meu pai ficou sabendo de algumas histórias bobas do rapaz e sem pestanejar me proibiu de vê-lo. Eu fiquei arrasada, pensei que iria perder meu grande amor justo agora que tinha acabado de conhecê-lo.

- Não quero esse sujeito aqui na minha fazenda nunca mais! – Dizia meu pai com toda a raiva do mundo.

Ah, mas aquilo não iria me separar do meu amor!Esperei meu pai se acalmar e esquecer e, no do-

mingo seguinte, falei que ia buscar abobrinha na fazenda vizinha. Peguei o cavalo no couro mesmo, sem rédea e sem nada, montei no lombo do bicho e corri sorrindo para a casa do meu namoradinho.

Eu corria disparada pela capoeira da fazenda. Ca-belos ao vento e a emoção na pele, ansiosa para reencon-trar meu novo amor de adolescente.

Ele já estava me esperando, eu tinha mandado re-cado pelos amigos dele. Agora era só correr rumo ao abra-ço. Mas, com uma coisa eu não contava, ali na região era muito esburacado e o cavalo correndo a toda velocidade,

Page 110: O tempo e a vida - Nós no meio

110

de repente, tropeçou em um buraco e lá fui eu na direção do chão.

Foi um tombo feio mesmo! Rolei na poeira, foquei toda esfolada e parecendo uma boneca de terra.

Quando levantei toda esfolada, vi meus braços rala-dos, joelhos esfolados, mas sorri quando vi que meu vesti-do estava bem sujo, só que intacto.

Ah! Eu ainda estava pronta para o encontro! Tornei a montar no cavalo e disparei na direção da fazenda do meu namorado secreto.

Não seria um braço ou um joelho ralado, ou ainda uma sujeirinha de nada que iria me parar.

Quando cheguei lá, ele olhou para mim toda suja... Ficou meio assustado, mas não perdeu tempo e me abra-çou com toda a força. O abraço até doeu um pouquinho por causa dos ralados, só que eu nem liguei. Para os rala-dos os beijos eram o melhor remédio, e a roupa suja? Ah, quem que precisa de roupa nessas horas?

Page 111: O tempo e a vida - Nós no meio

111

O dia que desapareci

Sonia Martins

Hoje, me veio à memória uma lembrança da minha infância, de quando eu estava no quarto ano do primário e minha mãe sempre me ameaçava dizendo que se eu tirasse notas ruins e tomasse bomba na escola, eu iria tomar uma sur-ra servida de que eu nunca mais iria me esquecer. Aquilo me aterrorizava e me fazia sempre ser uma ótima aluna na escola.

Até que um dia, para o meu azar, tirei notas muito ruins e a professora me disse que se eu continuasse assim, eu iria tomar bomba! Aí fiquei apavorada!

Page 112: O tempo e a vida - Nós no meio

112

Para não levar aquela surra prometida, eu resolvi fugir de casa. Esperei meu pai ir trabalhar, fingi para a minha mãe que iria para escola, coloquei umas roupas na mochila e saí de casa rumo a qualquer lugar. No caminho, fiquei pensando para aonde ir, eu queria ir para qualquer canto, menos para casa onde eu levaria uma surra quando mamãe soubesse das minhas notas.

Andei o dia todo sem rumo, até que, quando já era quase à noite, ouvi o carro propago passando com a notícia do meu desaparecimento, o qual devia ter ficado a tarde inteira rodando a cidade. O carro anunciava de forma tris-te e séria: “Informamos que a menina Sonia Martins, de 12 anos, saiu às 12 horas para ir à escola e desapareceu, quem tiver notícias por favor entrar em contato com...” – E assim continuava por toda a cidade.

Para não ficar na rua e correr o risco de ser encon-trada e levar aquela surra, eu corri para a casa da minha amiga com uma decisão firme na cabeça. Chegando lá, rezei para a mãe da minha amiga não ter ouvido o carro propago que anunciava meu desaparecimento nas ruas e perguntei para ela se tinham soda em casa, menti que a minha mãe havia me mandado pedir emprestado para fa-zer sabão; só que a mãe da minha amiga notou que eu es-tava mentindo e disse para eu me sentar e esperar que ela fosse buscar a soda para mim. Aí entrei e fiquei esperando sentada no sofá até que comecei a cochilar.

Page 113: O tempo e a vida - Nós no meio

113

Enquanto isso, a mãe da minha amiga, muito es-perta, foi até a minha casa e contou para minha mãe toda a história da soda e que ela podia ir me buscar, porque eu ainda estava lá.

Quando mamãe chegou, ela me abraçou toda cari-nhosa e, contente por eu estar bem, me perguntou o que eu queria com a soda, pois ela não tinha pedido para eu buscar soda alguma.

Nessa hora, eu comecei a chorar e falei que eu iria beber a soda porque estava com medo de voltar para casa e apanhar. Ao ouvir isso, minha mãe toda carinhosa disse que ela não iria me bater e que nunca, mas nunca mais eu deveria pensar daquele jeito, pois uma nota se pode recu-perar, já se ela perdesse uma filha, nunca mais alguém iria conseguir recuperar isso para ela.

Naquele dia, eu vi o quanto eu era importante para a minha mãe e que nada no mundo, nunca mais iria me fazer querer perder aquele abraço quentinho que só ela tinha.

Page 114: O tempo e a vida - Nós no meio

114

O segredo do espírito

Lucília Borba

Quando eu era pequena e vivia na fazenda, lá per-to tinha um casarão onde aconteciam umas reuniões que criança não podia assistir. Chamavam o lugar de Centro Espírita, mas eu e meus amiguinhos não sabíamos muito bem o que aquilo queria dizer.

Só que a nossa curiosidade infantil era tão grande que, para saber o que acontecia lá dentro, um dia espe-ramos todo mundo entrar no casarão e trancar as portas, para nos aproximarmos passo a passo ao redor da casa e

Page 115: O tempo e a vida - Nós no meio

115

entrarmos por um buraco que dava debaixo do assoalho. O lugar era escuro e apertado, mas dava para ouvir tudo que rolava lá dentro.

Eram algumas conversas com palavras estranhas, umas músicas e uns batuques. Pareciam estar em uma roda e perguntando as coisas para alguém... Não dava para entender muito bem sobre o que eles estavam falando. Pelo tom de voz deles, parecia algo muito sério.

Quando entramos, umas seis ou sete crianças mais ou menos, junto com a gente entrou também um cachor-ro que devia ser de algum dos meninos.

Só que o cachorro estava pulguento e começou a se coçar todo, justo quando o povo da reunião estava concentrado para receber um sinal do além. O cão se coçava e, como o espaço era pequeno, ele batia a pa-tinha na madeira e o povo lá de cima se ajoelhava e gritava mais alto!

- o que tá acontecendo aí, mizifio? – O homem de branco que víamos entre as frestas dizia.

E o cachorro ia se coçando mais e o homem con-tinuava:

- Quê que foi, mizifio? Pode falá sem medo! Pai Véio aqui sabe das coisa, mizifio!

Aquela sessão continuava rolando e nós no asso-alho colocando a mão na boca para segurar o riso, en-quanto o pai de santo cantava e continuava a dar ideia

Page 116: O tempo e a vida - Nós no meio

116

para as coçadas do cachorro na parede do assoalho pen-sando que era um espírito falando com ele.

As baianas de saia branca iam rodando e a coisa foi esquentando até que perguntaram:

- Qual seu nome mizifio, diz pra Pai Véio quem tá aí? – e insistiu – Mizifio, fala pra nóis quem tá aí!

E como resposta, o cachorro que tava com a gente latiu bem alto:

- Aaauuuuuuu! Auauauuu!Naquele momento, não aguentamos segurar o

riso! Nossa gargalhada explodiu debaixo daquele assoa-lho e o povo do centro espírita viu que tinha um bando de criança embaixo do casarão.

Saímos correndo quase passando mal de tanto rir e o cachorro correndo com a gente para o meio do mato antes que o povo abrisse a porta e nos pegasse.

Naquele dia, corremos com força porque se fôsse-mos pegos aí a correia iria cair matando e só iriam conse-guir conversar com a gente se fosse através da sessão espí-rita para conversar com os mortos.

Page 117: O tempo e a vida - Nós no meio

117

Pai herói

Elza Campos

Me casei com o Sebastião Gonçalves em 1964, e vivíamos em uma fazenda no Barreirão, no município de Ipiaçu.

Um dia, meu marido chegou, estacionou o trator em frente à nossa casa e foi lá para a despensinha; pendu-rou o espelho na parede e foi fazer a barba. Estava meu esposo fazendo barba quando, de repente, ouviu uma gri-taria desesperada de criança.

- Pai, pai! Socorro!

Page 118: O tempo e a vida - Nós no meio

118

Era a voz no nosso filho Ariovaldo, que tinha uns cinco ou seis anos de idade na época e estava com seu pri-minho Voulei, de cinco anos, e o Robert nosso outro filho mais novinho, de apenas três anos.

Aí o Sebastião olhou pela janelinha da despensa e viu o trator descendo com tudo na direção da estrada que dava para o córrego e os três meninos em cima dele.

Os meninos tinham desengatado o trator e agora iam direto para dentro do Córrego do Barreirão! Como eram maiores e mais espertos, Ariovaldo e o Voulei pularam do tra-tor que já pegava velocidade e saíram rolando pelo chão da estrada. Ficou lá em cima só o pequeno Robert, que ao con-trário do que esperávamos, não estava chorando, mas sim exi-bindo um sorriso largo enquanto segurava o volante do trator.

Num golpe de coragem e desespero, o Sebastião pulou sem medo pela janela pequenina da despensa, só de cueca mesmo, exatamente como estava ao fazer a barba, e arrebentou a janelinha no corpo! O pulo foi tão forte que ele levou a soleira da janela no peito. Saiu correndo de cueca pela estrada atrás do trator que já descia disparado e estava a uns dez metros do barranco do córrego.

Quem estava lá só viu aquele moço de cueca cor-rendo com toda a força até alcançar o trator em movi-mento, segurar o Robert e puxar o freio de mão no último instante, quando a roda dianteira do trator já alcançava o barranco.

Page 119: O tempo e a vida - Nós no meio

119

Naquela hora, Sebastião suspirou de alívio por ter salvado a vida do Robert, que se sentava do colo do pai sorrindo e comemorando por ter feito aquela corrida emo-cionante que o irmão e o primo não tiveram coragem de fazer.

Texto em homenagem a meu esposo Sebastião Gonçalves Vilela, com quem fiquei casada durante 50 anos. Esse grande marido, pai e herói que nos deixou em 2014.

Page 120: O tempo e a vida - Nós no meio

120

Reencontro

Maria José Cardoso

Em 1958, eu tinha 13 anos de idade, e meu amigo José tinha 18 quando começamos a namorar lá em Currais Novos, no Rio Grande do Norte, um lugar que era difícil de arrumar trabalho. Por isso, depois de inesquecíveis três meses de namoro, meu namorado foi embora para Minas Gerais e eu fiquei por lá sozinha e muito triste, pois não podia desaba-far com ninguém, já que nosso namoro era em segredo.

José foi em busca de emprego nas fazendas do Pon-tal do Triangulo Mineiro, em uma tal cidade do Prata,

Page 121: O tempo e a vida - Nós no meio

121

perto de Ituiutaba. Pouco tempo depois, meu pai, que também estava a procura de emprego, aproveitou a onda de crescimento das lavouras de Minas e resolveu levar toda sua família para Ituiutaba. Meus olhos brilharam quando ouvi essa notícia e pensei que, nessa viagem, talvez eu pu-desse reencontrar meu grande amor.

Infelizmente, quando cheguei, não vi o José por terras mineiras. Inicialmente pensei que talvez ele pudesse estar em uma fazenda bem longe, por isso eu não o encontrava, mas meu maior medo era pensar em encontrá-lo casado com outra mulher; meus olhos até ardiam de pensar nisso. Se passou três anos que eu ha-via chegado a Ituiutaba e nada do José, mas o sonho de reencontrá-lo ainda vivia em mim, até que um dia sonhei com o José. No sonho, ele vestia camisa azul e calça branca e, com todo carinho, segurava a minha mão e me dizia que sempre soube que um dia nos reen-contraríamos.

Depois desse sonho, fiquei otimista que iria reen-contrá-lo, aquilo só podia ser uma mensagem de Deus.

Após quatro meses, desde que eu havia tido aque-le lindo sonho, certo dia, sem nenhum aviso, vi José nas ruas de Ituiutaba, vestido de camisa azul e calça branca, exatamente como em meu sonho. Naquele instante, meus olhos brilharam e eu agradeci a Deus por transformar meu sonho em realidade. Nosso encontro foi inesquecível, nos

Page 122: O tempo e a vida - Nós no meio

122

abraçamos tão forte que parecia que nosso corpo era um só. Aquele abraço foi tão intenso e demorado que após nos soltarmos, já sabíamos que nunca mais iríamos deixar aquele abraço se desfazer. Assim, nosso namoro continuou e, em poucos meses, nos preparamos para o nosso casa-mento.

Quando morávamos em fazenda, sempre que chamavam nossa família para um casamento, por falta de dinheiro para comprar roupa e para pagar o lotação até a igreja, nunca íamos, por isso, até aquele dia mági-co eu nunca tinha assistido um casamento; o primeiro casamento que vi na minha vida foi o meu. Mesmo que tenha sido um casamento só no civil, para mim foi lin-do, tão bom quanto qualquer casamento em uma igreja grande. Foi o momento mais feliz da minha vida, quan-do finalmente assinei o sobrenome Cardoso. E, além de um sobrenome, ganhei um membro a mais na minha família.

Casamos no dia 15 de abril de 1963 na cidade de Canápolis. Neste dia, me senti feliz da vida ao pensar que tinha reencontrado o grande e único amor da minha vida depois de anos e anos sonhando.

Depois desse reencontro, ficamos quarenta e nove anos casados e esse amor nos rendeu cinco filhas maravi-lhosas e oito lindos netos; até que Deus o chamou para perto dele, quando viu que José, após tantos anos de vida,

Page 123: O tempo e a vida - Nós no meio

123

já tinha cumprido sua missão aqui na terra, de fazer feliz toda uma família e deixar centenas de boas recordações em nossas mentes.

E hoje só me restam saudades desse maravilhoso homem, pai e marido que foi Jose Rubens Cardoso, que esteja onde estiver, sei que está sonhando, aguardando e se preparando para esse nosso novo reencontro.

Page 124: O tempo e a vida - Nós no meio

124

Pó de mico

Roseli Consuêlo

Meu pai havia comprado um lote para construirmos a nossa casa e, dessa forma, sairmos do aluguel. Então, ele comprou todos os materiais para a construção, mas ainda faltava tijolo, foi quando ele, a minha irmã Rita e eu fomos na olaria comprar esse material que faltava. Enquanto car-regavam o caminhão com os tijolos, aproveitei e fui sozinha me aventurar e conhecer a olaria. Papai e Rita estavam tão atentos aos tijolos que eram colocados no caminhão para ver se nenhum iria quebrar, que nem deram a minha falta.

Page 125: O tempo e a vida - Nós no meio

125

Desbravando a olaria, vi como os tijolos eram feitos e ouvi dos empregados a história sobre como o tal do pó de mico era feito; ri bastante e tive uma ideia de vingança endiabrada e incrível.

Juntei vários pedacinhos de tijolo quebrados e os passei na peneira para coar. Depois coloquei tudo em um saquinho de papel e amarrei em um retalho. Chegando em casa, tomamos banho, jantamos e fomos dormir. No outro dia, fui para a escola e disse para uma menina cha-mada Cátia, que sempre brigava comigo e que, algumas semanas antes, ao querer tomar meu pó compacto, acabou o quebrando, que eu havia ganhando um novo pó de arroz e, por isso, para mostrar para ela que eu não havia ficado com raiva, eu tinha separado um pouco do pó e estava dando a ela de presente.

O que ela não sabia era que esse pó de arroz que eu estava dando a ela era na verdade uma mistura que fiz de talco com pó de mico. Ela me agradeceu, me abraçou e levou para casa toda feliz o saquinho de pó compacto para usar após o banho.

Após ter tomado banho, de madrugada, a Cátia co-meçou a se coçar e assim foi a noite inteira. Acordou a casa inteira com os gritos e choros.

No outro dia, o padrinho dela foi conversar com meu pai. Minha mãe me chamou para ouvir as reclama-ções dele de que a Cátia estava toda arranhada e tinha

Page 126: O tempo e a vida - Nós no meio

126

chorado a noite toda por causa daquele pó de arroz que eu tinha dado a ela.

Quando eu menos esperava, meu pai tirou o cinto da cintura, me colocou de barriga no seu colo e começou a me bater, só que para surpresa de todos, ao invés de cho-rar eu comecei foi a gargalhar imaginando a cara branca da Cátia usando o pó compacto de mico, enquanto chora-va e aprendia a nunca mais brigar comigo na escola.

Page 127: O tempo e a vida - Nós no meio

127

A vingança

Venica Rosa Coimbra

Nós nos mudamos para a fazenda e nos fins de se-mana era uma bagunça; todos os nossos primos estavam lá, uns 12 meninos querendo fazer aventuras e ir para o rio que tinha lá na fazenda.

Em um desses fins de semana, por coincidência, ti-nha exposição em Santa Vitoria, por isso toda a molecada ficou o dia inteiro implorando para o vovô nos levar,

- Leva nóis hoje vovô, o senhor é tão bonzinho! Vai! Leva a gente!

Page 128: O tempo e a vida - Nós no meio

128

Pedimos tanto que chegou uma hora que o vovô concordou:

- Vou levar vocês, só que se teimarem, nunca mais levo... e, ah! O Junio e o Jean não vão porque eles choram.

Naquele dia, fomos para a exposição e nos diverti-mos muito, eu e toda a meninada, menos o Jean e o Junio, que ficaram sozinhos em cara com muita raiva arquitetan-do um plano diabólico para se vingarem.

O Jean que era mais velho e esperto falou pro Junio:- Vamos pegar a lata de cal do vovô que está na dis-

pensa e pintar a cerca que tem na frente da casa. Vai ficar lindo, ele vai adorar! Depois disso, ele vai gostar mais da gente e nos levar sempre pra passear.

O Junio pensou e sorrindo concordou na hora.Depois de toda a cerca na frente da casa pintada de

branco com muito capricho, o Jean teve outra ideia: - Junio, sobrou cal ainda, no chiqueiro tem uns por-

cos mansinhos, vamos pintar os lombos deles? O vovô vai adorar!

Acabaram pintando as costas dos porcos do chi-queiro inteiro e, para finalizar o Junio que até agora só estava seguindo as ideias do Jean, foi lá e pintou o rabo dos cachorros, olhou orgulhoso para o Jean e perguntou:

- Será que o vovô vai gostar?O Jean, muito esperto, respondeu:

Page 129: O tempo e a vida - Nós no meio

129

- Claaarooo! – enquanto já assustado olhava para o portão prevendo que o vovô iria chegar a qualquer mo-mento.

Para se preparar para nossa chegada junto com o vovô, Jean chamou o Junio:

- Vamos deitar que o vovô já esta chegando e já é tarde e amanhã ele vai ver o quanto somos bons e se ele não gostar, pelo menos vai aprender a nunca mais nos dei-xar sozinhos em casa...

Page 130: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 131: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 132: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 133: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 134: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 135: O tempo e a vida - Nós no meio

135

A menina e a onça

Marlene de Oliveira

Aos meus nove anos, pela primeira vez, fui à fazenda. Fui acompanhada da minha bisavó Ambrosi-na. Saímos da cidade de Jardineira, que é um ônibus diferente, pequeno e arredondado. Depois de algum tempo de viagem, quando descemos, minha bisavó montou em uma égua e eu fui à garupa; aquele mo-mento foi emocionante para mim, eu que era menina de cidade, nunca havia andado de cavalo e visto tanta árvore e mato.

Page 136: O tempo e a vida - Nós no meio

136

E lá fomos nós, subindo e descendo morro a cava-lo, só no final da tarde chegamos na casa do meu tio, filho da minha bisa, onde haviam uma cinco crianças.

No dia seguinte, após o almoço, fui chupar laranja, e subi no pé com minha prima; uma vez lá em cima, mi-nha prima me disse assustada:

- Tá vendo aqueles três pés de jabuticaba? Ali em-baixo, quando os frutos tão maduros como agora, sempre vem uma onça pra pegar os bichos que aparecem pra co-mer jabuticabas... e hoje a onça tá lá!

- Onde? – disse eu curiosa.- Ela tá ali, atrás daquele tronco perto da jabutica-

beira! Ela tá olhano pra nois!- Ainda não vejo! Cadê essa onça?- Sobe mais que ocê vai enxergar! Ela tá deitada na

sombra.Subi alguns galhos e a essa altura o medo já tomava

conta de mim e me fez ver aquela sombra atrás do tronco com os olhos arregalados olhando para cima na nossa dire-ção. Naquela hora, eu tremi feito vara verde, bati os dentes como se estivesse morrendo de frio.

- E agora o que que nóis faiz? Ela não sai dali e tá olhano pra gente! Ela quer comer nóis – Dizia minha prima.

Nessa hora, eu já suava frio de medo daquela onça que nos olhava de longe só esperando descermos para vi-rarmos lanche dela.

Page 137: O tempo e a vida - Nós no meio

137

Sem saber o que fazer e desesperada, por algum motivo que até hoje não sei, me joguei lá de cima e fui direto para o chão. Aquele pé de laranja devia ter uns três metros de altura

Esborrachei toda naquela queda, e mesmo des-montada no pé da árvore, o medo da onça me deu forças para conseguir me levantar mancando e ainda tentar cor-rer, mas não consegui, porque meus pés doíam tanto e eu não parava de tremer. E a onça viu aquele meu tombo e estava agora vindo lentamente na minha direção. Quando finalmente consegui chegar em casa, minha tia viu meu estado e perguntou desesperada:

- Que isso, Marlene? O que aconteceu?- Foi a onça, tia, ela tá vindo e quer me comer! –

Respondi ofegante e apontei para a onça que vinha bem calma na direção da casa.

Minha tia olhou para aquela onça, me olhou com cara de brava e depois olhou de novo para a onça com cara de quem não acreditava no que estava vendo e disse:

- Peraí, aquela é onça?... Aquele é meu... Ah, essas crianças da cidade... Nunca viram mato e não sabem nem a diferença entre uma onça e um cachorro...

Page 138: O tempo e a vida - Nós no meio

138

Beijo apanha barriga

Divina Luzia dos Santos

Com meus 16 anos de idade, eu trabalhava na Rua 26 em Ituiutaba, numa lojinha da minha colega Elizabe-te; ali saía chapéu, boneca, roupa, tapete e mais um mon-te de coisas, eu era ótima vendedora.

Em frente à lojinha tinha a Pensão São José e lá trabalhava um rapaz moreno, de cabelo enrolado, alto, gordo, bem nortista e já mais velho, tinha 31 anos de ida-de. Certo dia, eu recebi uma carta dele que dizia que seu nome era João, ele era paraibano e queria namorar uma

Page 139: O tempo e a vida - Nós no meio

139

mineirinha. Daí eu virei a carta e respondi no verso que tinha medo de namorar com “nortista” porque eles largam a mulher no norte, chegam aqui em minas e querem arru-mar outra esposa.

E assim foi por muitos e muitos meses, aquele tanto de carta que eu respondia e mandava o menino que entre-gou levar de volta; cada dia chegava uma nova. Um dia, ele me convidou para a matinê no Cine Capitólio e come-çamos a ir sempre ao cinema, só que, algumas vezes, eu chegava com ele no cinema e via outro rapaz mais bonito, aí eu despistava o João e entrava com o outro rapaz. Mo-lecagem minha de criança isso. Um detalhe importante é que eu não beijava nenhum dos meus namorados, porque minha mãe dizia que se beijasse “apanhava” barriga, por isso, para não ficar grávida, eu não beijava ninguém. E as-sim foi por muitos anos, depois de quatro anos de namoro, eu comecei a usar aliança de noivado com o João. Só que, de vez em quando, nos dias que o João estava trabalhando à noite, eu ia escondido para os forrós na fazenda. Che-gando lá, eu escondia a aliança no bolso e dançava a noite toda sob a luz das lamparinas. Vez ou outra, sem ninguém ver, eu apagava as lamparinas só para o pessoal dançar no escuro. Mas, eu nunca beijava, afinal, se beijasse “apanha-va” barriga.

Um dia meus pais falaram que já não me aguenta-vam mais em casa e era para eu me casar com o João. Em

Page 140: O tempo e a vida - Nós no meio

140

23 de junho de 1962 eu me casei virgem, de branco, de véu e grinalda e sem nunca ter beijado.

Foi um ótimo casamento na igreja Matriz, meu pri-meiro beijo foi ali e não é que minha mãe estava certa?

Depois do primeiro beijo no casamento, quatro meses depois eu descobri que estava grávida. E, nessa toa-da de 52 anos de casada, tive cinco filhos, ou seja, só beijei cinco vezes.

Page 141: O tempo e a vida - Nós no meio

141

Boi que não vale nada

Eduardo Alves

Em 1962, lá em uma fazenda do Paraná, meu avô tinha uma batedeira de feijão, trigo, arroz e milho, que era puxada por animais. Um dia, meu pai comprou uma junta de bois pra puxar essa batedeira, só que eles empacavam a toda hora, era impossível trabalhar com aqueles bichos. Pra sorte da fazenda, meu avô conseguiu vender esses bois pro Sr. Gezoino, um fazendeiro que morava por ali, só que não falou nada a respeito desse problema do gado empa-car.

Page 142: O tempo e a vida - Nós no meio

142

Depois de algum tempo, um dia esse Sr. Gezoino topou com meu pai, que tinha o apelido de Dino, e disse:

- Dino, seu pai me vendeu uma junta de bois que não valem de nada, só ficam empacando. E agora, como é que eu faço?

Aí meu pai olhou pra ele com um sorriso na cara, respondeu:

- Passa esses bois ruins pra outro trouxa!

Page 143: O tempo e a vida - Nós no meio

143

Caldo de cutinho

Maria das Neves

Quando eu morava lá no norte, na cidade de Cam-pina Grande, na Paraíba, certa vez, minha mãe tinha viajado para visitar meu pai que estava no hospital, e eu aproveitei pra chamar todos os meus amigos lá pra casa. Nós éramos uns seis ou sete coleguinhas e tínhamos meio que a minha idade, uns 10 a 11 anos. Quando estava todo mundo reunido, eu já puxei a ideia da brincadeira:

- Vamo brincá de cozinhado?Eles toparam na hora.

Page 144: O tempo e a vida - Nós no meio

144

Eu peguei uma panela de barro grande que eu ti-nha em casa, coloquei água para ferver e lá dentro botei colorau, pimentão, coentro, cebola, um pouquinho de sal... Enquanto eu ia aprontando tudo, a trinca de menino só ficava olhando lá da sala, admirados com a minha habi-lidade na cozinha. Mas, faltava alguma coisa, até que tive uma grande ideia! Eu era a cozinheira, não podia deixar as visitas no desagrado com aquela refeição.

Quando estava tudo pronto, peguei alguns pra-tinhos e coloquei em cada um aquele caldo caprichado que eu havia feito... Meus amiguinhos lamberam os beiços quando viram aquela delícia! Comeram com gosto.

Naquele dia, fiquei conhecida como a melhor co-zinheira da turma.

Mal sabiam eles que enquanto eles esperavam pelo almoço na sala, eu, menina esperta que era, descobri qual era o ingrediente que faltava naquele caldo: era carne! Por isso, fui lá no galinheiro. Como as galinhas de lá eram muito ariscas e corriam para todo lado, eu preferi pegar os mais fáceis.

Catei um por um os doze pintinhos da galinha. Cada um eu pegava e corria para a cozinha, jogava na pa-nela e bem rápido tampava para eles não pularem; aí eu voltava para pegar os outros! Que matar nem temperar os cutinhos que nada, eu jogava todos dentro da panela vivos mesmo! Esse era o segredo daquele meu prato tão

Page 145: O tempo e a vida - Nós no meio

145

delicioso que os meus amiguinhos devoraram com tanta pressa, alguns até repetiram e lamberam o prato.

Depois daquele dia, meus coleguinhas me pediam sempre para cozinhar para eles... E eu sempre sabia qual prato preparar...

Page 146: O tempo e a vida - Nós no meio

146

Casa assombrada

Iolanda Lariucce

Meu avô, Francisco Lariucci, mais conhecido como Chiquinho, havia comprado uma fazenda linda, cheia de animais e pastos que iam até o fim do horizonte.

Mas, foi só depois que ele já tinha se mudado para aquela terra, que os fazendeiros vizinhos começaram a di-zer que o casarão daquela fazenda era assombrado porque já tinha morrido gente lá dentro.

Na casa, que ficava no pé de uma enorme game-leira, moravam meu avô, minha avó Luiza Gabriela e

Page 147: O tempo e a vida - Nós no meio

147

minha tia Ivone. Na hora de dormir, ouviam barulho de todo lado, era o casarão rangendo a noite toda, cada passo que minha tia dava com seu tamanco de pau fazia uma porta que estava fechada se abrir. Sem contar o canto das corujas, urutaus e tudo quanto é bicho da noite.

Com isso, todos chegaram a uma conclusão: era verdade, a casa era assombrada.

Sem contar que os cavalos que tinham um curral bem próximo da entrada da casa não paravam de relinchar a noite toda e os porcos que viviam em baixo do assoalho da casa, sem nenhuma explicação, começavam a gritar na madrugada como se estivessem sendo atacados por algo.

Era o tinhoso que estava atiçando a casa, meus avós diziam.

- Estou cansado de não conseguir dormir! Eu vou vender essa casa! Ela é assombrada – dizia meu avô já sem paciência e determinado.

- Vende não, vô - Eu dizia.- Mas, eu não aguento mais ficar sem dormir.- A fazenda pode ser assombrada vovô, mas na cida-

de tem ladrões – eu tentava convencê-lo.Ele me relatou certinho tudo que o tinhoso estava

aprontando na casa... Eu ouvi tudo atentamente... e uma luz me veio à cabeça.

- Eu tenho uma solução que vai resolver seus pro-blemas com o tinhoso, vô! Venda esses porcos que estão

Page 148: O tempo e a vida - Nós no meio

148

de baixo do seu assoalho. Venda ou faça um curral mais longe pros cavalos e corte essa Gameleira que está na porta da sua casa.

- Mas, como isso vai resolver os problemas com “o coisa ruim”, Iolanda?

- Faça isso que o senhor vai ver! Ah! E peça pra tia Ivone parar de andar de tamanco dentro de casa.

Ele refletiu, ficou com algum receio, mas meio que sem uma alternativa melhor, fez tudo que eu falei.

Depois dos porcos vendidos, novo curral para os cavalos construído e pé de Gameleira cortado, não é que o tinhoso parou de assombrar a casa? Finalmente a paz reinou na fazenda.

Após tudo ser resolvido e a família já poder viver bem no casarão, eles vieram me agradecer.

- Não é que você tava certa, bambina! Realmente era a Gameleira que tava assombrada!

Page 149: O tempo e a vida - Nós no meio

149

Casamento sem namoro

Manoel Gabriel da Silva

Minha irmã Laureana chorava litros junto à minha prima Maria, lá em São José, no Nordeste. Desesperada, ela gritava e temia pela minha vida: - Manoel, viúvo e com sete filhos pequenos lá dentro de Minas Gerais! Nós já lhe oferecemos dinheiro, oferecemos carro para ir buscá-lo, mas ele não aceita nada!

Minha prima foi para casa com o coração na mão.- Laureana está chorando por causa do irmão Ma-

noel que está lá em Minas, na cidade de Ituiutaba, sem

Page 150: O tempo e a vida - Nós no meio

150

parente e sem aderente, viúvo e com sete filhos lá no meio do mundo - Disse toda penosa minha prima Maria Severo para suas duas filhas, e continuou: - Ele diz que mineiro é mais que irmão para ele e não sai de lá por nada.

A sua filha Raimunda, de 25 anos de idade, ao ou-vir isso, sem medo disse: - Olha só, mãe! Diga que quero me casar com ele!

- Oxe, menina! Você não está vendo que coisa ne-nhuma faz Manoel vir para cá? Acha que ele virá a uma distância dessas para se casar contigo? Toma juízo!

Aí a Raimunda foi de encontro a minha irmã e fa-lou: - Me passe o endereço de Manoel que eu vou enviar uma carta para ele dizendo que quero me casar com ele.

Na carta que recebi dizia assim: Manoel, eu sou a filha de Maria Severo e Afonso Severo, já falecido, e me chamo Raimunda; se você receber essa carta, saiba que estou a seu dispor se quiser se casar.

Quando li aquilo, fiquei surpreso e já recusei, mas meus filhos insistiram: - Pai, pelo amor de Deus, cace uma pessoa e se case!

Aí fui de São José, no Nordeste, para Ituiutaba atrás da autora da carta para modo de me casar. Chegando à casa de Raimunda, a mãe dela me recebeu muito bem e disse aos criados: - Põe água no fogo e esquenta o café!

Aí eu disse sem rodeios: - Eu não vim atrás do café não, eu vim para conhecer uma filha sua e me casar!

Page 151: O tempo e a vida - Nós no meio

151

Na carta que recebi dizia ser Raimunda. Vim me casar com ela!

Com os olhos arregalados, a minha prima Maria, mãe de Raimunda, já deu a ordem aos criados: Arranca a vasilha do fogo, joga no mato que não é pra fazer café para esse cachorro, não!

Ainda assim eu não arredei o pé. Depois de muito refletir e se acalmar, a prima Maria Severo me disse: Olha, você vem aqui sábado às 17 horas para conversarmos e re-solvermos isso.

Como fora combinado, peguei minhas malinhas e voltei no sábado. Quando cheguei, já fui bem direto: - Eu vim para casar e não tenho tempo a perder não, tenho fi-lhos a criar, não tenho tempo para namoro. E assim, no dia seguinte, ajeitamos os papéis e na terça nos casamos no civil; só depois de nove dias que fomos celebrar o casa-mento na igreja. Nessa correria toda, mal tivemos tempo juntos... por isso, só viemos a namorar realmente depois do casamento.

Ah, e esse namoro foi tão especial que durou 35 anos, três filhos e dois netos.

Page 152: O tempo e a vida - Nós no meio

152

Com a GRAÇA de Deus

João Vitor Santos

Na faixa dos meus 33 a 34 anos, eu trabalhava de pedreiro e, certo dia, fui contratado para fazer uma casinha de cachorro na casa do Dr. Gilberto Severino. Enquanto eu estava lá construindo a casinha que ficaria embaixo de um pé de abacate, de repente uma moça bonita veio lá de dentro da casa e passou pela varanda, quando eu a cha-mei:- Vem cá moça! Traz um copo d’água pra mim!

Ela respondeu com um sorriso que me cativou. Era uma graça aquele sorriso. Aí eu aproveitei e perguntei seu

Page 153: O tempo e a vida - Nós no meio

153

nome, e ela me respondeu: - Meu nome é Graça, mas todos me chamam de Gracinha.

Naquele momento, eu vi que não poderia haver um nome que combinasse tanto com aquela moça. Quan-do ela voltou com o copo d’água, eu aproveitei e pergun-tei: - Você é casada, Gracinha?

Ela me respondeu na hora, quase antes de eu ter-minar a pergunta: - Não!

Aí eu não esperei e, em um golpe de coragem, fa-lei: - Você quer morar comigo? E ela novamente respon-deu sem pestanejar: - Eu quero!

A alegria ficou estampada na minha cara enquanto nos olhávamos sorrindo.

Aí ela me perguntou com os olhos brilhando: - Onde é que vamos morar?

Naquele mesmo dia, eu já comecei a organizar as coisas para alugarmos uma casa lá no bairro Junqueira. Nesse meio tempo, até irmos para a nossa casa, todos os dias eu ia dormir com a Gracinha lá na casa dos fundos do Dr. Gilberto Severino, só que tudo escondido. Todo dia, quando era mais ou menos 21 horas, eu dava um assovio no portão para a Gracinha me passar pelos cachorros bra-vos e dizer à Bertha, a sua patroa, que estava terminado o trabalho do dia e já era hora de dormir. Era assim todo dia.

Ah, um detalhe que ainda não falei: a Graça, aque-la linda mulher por quem me apaixonei estava grávida de

Page 154: O tempo e a vida - Nós no meio

154

cinco meses quando eu a conheci, mas mesmo um deta-lhe tão grande como esse não foi o bastante para eu querer desistir dela, afinal mesmo que o filho não fosse meu, eu iria dar o meu melhor para criá-lo como um filho; porque se Deus deixou vir ao mundo, eu iria dar as boas- vindas a ele ou a ela, como o pai verdadeiro não foi homem o suficiente para fazer.

E assim foi. Após o nascimento da Luana, a minha filha, eu e Gracinha nos mudamos para nossa casa no bair-ro Junqueira e iniciamos nosso caminho de vida juntos; sempre de mãos dadas e com passos firmes na mesma di-reção. Caminho que hoje tem 33 anos e dois filhos mara-vilhosos, a Luana e o Igor, que nos deram cinco netos que só nos dão sorrisos.

E ainda hoje, sempre que olho para minha esposa que tanto amo, eu ainda pergunto assim, como o dia em que nos conhecemos: - Você quer morar comigo? E ela responde rápido antes que eu termine a pergunta: - Eu quero!

Page 155: O tempo e a vida - Nós no meio

155

Feitiçaria

Delmindo Ferreira

Eu conheci a Francisca lá na fazenda do meu pai, onde eu morava. O pai dela, o seu Vicente Justino, sempre ia lá e, um dia, quando foi buscar uma receita médica, ele levou a filha. Ela tinha acabado de se mudar para a minha escola e de-pois disso, essa garota passou a, todo dia, me dar umas olhadas, me encarava sem vergonha. Eu já estava ficando sem graça, mas pensei “quer saber?” E passei a olhar para ela também.

Mas, eu a olhava e ela abaixava a cabeça, aí eu vira-va para o outro lado e olhava de banda e via ela ainda me

Page 156: O tempo e a vida - Nós no meio

156

olhando. Aquela Francisca era bonita, o problema é que eu já estava namorando a amiga dela.

Um dia, contei essa história para a minha mãe e ela ficou encantada. Tudo porque Francisca era a filha do seu Vicente, que tinha uns “pedação” de terra ali em Gurinha-tã, que na época ainda era município de Ituiutaba.

Na hora ela já falou: - Cê vai casá é com a Francis-ca!

- Mas, mãe! Eu namoro a amiga dela, não posso!- Cala a boca minino! Cê não sabe de nada! Cê vai

casá é com a Francisca!- Mas, mãe, ela nem tem corage de oiá pra mim!

Ela não vai querê!- Ah, mas eu faço ela querê, ocê vai ver!Minha mãe que era uma benzedeira das mais fa-

mosas daquelas bandas e fazia simpatias infalíveis, não perdeu tempo; benzeu eu e a Francisca e jogou uma reza brava na gente que não deu para escapar. A coisa ali foi feitiçaria forte, só pode.

Deu pouco prazo e eu e a Francisca não desgru-dávamos. Rapidinho já deu casório. Dia 8 de outubro de 1949.

O feitiço da minha mãe foi tão forte, mas tão forte que até hoje estou casado, há 65 anos.

Page 157: O tempo e a vida - Nós no meio

157

Forró cheio de barro

Joana M. Morais

Eu morava lá na Fazenda do Tio Jerominho Ribei-ro, e ia sair um mutirão para limpar o rego d’água ali perto, por isso eu aproveitava a viagem e ia com eles, porque de-pois de limpar o rego d’água eu sabia que sempre aconte-cia um baile à noite.

No fim da tarde, eu, menina de oito anos de idade, toda empolgada para o baile, me arrumei toda, vesti meu melhor vestido, passei um perfume e, toda bonita, fui lá na beira do rego ver se meu tio, meu avô e toda a turma que

Page 158: O tempo e a vida - Nós no meio

158

veio comigo já tinham terminado de limpar o rego para podermos ir pro baile.

Assim que eu estava chegando, sem avisar, meu tio veio correndo e, para brincar comigo, me empurrou dentro do rego d’água que estavam limpando. Água toda suja, cheia de barro. Fiquei toda imunda e lambrecada. Quando me levantei daquela lama, vi aquele tanto de gen-te chegando para o baile e eu ali no meio do barro. Como eu não havia levado mais roupa e não dava tempo de to-mar banho, antes que eu pensasse em desistir da festa e ir embora, todo mundo já estava fechando as casas para ir para o barracão dançar. Já ciente de que eu não teria escolha, meu tio Nego me colocou nas costas, me levou para o barracão do forró e me puxou para dançar. Mesmo eu estando suja, ele me embalou na dança e aos poucos eu fui perdendo a vergonha e me soltei... Aquele foi um dos melhores bailes da minha vida. Dancei toda suja e bar-rosa mesmo. Depois, no fim da festa, toda cansada, nem aguentei, quis nem tomar banho, dormi ali mesmo, em um colchão com um enorme sorriso e muita lama na cara.

Page 159: O tempo e a vida - Nós no meio

159

Gravidez de 1 ano

Maria Abadia da Silva

Após o casamento, meu marido Edivaldo, que era car-pinteiro, foi contratado por um fazendeiro e, por isso, fomos morar em uma fazenda pertinho de Capinópolis. Lá eu fazia requeijão, queijo e todo dia recolhia leite pra dentro de casa, além de fazer toda a comida da turma que trabalhava com a gente. Minha “primeira vez” foi com meu marido no dia de casamento, a festa acabou mais cedo pra irmos dormir. E assim os dias se passavam e, naquela vida de fazenda, continuávamos vivendo nossa lua de mel todo dia, às vezes, várias vezes por dia.

Page 160: O tempo e a vida - Nós no meio

160

Todo mundo da fazenda dizia: “Essa Maria vai ar-rumar uma renca filhos, essa mulher é uma coelha”. Meu pai que era muito bravo e sistemático sempre repetia que mulher não podia dormir com homem senão já embucha-va. E eu fiquei com isso na cabeça desde a lua de mel no dia do casamento. E minha mãe já me cantava a pedra desde que eu era pequena: “Mulher casa com homem e fica grávida”, essa era uma regra.

Como ali a comida era farta e minha barriga já tava grandinha, eu já tinha uma certeza: Eu estava grávida. E eu pensava: “Como é que eu vou fazer todo esse trabalho com esse barrigão?”. O pessoal me perguntava quando o bebe iria nascer e eu sempre respondia: “Mês que vem”. E assim o tempo ia passando... Todo mês eu ficava esperan-do o bebê nascer. Foi só depois de um ano que eu me senti mal e o Marquinho Vilela, o dono da fazenda, me acudiu e me levou ao hospital Santa Lúcia em Ituiutaba. Ali nas-ceu a Beatriz, aquele raio de luz na minha vida.

Achei bom demais ter aquele bebezinho pra cui-dar. Menina branquinha, loirinha, de olhos azuizinhos, tão linda que dava pra ver que só com nove meses na bar-riga não seria tempo o bastante pra ela ficar tão bem feita, ela precisava de mais tempo para nascer tão perfeita e ser aquela coisa linda que me fez achar que valeu a pena cada um daqueles 12 meses de gravidez.

Page 161: O tempo e a vida - Nós no meio

161

Janta de onça

Claudimar Ribeiro ( Fii )

Certo dia, saí pra namorar. Nessa época, eu tinha na faixa de uns 20 anos de idade e morava na Fazenda Campo Alegre, no Córrego do Retiro, em Ituiutaba. A es-trada pra eu chegar na casa da moça passava no meio da mata fechada e o pior é que a noite estava escura, tinha nem lua no céu. E lá estava eu no meio da estrada com um sorriso estampado na cara pra ir “namorar”.

Foi quando de repente ouvi um ronco forte e feroz que vinha do meio do mato. Eu conhecia aquele barulho; era uma onça pintada que vinha correndo na minha dire-

Page 162: O tempo e a vida - Nós no meio

162

ção. Nessa época, eu ainda enxergava um pouquinho, o que já foi o bastante pra eu arregalar os olhos e correr disparado daquele vulto. Eu corria desesperado e gritava feito louco. Não sabia mais pra onde correr. Pra todo canto que eu ia a onça pulava na frente e me encantoava. Até que encostei as costas numa árvore enquanto a onça vinha bem devagarzi-nho na minha frente. Já não tinha mais pra onde correr. O jeito era desistir. Naquela noite eu iria virar janta de onça.

Eu que já ia rezando o 27º pai nosso daquela noite, apenas fechei os olhos e me encolhi esperando a onça ata-car... quando, de repente, ouvi o barulho mortal!

BANG! BANG!Naquela hora quase que me borrei todo e ia chegar

todo sujo no meu encontro.Ao abrir os olhos, eu não sabia pra onde olhar, mas

vi aquela onça, a mesma que estava prontinha pra me jan-tar, deitada no chão, cheia de sangue e, atrás dela, meu primo com uma espingarda vazando fumaça pelo cano.

Aí eu só me levantei rápido, dei um abraço bem forte no meu primo herói e saí correndo e gritando: - Obri-gado, primo! Depois conversamos! Estou atrasado pro meu encontro! Tem uma namorada me esperando. Hoje a noite promete!

Saí correndo na capoeira enquanto meu primo fi-cava ali com cara de paisagem sem entender nada do que estava acontecendo e eu com um sorriso no rosto, doidi-nho pra chegar logo e dar uns “amassos” naquela moreni-nha que me esperava.

Page 163: O tempo e a vida - Nós no meio

163

John Travolta Negro

Jaime Donizete

Eu tinha 16 anos de idade e não sabia dançar de jei-to nenhum. Todos os meninos sabiam dançar, menos eu. Desde o final dos anos 60, eu sempre frequentei a APAE de Ituiutaba, aí certo dia chegou lá uma professora dife-rente, era uma professora de dança, o nome dela era Maria Vitória.

No inicio, fiquei com medo, mas enfrentei a timidez graças ao apoio dessa professora que me amparou na minha dificuldade e me ensinou pacientemente a ter coragem em

Page 164: O tempo e a vida - Nós no meio

164

dar os primeiros passos. No começo, foi difícil, mas a profes-sora foi me auxiliando e, aos poucos, fui me entrosando com a turma até os passos se tornarem algo natural. Toda semana eu não perdia uma aula de dança. Mas, eu tinha medo de dançar em outro lugar que não fosse o salão da APAE. Ali eu conseguia acompanhar com os pés cada batida da musica, mas será que eu conseguiria dançar tão bem fora dali?

Depois de três anos de aula de dança, um dia a pro-fessora Vitória colocou as mãos nos meus ombros e disse:

- Jaime, eu já te ensinei tudo que eu sei. Agora o resto é com você!

Naquele mesmo dia, depois de ouvir as palavras da professora Vitória, eu tomei coragem e fui com meus ir-mãos pra boate que ficava ali na Avenida 36 de Ituiutaba. Lá era um novo mundo pra mim. Aquelas luzes, aquele clima, aquela multidão no estilo dos tempos da brilhantina, todos pulando ao som das melhores músicas dos anos 70.

Comecei tímido, mexendo só a ponta dos pés. De-pois dei uma mexidinha no ombro, quando fui me dar conta eu já estava no meio da boate no centro da roda. Eu parecia um John Travolta negro! Naquela noite eu brilhei. Nunca tinha me sentido tão bem. Naquele instante, vi que aquele ali era o meu lugar.

As moças ficavam loucas comigo, fervia de meni-nas ao meu redor. Os rapazes só olhavam, alguns tentavam me acompanhar, mas poucos conseguiam.

Page 165: O tempo e a vida - Nós no meio

165

A música estava em mim.Depois de todo aquele show dançante, de repente

a musica ficou lenta, os casais se aproximaram e começa-ram a dançar coladinhos... Eu olhei lá no fundo e vi uma menina linda e quietinha que havia ficado me olhando a noite toda... Cheguei perto dela e falei:

- Moça, quer dançar comigo?Ela respondeu tímida: - Mas eu não sei dançar...Aí eu respondi sorrindo: - Vem. Eu te ensino...Assim como a professora Vitória me ensinou cada

passo, eu fui bem devagar dando ritmo aos passos daquela linda moça até ficarmos coladinhos como se fossemos um só... bem lentamente, fazendo daquela noite um momen-to inesquecível.

Page 166: O tempo e a vida - Nós no meio

166

Melancia furada

Dorvalino Evangelista

Eu era menino nessa época, tinha uns nove ou dez anos de idade apenas, e morava na fazenda com meu tio Eugênio Sebastião de Morais, lá no Córrego da Abelha, no município de Ituiutaba.

Tinha um fazendeiro vizinho do meu tio, o seu Ar-mindo Honorato, que plantava roça de arroz e umas de-liciosas melancias. Aí, um belo dia, fui passando na roça dele e vi aquele tanto de melancia suculenta e não resisti; fui lá em casa e peguei meu canivete.

Page 167: O tempo e a vida - Nós no meio

167

Chegando na roça, pra ver se a fruta tava madura, eu fazia um furo na parte de baixo, arrancava uma tampinha e olhava se estava verde; se estivesse verde eu colocava a tampinha de volta e virava a parte furada da melancia pra baixo, pra ninguém perceber minha arte. Depois de furar pelo menos umas 15 melancias, finalmente encontrei uma madura, bem vermelhinha; apanhei e levei pra casa.

No mesmo dia, o seu Armindo chegou lá na plan-tação de melancia e viu meus rastros passando por aquele tanto de melancia, olhou embaixo das frutas e viu os bura-cos. Aí, esperto que ele era, pegou uma varinha e mediu o tamanho da pegada do ladrão.

No outro dia lá ia eu naquela mesma fazenda que roubei a melancia pra buscar leite e o seu Armindo já es-tava me esperando com aquela varinha no bolso. Me viu e veio pro meu lado como quem não quer nada, chegou em mim e, sem falar uma palavra, levantou meu pé e colocou a varinha na sola do meu sapato. A varinha deu a medida certinha.

- Ah ladrãozinho de melancia! – O seu Armindo gritou.

- Eu? – Respondi assustado.- Vou contar pro seu tio! - Ele respondeu zangado.Naquela hora, meu sangue gelou. Eu sabia o quan-

to meu tio era mal, se ele ficasse sabendo eu podia ser expulso da fazenda e iria apanhar por dias. Aí tampei a

Page 168: O tempo e a vida - Nós no meio

168

chorar desesperado. Ele me vendo chorar daquele jeito me puxou de volta.

- Eu sei que seu tio é muito bravo, por isso não vou contar nada pra ele, contanto que você nunca mais faça isso com as minhas melancias nem com as coisas de nin-guém! Combinado?

Eu fiz que sim com a cabeça enquanto enxugava o choro.

Naquele momento, fiquei aliviado como se tivesse sido salvo. Depois daquele dia, nunca mais, em momento algum, eu tive coragem de roubar melancia ou coisa algu-ma de ninguém.

A não ser beijo de menina, claro, nesses roubos eu era um profissional.

Page 169: O tempo e a vida - Nós no meio

169

Pequenos ladrões

Gracinha Santos

Eu tinha uns quatro ou cinco anos e morava lá em São Vicente, no Rio Grande do Norte, éramos quatro ir-mãos: eu, Dinarton, Maria da Conceição e o Gerson, to-dos bem novinhos iguais a mim. Passávamos muita dificul-dade, à noite tínhamos que beber água doce pra podermos dormir de barriga cheia. Oh Deus, não tem coisa pior do que passar fome...

Meu pai havia morrido assim que nasci, morreu de tanto beber cachaça, deixando os quatro filhos pra mamãe

Page 170: O tempo e a vida - Nós no meio

170

criar, por isso morávamos só com nossa mãe, que infeliz-mente não tinha tempo de trabalhar porque precisava cui-dar daquela renca de filhos.

Pra solucionar esse problema da fome, mamãe sem-pre lavava louça ou roupa nos restaurantes, mas isso não era suficiente pra cuidar da família inteira, por isso tínhamos que dar nosso jeitinho moleque... Íamos todo dia à feira e lá pe-díamos sobra de comida aos feirantes, só que infelizmente isso ainda não era o bastante pra encher as quatro barrigui-nhas, por isso íamos lá no machante - no norte, machante é o nome de quem vende carne - era um barracão pequeno, lá pedíamos uns pedacinhos de carne que ficavam em cima do balcão, mas nunca ganhávamos, aí eu esperava o dono virar as costas pra cortar os pedaços de carne e aproveitava que era pequenina e colocava as mãozinhas em cima do balcão, co-lhia os pedacinhos de carne e, sem ninguém ver, eu colocava dentro de uma sacolinha que guardava no bolso. Nas barra-cas de farinha passávamos correndo, enchíamos a mão. Era pouquinho, mas não deixava que passássemos fome.

Pra matar nossa fome, às vezes, invadíamos as fa-zendas vizinhas pra roubar melancia, amendoim e coco, quando o dono da fazenda via isso ele corria atrás da gente com os cachorros. Só dava os quatro moleques atentados correndo com as melancias nas costas.

Um dia na feira, sem ninguém notar, com minhas pequenas mãos, sorrateira, roubei um pedaço de canela

Page 171: O tempo e a vida - Nós no meio

171

pra poder fazer um chá gostoso antes de dormir. Levei essa canela escondido dentro da calcinha, chegando lá guardei dentro de uma gaveta só que pro meu azar, minha mãe achou. Só se ouviu a voz da mamãe: De quem é essa ca-nela?

Na hora, um dos meus irmãos desesperados de medo já gritou: - Não fui eu! Foi a Gracinha! – e apontou pra mim.

Naquele dia, a surra comeu lá em casa, apanhamos todos os quatro, levamos uma surra que não conseguimos esquecer por muito tempo; minhas pernas ficaram roxas por semanas. - Isso é pra vocês aprenderem a nunca mais pegar o que é dos outros! – Gritava mamãe.

No dia seguinte, mamãe nos levou até a venda da canela. Chegando lá, ela nos obrigou a ajoelhar nos pés do vendedor, pedir desculpas e devolver a canela roubada.

Ali aprendemos uma importante lição de vida da forma mais dolorida. Lição essa que eu e meus irmãos le-vamos pra vida toda e passamos pros nossos filhos e netos.

Depois disso, nunca mais tivemos coragem de rou-bar nada.

Afinal, a fome doía menos que uma surra daquelas.

Page 172: O tempo e a vida - Nós no meio

172

Por você eu roubaria tudo

Iolanda Lariucce

Um dia, um pretendente chegou lá na minha fa-zenda todo queroso em mim e jogou um papo pra me con-quistar:

- Iolanda, por você eu roubaria o Sol, a Lua, as es-trelas. Iolanda, por você eu roubaria tudo só pra ficar ao seu lado.

Aí eu disse: - Ah, então foi você que roubou o cava-lo do meu pai!

Page 173: O tempo e a vida - Nós no meio

173

Ladrões de melancia

Eurípedes Sebastião

Eu e meu irmão saímos à tarde, debaixo daquele solão quente para roubar melancia lá na roça do vizi-nho.

Chegando lá, vimos aquelas belezuras graúdas no chão e nossos olhos já brilharam para apanharmos as fru-tas e passarmos a tarde inteira chupando melancia.

Até que meu irmão me cutucou e me mostrou que ao lado da plantação, no meio de uma moita, tinha um cano de carabina apontado para a nossa fuça.

Page 174: O tempo e a vida - Nós no meio

174

Aquela arma apontada na nossa direção fez meu sangue gelar todinho.

Aí, como sabíamos que se corrêssemos iríamos le-var chumbo, fomos nos aproximando passo a passo rumo ao atirador atrás do arbusto.

Chegando lá, vimos que aquele pistoleiro era o dono da fazenda, que estava ali de tocaia protegendo sua plantação.

Com lágrimas nos olhos, mãos trêmulas e a cabeça baixa, arrancamos coragem de algum lugar e pedimos: - O senhor dá pra gente uma melancia?

Ele sorriu, baixou a arma e fez que sim com a ca-beça.

Pegamos nossas melancias e, antes que saíssemos, o dono da fazenda nos chamou: - Meninos, ainda bem que pediram a melancia... Tão vendo aquilo ali? – Ele apontou para duas cruzes perto da plantação – Aquilo ali são os dois últimos moleques que tentaram roubar melancia aqui.

Antes que ele terminasse a frase, eu e meu irmão já estávamos correndo de medo pelos pastos com a melancia nas costas.

Vai que o dono da fazenda se arrependia de ter nos deixado ir embora!

Page 175: O tempo e a vida - Nós no meio

175

Surra na rede

Zé Henrique

Com uns oito ou nove anos de idade mais ou me-nos, eu era o rei da bagunça lá no Sítio Ribeiro, no municí-pio de Lagoa Nova, na Paraíba, onde a minha família cria-va bode, carneiro, cabrito, jumento, vaca, galinha, peru e tudo quanto é bicho.

Um dia, vi lá no pasto uns seis ou sete bodes amar-rados pastando e eu não resisti, tirei a peixeira que eu car-regava na cintura e passei a faca nas cordas; só deu aquela “bodaiada” correndo pra tudo que é lado.

Page 176: O tempo e a vida - Nós no meio

176

Quando meu tio viu aquele tanto de bicho corren-do, veio correndo pra o meu lado e eu, esperto que só, destampei na correria e, sem que meu tio percebesse, eu subi no pé de jaca. Ele passou direto por baixo da árvore e nem me viu, fiquei só lá de cima observando a cara de assustado dele.

Quando cheguei em casa, vi o meu tio indignado contando minha bagunça pro meu pai; na verdade, eu só ouvi o final da conversa quando meu pai disse: “- Pode dexá Bastião, pode dexá que eu vô acertá com ele...”

Como meu pai sabia o quanto eu era arisco, ele deixou que eu me esquecesse disso pra que ele pudesse me dar uma surra servida, que era o que eu merecia.

Uns três dias depois, pra me salvar, minha mãe me alertou: “Hoje seu pai vai te pegá, toma cuidado”.

- Vai nada! - Eu disse desafiando e me gabando.Quando meu pai estava lá na cozinha fumando seu

cachimbo, eu passei por ele e fui pra varanda. Só senti o olhar dele me seguindo.

Lá na varanda, eu vi a rede armada e pensei em dei-tar, mas olhei pra porta da cozinha e pensei: “Quer saber? Melhor eu não vacilar!”.

Coloquei dentro da rede um banquinho quase do meu tamanho e uma coberta por cima, aí fui deitar no chão lá na frente, bem quietinho e calado. Só vi meu pai vindo com a cara de bravo lá da cozinha segurando um

Page 177: O tempo e a vida - Nós no meio

177

rolo de corda. Com força, ele segurou no punho da rede e chegou a surra com toda força. Só dava pra ouvir os baru-lhos da corda batendo na rede e os gritos dele: “- Levantaí, cabrito!”.

Quando ele tirou o cobertor pra segurar no meu braço e viu que o que tinha lá dentro era um banco, a cara do meu pai ficou vermelhinha, quase saiu fumaça do na-riz dele. De longe eu só segurava o riso.

Page 178: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 179: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 180: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 181: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 182: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 183: O tempo e a vida - Nós no meio

183

Incêndio do defunto

Maria Silva

Quando eu era criança, eu era cuidada pela minha avó materna que sempre dizia, para mim e para todas as crianças da vizinhança, que a gente não devia desobede-cer os adultos senão o capeta vinha e punha fogo em nós. Por isso, fazíamos tudo o que ela queria, nunca desobede-cia de tanto medo do tinhoso aparecer.

Um dia, morreu um vizinho garimpeiro e o seu corpo foi velado em casa mesmo. Como não tinham uma urna, o colocaram em cima de uma tábua e cobriram com

Page 184: O tempo e a vida - Nós no meio

184

um lençol rodeado de vários pires com velas acesas para iluminar aquele momento.

Minha avó, que nesse momento estava lá rezando e pajeando o defunto, foi para o quarto consolar a viúva que estava aos prantos.

Nesse instante, eu e os meninos brincávamos no ter-reiro e, quando olhamos para a sala onde estava o velório, vimos foi uma enorme fogueira em cima do morto; saímos correndo na hora assim como todo mundo que estava no velório. Era gente correndo feito doido para todo lado! Uns tropeçando nos outros e gente se escondendo de medo. Foi uma bagunça, enquanto o defunto ardia em brasas.

Quando vimos aquilo, eu e os meninos da rua já gritamos sem dúvida alguma:

- O capeta botou fogo no defunto! Corre!Gritávamos aquilo sem parar e o povo que ouvia

também repetia:- É o capeta! Ele botou fogo no corpo do finado!Quando minha avó me ouviu gritando isso, ela pu-

xou minha orelha e disse para eu deixar de ser boba e nun-ca mais falar aquilo.

A verdade é que, quando vovó saiu da sala onde estavam realizando o velório e deixou o morto sozinho, de repente um vento endiabrado derrubou uma das velas em cima do lençol que cobria o morto e assim todo o fogo se alastrou.

Page 185: O tempo e a vida - Nós no meio

185

Para resolver aquela situação, as mulheres se junta-ram e foram todas correndo até a cisterna pegar água para apagar aquele fogo.

Naquele dia, entendi por qual motivo mamãe sem-pre dizia que tínhamos que tomar banho antes de sair de casa.

O morto foi enterrado todo molhado, foi para o céu limpinho.

Page 186: O tempo e a vida - Nós no meio

186

Meu grande amor

João Batista de Oliveira

Nasci em 1952 e, em 1977, formei-me no colégio Educandário Ituiutabano, a primeira escola ginasial gra-tuita em Ituiutaba, pois, naquele momento, só havia esco-las particulares na cidade, tais como o Colégio São José, o Colégio Santa Teresa e o Instituto Marden. Hoje em dia, esse colégio tem o nome de Escola Estadual Professora Maria de Barros.

Depois que terminei a escola, fui para São Paulo ver se conseguia um emprego. Fiquei lá trabalhando de

Page 187: O tempo e a vida - Nós no meio

187

vigia e de porteiro; lá eu morei na pensão da dona Geni e, pouco tempo depois que estava lá, comecei a namorar a filha dela.

Íamos ao teatro, ao cinema e tudo que é lado, mas o problema é que eu bebia a muita pinga e, às vezes, dava trabalho. A filha da dona Geni era até boa de cama, mas eu a larguei porque ela calçava 44; terminei quando desco-bri que ela era “sapata”.

Depois dessa namorada, nunca mais encontrei al-guém de quem eu gostasse tanto, já que eu bebia uma pinga arretada. E se conheci outro grande amor, eu nem lembro, pois tava de porre lá no boteco do Antônio, no Bairro Platina.

Foi até que, depois de muitos anos, já na minha 3ª idade, eu vim morar aqui no Lar do idoso Padre Lino, e, certo dia, vi uma senhora loirinha que disparou meu co-ração. Foi amor à primeira vista; bati o olho e já gostei. E para eu não perder aquela oportunidade que eu não sabia se iria se repetir, sem medo a chamei para namorar. Ela que era viúva e tinha acabado de se mudar ali pro Lar do Idoso, aceitou. O nome dela era Maria.

Essa beijava bem, sabia me cativar. Nós gostávamos tanto de beijar que nem conversávamos.

Ela foi a mulher que eu mais gostei até hoje; nos víamos quase todos os dias. Namoramos por dois anos que, para mim, valeram mais que toda minha vida.

Page 188: O tempo e a vida - Nós no meio

188

Até o dia em que, em 2013, sem aviso, os enfermei-ros me falaram que a Maria teve um problema nos rins e faleceu.

Quando fiquei sabendo disso, eu morri também.Mas, os dias foram passando e eu, mesmo triste,

acabei me conformando com a falta dela, porque sei que, esteja onde ela estiver, ela está me esperando para poder-mos continuar nossos beijos e revivermos, um ao lado do outro, todos nossos sonhos.

Page 189: O tempo e a vida - Nós no meio

189

Vascaíno que jogava noFluminense

Jader Pires

Sempre fui vascaíno e gostei de bater uma bola, joga-va todos os dias. Comecei menino, estava sempre com a bola no pé, se deixasse eu dormia com a bola de futebol debaixo das cobertas.

Com 12 anos de idade, eu iniciei meus treinos na As-sociação Esportiva Ituiutabana. Depois, quando eu já tinha 15 anos de idade, fui para o Ituiutaba Esporte Clube na cate-goria juvenil; Ao completar meus 18 anos, por eu jogar mui-to bem, comecei a chamar a atenção dos olheiros da região. Foi quando meu amigo Seni que jogava no Atlético Mineiro

Page 190: O tempo e a vida - Nós no meio

190

me indicou para fazer um teste para o time do Fluminense. Como um bom apaixonado pelo futebol, aceitei na hora. Aí fiz um teste e na partida todos viram minha habilidade com os pés. Driblei, fintei, e fui escalado, no mesmo dia, para jo-gar como um dos titulares. Quem diria, eu seria meio esquer-da do Fluminense.

Vestindo a camisa do Fluminense, eu joguei contra vários times. Com frequência as rádios e jornais diziam que eu era parecido fisicamente com outro jogador muito famoso nos anos 40, era o centroavante do Botafogo, chamado Hele-no de Freitas, que tinha fama de brigador porque dava tapa na cara dos outros durante as partidas; pelo menos era isso que os jogos da rádio narravam, já que na época não tinha câmera para filmar isso.

Mas nem tudo são flores e um dos momentos mais di-fíceis da minha vida foi aquele dia em que o Fluminense teria que jogar contra o meu time do coração, o Vasco. Entrei em campo já nervoso, ouvindo o grito da plateia eufórica; os fãs do Fluminense aplaudiam e nos incentivavam, porém minha vontade era estar lá no do outro lado do campo gritando: Vai Vascooo!

Quase pensei em fazer um gol contra só para que eu, jogador do Fluminense, fizesse um gol para o Vasco.

Durante o jogo, eu estava tímido, por isso a plateia ficava me provocando: “Se mexe, Jader! Cadê o futebol?”. O treinador já me olhava com uma cara nada amigável, por isso, talvez por medo de ser demitido ou algo assim, dei uma arrancada, tomei a bola do meio-campo, dei um balão no ata-

Page 191: O tempo e a vida - Nós no meio

191

cante e de pé esquerdo chutei certeiro para o gol. O estádio foi à loucura e se levantou para comemorar meu gol, só que eu nem comemorei direito, fiquei foi olhando meu time de verdade me odiando do outro lado do campo. Para minha felicidade, mesmo depois daquele meu lindo gol, acabamos levando dois e perdemos de 2 a 1 para o meu timão, o Vasco.

O problema é que lá em casa o pessoal estava pre-cisando de ajuda financeira e eu como jogador de futebol não tinha muito dinheiro para ajudar. É que naquela época não era como hoje em que os jogadores são milionários. No meu tempo, ganhávamos só um salário, às vezes menos, para jogar. Por isso, quando contei para minha família a grande notícia, talvez a melhor da minha vida, de que o Vasco queria me contratar, minha mãe entrou em prantos, quase derreteu de tanto chorar. Ela gritava alto que jogar bola não dava di-nheiro e eu tinha que ajudar na casa. Com a mão no meu ombro meu pai me disse: - Eder apoio qual for sua decisão, só queria muito que você ajudasse a sua família que tanto já fez por você.

Com o coração na mão, abri mão daquele meu gran-de sonho.

Sonho esse que me visita ainda toda noite na hora de dormir, quando sonho com as inúmeras partidas que não dis-putei e os gols que a minha imaginação marca no tempo e na vida.

Gols que ainda hoje acordo todo animado e come-morando alto e, às vezes sem querer, até acordo todo mundo aqui no Lar do Idoso.

Page 192: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 193: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 194: O tempo e a vida - Nós no meio
Page 195: O tempo e a vida - Nós no meio

Secretaria Municipal de Desenvolvimento SocialGESTÃO 2013 - 2016

Page 196: O tempo e a vida - Nós no meio

Composto em eléCtra lt regular

e impresso em sulfite 70g/m² pela Jp gráfiCa e editora,

em Novembro de 2014.