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O Tempo e o Eterno Tematização fenomenológica da relação entre homem e Deus

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Todos os direitos e responsabilidades desta publicação reservados à Limoeiro Edições.

POTTER, Dennis. O Tempo e o Eterno: tematização fenomenológica da relação entre homem e Deus. Belém: Limoeiro Edições/PerSe, 2014.

ISBN: 978-85-8196-995-4 Série: Filosofia, Teologia.

Limoeiro Edições Editora PerSe

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O Tempo e o Eterno Tematização fenomenológica da relação entre homem e Deus

Belém-PA 2014

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Sumário Oração

Introdução §1 – Uma poética de olhos cerrados diante da magnitude de Nosso Senhor.

– Escrita num dia de pura angústia – §2 – Resposta a qualquer tratado supostamente definitivo de filosofia.

Primeira Parte – O Abandono da Filosofia

Capítulo I – Identidade Patológica da Filosofia – §3 – O inserir-se no âmago da filosofia para então abandoná-la. §4 – Apontamentos acerca de uma interpretação do texto “Que é isto – a filosofia?” de Martin Heidegger. Capítulo II – Niilismo e Tédio – §5 – Niilismo como o páthos filosófico da contemporaneidade e Nietzsche como o hospedeiro desta patologia.

a) Crítica à filosofia: cerceada de todos os lados, por valores e convenções morais. b) Por um novo olhar à história, que permita trazer a possibilidade de interpretar novamente o mundo. c) Que a psicologia precisa estudar o homem, e não uma razão pura inexistente, supostamente faculdade de um homem ideal. d) O Tempo Presente – Interpretações de uma época. e) Significado da morte de Deus. f) Nietzsche como Hospedeiro.

§6 – Tédio como a tonalidade afetiva fundamental. Outra volta à Heidegger. a) O que é o tédio e por que tédio como tonalidade afetiva fundamental? b) Passagem do Tédio ao Niilismo e do Niilismo ao Tédio. Este como Tédio proveniente e formador do Niilismo. A simultaneidade. c) Tédio como páthos filosófico e a necessidade de voltar pra casa. Tédio como abertura da existência humana para si mesma. e) Tédio como um estar decepcionado consigo mesmo e com a atitude niilista que se assume para consigo mesmo diante do mundo.

§7 – Da decepção à perdição do filosofar atual. O começo da visualização da necessidade de abandono da filosofia. Capítulo III: – Diagnóstico de uma época – Indivíduo: um frágil olhar da filosofia em sua direção §8 – O Cavaleiro da Fé e o Andarilho: o indivíduo voltando pra casa e o espírito-livre partindo com sua sombra.

a) Olhares sobre a racionalidade: demasiada reflexão e contaminação por valores morais e metafísicos. b) Duas concepções de indivíduo: um que necessita voltar para casa para tornar-se si mesmo e ganhar a eternidade, e outro que parte solitário em seu vôo de águia para ultrapassar a si mesmo e se tornar além de si. c) A colocação de questões relativas aos cuidados acerca da análise da época a partir de dois pensadores distintos. A questão do espírito em Nietzsche e dos instintos em Kierkegaard: contraposição de ideias. Explanação acerca do “quem” daqueles que precisam superar sua época. E ainda: paixão, fé e vontade de poder. d) A relação fundamental entre o indivíduo e sua época: O diagnóstico do cavaleiro da fé e do andarilho como atitudes individuais diante do niilismo e do nivelamento.

§9 - O Homem moderno é o Homem da Modernidade: apontamentos deste homem em Baudelaire e Foucault. Capítulo IV: – Decepção e Indivíduo – §10 – Ressentimento: um processo do nivelamento e um efeito de uma época: a crítica de Nietzsche e o ressentimento tornado resignação. Ressentimento como defesa contra a decepção e decepção sempre ressentida. §11 – O espírito como o realizador da síntese entre corpo e alma.

a) A divisão do homem em corpo-alma e espírito. b) A hipótese do homem artificial. c) A realização da síntese através do espírito.

§12 – Sobre um salto que nada traz de filosofia, apenas o abandono dela. E de como este abandono pode se transformar numa renovação do próprio olhar filosófico.

Segunda Parte - A Passagem: de uma inútil filosofia para um olhar investigativo em direção à relação do tempo com o Eterno. Capítulo I: – Em busca da Finitude – §13 – Sobre a perda da esperança. §14 – Implosão do filosofar que se pressupõe poder existir sem Deus. §15 – Olhar para si. A busca de um caminho que ao promover o afastamento de si, arrasta até o mais intrínseco fundamento da existência individual (que é a finitude). Decepção como um primeiro momento, ou nostalgia melancólica como o sentir-se perdido que libera à decepção o caminho. §16 – O mais intrínseco fundamento da existência individual. A relação com o Eterno que resolve as sínteses: corpo-alma, tempo-eterno ou finito-infinito, possibilidade-necessidade. Novo olhar sobre o espírito, o instante e a fé. §17 – Finitude: o mais intrínseco fundamento da existência do homem em sua relação com Deus. Capítulo II: – Silêncio: caminho à finitude e Ouvir: salto à eternidade – §18 - A voz da Eternidade: o esclarecimento do falar e ouvir fundamentais da existência humana à luz da tematização da briga entre criacionismo e evolucionismo.

a) Criacionismo e Evolucionismo enquanto teorias que propõem uma explicação para a origem da vida. b) O peso científico reclamado pelo evolucionismo é o mesmo que negamos ao criacionismo. c) A verdade científica da evolução não pode ser mais verdadeira que o ato da criação. d) A verdade na qual o homem já se encontra inserido em seu existir (Alethéa). e) O falar científico como derivado da fundante verdade originária (des-enconbrimento ontológico). f) Ouvir como o caminho para a verdade. g) Criacionismo como a verdade ouvida da voz do Criador. E silêncio do ouvir que transcende a finitude como início da relação do tempo com o Eterno.

Capítulo III: A passagem: transcendência como mediação. §19 – Transcendência Humana: essência ontológica do homem.

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§20 – Movimentos investigativos (dialéticas ascendente e descendente). Platão, a existência das idéias e o conhecimento. a) Diálogo “Teeteto” e a questão: o que é o conhecimento? b) Livro sexto da República e a linha divisória entre os mundos sensível e cognoscível. c) Mito da Caverna e a Ascensão no Conhecimento. d) Existência das Idéias e a Interpretação de A. Fouillée da Filosofia Platônica. e) Entendimento e Razão para Kant. f) Conclusão.

§21 – Último adeus à filosofia e preparação para o salto no abismo. Volta à rota de nossa investigação e explicação do adendo anterior sobre os movimentos ascendente e descendente. §22 – Falar ou ouvir? A decisão necessária para a relação do tempo com o Eterno: o silêncio como o que permite a decisão fundamental entre o falar e o ouvir. §23 – Finitude e transcendência. §24 – Passagem.

Terceira Parte - A Relação do Tempo com o Eterno Capítulo I: – Compreensão do Tempo – §25 – Justificação do movimento que vai do tempo ao Eterno. §26 – Compreensões do tempo: Cronos e Kairós. §27 – Da compreensão do tempo enquanto essência humana.

a) Rápido olhar sobre a relação entre as concepções de tempo em Aristóteles e Kant. b) Que o tempo não é um conceito, não é um operador teórico para se pensar o movimento nem mesmo a eternidade, não é uma intuição pura, não é algo fora do homem que este pode, por sua razão captar, mas é o próprio homem c) O ser-tempo enquanto existência. Existência humana como um ser no tempo enquanto ser temporal. d) O tempo enquanto inferior ao Eterno (tempo que provem do Eterno – contra Heidegger). e) Necessidade de Compreender o ser-no-tempo.

Capítulo II: – Compreensão do ser-no-tempo – §28 – Interpretação da transcendência a partir do tempo e de ambos a partir da eternidade. §29 – Sentir-se perdido no mundo. §30 – Decepção originadora da Angústia: decepção que se sabe decepção e decepção que não se sabe sequer o que é. §31 – Assunção de si a partir da decisão (escolha) de ser-no-tempo enquanto tempo e de transcender este ser-tempo no salto.

a) O “Eu” enquanto si-mesmo e sua assunção como necessária para todo relacionar-se, consigo mesmo, com o mundo e com Deus (ainda que a transcendência já aponte Deus como o primeiro em nós). b) A divisão científica e fantasiosa da psicanálise, que aponta somente para a unidade do “Eu”, do si-mesmo: Consciência e Não-Consciência (desconstrução da ideia de divisão da “mente” em consciente e inconsciente). c) Necessidade de Auto-estima e Afirmação do Valor Pessoal como ilusões que impedem a clara relação do Homem com Deus. d) Decisão e Salto.

§32 – Indivíduo é o “quem” que se relaciona com o Eterno: preparação para a tematização da relação do tempo com o Eterno. Capítulo III: – Relação do Homem com Deus – §33 – O cristão é o indivíduo que se relaciona com Deus.

a) Deus absconditus. b) Vida cristã e outras vidas religiosas. O porquê de só no cristianismo existir o indivíduo.

§34 – Tempo de Adão e Eva antes da queda e o tempo do Novo Céu e Nova Terra em contraposição ao tempo atual. §35 – Movimento de assunção do si-mesmo do indivíduo e re-nascimento purificador do batismo. §36 – Consciência do Pecado enquanto percepção da necessidade de decisão e o retorno a Deus como salvação. §37 – Arrependimento e Retorno: suposto retorno de Adão e Eva a Deus (caso tenham se arrependido). §38 – Retorno a Deus como transcendência da finitude rumo ao Eterno. §39 – Estar retornando: ser verdadeiramente cristão é relacionar-se com Deus.

a) Que só o indivíduo pode retornar a Deus na transcendência. O cristão é um indivíduo. b) Ser Cristão é relacionar-se com o Eterno em cada decisão. c) Existir enquanto cristão é crer, esperar e amar. d) O Amor, nos braços do temporal (amor temporal – carne/idéia – predileção). O Amor, nos braços da eternidade (amor divino – eterno/espírito – amor ao próximo). e) O amor ao próximo é um dever cristão. f) Da possibilidade de permanência da predileção na relação de amor no cristianismo (matrimônio e amizade). “Um só corpo e um só espírito”, o sentido desta união e a possibilidade de sua continuidade na eternidade.

§40 – Virada: da relação vulgar (falar – oração que não diz, apenas repete – comodidade, conformismo, relação com o mundo, falsa relação) para relação enquanto tal (ouvir – existir em relação – viver com o Cristo – no amor ao próximo). §41 – Por que Deus não joga dados? §42 – Resumo da tematização fenomenológica da relação do tempo com o Eterno. §43 – Como ouvir a voz de Deus?

a) Existir em relação. I – Oração (falar o que deve ser dito / constância) II – A escuta (entregar-se a Deus, confiar-lhe a existência / perceber seu toque nas coisas, ouvir sua voz)

b) A relação do homem com Deus é o existir na escuta. I – Relacionar-se com o mundo (ser-junto-a) pautado nesta escuta. II – Relacionar-se com os outros (ser-com) pautado nesta escuta. III – Relacionar-se consigo mesmo, antes de tudo o mais, pautado nesta escuta (só assim o si-mesmo é sempre o primeiro, na medida em que Deus também o é).

Conclusão. §44 – O homem é tempo com um algo eterno. §45 – Elogio dos grandes homens e exortação do ouvir – A oração do cristão em busca da verdadeira relação com Deus –

Pós-escrito. – Manifesto do Círculo de Belém – Por uma teologia que é mais que isto, que é vivência, olhar para a existência religiosa.

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O Tempo e o Eterno. Magnífica dicotomia desenhada pelas mãos do Grande Arquiteto; O Deus que não joga dados; O Deus que é amor; o Puro Amor; O Deus que vem quando Elias cobre a face em uma suave brisa; Que é sem tempo, e que o gerou, e nos deu, Como herança, castigo pelo pecado que ainda deixamos entrar no mundo. Deus é o Eterno. O homem é o tempo. Nossa busca deve ser pela verdadeira relação entre o tempo e o Eterno.

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Quando da minha formação acadêmica no curso de filosofia, meu orientador disse-me certa vez, não com estas palavras, mas com este sentido: num livro de filosofia há muita coisa, porém muito é besteira, simples retórica; precisamos ler toda a obra, é claro, mas isso é pra gente; à parte disso, devemos lê-la procurando o pouco que ela traz de problemática, de interessante, de filosofia propriamente dita, o resto pode ficar lá guardado. Com esta obra não é diferente. Porém dela não deverá ser tirado aquele pouco de filosofia que ela traz, mas sim o menos ainda do que no fundo é mais importante, aquilo que pode edificar perdido entre aquelas passagens que são somente retórica e besteira, tiremos só e sempre o que nos é edificante. O resto, o que aqui tem de filosofia, pode ficar guardado aqui mesmo.

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Oração

Me salva de mim mesmo Estou aqui Senhor do tudo

Lava meus olhos e cega-me então Purifica minha alma e me faça esquecer

Eu ouço teu chamado, abro os ouvidos... Grito em espírito uma resposta que não dou

Meu corpo cala todo o amor em mim Sou eu minha prisão funesta e asquerosa

Ah! Se minha alma pudesse olhar o céu (esta frágil razão) Ou estes olhos mesmos afogados em dor Dor de sangue, de pecado, de falta de fé

Misericórdia ó Senhor do tudo Perdoai Teu filho em sua falta de fé

Ajude-me a crer em paz Ajude-me a mover montanhas

Salva-me de mim mesmo Alguma coisa explode em mim

E meu peito transborda Lágrimas fogem destes olhos

São dois olhos cheios de esperança O Teu poeta, ó Deus, precisa sonhar Ensina-o a sonhar com a vida eterna Ensina-o a encontrar a força em Ti Para caminhar em paz à redenção

Junto de todos os Teus “Ainda vejo dúvida em teu coração”

Podes dizer meu Amigo Sei que nem sou digno de sê-lo

Criatura é o nome certo para este pecador Ainda não entendo como posso

Mesmo banhado na imundície deste mundo Ouvir a pureza da Tua voz chamando?

Minha fé não é forte Meu amor não é tão puro

Meus olhos foram envenenados E mesmo neste instante (sempre este instante)

Encontro a dúvida Senhor, Deus do tudo

Salva-me, dê-me a voz das montanhas Aquela que ecoa nos quatro cantos Porém antes, dê-me a existência real

Não o conhecimento do mundo Mas o conhecimento de mim O controle destas emoções

O grito que é voo A queda da vitória

Suspensão acima do que é meramente bom A possibilidade mais bela de poder gritar minha liberdade

E me ver livre deste verme que me tenta ainda agora Sei, ó meu Pai Infinito

Que em mim unicamente habita Desde o início esta possibilidade (o peso das escolhas)

Mas ela anula-se a cada dia Pois não pude ainda saltar

Sim! Minha fé é frágil demais

Ei de fortalecê-la Senhor E lhe peço (outra vez) a Tua misericórdia

O irrecusável auxílio na escuridão E o Teu perdão

Meu Deus Meu Amigo...

Tua voz me vem nos sonhos Posso ouvi-la dizer:

“Fazes o que deves fazer” E tenho medo

Estremeço Ó Deus me deste um dom

Mostraste o caminho E agora só preciso caminhar

Carrega-me em Teus braços Senhor! Bem sei que já o fazes

Estou liberto do mundo Digo com grande certeza

É a este mundo que vou a socorro Mas não ainda!

Preciso libertar-me de mim Me salva de mim mesmo...

Para que possa enfim seguir em paz Neste caminho de pedras Porém cercado de rosas

Que me deste como singela missão (E eu não temerei mal algum)

E a aceito Pai Aceito como o mais honroso presente

Anseio trilhar este calvário Anseio por ser instrumento do teu amor

É preciso para tanto purificação Que a razão se vá, o corpo pereça

E o Espírito venha É preciso renascer em Ti outra vez

Renascer em Teu Filho Tornar-me um novo “Eu” O “Eu” que nasci para ser O “Eu” no Amor Infinito No Puro Amor que és Tu Agradeço a Ti meu Deus

Por confiar neste Teu filho frágil Por dar-lhe uma missão tão luminosa

Agradeço também Por me mostrar onde estão as respostas certas

Onde está toda Verdade Fecho os olhos agora

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E escrevo esta angústia Perdoe-me Deus do tudo

E dê-me forças, sabedoria e coragem Dê-me forças para seguir em frente

Para vencer este mal que habita em mim Para dar as costas àquele anjo imundo O mais perdido dos seres existentes

Mesmo dele sentimos pena Porém é ele dono de sua destruição

Funesto animal infeliz... Dê-me a sabedoria para não me perder

Neste emaranhado de “amores” Para não confundir a Verdade

Para não desviar-me da luz (Nem para a direita nem para a esquerda)

E não cair em tentação Dê-me sabedoria para falar

E que minhas palavras sejam Palavras que todos possam ouvir

Que levem em si toda Tua Verdade Tua Verdade que é o Amor Dê-me sabedoria meu Deus

Porque também dela eu ei de precisar E dê-me coragem ó Princípio de Tudo

Porque sem ela meus pés estancarão E a porta de minha própria casa fechar-se-á diante de mim

Dê-me coragem para enfrentar o turbilhão do mal no mundo

Dê-me coragem para receber as pedras e transformá-las em flores

Dê-me coragem para cumprir minha missão Desde meu nascimento enquanto sabedor de mim

Quando a mim deste este dom magnífico

Reluto, e recuso-me a saltar Mas agora é a hora

As asas do vento estão abertas E não há mais frio em meus pés

Ó Senhor, me salva do mal Me salva de mim

Porque ainda sou um quarto escuro e negro de pecado Me salva, traga-me para luz

Quero ser Teu templo de luz Faz de mim Tua casa e habita em meu coração

Faça de mim instrumento do Teu Amor Dê-me, enfim, força, sabedoria e coragem

Para ser aquele que devo ser Para ser o “Eu” que me espera um passo à frente

Aquele que queres que eu seja Porque é para ser este “Eu” que me fizeste

Todo barro recebe um sopro E neste sopro está a Tua Vida

Este sopro é quem eu sou Força para resistir, aceitar, devolver flores e apagar as pedras Sabedoria para ouvir, para calar em Teu silêncio e ensinar

Tua Voz Coragem para sofrer, ficar, persistir e entregar a outra face

Para amar sem esperar nada em troca Para amar ao próximo como a mim mesmo

Como Tu me amas e como Tu amas a humanidade Força, sabedoria e coragem dê-me ó Senhor

Não para amar os meus inimigos Mas para sequer ter inimigos

Dê-me a tua paz Para que chegue a casa em paz

Para viver o amor ao lado do Puro Amor Para viver no Senhor

E para que o Senhor viva em mim Obrigado por confiar em mim

Acreditar em mim E me amar

Entrego-me em teus braços Me salva e conduza-me a Verdade do Teu Infinito Amor

Amém.

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Introdução

O tempo é muito lento para os que esperam, muito rápido para os que têm medo, muito longo para os que sofrem, muito curto para os que se alegram. Mas para os que amam, o tempo é eterno.

Pastor Henry van Dyke (EUA, 1852-1933)

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§1 – Uma poética de olhos cerrados diante da magnitude de Nosso Senhor – Escrita num dia de pura angústia –

Entendemos o que significa a angústia quando nela nos deixamos aos poucos afundar. A

consciência de sua existência parece querer lhe deixar sumir, simples aparência, pois no fundo ainda há dela sempre um mais profundo espectro de incerteza nesta condenação da liberdade. O conceito de angústia mereceu e ainda hoje merece muito as análises feitas e que se encontram por fazer, mas é em vão dissecá-lo sem antes fecharmos os olhos, e nesta escuridão, em passos rápidos, permitirmos a nós mesmos uma inesperada topada, uma pedra que nos arranhe a ponta do dedo e nos tire uma gota morna de sangue. Ai de nós! Quantos não vivem a vida neste tropeçar cego. Aqui, quando nos decidimos provar seu sabor amargo, temos uma ciência tola de que, mais dia ou menos, de uma dessas pedras, a menor que seja, recebermos o tombo merecido por nossa ousadia e falta de fé. Por que necessitamos desta queda? Por que simplesmente não aceitamos que encontrar a paz de Deus é simplesmente esquecer toda razão e se entregar naquele caminho onde Ele nos enxuga o solo frio e retira todo tropeço da caminhada. Ah, sim, Bendito seja Tu, ó Deus da compreensão, pois nos deixa a bela escolha de lançarmo-nos montanha abaixo sem asas, apenas com a esperança de um abraço que nos acalente a alma e nos erga ao infinito nas asas do amor. Eis o absurdo da fé, e neste absurdo vejo toda angústia se dissipar de mim, vejo meu coração desacelerar o ritmo de seu galope insano e aconchegar-se na calma e na paz da eternidade.

Sonhos são feitos pra sonhar, e sem sonhá-los jamais poderemos ansiar pelo dia em que no sonho passaremos a viver, o dia em que deixaremos para trás esta realidade hipócrita e imunda, o dia em que poderemos ser fieis a nós mesmos, o dia em que poderemos nos conhecer e encontrar em nós um indivíduo liberto das amarras da carne e do mundo, livre em seu arbítrio sano, em sua espiritualidade coberta dum véu bordado duma razão que se foi, cercado de uma existência estética e moral, sim, mas acima de tudo religiosa.

Eis o sonho onde desejo me encontrar, e que me escapa nesta angustiosa espera de não sei que terra prometida, esta espera que me faz querer cerrar os olhos e caminhar a passos leopardicos, com uma doce certeza de em frente, cedo ou tarde, provar o amargo de um tropeço frente ao qual não possuo nenhum poder. Ilusão, pois que eu o escolhi quando por mim mesmo cerrei meus olhos e me pus a caminhar.

Este é o sentido que toma hoje a pseudo-existência, nossos irmãos caminham como este personagem que desejo assumir. Suas escolhas os levam sempre a outro abismo onde, ao cair, juntam as mãos ao céu, não sem antes buscar algo onde se agarrar, e lamentam o destino cruel que os quis ver sofrer. Pobres coitados, não são capazes de olhar pra trás e ver que foi exatamente este caminho que escolheram. No fim das contas sua angústia era vazia, vazia de qualquer conteúdo, vazia de sentimento, sua angústia é um vazio sobre o qual nem o nada pode ser dito, no qual nem o nada encontra seu lar, sua angústia desistiu de ser aquela condição onde mesmo sem percebermos avistamos no horizonte algo inefável, uma morte que nos faz tremer mais do que qualquer pesadelo, e tornou-se qualquer coisa vazia de tudo, e mesmo vazia do nada. Isto não é possível, bem sabemos, mas há uma diferença categórica entre a angústia de um gênio, mesmo o mais medíocre como este que vos fala, e de um simples número neste rebanho imenso marchando sem sentido para o holocausto da humanidade. Como definir este canyon de diferença? Como encontrar em nossa linguagem humana as palavras que demonstrariam com segurança e seriedade o modo de ser destes dois homens muito distintos baixo a classificação da mesma espécie?

Angústia, a condição que afligiu Adão e Eva há muito tempo no Éden1, porém que teima em persistir até hoje como uma doença atroz, não, a doença sabemos bem qual é, vivemos nela como se vive ao respirar o ar, e a angústia é simplesmente o sintoma mais feroz de nossa patologia2. No fim do jogo, desesperamos mesmo por não podermos abandonar esta angústia.

Uma dialética que se preze não pode estender seus movimentos como as etapas do mecanismo de construção de um objeto fabril, mais ainda se este objeto é o homem em sua humanidade, aqui não há etapas, há apenas um ser humano nu em meio ao deserto, segurando numa das mãos um último gole d‟água, resta-nos apenas decidir se teremos coragem de derramá-lo ao chão e assumirmos a

1 Ver: Kierkegaard. O Conceito de Angústia. 2 Para Kierkegaard, esta doença é o desespero (O Desespero Humano). Mais à frente investigaremos qual a patologia fundamental da nossa época.

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necessidade mais imediata de nossa transcendência, gritando dentro de nós a máxima do dever crer, ou se seguiremos andando pra qualquer lado, com o máximo de cuidado para não permitir derramar o último gole de nossa sobrevivência, para então, à espera do momento exato de tomá-lo, aquele momento último de nossas forças, cairmos ao chão e perdemos pra sempre nossa salvação, e o pior é que talvez aquele copo frágil com o último gole da água da sobrevivência neste mundo pode muito cair de pé sobre a areia fofa de nosso deserto interior e permanecer ali, até que a água se evapore ao sol escaldante de nosso tormento e o copo se perca na tempestade que o vento traz em nosso fúnebre adeus.

O fato é que escolhemos sempre. Ah, como aquele homem do velho mundo que disse “o homem deseja ser Deus”3 estava certo, neste louco desejo de sermos mais, no qual partimos de nós rumo a nós para sermos enfim aquilo que jamais poderemos ser, perdemos toda possibilidade de encontrarmos nossa individualidade. E, olha só, como aquele francês tão intelectual não viu isto? Perdemos nossa consciência e a sabedoria de que somos aquilo que escolhemos ser, e em tudo isto perdemos a eternidade em nós. Menos razão faltou a esta França de ser e de nada, mais fé em seu coração.

A fé começa exatamente onde a razão deixa de existir. Ó verdade coberta de doçura. Há um salto que só os ingênuos podem dar, e bendito aqueles que o são, que não perderam na malícia do mundo aquela inocência da infância4, aqueles olhos que sempre esperam o bem e que acreditam no amor, aqueles olhos felizes que quase sempre ganham lágrimas frias que os fazem perder a beleza, como um quadro de cores maravilhosas que com o tempo perde o brilho, perde a vitalidade, perde a arte que trazia consigo, e transforma-se num lixo que só os hipócritas sabem dar valor.

É um salto no escuro, um salto para o absurdo, para o irracional, mas é um salto divino que só pode ser dado após uma escolha séria, única e individual. Séria, porque é a seriedade que faz desta vida regrada ao tempo digna de abandoná-la rumo à eternidade, única porque uma vez tomada, por si só apaga qualquer possibilidade de recuo, e individual porque é aquele homem nu, em meio ao deserto de todos os tormentos, que deve tomá-la, e ninguém o pode forçar a isto, ninguém sequer pode obrigá-lo, nem Aquele que tudo pode, porque não pode negar a si mesmo ferindo a liberdade com a qual, com o perdão da palavra, doce blasfêmia! Condenou Seus filhos e filhas.

É um salto de fé no qual o Deus que criou o mundo é elevado e glorificado por um único e insignificante ser de uma forma que mil destes em assembléia não o podem fazer, mesmo louvando com os mais belos hinos e aleluias. Porque é sempre o indivíduo que precisa encontrar a si, e só se encontra a si mesmo em Deus, quando a sós, ainda que a sós na multidão, sob o mármore da casa deste Deus que o homem criou, abandona a si mesmo, e perde o mundo para ganhar a eternidade. Glória a Ti Senhor! Glória a Ti porque nos faz compreender que somente perdendo o mundo podemos ganhar a Ti, podemos ganhar as recompensas que guardas nas mansões do teu poder.

E o quão longe estamos, o quão longe estou, nós, eu, que sou e que somos pó, que somos apenas sal da terra, um sal perdendo seu sabor, rogando a Ti uma magia nova que nos possa salgar outra vez. Nós que te procuramos pelas esquinas do mundo, e te maldizemos porque não estás em nenhuma delas, nós que esquecemos de olhar no lugar de onde nunca saístes, dentro de nossos corações, de nosso espírito, porque este é o teu templo verdadeiro, aqui, onde fizeste a tua morada para que pudessemos ser mais que carne e tempo, para que pudessemos ser espírito e eternidade.

Aqui nos encontramos, nesta miserável condição, onde desejamos fechar os olhos e tropeçar exatamente porque não suportamos a angústia de nossas escolhas e queremos dominá-la curvando-a sobre a ilusão da certeza de fingirmos não saber que escolhemos esquecer, não suportamos a nós mesmos porque não suportamos a angústia de nossa liberdade. Esta liberdade que nos foi imposta sem que permitíssemos, e que lutamos a cada dia para conquistar, porque não a distinguimos em nossos passos, ao passo que nos tornarmos guerra, uma guerra estúpida em nome da liberdade, da mesma liberdade que recusamos em nosso leito, na hora de dormir, rogando por um destino que nos permita vedar os olhos e caminhar rumo a um tropeço que não seja apenas mais uma de nossas possibilidades, de nossas angustiosas possibilidades estendendo-se como um tapete rubro sob os pés de nossa desconhecida e já gasta liberdade, gasta e corroída pelo muito que a deixamos esquecida nas gavetas de nossa não-consciência, gasta e corroída pelo tempo, este mesmo tempo que somos nós e o qual pretendemos deixar

3 Sartre: O Ser e o Nada. 4 Porque as crianças herdarão os céus.

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de ser trilhando a veia de sua própria temporalidade, quanta burrice! Precisamos sair de suas garras para deixarmos de sê-lo, para sermos eternos por fim. §2 – Resposta a qualquer tratado supostamente definitivo de filosofia

Pro inferno com suas ideias, se inferno houvesse, não há. Há nada nesta racionalidade

esplendorosa. Há nada nesta teia de conceitos logicamente formulada para abarcar o infinito, um infinito que não há, que não existe, porque não pode ser, porque não lhe dá espaço o todo hermeticamente vedado dos caminhos das idéias. Então, pro inferno com elas.

Em um tratado que se pretende filosófico a despeito de toda fantasia poética e de todo delírio religioso, cabe esta resposta aos amantes da sabedoria, e pra falar a verdade, este amor ao saber aqui sente-se em casa.

Não há filosofia sem filosofar, ela só existe enquanto um ato que está se dando, não que ela cesse quando estanca para um descanso o pensamento reflexivo, mas antes este próprio pensamento é a filosofia. Mas não há somente um só modo de pensar filosoficamente, há sim, isto é inegável, uma infinidade destes modos, o que faz da filosofia exatamente o “conjunto” destes “filosofares”. Talvez por isso esteja ela, a filosofia, em todos os lugares, em todas as ciências e conhecimentos, pois quando na história, um pensar mais elaborado tenta encontrar os fundamentos de algum acontecimento, pode se dizer que aí está a filosofia. Ah, que coisa boa, quando se pensou que, na multiplicação e fortalecimento das ciências particulares, a filosofia sucumbiria a uma maneira de conhecer vulgar enterrada no passado, eis que ela retorna ainda com a mesma força que tinha, e de fato, ela nunca deixou de ser a mesma coisa, um indagar acerca de algo qualquer que... sabe-se lá quem terá esta resposta. No fundo, na base destas maneiras diversas de filosofar que compõem a filosofia está a busca por aquilo que justifique o que temos diante de nós, o que construímos e o que ansiamos construir. A filosofia mesma é aquela ontologia fundamental que Heidegger queria formular, para exatamente dar sustento às ontologias particulares que já diziam onde as ciências fincavam suas raízes. Eis o que é filosofia, a busca pelo ser mesmo em seu sentido, naquele âmbito onde encontra-se aberta a abertura mesma para o ser em sua mais pura forma, e eis algo que não é muito diverso, a despeito do esforço feito por grandes homens em prol de uma separação final: a colocação do indagar transcendente em busca de si mesmo, em busca do inexplicável, em busca da relação fundamental entre homem e Deus, em busca da verdade absoluta mesma que sustém em suas mãos o cristal da existência, este mesmo cristal que infinitiza os pontos de vista num caleidoscópio onde filósofos desde há muito, procuram abrigar-se da tempestade.

Mas esperem, detenhamos o passo. O indagar em busca da relação entre homem e Deus feito pela teologia tradicional não pode ser mais que vulgar filosofia. Há uma busca por si mesmo que está ligada pela eternidade com aquela ontologia fundamental a que damos o nome, não sem controvérsias, filosofia pura. Porém, ainda que haja esta ligação, é um abismo também eterno que separa o indagar filosófico da verdadeira busca existencial pelo criador de tudo.

A filosofia não pode alcançá-lo, ela está distante, em uma distância tal que jamais poderá alcançar a essência desta busca sem perder o caráter próprio de filosofia. Se arvorar-se nesta empreitada, o máximo que conseguirá é transforma-se em uma doutrina religiosa desprezível, como muito tem acontecido ao longo da história.

No abismo desta separação habita o monstro helênico que devora tudo, devora a razão, e só ultrapassa ao outro lado quem for capaz de saltar longe nesta escuridão abismal. Quem for capaz de abandonar a razão, de abandonar a si mesmo, de abandonar o mundo, de abandonar toda e qualquer filosofia, mesmo aquela chamada ontologia fundamental, está apto a tentar tal salto sem medo, porque é certo que chegará ao outro lado e ganhará em dobro sua recompensa, porque mesmo que permaneça onde estava no que toca a compreensão do sentido das coisas, terá conquistado a eternidade.

A filosofia nunca poderá percorrer tal caminho, nunca dará tal salto, mesmo porque o aproximar-se do abismo já lhe causa náuseas e faz perder a direção. Tal insanidade é absurda demais para a filosofia, é loucura e escândalo, e deve permanecer à margem como coisa de gente tola. Pobre dela, por

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não saber que benditos são os tolos, os ingênuos e os fracos, pois são abraçados pela verdadeira sabedoria, alcançam a verdadeira segurança e encontram dentro de si a verdadeira força.

A filosofia não pode chegar a tal questionar sobre a existência porque é razão, e mesmo que negue a racionalidade como principal meio de conhecimento do mundo, é dela que se servem para elaborar tal afirmação. A crise da razão apenas fez com que ela, ao perder seu trono e ser expulsa da realeza como indigna e incapaz, retornasse ainda mais poderosa, a queda da razão na crise do idealismo alemão, sepultado de uma vez por todas com Nietzsche, apenas conseguiu divinizar a razão. Sim, a razão mesma tornou-se o deus dos homens, aquele mesmo deus que Nietzsche dizia estar morto. Porque na corda bamba da dialética onde se perdiam todos os absolutos a razão se segurou forte e restou sozinha admirando o fosso do abismo. O niilismo é o momento mais fiel deste destronamento e divinização da razão. Porque se diz: não há mais verdade absoluta. E esta frase é apenas o eco que foi dito pela primeira vez pela própria razão ao chegar ao Olimpo, assumindo para si e para todos que a única verdade absoluta encontrável no mundo é esta que canta que não há verdade absoluta alguma. E eis a ciência, eis os homens, abandonados ao desconforto de buscar mentiras boas o suficiente para tornarem-se verdade por períodos de tempo curtos demais.

É óbvio que houve uma regressão, em decadência, a razão viu como única saída renunciar ao trono, e fez isto de tal forma que o povo pensasse que eram eles que pediam a cabeça do rei, ela fez isso porque a única maneira de salvar a si mesma era subir ao mais alto topo do mesmo mundo apoiando-se nos ombros de Zeus e daí declamar, a partir de hoje, não há mais verdade absoluta.

O sistema e a verdade absoluta – A história fantástica desta estratégia da razão começa desde o início daquilo que passou a chamar-se filosofia. E a obra de Theodor Adorno e de Max Horkheimer5 mostra exatamente este caminho do que eles chamaram de separação do mito, que culminou na mitologização grotesca do mundo que se queria esclarecido.

Ainda havia esperança enquanto a filosofia ainda acreditava poder encontrar, por meio da razão, a verdade que lhes daria a solução de tudo. Ainda havia esperança quando se buscava entender a razão enquanto faculdade pura para só então compreender, através dela, o mundo. Porque se compreendêssemos como o mundo se mostra em si para esta razão que o representa e o traz pra si, então compreenderíamos tudo, e teríamos o sistema perfeito. Mas toda a esperança se diluiu na comprovação triste de que tudo não passou de ilusão sem sentido, de utopia, de busca de segurança para a auto-preservação ameaçada pelo desenvolvimento da dominação sobre a natureza. O sistema perdeu as forças, não era mais capaz de alimentar a si próprio a partir unicamente de suas engrenagens, e nada de fora podia penetrar sua couraça para auxiliá-lo, ele era, em si, perfeito, e invalido, como o foi o famoso tratado de Wittgenstein6 (talvez enquanto último delírio da velha e sonhadora razão, renascendo das cinzas cansadas de sua sepultura fria e morrendo outra vez ali, no mesmo lugar), ele era logicamente intocável, porém sem valor algum. Kant, Hegel... Os sistemas todos fadados a este fim, porque eram todos, apenas, pura racionalidade. E que ironia, a razão precisava sepultar os sistemas que sobreviviam apenas de seu alimento ideal porque racionalmente falando, era irracional permanecer nesta busca, já que de fato, por sua intransponível universalidade para a esfera da existência mesma, e por seu fadado fracasso, a única saída era esquecê-lo como um erro vergonhoso, e encontrar estas verdades, disfarçando-as sobre novos pseudônimos científicos, no mundo real, dentro do homem, em seu organismo, e não mais naquela categoria caduca que de nada mais valia, chamada razão pura.

Assim, o Topos Urano que guiava toda elaboração sistemática desabou do alto do céu das idéias e se despedaçou em mil pedaços no solo lamacento da realidade. Não havia mais motivos para buscá-lo, porque aquela que sustentava sua existência agora não passava de uma faculdade híbrida, cheia de influências corporais, sociais e etc. Não era mais pura a razão, consequentemente não era mais pura a verdade, e mais, nem verdade havia, pois que na evolução da espécie homem, que curiosamente havia adquirido esta coisa estranha ao mundo animal chamada racionalidade, por uma simples necessidade de sobrevivência junto dos outros de sua espécie e junto do resto da natureza, por algum motivo estranho relacionado com uma vontade ainda mais estranha de ampliar os âmbitos de atuação7, este homem viu-se

5 Dialética do Esclarecimento. 6 Tractatus Lógico-Philosophicus 7 Vontade de Poder. Conceito cunhado por Nietzsche em seus últimos escritos.

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em frente a uma única saída possível, a criação das verdades com as quais ele pudesse se identificar e através das quais ele pudesse prosseguir em sua evolução. Assim surgiu a verdade, e permaneceu porque era útil sua existência, porque com ela era possível identificar o que era bom e o que era ruim, o que era certo, belo, e o que era feio e errado. Mas enfim, quando o último corpo tombar no campo de batalha, não terá valido de nada, porque estas verdades nem existiam de fato, porque o homem é só um organismo que deseja sobreviver e ampliar seus âmbitos de atuação, porque o homem é um animal, carregado de instinto, de desejos e pulsões, que estranhamente começou a pensar.

Mil sistemas e as muitas verdades: ciência e relativismo – Assim passou a dominar a razão sem ser percebida, como um deus que a tudo governa, que a tudo mantêm na linha, assim a razão fazia com a ciência remanescente. Os conhecimentos científicos eram elaborados já com a certeza de um dia poderem ser derrubados, falseados, ou seja lá qual for o termo usado pela ciência. E se o tempo era relativo, o que no fundo não reproduz a teoria mesma da relatividade do tempo, que se analisada a fundo mostrará exatamente o contrário, mas se o tempo era relativo, tudo o mais também poderia e até, deveria ser. Não havia mais a sede do sistema, mas nem por isso o “distinguo” voltou ao seu lugar, não, o que assumiu sua posição foi tão somente uma construção de métodos variados para investigar objetos variados em busca de conclusões que só resultariam em verdades também variadas. Ninguém mais estava interessado em distinguir o que sabia do que não sabia, já não mais estavam na era dos sistemas, isso se tornou tolice socrática que deveria ser abandonada também, junto com o bolo maciço de entulhos sem valor que ainda teimavam em sobreviver à queda do idealismo. Nem os românticos, em sua boa vontade de fazer ressurgir o espírito como algo distinto do corpo puderam novamente alcançar a tolice que foi a vida de Sócrates. E neste pé, o que se passou a ter foi um mundo inteiro seccionado como um cadáver na tábua fria de mármore da sala de anatomia, o que queriam os homens agora era que cada um fizesse seu papel, e descobrisse tudo que pudesse nesta atitude “microscopiológica” diante da existência.

Não descobriram coisa alguma, nada além de uma infinidade de verdades pequenas, porque já as descobriam com a certeza de que eram apenas mais um ponto de vista. E que se outro aventureiro descobrisse uma verdade que fosse mais verdade que esta, felizes eles próprios lançariam sua descoberta ao fogo e se poriam a testar a verdade daquele outro homem a fim de sei lá o quê...

A ciência era agora apenas a miscelânea dos muitos conhecimentos, das muitas áreas ampliadas de atuação nas quais cada metodologia especial fazia seu papel. O homem em seu esclarecimento chegou apenas a este ponto onde tudo, como o repouso ou o movimento, dependiam do referencial. E estes referenciais todos se ancoravam na razão esperta que se retirou e ainda assim permaneceu ali. O homem além do bem e do mal não passa de um escravo da razão que quebrou as correntes e escolheu mudar de senhor, e por vontade própria aprisionou-se aos ferros do corpo e do tempo, o homem além do bem e do mal não passa de um esteta, que incapaz de alçar voo por sobre a moral para chegar à pura subjetividade reduz sua existência as necessidades animais que o corpo clama, e nesta animalidade acha que encontrou o sentido da existência, o sentido desta vida onde o melhor seria nem ter nascido, ele acha que encontrou a única verdade ao gritar que não há verdade alguma, mas não vê que a própria razão que ele dizia ser um mecanismo de sobrevivência da espécie, talvez por necessidade mesma desta sobrevivência, sopra esta máxima aos seus ouvidos, apenas para os manter presos ali, àquelas correntes das quais ele não quer sair. O homem além do bem e do mal caiu, junto com todos os homens da ciência, muito abaixo dos idealistas, porque estes ainda visualizavam a possibilidade de uma verdade absoluta, apenas a procuravam no lugar errado. É por isso que a filosofia de Kant ainda está, apesar de jamais ter conseguido ultrapassar o estágio moral da existência, acima de Nietzsche e de tudo que ele escreveu, que não passava de um esteticismo subjetivo desesperado, exatamente porque escolheu por si só abandonar todos os seus absolutos.

Mas a razão não pode ir além, de fato, seu limite é este, seu limite é este ponto onde se exige um salto irracional. Aqui ela não pode mais ir, porque aqui é o âmbito da fé. A razão não é de fato pura, mas nem o corpo é o homem inteiro. O homem é corpo e razão, é preciso haver um equilíbrio. Não é a razão que tem que realizar tal equilíbrio, mas também não é o corpo. Ambos devem ser senhor e servo, ambos devem viver juntos porque o indivíduo é um só, o indivíduo é aquele homem que conseguiu ser carne e racionalidade, o indivíduo é aquele que se livrou da idéia somente racional da não existência da

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verdade absoluta e a encontrou, porque negou a si mesmo e saltou sobre o abismo, porque se humilhou enquanto carne e curvou-se diante do Deus que é a verdade absoluta.

Infelizmente o homem da ciência não pode realizar tal salto, porque este homem da ciência, a parte toda sua subjetividade estética, é um escravo da razão que escolheu não sê-lo, que escolheu aceitar a máxima da razão que diz que a ciência é relativa. Com isso o sistema está morto e milhares de outros sistemas inferiores e sem força alguma tentam dizer qualquer coisa sobre o mundo, sobre o homem, sobre a natureza, sobre a mente que é “extensão” do corpo, sobre a existência.

Todo nenhum: era do vazio – Aqui é a era do vazio que domina, a ciência não pode mais dizer nada sério, porque sua seriedade se esvaiu com o declínio do poder da razão, o todo é apenas um vazio habitado por um deus de barro oco, o homem idolatra um deus-razão incapaz de preencher-lhe a vida senão com angústia, porque ao decretar que não há verdade, decreta a si mesmo como inverdade e deixa na alma humana a angústia que lhe apresenta o nada cruel e sem sentido do não existir. Não é uma simples angústia diante de uma possibilidade, porque todas elas são vazias, porque o próprio nada se reduz ao vazio e os lança a toda impossibilidade de existência ainda enquanto vida. Não é mais o nada que nadifica o todo, mas este que nadifica a si mesmo e ao próprio nada. Esta é a era do vazio, onde a razão deu um golpe de estado em si mesma, transformou-se em deus e passou a reinar sobre uma terra vazia, seca, morta. Esta terra sem vida lhe acena de volta e diz, pobre razão, eis seu limite, daqui pra frente existe apenas um abismo escuro de irracionalidade e loucura, onde só a fé pode entrar. Este é o máximo que a razão pode chegar, neste ponto onde, após mais de dois mil anos de reflexão, ela percebe que o mais racional é dizer: não há verdade absoluta, o que há são verdades várias, são pontos de vista, são subjetividades. A era do vazio é vazia de si mesma, é um relativismo vazio que se preenche com nada de verdade e tudo de possibilidades vazias, se é que é possível o uso de tal metáfora.

O deus da razão – O homem racional, aquele que é escravo da razão, cansado de não entender o Deus que criou o mundo e se escondeu nessa criação deixando apenas a máxima que diz que se deve crer como único caminho para conhecê-lo, criou para si um deus, o deus do homem racional é exatamente a razão destronada e divinizada, e sua fé é uma vulgaridade que prega não haver verdade absoluta. Este mesmo deus que o homem criou foi o deus morto no niilismo. É o deus que o homem deseja ser, para onde ele corre de si através de si mesmo, é o deus que sanciona a lei universal da moral rumando ao reino dos fins, é o deus que serve de vigia subjetivo para que não inflijamos aquela lei moral8. Este deus é apenas racional, e nega a si mesmo em sua máxima da não existência de verdade absoluta, por isso ele morre, por isso ele se humaniza ou ele é engolido pelo sistema da idéia pura que se nega numa antítese e... naquele louco movimento da dialética que Hegel imputa ao espírito. Há muito tempo a humanidade criou este deus, em sua incapacidade de entender o Deus que criou o mundo ela cria um deus que possa estar mais próximo de si. O escândalo da vinda de Deus a terra como homem é escândalo justamente porque não se pode compreender este Deus que criou tudo e criou a si mesmo como Deus-homem. O deus que os homens criaram é um deus bondoso, que olha o homem como ele é, e que perdoa tudo apenas por esse amor, independente do fato de o homem ter ou não se arrependido. É cômodo crer neste deus, porque assim todos vão pro céu, não há escândalo nisso. Mas é infinitamente mais duro crer num Deus vivo que veio em sacrifício, e que é morto pelo homem, e que mostra exatamente o caminho a ser seguido, um caminho de pedras e espinhos, um caminho pesado, onde nos encontramos a mercê de cusparadas, tapas e ponta-pés. O deus que o homem criou não exige nada, e dá tudo, não cobra nada pra si, apenas que se creia nele, não há escândalo neste deus humano, não há irracionalidade neste deus humano que também é puro amor, e por ser puro amor, ele tudo dá, nada pede, e no fim, salvará a todos, porque é contra a lógica que um deus que seja puro amor lance alguém ao nada da aniquilação da alma. A ciência crê neste deus que o homem criou, porque este deus, a despeito de todas as promessas e dádivas supersticiosas que o homem lhe aponta como o responsável, é o deus mesmo que diz: não há verdade absoluta, inclusive eu sou apenas mais um ponto de vista. É neste deus que a ciência crê e a ele ergue louvores, porque este deus é a razão no topo da existência dizendo, crede em mim, porque eu lhes digo, não há nada em que crer.

8 Em sua Critica da Razão Pura Kant apresenta este deus criado pela razão para reger o comportamento moral.

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Decadência: a queda da razão e sua tentativa de retorno ao trono – A razão assim declara sua própria sentença de morte. A arte que ainda se erguia como uma irracionalidade possivelmente capaz de manter o caráter puro e límpido de um desvelar da verdade enquanto tal transforma-se em banal subjetividade, e mesmo que ela ainda grite o pôr-se em obra da verdade em seu caráter essencial de obra de arte9, ninguém escuta, porque os ouvidos moucos estão à procura de mais uma verdade, porque a anterior não serve mais, passou. Então estes seres racionais transformam a arte em indústria e esta indústria em criadora de arte, porém uma arte do lixo que ninguém entende, e que nem entende a si mesma, as verdades do mundo tornam-se moda, e passam com o tempo, a arte do lixo torna-se moda, e passa com o tempo, e a própria ciência percebe o túnel sem volta onde se enfiou, e se esforça pra encontrar novamente aquele idealismo que buscava uma verdade absoluta.

A ciência que após Nietzsche e seus eufóricos seguidores decidiu embrenhar-se unicamente na busca de verdades humanas, na certeza de que o homem é só carne onde uma razão estranha brotou, e que esta própria razão provém de impulsos e do esquematismo orgânico dos neurônios, percebe que isto é que de fato é uma ilusão e uma loucura, porque há algo no homem que o faz transcender além do corpo, além do mundo, além até do que está sob o rótulo de lógico e racional. O papel da lógica na ciência é questionado, e a metafísica, com o advento heideggeriano da necessidade de encontrar o sentido do ser em geral, nunca antes perguntado, ganha de volta o status que a morte da razão lhe havia roubado. É preciso trazer a razão de volta, porque sem ela, a própria ciência se transforma em tolo subjetivismo. É necessária uma investigação ontológica fundamental que sustente as bases racionais onde se fundam as ciências mesmas, é necessário reacender a chama da verdade absoluta, porque sem ela, a ciência se transforma em brincadeira de criança, em gozo prazenteiro de estetas ingênuos que acham que sabem tudo.

A razão em decadência leva consigo a própria ciência. A moral é abandonada como invenção artística de filósofos presos a verdades criadas há muito tempo, as quais se esqueceu serem meras criações sem valor real. No mundo animal, onde o homem é tão animal quanto um cachorro, ou seja, onde há instintos e necessidades que o homem não precisa negar porque a razão que o diferencia dos outros animais não lhe diz que é preciso que o faça, este homem pode tudo, porque nada lhe é impedido. Ele pode dominar, ele pode porque é mais forte, os fracos foram assim formados pela natureza e não tem direitos naturais sobre o forte. O gigantesco edifício das criações morais foi erguido pelos fracos, pois neles a racionalidade agiu desta forma, visando unicamente a chance de sua adaptação ao meio e a sobrevivência. Agora que a razão foi posta em seu lugar, nós, os homens, podemos fazer o que quisermos.

Nesta decadência a moral é rechaçada e o homem animal encontra aconchego na carne, no prazer do sexo, no cheiro do sangue, no que choca e faz tremer. O artista que antes era o único a ser capaz de sentir tais prazeres porque era o único aberto ao sensível nesta pureza agora deixa de existir, ele não encontra mais beleza pra cantar, porque todos agora estão submersos neste mundo onde a excitação e o gozo falam mais alto. Sua arte é uma arte do lixo que qualquer um pode fazer, sua música é uma porcaria que não diz coisa alguma, suas pinturas são retratos sem conteúdo, disfarçados no complexo técnicismo que as criou, os filmes não valem sequer o ingresso comprado, porque são iguais, e o povo foge do mundo para encontrar-se com este mesmo mundo nas salas de cinema.

Na decadência da razão as pessoas encontram aconchego no relativismo, em si mesmas, em sua subjetividade pobre, frágil e desumana. Por causa disso a mesma razão, vendo-se encurralada por si mesma, arma seu retorno pra casa, ela precisa fazer renascer no terceiro dia aquele deus que o niilismo matou, aquele deus que ela criou, que é ela mesma, precisa voltar a ser rei e deixar a divindade de lado, talvez a volta do sistema fosse a solução, não, isto é impossível.

Neste momento vivemos na filosofia o velório daquela verdade absoluta, neste velório a razão tenta reanimá-la com todos os rituais mágicos existentes. É o que vemos ainda hoje quando ouvimos alguém falar em arte autêntica, em artista autêntico, em homem bom, em homem justo. Os conceitos universais tentam voltar pra casa junto com a razão que os levou consigo quando enganou a si mesma dizendo que os criou, agora ela percebe que estes conceitos já estavam aí, e ela precisa pô-los de volta em seu lugar. Nesta tentativa de retorno, vemos uma infinidade de igrejas cristãs dizendo que encontraram o

9 Heidegger: A Origem da Obra de Arte.

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caminho aos Deus que criou o mundo. Mas elas são apenas uma tentativa a mais de a razão voltar a si, porque este deus que estas religiões que surgem como grama no quintal encontraram é somente um deus racionalizado. É a tentativa de retorno da razão pra casa, ela ficou fora tempo demais, e agora tudo está muito bagunçado. Os homens realmente acreditaram que não havia verdade alguma, e ainda acreditam, porque é mais cômodo, divertido e lógico viver para si, para seus prazeres. Mas a razão quer encontrar novamente seus ideais, e isto é apenas mais um retroceder, porque ela não encontrará senão tudo que já encontrou e descartou, e chegará novamente a conclusão de que não pode haver uma verdade absoluta. Porque a razão é escrava de sua lógica e sua racionalidade, e nesta escravidão ela jamais poderá encontrar a Verdade Absoluta, já que o caminho para ela exige um salto de fé, e uma entrega voluntária ao escândalo da cruz, e do Deus que criou o mundo.

Eis a resposta da razão, não há resposta racional para resolver este problema, e a filosofia está envolta nele do início ao fim. Ela nunca chegará até Deus. A filosofia não passa de tempo, ela não pode, por mais que se esforce ao máximo, tocar a Eternidade.

Então pro inferno com a filosofia e seus filósofos, se inferno existisse. Ela construiu aqueles mundos megalomaníacos, cheios de certeza, e mesmo quando escarnecia do desejo de erguer universos, o fazia com o avesso de uma modéstia que ao escarnecer inclusive de si mesma, destruía toda possibilidade de caminhada, e tornava amarga a existência, porém de um amargo estranho, pois que vazio de todo sabor.

Assim são todos os filósofos, “piores que os fariseus”10, porque, como disse nosso não compreendido danês, constroem seus insondáveis sistemas, depois cruzam os braços em suas poltronas aquecidas ao pé da lareira e ficam a observar os jovens que, por delírio juvenil acreditam ser possível pôr de pé toda aquela arquitetura quimérica, e os filósofos acabam até por sorrir em seu divertimento da ingenuidade daqueles sonhadores, que perdem sua vida inteira em busca do impossível, impossível porque inexistente, até descobrir que tudo era nada, era uma corrida insana atrás do vento, era só vaidade, mas então, pobre deles, pobre de nós, é tarde demais, “porque talvez sua salvação seja impossível”11. A salvação na filosofia é impossível, é inegável que ela é mais que a arte, e que o filósofo que busca o ideal (e não há filósofo que não o busque, porque se não buscar estes fundamentos é apenas um cientista, ou pior, um poeta medíocre tentando filosofar), o filósofo que busca o universal é mais que o esteta, que vive da carne e do tempo, sim, mas ela, a filosofia, é só razão, e ele, o filósofo, é apenas escravo da lógica e da racionalidade daquela razão que é filosofia. Por isso não há salvação na filosofia, como não há na arte, só há salvação num âmbito da existência, e é no âmbito onde de fato está aberta a possibilidade de entrega e compreensão do mistério mesmo da existência, este é o âmbito onde o homem se vê livre para lançar-se no fundo do abismo, certo de que será agarrado pelas mãos do Deus que criou o mundo e o universo, o mesmo Deus que encontrou através de sua fé, fé que começa exatamente onde a razão deixa de existir.

O caminho agora é muito estranho e distinto. O abandono da filosofia se nos mostra agora

como o necessário. O caminho que trilharemos é novíssimo, é aquele que nos levará ao ponto onde poderemos dizer sem receio, sem remorso, com um sorriso até no rosto: deixaremos de lado aqui, justo no início deste tratado que pretendia ter caráter filosófico, toda filosofia, porque daqui pra frente, tudo será um salto no escuro, um caminho onde o filosofar não pode se atrever a entrar sem estar certo de que deixará de ser filosofia, um caminho que é o encontro da nossa verdadeira individualidade, um retorno à única casa que devemos retornar: Deus. E para iniciar tal jornada é preciso estar certo de que se perderá tudo, porque se perderá o mundo, mas é perdendo tudo que se ganha a Eternidade.

10 Kierkegaard: É Preciso Duvidar de Tudo. 11 Ibid.

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Primeira Parte

O Abandono da Filosofia

A luz pode, efetivamente, incidir na clareira, em sua dimensão aberta, suscitando aí o jogo entre o claro e o escuro. Nunca, porém, a luz primeiro cria a clareira; aquela, a luz, pressupõe esta, a clareira. A clareira, no entanto, o aberto, não está apenas livre para a claridade e a sombra, mas também para a voz que reboa e para o eco que se perde, para tudo que soa e ressoa e morre na distância. A clareira é o aberto para tudo que se presenta e ausenta.

Martin Heidegger.

O fim da filosofia e a tarefa do pensamento.

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Capítulo I: – Identidade Patológica da Filosofia –

§3 – O inserir-se no âmago da filosofia para então abandoná-la

Este parágrafo queria eu chamar: a necessidade de um abandono da filosofia para o início da

tarefa de uma investigação acerca do homem em seu ser temporal e eterno. Porque é necessário este deixar pra trás a filosofia, nos vemos obrigados a tomá-la nos braços, abraçá-la forte, como num adeus de um filho que vai a guerra e se sabe de antemão que não retornará.

Nietzsche em seu prólogo estético diz que é preciso primeiro ser wagneriano para poder superar Wagner12, de fato também é imprescindível nos dirigirmos para o seio fértil da filosofia para só então num breve e doloroso adeus iniciarmos o tão ansiado e fundamental abandono.

Já anunciamos a razão porque desejamos deixar pra trás o filosofar, e esta razão é a própria base onde se sustenta todo esforço desta reflexão que em si mesma já vai deixando as migalhas atrás de si para que a filosofia, quando despedida de nós, possa retornar para seu bojo frio em segurança e intocada. A própria reflexão aqui tentada enquanto um filosofar que se nega enquanto tal já é uma filosofia que perde seu caráter filosófico para adentrar nos caminhos de uma dogmática pura. Mas não se assustem com este termo! Sim, é dogmática mesmo o termo a ser usado, porque o caráter fundamental cristão do dever crer já traz consigo todo o peso deste escândalo que a primeira vista retira todo rigor e seriedade da vida, mas que se olharmos a fundo, notamos o avesso, pois que o rigor e a seriedade são aumentados infinitamente pelo peso da Eternidade.

Mas esta dogmática pode e deve esperar, pois que não estamos preparados para abandonar a filosofia, para isso é preciso, como dissemos, adentrar a mata densa da essência do próprio filosofar enquanto filosofia mesma, e, só após compreendê-la enquanto o que é de fato em si mesma (se é que isso é possível), poderemos sem remorso abandoná-la e partir para a investigação que desde o início fez-se o propósito deste trabalho, a saber: a relação de ser fundamental entre o tempo e o Eterno, ou seja, entre o homem e Deus. §4 – Apontamentos acerca de uma interpretação do texto “Que é isto – a filosofia?” de Martin Heidegger

Filosofia enquanto resposta: O homem é “dominado” em um estado de encontrabilidade que o leva a perceber, através de

uma abertura originária, sua diferença existencial para com os demais entes sem este caráter de existência enquanto um realizar-se. Há um apelo do ser proveniente do próprio ser em seu sentido, com o qual já sempre estamos nos relacionando numa compreensão pré-ontológica, que nos interpela para voltarmos pra casa, ou seja, para deixarmos o mundo no qual nos perdemos na massa amorfa do cotidiano e retornarmos para a vizinhança do ser, para nossa morada mais autêntica. O ouvir este apelo, ou os modos de ouvir este apelo, os modos de lhe dar atenção, de lhe compreender, e ainda, o como respondemos ou não a este apelo do ser, é a filosofia.

Enquanto resposta à voz do ser, a filosofia se caracteriza por rebuscadas modificações entre o dizer e o ser deste dizer. O que no logos é dito traz consigo toda carga daquilo que não se deixa velar diante do homem como alethéa. O ser mesmo se põe em obra no não-velamento de seu sentido quando pronunciamos ser. Os gregos ao iniciarem sua “batalha de gigantes pelo ser”13, não ficaram de pé para observar o esquecimento no qual caiu sua investigação, não puderam ver o quanto o futuro se julgou dispensado dos esforços de prosseguir nesta batalha, mesmo porque ela nem é sua batalha, é uma guerra que julgam sem razão de ser, porque o ser é um conceito compreensível em si, já que a todo instante nos movemos numa compreensão de ser ao enunciarmos qualquer coisa sobre o ente, é também um conceito

12 Nietzsche: O Caso Wagner. 13 Na obra de Heidegger denominada Ser e Tempo encontramos, no início, a frase grega: “gigantomachia peri tes ousias”.

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que nega, resiste a qualquer tentativa de definição, e por fim é o conceito mais universal, o mais geral, e em si o mais vazio. Então por que pô-lo ainda como problema? Pensa o futuro do filosofar grego e lava as mãos, ao mesmo tempo que este futuro se arroga um desenvolvimento nesta mesma metafísica. Quanta confusão... é assim, neste ambiente de mal entendido entre o que é a questão mesma a ser investigada e buscada pela metafísica e a ilusão de que se a faz progredir no indagar pelo ente enquanto ente que Heidegger inicia sua busca ontológica pela nova colocação da questão pelo sentido do ser14. E é assim que iniciamos nossa busca pelo significado do dizer da filosofia como resposta. Se ela de fato o é, como afirmamos, é então resposta a quê?

O traço fundamental de nosso modo de ser enquanto existência é ser sempre nesta relação continua de compreensão de ser, ou seja, somos numa cotidiana e ininterrupta correspondência com o ser do ente. “não há dúvida que a correspondência ao ser do ente permanece nossa morada constante. Mas só de tempos em tempos ela se torna um comportamento propriamente assumido por nós e aberto a um desenvolvimento”15, Só quando acontece esta correspondência como comportamento assumido em nossa propriedade estamos no caminho da autêntica correspondência ao ser do ente, ou seja, só esta resposta ao ser do ente, esta resposta que é a correspondência autêntica como o nosso pôr-se a caminho do ser do ente, é a filosofia. Mas “ela é somente então e apenas então quando esta correspondência se exerce propriamente e assim se desenvolve e alarga este desenvolvimento”16. Podemos dizer que não há resposta ao ser, mesmo ao ser do ente, enquanto nós, na medida que nos entendemos como existência, nos encontramos em meio ao baralho de entes no mundo, nesta condição não há nem resposta, nem filosofia, há apenas mais um ente fazendo uso dos outros entes ainda que numa movimentação que compreende tacitamente o ser.

Nossa correspondência ao ser do ente se dá de diversas maneiras, diz Heidegger, isto depende, como já tocamos aqui, como chega até nós a voz deste ser, e como recebemos e respondemos à este apelo do ser, isto caracteriza a filosofia como resposta.

A filosofia é a correspondência ao ser do ente exercida em nossa propriedade, e esta é uma correspondência que fala, que responde na medida em que acolhe em si o apelo do ser do ente. “O corresponder escuta a voz do apelo”17, e esta escuta, enquanto ouvir a voz do ser, dispõe numa resposta a este apelo nosso corresponder, nosso ser mesmo encontra-se disposto diante do ente que nos apela a partir de seu ser. A filosofia é a resposta de nossa existência ao ser que apela diante de nós e abre-se para nós a partir da encontrabilidade na qual somos lançados no responder. Só enquanto um corresponder que já nos põe disposto desta ou daquela maneira determinada é que o responder ao ser do ente caracteriza-se como filosofia, “corresponder significa então: ser dis-posto”18, isto quer dizer que ser disposto é ser entregue nas mãos daquilo que é, ou seja, do ente enquanto ente em seu ser. Assim a fala, ou seja, a resposta, encontra-se em harmonia com o ser do ente, e esta harmonia é exatamente o princípio da filosofia como resposta, porque é nela que nosso corresponder que se encontra disposto coloca-se na direção mesma do ser do ente, é nela que nosso “olhar” se torna um olhar filosófico para o ente.

Mas a questão vai mais além, e este começo da filosofia enquanto aberto por algo como um Encontrar-se consigo mesmo diante deste apelo insere na investigação outras problemáticas. O que é de fato um modo de Encontrar-se? O que significa ser uma resposta ao ser do ente? Por que e de que maneira a voz do ser em seu apelo põe em movimento numa encontrabilidade a existência? E por que esse movimento é exatamente em direção ao ser mesmo do ente?

Patologia – Páthos e Encontrar-se (encontrabilidade): Ora, ouvir a voz do ser é ser convocado e pôr-se em movimento em direção ao que convoca.

Este movimento é o que já nos põe desta ou daquela maneira, nos encontramos assim ou assim neste dirigir-se, e este modo de Encontrar-se é a origem, a arkhé da filosofia. Mas não podemos entender que qualquer Encontrar-se, na medida em que os modos de Encontrar-se podem ser confundidos facilmente

14 A questão pelo sentido do ser é a questão fundamental das investigações heideggerianas, tanto na primeira fase de sua filosofia (até o final da década de 20) quanto na fase posterior à chamada “viragem” (década de 30 em diante). 15Heidegger, “O que é isto – a Filosofia?” 16 Ibid. 17 Ibid. 18 Ibid.

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com estados de humor que vão e vêm de variáveis formas, possa ser a origem da filosofia. Os gregos, diz Heidegger, já haviam notado isto, e notaram ainda mais, notaram que esta origem – arkhé – da filosofia era algo como um começo permanente, no sentido de que não é um simples começo que se perde após começar, mas um começo imperante, quer dizer, um começo que torna cada vez a começar outra vez. Deste modo a arkhé da filosofia se dá por um páthos. Heidegger toma a tradução de páthos não como paixão, como se costumava tomar. Cavando um pouco mais Heidegger encontra a referência de páthos à páskhein, que indica “sofrer, aguentar, suportar, tolerar, deixar-se levar por, deixar-se con-vocar por”19. E aqui entendemos a indicação de páthos como um padecer, um carregar, um ter que aguentar o peso de... De onde se origina a filosofia enquanto resposta ao apelo do ser diante de uma abertura que dispõe numa encontrabilidade o homem diante desta voz do ser. A acrobacia feita por Heidegger para chegar à tradução de “páthos” como o que dispõe em um encontro circunscrito consigo mesmo de determinada forma faz referência exatamente ao deixar-se convocar por um apelo que nos harmoniza com a voz que apela e nos põe em movimento, e este movimento é sempre em direção ao ser do ente. Para Heidegger esta tradução é relevante porque evita a tomada, comum ao pensamento moderno, da origem filosófica – de um páthos – como uma origem psicológica. A paixão, o turbilhão afetivo, a torrente de afecções e sentimentos, pelo que se traduzia o páthos, deve ser posta de lado, porque exatamente ela tolhe, vela e obscurece o caminho para a compreensão da origem da filosofia como resposta ao ser do ente, por se fechar numa subjetividade psicologicamente instransponível.

O páthos, ou seja, O Encontrar-se desta encontrabilidade é o que origina a filosofia, e enquanto origem é mais que um simples impulso que deixa a si mesmo para trás, mas é exatamente o começo que permanece junto do filosofar, o começo imperante como diziam Platão e Aristóteles.

Este Encontrar-se, enquanto um sofrer que “lança” o homem em direção ao ser do ente inicia a filosofia. Mas isto acaba por não dizer coisa alguma, porque no Encontrar-se ainda não se define senão uma miscelânea de modos em que é possível ao homem estar lançado, e no vulgar, estes modos ganham o nome de diversos estados de humor. Isto nos leva à problemática da descoberta de qual modo é aquele fundamental que originou a filosofia. Por que é absurdo querer afirmar que qualquer Encontrar-se pode ter aberto o ser do ente de tal forma ao homem que a partir, da saudade, por exemplo, possa ele ter começado a filosofar. Há uma Encontrar-se fundamental que estava lá, como o “estado de humor” reinante mais latente no existir grego que impulsionou seu pensamento para o ente em seu ser, e o fez pela primeira vez perceber e ouvir a voz do ser. Qual era este páthos?

Espanto: Para Platão e Aristóteles a arkhé imperante da filosofia é o espanto (do grego thaumázein).

Heidegger concorda com eles e diz mais, “No espanto detemo-nos (être em arrêt). É como se retrocedêssemos diante do ente pelo fato de ser e de ser assim e não de outra maneira”20. E como começo imperante da filosofia, este espanto não se esgota ao mostrar pela primeira vez o ente em seu ser, mas sim é atraído pelo próprio ente no ato mesmo de estar espantado com sua descoberta. Nas palavras de Heidegger: “O espanto também não se esgota neste retroceder diante do ser do ente, mas no próprio ato de retroceder e manter-se em suspenso é ao mesmo tempo atraído e como que fascinado por aquilo diante do que recua”21. Assim se abre, no espanto, o ser do ente. A partir do Encontrar-se fundamental do espanto, está aberta a possibilidade suprema do início da filosofia, porque é aqui, no espanto enquanto a resposta ao apelo do ser, que está sacramentada a primeira e autêntica correspondência ao ser do ente.

Mas agora deixemos um pouco esta corda guia que é o texto de Heidegger e passemos a investigação propriamente dita deste Encontrar-se fundamental com o qual começa a filosofia, tentemos vizualizar a encontrabilidade específica do espanto.

A questão para os gregos, desde o princípio da filosofia atribuído ao “tudo é água” de Tales, se volta para este espanto diante do ente e para a necessidade de indagar: o que é o ente? Espantado, o homem nota a presença (manifestação) diante de si de um outro, de um ente que lhe é oposto e diverso, e sente então a necessidade de determiná-lo: o que é o ente? O que é este ou aquele ente? E a filosofia

19 Ibid. 20 Ibid. 21 Ibid.

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começa sua grande batalha pelo ser, que logo no começo se transforma em batalha pelo ser do ente, velando então, encobrindo e pondo de lado a questão pelo sentido do ser.

O que se buscava aqui era tão somente o ente pela primeira vez. O dizer do ente em seu ser era possível através do logos, este, desde Aristóteles assume o caráter de caminho para o dizer do que é verdadeiro e do que não é. A interpretação que Heidegger faz deste elemento iniciador da lógica volta-se para a tradição e aponta exatamente uma redução do sentido do conceito primariamente fixado por Aristóteles22. Para Heidegger, esta redução dá-se quando se passa a compreender o logos apenas como aquele dizer da verdade do ente. O logos não só diz a verdade ou falsidade do ente, mas ele próprio, sendo um momento fundamental da existência humana, é a abertura deste homem mesmo para o mundo dos entes. Não que o logos abra este mundo, mas é por ele que o homem pode dirigir-se ao todo do ente e pode enunciá-lo. Por isto Heidegger irá dizer que a verdade (alethéa) não é simplesmente a adequação da coisa ao conceito – conceito difundido em toda tradição – mas sim um deixar vir a ser, ou seja, um desencobrir aquilo antes encoberto para o homem em sua existência23. Se a verdade é exatamente um des-encobrir, e se esta verdade vem pelo dizer do logos, então a compreenção deste logos é fundamental como princípio da busca pela essência da verdade do todo do ente. Não é encontrar esta essência nosso propósito, mas unicamente apontar para o fato de que antes do dizer da verdade através do logos há uma espécie de afinação (Encontrar-se) do homem em sua existência que o permite olhar de forma diferente para o ente e dizê-lo no que é e não é. Este é o espanto. Espantado, o filósofo começa a indagar sobre o ente enquanto ente, enquanto tal, pelo ente em sua entidade.

É o peso deste espanto que a filosofia carrega em suas costas durante séculos, porque cada vez mais espantado diante do desconhecido de entes que se apresentam, o pensar filosófico sente a necessidade de dizer o que são estes entes enquanto são o que são. Conhecer o ente é o que advém do Encontrar-se do e no espanto. Os caminhos das mais diversas maneiras de pensar filosoficamente que ganharam voz na filosofia antiga e medieval não nos convêm citar aqui, basta-nos este apontamento primeiro do sentimento de situação do espanto, nem precisamos nos aprofundar em suas características, porque não é este o objetivo, este espanto é só um caminho para que possamos compreender o início do filosofar e a passagem para outra maneira de indagar que culminou na filosofia que temos hoje.

Dúvida: Esta passagem para outro modo de indagar filosófico é a passagem para a filosofia moderna.

Se disser aqui que não interessa mais o ente enquanto tal, no que ele é em sua essência para o indagar filosófico moderno talvez caia em erro, mas talvez seja exatamente isto. Para Heidegger o que interessa à filosofia moderna é a busca do ente certo e indubitável. E agora ninguém há de discordar, pois o próprio iniciador da filosofia moderna apontava esta necessidade de buscar aquele ente, dentre todos, que é certo e indubitável. Por isso é necessário colocar todas as coisas sobre o crivo da dúvida. O que são as “Meditações Metafísicas” senão este caminho metodológico da busca do ente certo e indubitável? Não é necessário percorrer o caminho de cada meditação, nem mesmo copiar os graus da dúvida apontados por Descartes até a chegada da formulação do cogito ergo sun, porque seria uma perda de tempo, o que importa é que compreendamos que a idéia de que unicamente “eu” existo como certo e indubitável advém daquela primeira necessidade de encontrar naqueles entes os que não eram passíveis de dúvida, e que esta dúvida mesma é a disposição que inicia um pensar como o de Descartes, que acaba tornando-se o caminho de investigação da filosofia moderna que culminaria em Hegel e seu espírito absoluto.

O que fizeram Kant e Hegel senão fixar em seus sistemas aquela busca de uma certeza da razão pura ou do espírito absoluto? Os sistemas eram em si mesmo, em suas essências, a busca do certo, do que não pode ser posto em dúvida. E a afirmação de que a busca pelas idéias de Platão ou mesmo a busca pela metafísica como ciência dos primeiros princípios e primeiras causas é a busca do certo e indubitável não é valida, exatamente porque nem Platão nem Aristóteles, nem outro filósofo antes de Descartes, ao menos não de forma tão fundamental, visualizaram a questão do ente por esta perspectiva.

22 Nos últimos parágrafos de sua obra “Os Conceitos Fundamentais de Metafísica: mundo finitude e solidão” e na preleção “Da Essencia da Verdade”, publicada no Brasil junto com a preleção “A Questão Fundamental da Filosofia” com o título “Ser e Verdade”, Heidegger nos entrega esta análise do Logos para uma compreensão do que é o mundo, a verdade e a relação disto com o ser em seu sentido. 23 Sobre isto olhar também a obra de Heidegger: “Sobre a Essência da Verdade”

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O que eles buscavam era a entidade, o ente enquanto ente, esta busca para Descartes e seus sucessores era insuficiente, porque era preciso encontrar algo mais.

Não é por nada que Kierkeggard escreveria um livro inteiro para narrar a história de um típico questionador filosófico24, que decide iniciar suas buscas pela análise da questão muito em voga que diz: a filosofia começa pela dúvida. Para entender porque a filosofia moderna prendia-se tanto neste Encontrar-se da e na dúvida, Kierkegaard lança-se em uma investigação camuflada na vida do ainda jovem Johannes Climacus25, sobre o que é a dúvida e o porquê da frase que diz, não só que a filosofia começa pela dúvida, mas também a filosofia moderna se inicia desta forma. Para Kierkegaard importa saber se somente a filosofia moderna se inicia pela dúvida ou se todo filosofar tem este início.

De acordo com Heidegger é a filosofia moderna que se inicia pela dúvida, visto que a filosofia em seus primórdios nascera sob a estrela do espanto. As conclusões do jovem Climacus não são felizes, e o final da obra é um tanto quanto pessimista26, vestígios do que já trazia sua época, como uma época de decadência do idealismo e de entrada na filosofia contemporânea.27

Sobre o pessimismo da época e a decadência do idealismo nos bastaria ler algumas páginas de Arthur Schopenhauer. Mas não é Schopenhauer que nos importa aqui, ele foi somente aquele elemento de transição, a passagem do idealismo para outra maneira de filosofar cheia de qualquer coisa, porém nunca de uma coisa só (entenderemos isto mais à frente).

Se aceitarmos que esta interpretação da história da filosofia cunhada por Heidegger é suficiente, então podemos passar à busca daquele Encontrar-se fundamental do filosofar contemporâneo. Ou existe um sentimento de situação iniciador, ou então a filosofia contemporânea caracteriza-se pelas várias maneiras de indagação, e tanto o espanto quanto a dúvida retornam para fazer companhia aos outros modos de Encontrar-se do homem que indaga sobre seu si-mesmo em resposta ao apelo silêncioso do ser, modos estes que, juntos, tornam-se os vários iniciadores do indagar filosófico contemporâneo. Se esta última opção for a conclusão de nossa investigação, então de certa forma terá sido em vão nosso trabalho, porque não poderemos fixar as bases para a superação e o abandono da filosofia, porque exatamente a negação do filosofar estará também em volta na encontrabilidade fundamental, será também, a negação, mais um Encontrar-se fundamental iniciador da filosofia, e no abandono dela estaríamos outra vez nos inserindo bem dentro dela. Por isso devemos aceitar aquela primeira opção e partir em busca daquele elemento afinador da existência humana que inicia e mantem a filosofia contemporânea, e que não somente assume o papel da arkhé da filosofia, mas, talvez, também traga em seu bojo a possibilidade de abertura de todos os outros modos de Encontrar-se. Assim sendo, seria necessário unicamente escapar daquele Encontrar-se fundamental (se isto for possível), para assim escapar de todas as outras que por ela são abertas como iniciadoras? Então isto significa que a encontrabilidade fundamental seria exatamente um princípio antes dos modos de Encontrar-se principiadores da filosofia? Se há um princípio antes dos vários princípios não pode haver outro antes daquele e assim ad infinitum? De fato. Mas ainda não é hora de responder a estas questões. Precisamos antes firmar o terreno para que estas questões possam primeiro ser colocadas da devida forma, e depois, talvez, respondidas.

Em busca da identidade filosófica do nosso tempo: Ó ponte entre o animal e o além de si, por que não podemos atravessá-la? E por que não

podemos retornar à margem de onde saímos? Ó amarga ponte que nos condena a sermos humanos apenas, ponte que somos nós, e onde estamos aprisionados. O que inspira o filosofar atual? Quão amargo és tu, ó amargo Nietzsche, o mais sábio – pra não dizer covarde – entre os filósofos, porque sempre soube escapar de suas próprias armadilhas. Não és tu mesmo a identidade mais “absoluta” desta filosofia, não és tu o páthos mesmo desta contemporaneidade, tu que defines o páthos da filosofia em teu ilustre desabafo como “O céu cinzento da abstração atravessado por coriscos; a luz, forte o bastante para se verem as filigranas; os grandes problemas se dispondo à apreensão; o mundo abarcado com a vista, como

24 Kierkegaard, Sören. É preciso Duvidar de Tudo. 25 Ainda jovem porque em outra obra nomeada “Migalhas Filosóficas” o mesmo personagem, agora como autor (pseudônimo) aparece com uma investigação consistente e diversa daquela anterior. 26 Ver no Capítulo 2 a nota de rodapé n°32. 27 Trataremos mais deste assunto nos parágrafos à frente.

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de um monte”28. Ó tu, caro filólogo, não vês que é na decepção que te ancoras? Tu, o grande niilista de um pessimismo ativo, que chegaste ao grande teatro e observastes uma cultura decadente e um povo miserável, uma arte medíocre e um mestre indigno? Amargo Nietzsche, és o mais clássico exemplo, tu e tua filosofia, da decepção que acossa-nos como fundamental pôr-se de nós diante de nós mesmos e abre exatamente o caminho para o indagar filosófico atual. Mas não nos adiantemos no caminho, porque apontar a chegada sem antes mostrar as curvas da estrada é perder-se. Não o faremos, por mais tentador que seja, dar resposta é dar indícios de fraqueza. Não é por meio da fraqueza que fugiremos da filosofia. É certo que dando respostas já nos pomos fora dela, mas não queremos isto, queremos nos inserir bem dentro, para então abandoná-la. A única maneira de fazê-lo é seguir no filosofar.

Como ficou dito anteriormente, não encontramos o caminho no qual o filosofar atual se

dirige em busca da filosofia mesma, o Encontrar-se fundamental permanece oculto na mistura de outros modos de Encontrar-se. Nosso tempo inicia seu filosofar diante de uma miscelânea, uma mistura que dispõe todo o rol da encontrabilidade diante de nós (provenientes da crise do idealismo que entregou a filosofia à uma inexistência de verdades, ou seja, à uma infinidade de perspectivas).

Dúvida e Desespero; Cega possessão por princípios não submetidos a exames; medo e angústia; esperança e confiança. São todos modos de Encontrar-se de nosso filosofar atual. Mas há uma encontrabilidade anterior? Ou a caracterização do filosofar de nossa época é exatamente começar por e a partir de variadas formas de estar com e no mundo? Este não-há-um-único-Encontrar-se não se confunde com o que é denominado falta de verdade absoluta? Niilismo? Falta de um só caminho e abertura de todas as possibilidades de encontro de caminhos outra vez? Veremos isto agora, pois este é nosso caminho para a compreensão da filosofia contemporânea, e para a resposta daquelas perguntas.

Falamos de decepção, e dissemos que o grande nome do início do novo filosofar fora o mais decepcionado dentre os filósofos. O que isto quer dizer? Será que já temos a visualização de um Encontrar-se fundamental nisto que chamamos decepção? A possibilidade de interpretar a perda de absolutos que guiava a filosofia de Nietzsche, ou seja, o niilismo como advindo de algo chamado decepção é um caminho seguro? Agora sim estamos atropelando as idéias. Encurtemos uma vez mais os passos e vamos aos poucos. Investiguemos este niilismo mesmo para então indagarmos acerca da possibilidade de existência de algo como decepção. Capítulo II:

– Niilismo e Tédio – §5 – Niilismo como o páthos filosófico da contemporaneidade e Nietzsche como o hospedeiro desta patologia

O pensamento de Nietzsche sacudiu o mundo filosófico, derrubou as barreiras entre a

filosofia e as ciências e revolucionou o pensar da sociedade atual. A verdade é que hoje muito do que respiramos vem de Nietzsche. Se ele criticava seu tempo por ser uma era adoecida que respirava Wagner29, de alguma forma, atualmente, em meio ao ar não mais wagneriano se encontra destilado muito, e um muito muito significativo, de um outro gás chamado Nietzsche.

Neste parágrafo cabe a explanação do niilismo enquanto perda de todo e qualquer absoluto, como o começo, talvez o ponto de mutação, ou inflexão, como diz Habermas30, da filosofia que rastejava já quase rendida com uma herança cansada do iluminismo, da Aufklärung, para um filosofar novo, com características outras que não mais a busca de uma verdade ou da elaboração do sistema absoluto capaz de mostrar aquilo que o mundo é ou deve ser, rumo, mais precisamente, à uma filosofia consciente de seus

28 Nietzsche. O Caso Wagner. 1. 29 Em “O caso Wagner”, Nietzsche critica sua época por estar presa ao pessimismo de Schopenhauer, aos valores dogmáticos e irracionais do cristianismo e à música decadente wagneriana, uma música ainda mais impregnada de cristianismo e de schopenhaurianismo. 30 Habermas: Discurso Filosófico da Modernidade, capítulo IV.

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limites e erros demasiado humanos, uma filosofia livre da moral, mais científica, e portanto, que proponha interpretações do mundo que partam deste mundo mesmo, e não de meras e vãs idealizações, ou construções metafórico-conceituais.

Muito do que aqui será dado já foi tratado de forma sucinta anteriormente, e será tratado outra vez mais à frente. Porém aqui tudo se restringe ao modo como Nietzsche observou sua época e criticou, a partir de seus pontos de vista, suas interpretações e perspectivas, a filosofia desde seus primórdios. Todos poderão notar a mudança no linguajar um tanto desesperançado, mas este é o caminho para compreender Nietzsche, adentrar seu âmbito sem chão de esperança, frio, amargo e até triste, de uma espécie de destino sem destino. Mas esqueçamos isto por enquanto e adentremos, com o linguajar e o vigor na defesa das idéias, na filosofia propriamente nietzschiana.

O que o santo faz na floresta?” – perguntou Zaratrusta.

O santo respondeu: “Componho canções e passo a cantá-las. Enquanto faço canções riu, choro e murmuro. Essa

é minha maneira de louvar a Deus.

Cantando, chorando, rindo e murmurando louvo ao Deus que é meus Deus. Mas, como presente, o que é que

nos traz?”

Ao ouvir estas palavras, Zaratrusta cumprimentou o santo e disse: “Que teria eu para vos dar? Mas deixa-me

partir depressa, por receio que nos venha a vos tirar alguma coisa!” E assim se separaram um do outro, o velho e

o homem feito, rindo como riem dois garotos.

Mas quando Zaratrusta ficou só, falou assim ao seu coração: “Será possível! Este santo ancião, em sua floresta,

ainda não ouviu dizer que Deus morreu?

Assim Nietzsche abre caminho ao seu personagem Zaratrusta, deste encontro ele parte para

sua “aventura” onde o presente que ele leva aos homens, escravos da tradição, é o caminho para a libertação de seu espírito. E a jornada de Zaratrusta reflete muito bem o trabalho ao qual Nietzsche, de forma direta e indireta, dedicou sua vida: o de mostrar que os absolutos se perderam. É este o significado da morte de Deus, não há mais esta verdade absoluta exatamente porque não há mais meios de permanecer na busca insana de uma necessária racionalidade cunhada pela pureza da metafísica. Acabou-se o sonho do idealismo, e foi o próprio esforço desta razão em tentar provar que suas invenções levavam à algum lugar que a fizeram desmoronar num absurdo impossível.

Junto com este ocaso da metafísica corria o nascer mesmo das ciências particulares, e estas ciências, a despeito do esforço de justificação ontológica que a filosofia gritava como absolutamente necessário, firmava novos conhecimentos e desenvolvia sua investigação em campos, particulares é claro, porém muito férteis para novas descobertas. Não havia mais lógica em permanecer buscando algo sem valor nem sentido, agora a ciência se desenvolvia e Nietzsche então, sentenciou o “fim” da metafísica.

A filosofia então precisava mudar dentro de si mesma e se tornar mais científica, se tornar mais livre. As investigações filosóficas deveriam ser investigações não de homens presos a dogmas e valores caducos cristalizados, mais sim de homens leves, de andarilhos cavalgando apenas em suas sombras, com a leveza que só uma ciência alegre, jovial pode dar, caminhando por dias inteiros a dialogar apenas com a espécie sombria de si que se arrasta ao chão, dias inteiros, para ao final do dia, ouví-la cheia de orgulho e gozo dizer “talvez hoje te tenha seguido por muito tempo. Era o dia mais longo, mas aqui estamos, chegamos”31, e vê-la desaparecer ao pôr do sol, eis a alegria de um saber leve, que faz o homem tornar-se o que é, a sabedoria de andarilhos, de espíritos livres. Estes, os espíritos livres, deveriam então fazer filosofia, e quem são estes andarilhos? São exatamente aqueles que conseguiram livrar-se do julgo da moral, dos valores morais entranhados na filosofia doente. Estes espíritos livres estão aptos, porque é exatamente o que os alegra fazer, à mostrar o mundo tal qual ele é, como um mundo à ser interpretado, a ser olhado de ângulos diversos, estes andarilhos, estes Zaratrustas, aproximarão a filosofia das ciências, porque eles serão homens de ciência, ou seja, homens que se preocupam em interpretar o mundo, em dizer aquilo que o mundo é, da forma que ele é, e não mais, como queria a tradição, dizer o que deve este

31 Nietzsche: diálogo final do livro “O Viajante e Sua Sombra”.

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mundo ser, inventando-lhe leis universais e incondicionadas, enraizadas e garantidas pela autoridade suprema e irrevogável da razão. a) Crítica à filosofia: cerceada de todos os lados por valores e convenções morais.

A história da metafísica, para Nietzsche, é esta história da grande inventividade humana. O homem, desde a Grécia, notou em si e necessidade de criar algo no qual pudesse guiar-se, como uma estrela do norte. Assim, e também por uma natural “tendência” da razão humana de determinar as coisas em unidades, criou os conceitos de Belo, Bom, Verdade, Justiça, enfim. A filosofia, precisava então encontrar de fato a “natureza” necessária destes conceitos, e precisava encontrar o elo destes ideais com o mundo real. Esta busca rendeu dois mil anos de metafísica, e neste tempo, a filosofia esqueceu-se da origem mesma destes problemas, ou seja, esqueceu-se que ela mesma os criou. Por isso não podia compreender a falta de compatibilidade destes conceitos com a vida, com o mundo. E o que fez esta filosofia então? Após construir seus imensos sistemas na tentativa de encontrar a total unidade de todas as coisas, percebia sempre o fatal absurdo de sua sistemática lógica e sem valor prático, e a relegava ao status daquilo que o mundo deveria ser. Como as coisas deveriam ser, mas não são, eis o conceito de ideal. Deste modo pensava resolver a metafísica o problema de sua grande ilusão. Os filósofos criaram um mundo conceitual gigantesco e se esqueceram de olhar para o mundo mesmo a sua frente, então, ao tomar consciência da disparidade infinita entre um e outro, simplesmente cruzavam os braços e diziam: o mundo está errado, ele devia ser assim, como mostramos.

Por isso Kierkegaard, como já citamos em nossa introdução, no final de seu livro “É Preciso Duvidar de Tudo”32, afirma serem os filósofos piores que os fariseus, por criarem seus sistemas irreais, que não encontram relação com a realidade, e não fazem mais nada além, apenas sentem-se satisfeitos porque, ao final das contas, suas teorias são ao menos possíveis, e não importa que sejam reais, basta isso, que sejam possíveis. De igual forma, em seu livro “Aurora”, Nietzsche vem dizer-nos que o problema da metafísica (que é o de exatamente ser metafísica) não pode ser resolvido dentro da própria metafísica, ele é um problema moral, é um problema de valoração moral, e só pode ser resolvido fora da metafísica e da moralidade, deve ser resolvido por uma ciência que soube escapar das garras da valoração.

A filosofia criou seus valores e esqueceu-se disso. Agora o que Nietzsche pretende é livrar-se de todos estes valores e construir uma filosofia que se encontra diante unicamente do homem como ele é, do humano liberto dos mitos que ele próprio criou e resolveu seguir. O pensamento de Nietzsche volta-se para o homem enquanto homem, e não para o conceito irreal de homem. Para isso uma nova psicologia é requerida, bem como uma nova ciência da história.

O homem acreditava conhecer no sonho um segundo mundo real; eis a origem de toda metafísica. Sem o sonho,

não teríamos achado motivo para uma divisão do mundo. Também a decomposição de corpo e alma se relaciona

à antiqüíssima concepção do sonho... “Os mortos continuam vivendo porque aparecem em sonhos aos vivos”:

assim se raciocinava outrora, durante muitos milênios33.

O homem do passado, aquele que existia antes da contaminação de si mesmo por sua racionalidade inventiva, por sua criatividade metafórica, é que deve ser investigado pela história; e a racionalidade deste homem, uma racionalidade amoralizada, porque ainda livre e com a tarefa unicamente de ajudar o homem a concretizar suas vontades mais imediatas, como sobreviver, comer e etc., é que deve ser analisado pela psicologia. O que Nietzsche nos aponta, com seus textos, é exatamente a necessidade do fim de uma ditadura dos ideais. O niilismo, que acaba se tornando a bandeira maior da contemporaneidade acaba por se tornar aquilo que Heidegger irá chamar34, anos mais tarde, de páthos filosófico, ou seja, para este conterrâneo de Nietzsche, da mesma forma que a filosofia para os gregos se inicia pelo Encontrar-se do espanto, que lhe abre o ente desconhecido para a necessidade de definir o que

32 O livro ficou inacabado, mas no final do livro encontra-se, no esboço ao que ainda seria escrito, as seguintes palavras: “Assim pois, os filósofos são piores que os fariseus, sobre os quais lemos que impõem pesados fardos, sem eles mesmos erguerem um dedo para levantá-los. Pois isto é o mesmo, pouco importa que não os levantem, desde que possam ser levantados. Mas os filósofos exigem o impossível...”. 33 Humano Demasiado Humano, Aforismo 5 34 Heidegger, “O que é isto – a Filosofia?”

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ele seja em sua entidade, e da mesma forma que a filosofia moderna se inicia pela dúvida, o Encontrar-se que lhe abre o ente não mais em sua necessidade de determinação, mas sim na necessidade de encontro daquele ente que é mesmo certo e indubitável, bem assim a contemporaneidade deve ter seu páthos, sua encontrabilidade, a arkhé, que inicia e permanece como mantenedor ao lado do investigar filosófico, e para Heidegger esta filosofia contemporânea se inicia exatamente pela perda dos absolutos e pela miscelânea, pela vitamina louca de diversos modos de Encontrar-se, de diversas perspectivas, das necessidades de escolhas cada vez novas para se interpretar o mundo que se mostra diante de nós. O niilismo é a porta de entrada desta filosofia nova, uma filosofia sem Deus, sem Verdade, sem Belo, ou Bom, ou Justo, mas uma filosofia da interpretação daquilo que o mundo, as coisas, o homem é, exatamente como ele é, uma filosofia mais científica, e de uma ciência mais alegre, onde há a compreensão de que da mesma forma que os conceitos gerais foram forjados, a própria racionalidade o foi também históricamente.

No desvio de algum rincão do universo inundado pelo fogo de inumeráveis sistemas solares, houve uma vez um

planeta no qual os animais inteligentes inventaram o conhecimento. Este foi o minuto mais soberbo e mais

mentiroso da _ história universal_ , mas foi apenas um minuto. Depois de alguns suspiros da natureza, o planeta

congelou-se e os animais inteligentes tiveram de morrer.

Esta é a fábula que se poderia inventar, sem com isso chegar a iluminar suficientemente o aspecto lamentável,

frágil e fugidio, o aspecto vão e arbitrário dessa exceção que constitui o intelecto humano no seio da natureza35.

Para entendermos como Nietzsche chega à noção desta necessidade de destruição de toda uma tradição para a libertação da filosofia de todas as amarras pertencentes à valoração moral, para só assim poder ela tornar-se de fato uma ciência feita por homens de ciência, devendo antes de tudo, comportar-se como as ciências se comportam e mostrar o mundo tal qual ele é sem enfeites e adornos metafísicos, é preciso que entendamos um pouco a crítica que ele dirige à tradição no que concerne à necessidade de uma nova concepção da história e da psicologia. b) Por um novo olhar à história, que permita trazer a possibilidade de interpretar novamente o mundo.

“Falta de sentido histórico é o defeito hereditário de todos os filósofos”, diz Nietzsche no

segundo aforismo de seu “Humano, Demasiado Humano”, ou seja, os filósofos esquecem exatamente de olhar a história a partir de seus primórdios, esquecem que precisam ver como era o mundo quando se originaram os valores morais que este mundo segue cegamente, valores onde está fundada toda investigação filosófica. Parafraseando Nietzsche, eles partem do homem atual como se este fosse uma verdade eterna, e pretendem, a partir deste homem, encontrar a verdade absoluta sobre a humanidade, eis o erro, eles não notam que fazendo isso, nem chegam à fronteira distante que marca o território dos primeiros homens, como também traçam a humanidade pelo perfil autoritário de um homem limitado por uma época e por um tempo curto, o qual não pode servir de medida nem para a universalização dos homens todos que vivem nesta mesma época36. Ora, os filósofos “não querem aprender que o homem veio a ser, e que mesmo a faculdade de cognição veio a ser”37, os filósofos querem, ao invés disso, que o mundo inteiro seja desvelado a partir desta cognição.

Quando morre Deus, morre com ele todo dogmatismo no qual se fundamentava a filosofia. Não há mais a necessidade de apontar o que deve ser o mundo, todos os valores morais são “obrigados” a se despedir, a única necessidade é aquela que aponta para novas interpretações do mundo tal qual ele é de fato, porque os âmbitos de interpretação estão novamente abertos, não há mais a gaiola do sistema que aprisionava o pensamento em seus moldes, agora este pensamento pode se libertar e buscar o mundo. Por isso a razão pura deixa de ser buscada, por isso ela agora é apenas uma faculdade qualquer, e ainda frágil, integrante do organismo humano, por isso Nietzsche aponta a “necessidade” de buscar a origem, a proveniência histórica de toda valoração, de buscar a origem mesma talvez da própria racionalidade, de

35 Nietzsche: Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral. 36 Nietzsche: Humano, Demasiado Humano, aforismo 2. 37 Ibid.

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buscar o homem não mais partindo daquele ser humano ideal que a metafísica criara, mas sim do homem onde uma racionalidade surge em extrema relação com os impulsos, com os desejos, com a necessidade de expansão de âmbitos de atuação.

A história se insere então como o estudo da origem dos dogmas metafísicos, nos quais a filosofia se perde e esquece de si. A “Dialética do Esclarecimento” dos dois filósofos da escola de Frankfurt, mesmo com outras intenções e querendo explicar outras problemáticas, nos pode dar uma boa compreensão do como a racionalidade em si não pode ser puramente racional, como queriam os filósofos metafísicos, para Adorno e Horkheimer, a razão é apenas a tentativa de abandonar o mito que acaba por “mitologizar” a si mesma, uma narrativa de violência que encerra em si os pressupostos ilógicos do mito, do irracional. Para Nietzsche, a razão é criadora das metáforas tomadas como valores morais e assumidas como verdades absolutas.

Na aurora dos valores morais está a razão como criadora única diante das necessidades do organismo homem. “Todas as coisas que duram muito tempo de tal modo se impregnam aos poucos de razão que a origem que tiram da desrazão se torna inverossímil”38. Para Nietzsche, estes valores são criações da inventividade humana, e não possuem nada de divino ou puro, são animais, porque são naturais, tem uma “causa” orgânica, como o próprio Nietzsche afirma em um trecho do aforismo 26 de sua Aurora intitulado “Os Animais e a Razão”:

As origens da justiça e da inteligência, da ponderação, da valentia – numa palavra, de tudo que designamos

virtudes socráticas – são animais: essas virtudes são uma conseqüência dos instintos que ensinam a procurar o

alimento e a escapar do inimigo.

Entre os animais mais baixos Nietzsche consegue observar já o embrião de todos estes valores

morais enraizados como a priori na moralidade humana. O trecho do início de “A Gaia Ciência” só vem confirmar esta idéia:

O ódio, o prazer de prejudicar, a sede de tomar e de dominar, e, de uma maneira geral, tudo aquilo a que se dá o

nome de mal, não passam no fundo de um dos elementos da espantosa economia da conservação da espécie;

economia cara, decerto, pródiga e, no fundo, altamente insensata, mas que, como está provado, manteve nossa

raça até agora.

Com esta compreensão a filosofia pode então ansiar tornar-se científica, porque aí está a

busca de interpretar o mundo e dizer o que ele é “de fato”, e não o antigo erro da razão de buscar como o mundo deve ser e depois tentar encontrar no mundo propriamente dito a imagem refletida daquela conceituação racional. Por isso é preciso olhar para a história do homem com outros olhos, olhos não mais já cheios de preceitos morais, e dizer “de fato” como este homem era no princípio, não simplesmente elevar-se a um topos qualquer e dizer que o homem no estado de natureza era... c) Que a psicologia precisa estudar o homem, e não uma razão pura inexistente, supostamente faculdade de um homem ideal.

A psicologia precisa então se livrar da idéia metafísica e dogmática que afirma a necessidade

de uma investigação da razão como uma faculdade pura, porque exatamente esta razão pura não existe, a idéia pura não existe, o sujeito transcendental também não existe. Enquanto criações do homem para fundamentar e satisfazer sua razão produtora de metáforas, estas idéias devem ser postas de lado, e a psicologia deve então investigar a racionalidade no que ela “de fato” é.

A razão então deve ser submetida à análise a partir de seu caráter orgânico, ou seja, a partir da compreensão de que ela não está separada do corpo, como acreditou a filosofia desde os gregos à Schopenhauer39, como acreditou a metafísica ser possível. Há impulsos orgânicos, necessidades corporais que “originam” e “determinam” o pensar humano. Para Nietzsche, deve a racionalidade ser analisada

38 Nietzsche. Aurora, Aforismo 1 39 Na verdade seria mais correto dizer até Hegel, pois Schopenhauer já mostra notar uma influência do corpo sobre a razão e uma pertença desta àquele.

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exatamente como ela se apresenta em estado onírico, porque enquanto dorme, ela se nos apresenta tal qual era no homem de há muito, quando da formação primeira desta faculdade, quando não estava contaminada pelas convenções morais. Ou seja, no sonho, a razão não está presa à valores morais, mas sim se encontra livre destas amarras, então o homem pode ser exatamente o que ele é.

A perfeita clareza de todas as representações oníricas, que tem como pressuposto a crença incondicionada em

sua realidade, lembra-nos uma vez mais os estados da humanidade primitiva, em que a alucinação era

extraordinariamente freqüente e às vezes atingia comunidades e povos inteiros. Portanto: no sono e no sonho,

repetimos a tarefa da humanidade primitiva40.

A humanidade primitiva, para Nietzsche, deveria viver, exatamente por não ter o peso das

convenções morais em suas costas, numa extrema liberdade, onde o que contava mesmo eram os desejos, as inclinações, as vontades de ampliar seus âmbitos de atuação. Só com a invenção dos conceitos morais, foi o homem tornando-se o que é hoje, alguém que se esforça ao máximo para que sua racionalidade domine sua natureza, suas vontades, inclinações e desejos. O final do trecho citado acima encerra com a idéia de que é no sonho que “revivemos” a humanidade primitiva ainda em nós, é esta racionalidade, esta psique do homem primitivo escondida sob o edifício dos valores que deve a psicologia analisar41.

Foram as necessidades orgânicas e evolutivas que permitiram o desenvolvimento da razão, e foram estas mesmas necessidades que deram origem aos conceitos metafísicos, portanto, a razão é parte do corpo, e não há nada que indique sua superioridade, nem mesmo sua tarefa, como se acreditou desde Platão e Aristóteles, de dirigir, comandar, governar os desejos, e impulsos, e vontades. Na verdade esta não é a função da razão, mas sim a função que a filosofia lhe outorgou enquanto a moralizava. A psicologia deve cuidar, não daquela racionalidade pura, cheia de leis universais e que funciona sob uma estrutura sistemática lógica, mas sim desta racionalidade amoralizada, que é fruto das vontades e instintos do homem, que é muitas vezes ilógica e não tende nem ao bem, nem ao mal, mas somente aquilo que o corpo necessita, independente do freio, do impedimento cultural, das amarras morais que o indivíduo escolhe aceitar como leis.

Ainda sob a decisão de viver de acordo com estas ditas leis morais, o corpo permanece desejando o moralmente incorreto, e este desejo passa pela razão, que o tolhe, o proíbe, e o põe de lado, mas ele sempre está lá. É esta racionalidade que a psicologia livre da metafísica deve buscar interpretar. Porque o homem é sempre coagido por seus impulsos, a cada hora um impulso clama por água, quer saciar sua sede, quer realizar-se, e mesmo, quando tentamos nos livrar de um “vício”, é outro impulso que em nós nos faz desejar a morte daquele outro para fastio de sua fome. Uma psicologia que analise esta racionalidade, para Nietzsche, estaria analisando enfim o homem, o humano, demasiado humano.

Se tomarmos um pequeno desvio, podemos compreender melhor o que Niezsche vê como

finalidade para a psicologia que investiga a racionalidade do humano. Neste desvio nos deparamos com Freud e a origem do que ele nota como um sentir-se mal vivendo em sociedade.

Em seu texto “O Mal-Estar na Civilização”, de 1930 [1929], no tópico VII, Freud nos pergunta: “Quais os meios que a civilização utiliza para inibir a agressividade que se lhe opõe, torná-la inócua ou, talvez, livrar-se dela?”

E explicita este mecanismo de defesa da civilização da seguinte forma: a agressividade é introjetada, internalizada, enviada de volta para o lugar de onde veio, o Ego, então esta agressividade é assumida pelo superego que, na forma da consciência movimenta contra o Ego mesmo toda agressividade que ele estava disposto a enviar a outros (sentimento de culpa). Este é o meio mais eficaz que a civilização tem, de manter-se segura da agressividade humana: a instituição deste movimento que leva os indivíduos ao sentimento de culpa.

40 Nietzsche: Humano, Demasiado Humano, Aforismo 12. 41 E é inegável que Freud, quando elaborava as bases de sua psicanálise, segiu por este mesmo caminho apontado por Nietzsche no tocante ao sonho e o fato de sermos nós mesmos nele.

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As pessoas sentem-se culpadas por fazerem aquilo que é mal. Na verdade temem a perda do amor daqueles diantes dos quais se sentem seguras, exatamente porque, na perda deste amor está a certeza da punição. (Má-consciência. As pessoas temem ser descubertas – ansiedade social).

O sentimento de culpa surge quando este medo, esta ansiedade social sobe ao gral onde a consciência no superego é constituida. Aqui a diferença entre agir e desejar agir desaparece. O superego atormenta o Ego da mesma forma que naquele medo de ser descoberto, e então temos o sentimento de culpa.

A renúncia aos instintos, quando o sentimento de culpa advém só do medo de perder o amor da autoridade externa, é suficiente. Já não o é quando é o superego que assume o papel de autoridade, pois mesmo renunciando aos instintos, eles permanecem, e não se pode fingir virtude ao superego, ele pede punição, castigo, então o sentimento de culpa permanece.

O sentimento de culpa é resultado da “eterna” luta entre Eros e o instinto de morte. (há uma longa explicação freudiana sobre o assassinato ou não do primeiro pai e sobre a criação de mecanismos – remorso – para impedir a repetição do ato. Amor e ódio para com o pai, após o assassinato, o ódio se esvai e permanece o amor na forma do remorso).

Para Freud, enquanto os homnes viverem juntos persistirá com sua base edpiana (família) o sentimento de culpa. E este sentimento de culpa, originado da negação da agressividade natural no homem, é o mal-estar na civilização.

Podemos encontrar nesta análise freudiana do homem todos os elementos que Nietzsche notava serem necessários para a edificação de uma psicologia liberta dos valores e ideais metafísicos entranhados no corpus filosófico (aqui termina nosso desvio).

Dentre os filósofos, o feito que Husserl tentou alcançar neste âmbito42, nitidamente se perdeu na ideia de uma intuição pura, que para Nietzsche, não é possível existir. A idéia de uma redução fenomenológica, ou seja, de abstrair-se, abstrair o pensamento da concepção natural de mundo, já pressupõe um afastar-se deste mundo para atuar apenas com as idéias integrantes daquela intuição pura, onde o homem então, e a partir da qual o homem então, doaria a essência, o sentido das coisas do mundo. Nitidamente percebe-se o tipo de psicologia que Husserl tentou alcançar, e percebe-se que ela está bem afastada da idéia que Nietzsche formula de psicologia.

Outro exemplo de psicologia tentada por filósofos, esta antes de Nietzsche, para não citar aquela pretendida por Kant nos paralogismos de sua razão pura43, é aquela que Descartes deixou, em seu confuso, porém ousado “As Paixões da Alma”. Descartes talvez seja o que mais se aproxima daquilo que Nietzsche iria desejar mais à frente para uma psicologia enquanto ciência. Mesmo partindo de conceitos abstratos, Descartes tenta encontrar para os sentimentos humanos uma causa, uma origem orgânica. O esforço de Descartes foi interessante, porém o francês não havia alcançado o entendimento histórico que Nietzsche tomaria como essencial para o fazer ciência em qualquer âmbito do conhecimento, o de que estes próprios sentimentos que ele pretendia investigar, a maioria deles talvez, eram apenas invenções morais da racionalidade humana, as idéias se mesclavam com causas orgânicas, e está claro que Descartes ainda estava preso à idéia, de um dos conceitos mais necessários para a lógica, de causa e efeito, sem falar no fato de, para Descartes, a alma ser algo separado do corpo44.

Assim Nietzsche afasta toda pretensão metafísica de firmar uma razão pura, um eu transcendental ou qualquer ilusão metafórica deste tipo. Todas as ciências devem se voltar ao mundo efetivo, e interpretá-lo a partir dele mesmo, e com a psicologia não podia ser diferente45.

d) O Tempo Presente – Interpretações de uma época.

Após a exposição de algumas das críticas feitas à tradição por Nietzsche, a colocação de sua

posição frente à necessidade de um novo entendimento da história e da psicologia, e antes de entrar na

42 Edmund Husserl, “Idéias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica”. 43 Immanuel Kant, no final de sua obra: Crítica da Razão Pura, quando esboça os pressupostos para uma psicologia da racionalidade pura. 44 Mas à frente investigaremos melhor a relação de alma e corpo. 45 Aqueles que possuem o mínimo conhecimento da história da psicologia certamente farão a conexão destas ideias não somente com a Psicanálise, mas com o próprio Behaviorismo que originou a atual Análise do Comportamento em psicologia.

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discussão que me levou a escrever estas linhas acerca do caráter patológico do filosofar atual, gostaria de fazer uma breve explanação acerca de um olhar semelhante ao olhar de Nietzsche, um olhar que indubitavelmente olha pras mesmas coisas, porém de ângulos diferentes e que ainda trataremos mais em outros pontos desta obra. Talvez isto possa clarear a idéia de que a época de Nietzsche era de fato uma época onde só o niilismo poderia manter viva a chama da filosofia.

Esta outra interpretação é a que Sören Kierkegaard faz de sua época, no caso, a contemporaneidade, poucos anos antes de Nietzsche. Claro nos está que Nietzsche e nosso bom danês, a despeito de todas as semelhanças de suas filosofias, estão separados pelo abismo infinito da crença num Deus, no caso o Deus cristão. O que Nietzsche interpreta como a necessidade de abandonar todos os dogmas e valores há muito impregnados, para então tornarmo-nos espíritos-livres, Kierkegaard interpreta como uma necessidade de encontrar de volta o caminho à Deus, há muito esquecido, desviado. Mas aqui não é o caso para esta explanação e para uma crítica do caráter absolutamente estético da filosofia de Nietzsche, quero somente apontar uma antecipação da observação deste páthos, digo, deste Encontrar-se que, por estar no seio da época em que estes filósofos viveram, por ser de fato esta própria época em todas as suas características a exibição desta patologia, faz com que todo pensar, toda ciência e filosofia se inicie a partir de sua característica fundamental, a saber: a falta de absolutos.

Em seu livro escrito para tratar exatamente do tema46, Kierkegaard diz: “falta paixão à época atual”. A falta de paixão revela exatamente a falta do olhar que assume o significado das coisas, em outras palavras, o mundo inteiro se enche de uma pseudo-reflexão, gira cada vez mais veloz, por caminhos cada vez mais complexos, porém tudo é frio como o gelo, as relações dos homens com as coisas, com os outros homens, com Deus, com o mundo em si, consigo mesmo, é uma relação fria, sem paixão, nivelada num entendimento vazio e rasteiro. Este “nivelamento” é exatamente o que, para Kierkegaard, define sua época. Dreyfus47 diz ser este “nivelamento”48 a definição kierkegaardiana do niilismo que aflige sua época. Na verdade Kierkegaard não chega a falar de niilismo, mas percebe que algo grande abala seu “tempo presente”, e este algo grande é uma perda da paixão, um esfriamento do olhar, do crer, tudo está nivelado, este nivelamento exatamente é o que “deixa tudo de pé, mas ardilosamente esvazia-o de significação”49, isto é exatamente o que, poucos anos à frente, Nietzsche iria chamar de morte de Deus, o niilismo propriamente dito.

Em sua busca, por ele mesmo afirmada, do encontrar exatamente o significado de ser cristão, o filósofo danês nota que Deus vai sendo esquecido. Posto de lado nesta interpretação nivelada que vê o mundo inteiro, abrange com o olhar todo este mundo, mais não treme diante das coisas, porque tudo esta sob um olhar frio e sem paixão. Assim, temos, nesta antecipação ainda frágil, a mesma observação que Nietzsche fará, de uma época em que Deus morre, e a ciência passa então a investigar todas as coisas a partir do mundo mesmo. Sim, porque este olhar sem paixão é o que inicia a filosofia. Ironicamente seu páthos é um ter diante de si as coisas sem paixão, um falar sobre... desapaixonado, frio. A ciência contemporânea, e a filosofia por sua vez, não se sentem mais eufóricas diante de verdades, porque exatamente estas verdades, quaisquer que sejam elas, para Kierkegaard estão aí esvaziadas de tudo, são salões vazios de tudo o que antes significavam, e para Nietzsche, pior ainda, estas verdades não existem mais, porque nunca existiram. A única coisa que existe é o rebanho, metáfora curiosamente utilizada por ambos os filósofos, para designar o mesmo fenômeno, a marcha sem destino, guiada por um pastor qualquer, para um lugar qualquer sem absoluto nenhum.

Estas são duas interpretações de uma época que claramente apresenta traços característicos de uma perda, consciente ou não, de todas as bases metafísicas, de todas as verdades absolutas, e de todas as valorações morais. Kierkegaard não aprofunda sua análise tanto quanto Nietzsche, mas seu texto nos faz ver claramente que, o que Nietzsche afirmaria poucos anos depois, é algo, um sentimento que domina toda Europa, e que será conhecido como o niilismo europeu, um niilismo que Nietzsche irá investigar, e de onde Nietzsche irá separar o que podemos chamar de “bom” niilismo, um niilismo que não prende os

46 O livro intitulasse no inglês “The Present Age”. 47 Hubert L. Dreyfus no final de seu livro Being-in-the-World: “A Commentary on Heidegger's Being and Time, Division I”, sobre a obra Ser e Tempo de Martin Heidegger apresenta um apêndice intitulado: “Kierkegaard, Division II, and Later Heidegger”. 48 No inglês se diz “Leveling”. 49 No texto original se lê: “it leaves everything standing but cunningly empties it of significance”

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homens num pessimismo doentio, numa conformidade com todas as coisas, mas que exatamente mostra ao homem que todas as possibilidades de interpretação estão novamente abertas.

Mas não é o momento de aprofundarmo-nos na análise da época feita por Kierkegaard, nem na comparação entre as duas filosofias, do danês e do alemão. Mas à frente se apresentará o campo para esta batalha, então precisaremos das bases necessárias para tal momento.

Agora temos as características do pensamento de Nietzsche diante de sua época, de sua ciência, da história e da psicologia, que renovadas podem finalmente abandonar a metafísica e integrar uma ciência humana, das coisas do mundo, e interpretá-las. Podemos então iniciar nossa análise das implicações da afirmação que fizemos. Qual seja: a de ser este mesmo niilismo o páthos filosófico da contemporaneidade, e de ser Nietzsche, o hospedeiro desta patologia. O que estas afirmações querem dizer? O que significam? Podemos esboçar isto agora. e) Significado da morte de Deus.

A morte de Deus é o efeito do páthos da filosofia que sucede, com Nietzsche, exatamente a decadência da filosofia idealista. Entendemos esta atitude, o niilismo diante do mundo solúvel, na filosofia de Nietzsche ao lermos o aforismo 125 de seu “A Gaia Ciência”, onde ele escreve:

Para onde foi Deus? Exclamou. É o que vou lhes dizer. Matamo-lo... vocês e eu! Somos nós, nós todos, que

somos seus assassinos... Ainda não sentimos nada da decomposição divina? Os deuses também se decompõem!

Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matamos!...

O homem que exclama isto percebe claramente o quão à frente está de seu tempo. Mas é aí

mesmo que se encontra a grandeza de sua revelação, porque Nietzsche já o pressentira, e anunciava em cada parte de sua obra, acabou-se a metafísica, chegou a hora de cantarmos a vinda da alegre ciência, é hora de cantarmos o tempo dos espíritos-livres, estes que chegam cedo, e são muito raros, mas temos de cantá-los porque está firmada a possibilidade de em cada época, voltarem a ressurgir.

É esta a morte de Deus, exatamente o niilismo, onde Nietzsche escreve aquilo que a cegueira moral não deixava ver, a saber, que os valores morais há muito haviam evaporado na ilusão, que eram somente invenção frágil da frágil necessidade humana de ampliar os âmbitos de sua atuação. O mundo é algo diverso da brincadeira moral que nele se faz. É preciso começar agora, finalmente agora, pela primeira vez como homens, como organismos que somos, sem Deus, sem valores morais absolutos. Tudo começa, a ciência agora pode ser ciência, Zaratrusta pode cantar, o insensato que gritava a procura de Deus no aforismo 125 de “A Gaia Ciência”, que dizia ter vindo cedo demais para anunciar um acontecimento distante pode continuar suas visitas às igrejas, e pode continuar a dizer que nada mais são elas que “túmulos e monumentos fúnebres de Deus”. f) Nietzsche como Hospedeiro.

Ó Voltaire! Ó humanidade! Ó imbecilidade! A “verdade”, a busca da verdade não é coisa fácil; e se no caso o

homem se porta humanamente demais – “Il ne cherche le vrai que pour faire le bien” [só busca o vero para fazer

o bem] – , aposto que ele nada encontra!

E ele nada encontra porque a verdade e o bem não estão relacionados como se acreditava, porque nem verdade nem bem encontram na realidade algo plausível com o que se identifiquem, todas as relações ideais, todas as moralizações, com Nietzsche, deixam de ter valor. A ironia de Nietzsche em seus aforismos é exatamente para expressar esta tola ilusão nos conceitos metafísicos, que não mais importam, porque começam a se despedir. Com Nietzsche a filosofia passa a encontrar novas formas de se dar. Ela não deve querer mais criar mundos ideais, ela deve querer somente interpretar este mundo efetivo.

É o niilismo o páthos filosófico que permite à filosofia se iniciar por diversos modos de Encontrar-se, por diversos caminhos interpretativos. É preciso deixar partir todos os valores para só então ver as possibilidades de interpretação abertas novamente. Destas possibilidades surgem os olhares ao

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mundo, as perspectivas dirão aquilo que o mundo é, na medida em que ele é olhado pela ciência que não mais se interessa em criar sistemas ideais para explicar o mundo. Nietzsche pôs os pés da filosofia junto ao chão novamente. Desde Sócrates e Platão a filosofia tornou-se pura e ilusória metafísica. Os conceitos eram vislumbrados no alto da razão, e era preciso encontrar seus correspondentes no mundo. Ora, isto não era possível, por isso todas as tentativas de construção de sistemas filosóficos para explicação do mundo estavam fadadas ao fracasso, por isso era preciso que Nietzsche dissesse aquilo que há muito se precisava ouvir. Frases como Deus está morto caracterizam o niilismo, o nada de absoluto que Nietzsche apresenta à sua época.

“A vontade de verdade, que ainda nos fará correr não poucos riscos, a célebre veracidade que até agora todos os filósofos reverenciaram.”50 Assim inicia Nietzsche sua obra “Além do Bem e do Mal”, para mostrar que era uma vontade vã, porque não há verdade, era diante de um deus de barro que os filósofos se ajoelhavam. Agora a filosofia começa de outra forma, não mais pela ilusória “vontade de verdade”, mas pela real e efetiva patologia que apresenta a necessidade de interpretar o mundo. O niilismo adentra a filosofia nietzschiana e aí se sente em casa. Nietzsche é o hospedeiro desta patologia exatamente por gritar o fim da metafísica, por espalhar que na verdade não existe verdade alguma, apenas um mundo a ser interpretado, um mundo que “visto de dentro, o mundo definido e designado conforme seu „caráter inteligível‟ – seria justamente „vontade de poder‟, e nada mais”51. Vontade de poder é exatamente o que Nietzsche entende, como uma via interpretativa do homem em seu desenvolvimento, por necessidade de ampliar seus domínios de atuação, seus espaços de atuação. Para Nietzsche, o instinto de sobrevivência, o instinto de reprodução, e todos os outros estariam entregues a esta vontade de poder. E o que permite este pensamento nietzschiano de uma filosofia do futuro, feita por espíritos-livres, é exatamente o páthos filosófico que inicia o pensar de sua época, ou seja, é a partir unicamente do niilismo, da perda dos absolutos, da inexistência de uma verdade absoluta, que o hospedeiro da ciência alegre, do olhar em perspectivas, o arauto do nada de verdade absoluta, o anunciador do homem animal, o homem que é ponte entre o animal e o além-homem, possuidor de uma racionalidade que é orgânica, o profeta do espírito-livre capaz de transvalorar todos os valores, é só a partir do niilismo que Nietzsche pode sair, como um andarilho livre, um homem de ciência, de uma ciência alegre, cantando:

Agora celebramos, seguros da vitória comum,

A festa das festas:

O amigo Zaratrusta chegou, o hóspede dos hóspedes!

Agora o mundo ri, rasgou-se a horrível cortina,

É hora do casamento entre luz e as trevas...52

Heidegger pode ter contaminado de heideggerianismo sua interpretação de Nietzsche, que o

vê como o último metafísico, mas acertou em cheio, mesmo mirando para outros alvos, avessos até a filosofia de Nietzsche, quando disse que somente ele experimentou de fato o niilismo53, que somente ele, e ninguém antes, perguntou e respondeu o que é de fato este nada de valores, nada de ideais, esta morte de Deus.

De fato, A morte de Deus é o grito de guerra do pensar filosófico atual, este niilismo é a atitude e o Encontrar-se com o qual se inicia a reflexão filosófica e científica. Nietzsche foi o arauto desta patologia niilista que impregnava sua época, e o hospedeiro de um novo começo para a filosofia. Por isso, não é absurdo dizer que, o aforismo no final da obra “Aurora”, sobre o pássaro e o poeta, que trata da possibilidade da arte de renascer para seu lugar de direito, de onde fora destituída por uma valoração moral que já se despedi para dar lugar a alegre ciência, ao conhecimento jovial, enfim, não é absurdo dizer que de alguma forma este aforismo serve também para a filosofia mesma, pois a ela, bem como à arte, cabe uma outra aurora, neste caso, uma aurora que se inicie com o abandono de toda filosofia antiga, condenada por seus próprios ideais, e com a aceitação de que é a partir deste mundo que não se conhece,

50 Nietzsche: Além do Bem e do Mal, Aforismo 1. 51 Nietzsche: Além do Bem e do Mal, Aforismo 16 52 Nietzsche: Além do bem e do Mal. Do Alto dos Montes – Canção Epílogo 53 Heidegger, em seu livro “Nietzsche: Metafísica de Niilismo”, onde está escrito no começo do ensaio intitulado “A Essência do Niilismo”: “...nem toda e qualquer metafísica experimentou contudo o niilismo, mas somente a metafísica nietzschiana. Apenas ela pergunta e diz pela primeira vez o que é niilismo”.

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passível de ser e que deve ser interpretado, que ela começa. É a partir do niilismo, o niilismo como páthos filosófico da contemporanêidade, que se inicia nossa nova filosofia, nossa “filosofia do futuro”, e Nietzsche foi, e ainda é, o hospedeiro desta nova origem do pensamento filosófico, que não é mais espanto, nem dúvida, mas somente niilismo, ou seja, a possibilidade de incontáveis interpretações do mundo. Como disse, não é absurdo dizer também aos novos filósofos:

...não te assustes, é tua obra! Ela não tem o espírito do tempo e ainda menos o daqueles que vão contra o tempo:

por conseguinte é necessário que seja queimada. Mas é bom sinal: há muitas espécies de auroras.54

§6 – Tédio como a Afinação fundamental. Outra volta à Heidegger

O que é o tédio? Como ele se apresenta? Como se chega até ele? Para que ele serve? Por que indagar sobre o tédio aqui? Qual a ligação dele com o que antes tratávamos com o nome de niilismo?

Parece-nos que uma volta àquela questão da decepção precisa ser embargada de forma arbitrária neste momento. Porque não podemos calar diante do que disse Heidegger em seus “Conceitos Fundamentais da Metafísica” acerca do tédio e de como e porque este tédio assume o papel de Afinação fundamental da filosofia, ou seja, de iniciador do filosofar contemporâneo, e talvez até (se forçamos a interpretação) daquilo que antes analisávamos enquanto niilismo.

A questão da decepção não deve ser esquecida, nem mesmo posta de lado. Porém antes de a analisarmos, devemos entender este tédio, sua relação com o niilismo e com a filosofia, e o que mais na tentativa de compreensão desta Afinação surgir. Então, alcançado o desejado sobre este tédio, passaremos a questão surgida acerca da decepção. Consequentemente será inevitável que isto nos lance ao problema da existência de um elemento afinador da existência humana abrindo outro, e teremos que resolver esta questão também, porque obviamente, pelo caminho traçado, teremos uma atitude niilista aberta por um tédio que por sua vez será aberto por uma decepção. Nada então impedirá a pergunta do que por sua vez abre esta decepção. Mas por ora voltemos nosso olhar ao tédio mesmo e à busca de sua compreensão. a) O que é o tédio e por que tédio como Afinação fundamental?

A abordagem resumida que aqui será feita é proposital. Apontaremos as características

fundamentais do tédio e delas partiremos ao que de fato importa para esta investigação. O termo tédio, no alemão Langeweile, significa literalmente “um tempo longo”, ou mais

precisamente “uma relação com o tempo que o torna maior, ou o faz correr mais lentamente”. Exatamente este alongar do tempo no tédio é que o define. Heidegger já não se refere ao tédio como um modo de Encontrar-se fundamental, aqui o passo vai mais além e ele o chama de Afinação fundamental.

Os tropeços deste nosso texto precisam encerrar-se aqui, porque sequer apontamos o que é um modo de Encontrar-se e surge então algo outro como Afinação. Afinação, do alemão Stimmung, diz bem mais do que o Encontrar-se, do alemão Befindlichkeit, dizia antes, porque aqui, além de um estar afinado de certa forma aparece também uma carga de animação astral de um ambiente, no sentido de que a Afinação não se resume a um “estado de alma”, mas ao próprio estado “afetivo” do acontecimento, que engloba tanto o como nos encontramos, como o Ser-aí (Dasein55) se encontra, assim ou assim, desta ou de outra maneira, transpassado por algo como um sentimento de situação, como a carga do ambiente, do lugar com o qual se trava uma relação de estar-aí, como também do momento histórico do Ser-aí que se insere nesta situação.

Deste modo, a Befindlichkeit e a Stimmung56 são as formas com que o Ser-aí em sua abertura para o mundo (ser-no-mundo) encontra-se com este mesmo mundo e com o que nele vem ao encontro.

54Nietzsche: Aurora, aforismo 568 55 Dasein, traduzido por Ser-aí, é o que caracteriza em Heidegger o modo de existir em constante relação de se com o sentido do ser pertencente ao ser-homem do ser humano. Mais sobre isto ver: Ser e Tempo, de Heidegger. 56 Há uma diferenciação feita em psicologia entre afetos (sentimentos, emoções) e o chamado humor. O humor seria aquela “energia” física e mental, o estado de animo no qual o sujeito encontra-se. Os afetos são sempre a expressão de u conteúdo emocional, são situacionais. Devemos entender que o Encontrar-se da Befindlichkeit e a Afinação da Stimmung envolvem tanto o humor quanto os afetos compreendidos pela ciência da psicológica, pois dizem respeito exatamente ao modo de ser do relacionar-se do Ser-aí consigo mesmo, com outros entes com o caráter de Ser-aí (outros homens), e com o mundo.

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Sempre transpassado por alguma Afinação, o Ser-aí encara o mundo, trava a luta com seu projetar-se dentro do mundo, de si rumo ao seu ser si-mesmo, pois que é o Ser-aí, nada mais que um ente em-vista-de-si57, que sempre marcha para o seu si-mesmo. É por isso que, em uma relação Ser-aí /mundo, onde o Ser-aí se lança, triste, ou alegre, ou entediado, ao mundo, o que encontra é a resposta de si mesmo, um eco de seu estar afinado desta ou daquela forma, no mundo que lhe vem ao encontro. Na tristeza tudo ao redor parece cinza, sem sabor, na alegria todo barulho é música e todas as coisas pintam-se de alegria, porém no tédio, as coisas ganham uma tonalidade toda particular. O Ser-aí Afinado no tédio, nota no mundo a total falta do que fazer, então retorna para si, e o pôr-se em embate consigo mesmo é o primeiro passo para o filosofar.

Assim, o tédio enquanto um alongar-se do tempo que atinge em cheio, ainda que provindo dela, a abertura de mundo do Ser-aí, não advém unicamente do interior de sua existência, como também do mundo circundante que o recebe.

Se quiséssemos entender os caminhos que Heidegger segue necessitaríamos de um estudo mais aprofundado dos parágrafos de “Os conceitos fundamentais da Metafísica”, por agora, importa saber unicamente que são três as formas do tédio: o ser-entediado por alguma coisa; o entediar-se junto a algo e o que Heidegger chama de tédio profundo. Para chegar à compreensão do tédio profundo como abertura do Ser-aí para si mesmo em sua mais clara e segura existência, é preciso percorrer o dizer acerca das duas primeiras formas do tédio e entendermos o que elas nos trazem no tocante ao passatempo, à retenção e à serenidade vazia que neles se apresentam. Para nós basta ter em mente que o tédio profundo, como a terceira e fundamental forma de tédio, aflige o Ser-aí e o lança numa retenção absoluta dentro de si e numa serenidade vazia que esvazia o mundo circundante do Ser-aí e o lança para o vazio esvaziado do mundo e para o ápice daquilo que no esvaziamento retém no que ele chama de instante. Em outras palavras, o tédio profundo como um alongar do tempo lança, em última instância, pela impossibilidade de qualquer passatempo, o Ser-aí para dentro de si mesmo, para uma assunção de si que se abre exatamente para encontrar o mundo no acontecimento do que ele chama de formação de mundo.

Isto é o que importa, a questão do ser-lançado-para-dentro-de-si, para sua existência. É aceita a crítica de uma necessidade de maior explicação do papel daquela retenção e daquela serenidade vazia. Mas para este trabalho cremos poder passar sem este aprofundamento, porque não é a compreensão absoluta do tédio que está em jogo, mas exatamente o como podemos extrair este tédio daquilo que antes identificamos como a identidade patológica de uma época inteira: o niilismo.

b) Passagem do Tédio ao Niilismo e do Niilismo ao Tédio. Este como Tédio proveniente e formador do Niilismo. A simultaneidade.

O que queremos encontrar é o iniciador da filosofia na conteporaneidade. Para isto, seguimos um caminho que nos guiou pelo espanto, pela dúvida, pelo niilismo até o tédio. Exatamente por isso, não interessa-nos a compreensão absoluta deste tédio enquanto Afinação fundamental, apenas a maneira como ele pode se apresentar, para Heidegger, como o iniciador do pensamento filosófico da contemporaneidade. Sabemos que ele o faz ao lançar o Ser-aí para dentro de si mesmo, onde só, consigo mesmo, ele embate-se e insere-se no despertar do filosofar propriamente dito, e isto, neste trabalho, parece-nos suficiente. Passemos então para a relação dete tédio com o niilismo.

O tédio e este estar entediado enquanto arkhé imperante do filosofar atual de alguma forma provêm da atitude niilista? Como o niilismo pode abrir as portas para o tédio profundo?

Neste sentido não se pode questionar que tanto a alegria (um afeto para a psicologia) quanto o estado de humor depressivo, por exemplo, podem apresentar-se para Ser-aí como um modo de Encontrar-se ou como um modo de estar Afinado no e com o mundo, desde que sejam apresentados como o modo como o todo da interação do relacionar-se do Ser-aí transpassa, lança, projeta e afina o Ser-aí em sua existência. 57 Heidegger apresenta este ser em-vista-de na obra “Fundação Metafísica da Lógica” como o modo de ser lançado sempre a frente de si, como a possibilidade de abertura para o ser possibilidades de ser do Ser-aí. Ser em-vista-de si é uma determinação essencial de ser do ente que chamamos Ser-aí. De acordo com o próprio Heidegger: “Esta constituição, que agora denominamos com brevidade em-vista-de, proporciona a possibilidade intrínseca para que este ente possa ser ele mesmo. Quer dizer, para que a mesmidade pertença ao seu ser. Ser no modo de um si mesmo quer dizer ser-para-si-mesmo em um sentido por essência fundamental. Este ser-para-si-mesmo constitui o ser do Ser-aí[...]. Ser-para-si-mesmo é precisamente o existir, e este para-si-mesmo deve ser tomado na amplitude metafísica originária e não pode ficar reduzido a nenhum comportamento e capacidade, e menos ainda à um modo de apreensão: o saber-sobre, a apercepção. Ao contrário, o ser-para-si-mesmo, enquanto ser-si-mesmo é o pressuposto para as distintas possibilidades do comportar-se ôntico com respeito a si mesmo. (The Metaphysical Foundations of Logic. pág.189). Mais sobre isto pode ser encontrado na obra de Heidegger.

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Do que ficou dito antes uma questão surge: se a função do tédio é lançar o Ser-aí para dentro de sua existência, para uma assunção de si, isto não é o mesmo que já antes fazia a angústia pelo ser-no-mundo diante da morte?58 Exatamente o mesmo. Por que então lançar mão de outro elemento afinador? Porque na angústia, enquanto Encontrar-se, não está ainda aberto o estado do ambiente afinado por este elemento afinador? Com o pôr-se em fuga do ente em sua totalidade, na angústia, o que temos é somente o nada de possibilidades vazias acossando o Ser-aí e o lançando para uma assunção de si59. Com a tonalidade afetiva trazendo uma carga histórico-temporal de afinação ambiental temos uma abertura para um dizer do tédio que vai além da existência intrínseca do Ser-aí e perfaz mesmo todo mundo que o cerca e que ele forma. Óbvio que já no Encontrar-se, enquanto um sentimento de situação, já se tinha uma carga de esvaziamento que tocava a temporalidade e historicidade do Ser-aí o obrigando a assumir-se enquanto um ser-para-a-morte, mas nesta abertura não havia um espaço para um retorno ao mundo em construção. Ou seja, no tédio o movimento é muito parecido, porém, a serenidade vazia que torna o mundo vazio em um similar pôr em fuga do ente na totalidade, e a retenção temporal que impedem qualquer passatempo, lançam o Ser-aí para dentro de si no que Heidegger chama de eclipse do ápice de um instante. E o novo aqui é que a temporalidade é aberta a partir do instante, e este instante, ao trazer o total afastamento do tempo, exige a assunção de si60. Este instante será abordado numa outra perspectiva por nós mais à frente (§8).

Ora, se o niilismo é aquela vontade de nada que aflige uma época inteira, é compreensível que toda uma época esteja afinada por um esvaziamento que provém de cada Ser-aí em sua relação com o mundo. Este esvaziamento entediante leva à uma retenção que joga o Ser-aí naquele instante de decisão, como o ápice do encontro consigo mesmo em sua existência, aqui, neste ápice que é o instante ele irá decidir-se por si mesmo ou não. Mais o que vale destacar é que: ao ser aberto por um ambiente esvaziado, ou seja, pelo mundo niilista, o tédio já traz em si toda esta gama de não significação.

É uma estrada de mão dupla que o Ser-aí tem diante de si, porque se é o próprio Ser-aí quem origina o niilismo em sua vontade de nada, e deste niilismo o Ser-aí recebe de volta um ambiente que lhe é entediante, fica-nos claro que é o próprio Ser-aí que se entendia em si mesmo, e este tédio, com um poder além daquele que tinha a angústia, forma o mundo a partir de sua Afinação. Assim a Afinação fundamental do tédio deixa aberto um mundo niilista, na medida em que permite ao Ser-aí entediado continuar a formar o mundo.

Então o que temos é uma construção simultânea, e tédio e niilismo confundem-se. Se esta simultaneidade se confirma, ou seja, se ela é verdadeira, não temos um tédio de fato gerando o niilismo nem este gerando aquele, visto serem simultâneos. E nesta simultaneidade vemos uma igualdade. Se esta igualdade existe é porque o tédio é de fato a Afinação fundamental de uma época que indiscutivelmente se mostra sem caminhos, ou seja, de uma época niilista. c) Tédio como páthos filosófico e a necessidade de voltar pra casa. Tédio como abertura da existência humana para si mesma.

Filosofia! Se ela for mesmo uma vontade e esforço extremo de sentir-se em casa em qualquer

lugar61, então este tédio é o que exatamente nos põe longe de casa? Ou é ele que, ao contrário retira toda distância e nos faz voltar? O que então já desde sempre colocaria o Ser-aí longe de casa?

Se o Ser-aí cotidiano, decadente, em queda (Verfallen), sente-se envolto numa familiaridade, e ao ser sacado desta proteção e segurança familiar para defrontar-se consigo mesmo sente-se perdido. O

58 Heidegger. Ser e Tempo. 59 Em meu livro: 6 escritos sobre o “Eu” e uns poucos poemas. Publicado em 2009. No escrito intitulado A função da Angústia no §40 de Ser e Tempo, realizo a tematização de todo este movimento de apropriação de si, que em 1929, será função do tédio no livro de Heidegger Conceitos Fundamentais de Metafísica: mundo finitude e solidão. 60 A diferença fundamental entre Stimmung e Befindlichkeit não pode ser exposta aqui, exatamente porque não possuo todos os pressupostos investigativos para tanto, falta-me ainda segurança e tempo para investigar tal diferença nos textos de Heidegger e na problemática enquanto tal, em um filosofar que se põe a questionar ambos. É certo que o próprio Heidegger não deixou de forma explicita esta diferenciação em seus textos, o que encontramos é um salto da angústia de Ser e Tempo e do texto O que é Metafísica? enquanto a Befindlichkeit fundamental, para a tematização do tédio enquanto a Stimmung fundamental no texto “Os Conceitos Fundamentais da metafísica: mundo, finitude e solidão”. Esta diferença há, e está relacionada de todas as formas com a chamada viragem do pensamento heideggeriano, uma mudança de rota – a passagem da analítica do Ser-aí para uma metafísica do Ser-aí – pois se não mais parecia válido o caminho que seguia do sentido do ser do Ser-aí para o sentido do ser em geral, na noção do ser como o aconteciemto fundamental, o caminho revira-se, torna-se o inverso, e assim a Stimmung parece assumir o papel da Befindlichkeit enquanto modo fundamental de abertura do Ser-aí, ao lado da compreensão de ser. 61 Heidegger. Os Conceitos Fundamentais da Metafísica. Introdução.

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desejo de sentir-se em casa pode ser entendido como um anseio extremo para voltar àquela segurança e familiaridade do impessoal (das Man). Mas há algo além, uma vez retirado de sua decadência, é certo que o Ser-aí, sentindo-se perdido, buscará reaver sua familiaridade, e é isto que diz um esforço para sentir-se em casa em qualquer lugar. O Ser-aí por mais que deseje voltar ao mundo da impessoalidade e a sua segurança, ao escolher a si mesmo e aceitar sua situação de em jogo na existência, seu ser-para-a-morte, sua falta e incompletude, não pode mais retornar. O que ele deve então buscar é o que Heidegger chama num pequeno texto de Serenidade62. A Serenidade, não mais serenidade vazia como antes, como aquilo que esvazia o mundo, mas somente Serenidade, é aquele estado de decisão onde o Ser-aí, ao decidir-se por si mesmo, abre mão da familiaridade do cotidiano e se entrega ao seu estado de ser-no-mundo lançado enquanto ser-para-a-morte. Na Serenidade, este estado “bucólico” de tranquila relação com sua contínua falta e incompletude, o Ser-aí assume suas possibilidades como possibilidades e se aceita enquanto um ente condenado a ser livre. Então, esta Serenidade reveste-se de uma sensação de estar em casa, ou ao menos de estar próximo dela, eis aí o esforço para sentir-se em casa em qualquer lugar.

Se isto é assim, então nos é permitido uma divagação acerca do tédio e do niilismo. Sendo simultâneos e ainda que em certa identidade tragam suas diferenças, podemos dizer que estas diferenças encontram-se exatamente no oposto de suas funções. Porque se tomarmos o niilismo como aquele estado onde o Ser-aí é lançado no vazio da falta de qualquer porto seguro, e tomarmos o tédio como a Afinação fundamental que põe o Ser-aí cara-a-cara consigo mesmo, é aceitável a afirmação de que no niilismo se encontra o movimento de afastamento de casa, e no tédio o primeiro esforço para voltar ao lar, ou ao menos a possibilidade, ou estrutura possibilitadora deste retorno.

Assim o tédio funciona como o páthos filosófico, porque ele movimenta toda existência do Ser-aí na medida em que abre ao Ser-aí, para si mesmo, suas possibilidades existenciais enquanto possibilidades a serem aceitas como tais.

Se o que buscamos aqui é o páthos filosófico de nossa época, e se este páthos deve ser aquilo que abre o Ser-aí para o esforço de sentir-se em casa em qualquer lugar, na medida que este esforço é a filosofia, então o tédio é este páthos, porque ele pode, por si só, abrir este caminho para o retorno ao lar63.

E a angústia não poderia fazer o mesmo? Talvez. Mas no fundo a questão não deve ser esta, e sim aquela que indaga sobre a origem mesma do que Heidegger chama de Afinação enquanto abertura que traz, diferente do Encontrar-se, uma carga temporal que pode modificar não só o Ser-aí mas também o ambiente. A pergunta que nos exige reflexão agora é aquela que retorna para a questão levantada sobre a geração de um elemento afinador por outro (uma Afinação gerando outra sucessivamente). A questão dizia de um tédio abrindo uma atitude niilista, e este mesmo tédio seria aberto por uma decepção, que por sua vez...

Bom, sabemos que não é o tédio quem abre a atitude niilista, nem o contrário, visto ambos serem de certa forma feridos por uma identidade e terem origem simultânea. Resta então perguntar, o que abre ao Ser-aí a possibilidade de experimentar o tédio e o niilismo de forma simultânea? É a decepção como um provável elemento afinador fundamental?

a) Tédio como um estar decepcionado consigo mesmo e com a atitude niilista que se assume para

consigo mesmo diante do mundo.

Se a decepção é a Afinação primeira, para escapar a toda possibilidade de sermos lançados frente a nós mesmos e permanecermos perdidos na decadência (Verfallen), seria necessário unicamente escapar daquele elemento afinador fundamental, para assim escapar de todos os outros que por ele são abertos? Então isto significa que o elemento afinador fundamental seria exatamente um princípio antes das afinações principiadoras do filosofar? Se há um princípio antes dos vários princípios não pode haver outro antes daquele e assim ad infinitum?

Eis a questão que já adianta toda problemática em torno deste tema. Por uma questão metodológica, a partir deste momento Ser-aí e existência humana, bem como homem em sua humanidade

62 Heidegger. Serenidade. 63 Nunca esquecendo que Tédio e Niilismo estão juntos na co-originariedade de sua simultaneidade.

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dizem o mesmo (não nos cabe aqui aprofundar as diferenças entre estes termos existentes em possíveis definições do Ser-aí), bem como não usaremos mais os termos Encontrar-se ou Afinação, mas sim o termo elemento afinador64, e se usarmos, que sejam compreendidos como sinônimos (isto porque para nós não é importante a diferença ontológica apontada por Heidegger para estes dois termos, já que para nós o que interessa é sua função de abertura do homem para sua existência enquanto tal, na medida em que deve ficar entendido que o elemento afinador sempre trará a abertura da temporalidade no instante de decisão).

Se a decepção deve possibilitar o tédio, este então deve ser já um estar decepcionado. E este estar decepcionado do tédio já deve ser um estar decepcionado com alguma coisa, se tédio e atitude niilista são simultâneos ainda que opostos em sua funções de distanciar e trazer de volta para casa, então o estar decepcionado do tédio deve ser um estar decepcionado com a atitude niilista mesma que se assume, ou se é obrigado a assumir. Ora, se tédio e atitude niilista são o próprio modo de ser do homem em nossa época, a decepção é com este modo de ser do homem na contemporaneidade, e por sua vez com este próprio homem, com sua própria existência niilista e entediante. Desta forma a decepção é decepção consigo mesmo. E então podemos aceitar claramente, se aceitarmos a decepção como elemento afinador fundamental, que a decepção é o páthos filosófico da contemporaneidade.

E aqui, para nós está claro que a decepção, enquanto este páthos, não aflige, ao menos de maneira direta, cada ser humano existente em nossa contemporaneidade, mas sim aqueles que decidiram lançar-se num indagar filosófico, num indagar sobre sua existência enquanto tal. O modo como esta decepção aflige aqueles perdidos e decadentes, aqueles do impessoal, não pode ainda por nós ser analisado (faltam elementos teóricos para isso) porque exatamente sua atitude é de fuga total da decepção, ainda que esta, ao abrir os elementos afinadores do tédio ou mesmo da angústia, traga consigo o apelo para o abandono da decadência e a assunção de si. A relação destes elementos com estes homens pode muito bem ser tematizada, e este é o legado que Heidegger nos deixou de forma brilhante, mas a decepção por trás destes elementos permanece escondida somente como princípio, porque uma fuga da decepção já sempre se encontra posta mesmo no angustiar-se da angústia ou no entediar-se do tédio. §7 – Da decepção à perdição do filosofar atual. O começo da visualização da necessidade de abandono da filosofia

Talvez seja a decepção o elemento afinador fundamental que abre a possibilidade primeira do

filosofar atual, precisamos tentar entender agora o fenômeno da decepção tal qual ele se nos mostra. O estar decepcionado abre o perder-se em meio a falta decepcionada de... em meio a consciência da não mais existência de... A negação proveniente da decepção nega exatamente o passado como possibilidade certa onde se fundamentava toda nossa esperança, e assim anula todo futuro também porque exatamente apaga do existir temporal todo o “o quê” esperar mostrando esta possibilidade de esperar algo como ilusão imprópria e fugidia; ou abre o passado como desespero por ter percorrido o caminho errado por tanto tempo e agora não poder voltar atrás, a decepção mostra a incapacidade do homem de mudar seu destino que ele mesmo agora deixa desaparecer, é através da decepção consigo mesmo e com aquilo que se é, ou que se deseja ser, ou que se aceita deixar o outro fazer de nós, que nos desesperamos do que passou e nos entregamos nas mãos de um desespero cristalizado no instante eterno do não mais ter pra onde ir; também a decepção abre o futuro como a absoluta falta de direção em seu necessitar direcionar-se, e nos afoga de vez na angústia, ou no tédio, ou em qualquer outro elemento afinador, porque a liberdade e toda abertura existencial perde todo contato com o escolher o caminho onde não há caminho algum, além daquele que ainda é preciso construir, porque destruído e agora inexistente; ou abre nosso agora como o sem chão, como a queda livre no abismo do medo, onde não se sabe por que se veio de onde se veio e não se sabe o que há de vir à frente, pressente-se a presença esmagadora do desconhecido e se treme diante do

64 Este termo não está posto agora como tentativa de invenção de um novo conceito. Não interessa o que ele traga consigo conceitualmente, mas sim que ele apontará para o mesmo que o Encontrar-se e a Afinação já apontavam. Pois como foi dito anteriormente, não nos cabe a explicitação da diferença entre um e outro na filosofia heideggeriana. Nossa meta é somente encontrar o elemento afinador que inicia o filosofar, para então nos inserirmos dentro deste mesmo filosofar, pois é só a partir daí que podemos abandoná-lo.

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tornar-se temporal deste instante perdido no medo. A decepção parece se mostrar como o primeiro Encontrar-se, a encontrabilidade fundamental, ou a primeira Afinação, o elemento afinador que germinou na atitude filosófica após o perceber a falha em que a filosofia moderna se encontrava. A crise do idealismo leva a filosofia a abandonar tudo o que era e se entregar no vazio de um sem rumo, de um sem verdade e sem destino. Eis onde estamos, numa filosofia que se projeta para lugar algum, porque não é capaz de sair do lugar, uma vez que, decepcionada, abandona seu destino para afundar na vontade de encontrar qualquer frágil verdade que lhe permita respirar um pouco de ar que seja.

Mas o estar decepcionado é sempre um estar decepcionado com... ou por... No caso da decepção com uma Stimmung ou com uma Befindlichkeit fundamentais que abrem o filosofar para o retorno ao caminho de si mesmo, este estar decepcionado é um estar decepcionado com a filosofia mesma, por causa da grande ilusão na qual ela mantinha aprisionada toda reflexão. Mas será mesmo que esta decepção é suficiente para definir a filosofia atual? Esta filosofia que se entrega conscientemente ao desespero, ao medo, à angústia, à esperança e à muitos outros elementos afinadores?

Todos os modos de Encontrar-se e Afinações sempre nos acossam enquanto momento atual de nosso existir, porém de maneiras diversas e múltiplas, todo afinar “viaja” pelo tempo em seu horizonte ekstático e se temporaliza de inúmeras formas. Com as afinações que apontamos como possíveis aberturas do filosofar atual não é diferente (é sabido que toda afinação é abertura ao filosofar, na medida em que aberta pela decepção. Vamos tomar para uma análise agora somente cinco delas: desespero, medo, angústia, esperança e tédio), ainda que seu temporalizar, enquanto quem as traz à luz é o elemento afinador da decepção, adquira características peculiares, pois a decepção traz em seu bojo uma carga de vazio que perpassa todo Encontrar-se e Afinação que nela ganhe “vida”.

Então, enquanto trazidas para nossa existência pela decepção e seu vazio decepcionante característico, aqueles elementos afinadores e iniciadores do filosofar se apresentam assim:

O desespero é algo que vem sempre depois de uma escolha ou ação, por tanto é algo que está sempre de alguma forma além, num futuro, sendo sempre desespero que acossa o existir do homem enquanto este segue seu existir rumo ao fim que é a morte, ou seja, o desespero é no homem, e este homem é no e com o desespero quando começa a filosofar a partir do desesperar, porém este desespero é, ainda que estando agora, sempre algo que está lá na frente como permanência desesperada de um filosofar sem cura, porque carregado do vazio do nada em que se transformou a tradição; A angústia, ao contrário do desespero é antes de uma ação ou de uma escolha, é sempre angústia diante da liberdade, é a vertigem diante do abismo, que nos traz um tontear sobre si tanto do abismo quanto de olhar para o abismo, como diz Kierkegaard65, a angústia está sempre no agora que fica pra trás logo que somos submersos na angústia, e aqui, aberta pela decepção, é ela uma angústia que nadificou a própria possibilidade do nada de seu ser-para-a-morte; Já o medo é um elemento afinador fundado no agora, é o elemento afinador do instante, porque é temor da ameaça que ameaça o agora, podemos ouvir o dizer de alguém que teme o que irá acontecer, mas este é somente o trazer para o agora o futuro como algo ameaçador, e este ameaçador que pode ser trazido tanto do porvir como do que já foi é infinitamente aumentado pela bagagem caótica do vazio decepcionado de temer frente ao que talvez torne vazio o próprio temor, ou seja, o ter medo exatamente da falta de todo absoluto que nos pudesse impor medo, tememos no instante o vazio de estarmos libertos da necessidade de temer qualquer coisa; Por fim a esperança é um elemento afinador que abre as três modalidades do horizonte temporal, por ser um agora que trás consigo sempre a certeza de poder esperar algo à frente, e esta certeza é adquirida no que foi, pois é o passado que garante ao presente a possibilidade da espera de um porvir, porém aberta pela decepção, a esperança torna-se um elemento afinador que se perde no estar decepcionado por não ter mais o que esperar do futuro, ao mesmo tempo que e exatamente porque se perde na decepção do olhar pra trás e ver que o caminho que se escolheu seguir apagou toda possibilidade de esperar o que quer seja do futuro.

65 O Conceito de Angústia, onde está escrito: “A Angústia pode ser comparada à vertigem. Quando o olhar imerge em um abismo, existe uma vertigem que nos chega tanto do olhar como do abismo, visto que nos seria impossível deixar de o encarar. Esta é a angústia, vertigem da liberdade, que surge quando, ao desejar o espírito estabelecer a síntese, a liberdade imerge o olhar no abismo das suas possibilidades e agarra-se à finitude para não soçobrar”.

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Em suas temporalizações66, estes elementos afinadores, abertos pela decepção, apresentam

nitidamente uma fuga da decepção cada vez para mais dentro daquele estado aberto por elas no cara-a-cara com seu si-mesmo e sua finitude em que põe o homem em sua existência. Quanto ao tédio, não podemos perceber com tanta clareza esta temporalização, porque exatamente o tédio (o tédio profundo), como um estar decepcionado consigo mesmo e com a atitude niilista que se assumiu, já é em si mesmo retenção do tempo no instante, e desta forma já é sempre encarar a si mesmo numa decepção que lança para além do tempo esvaziado e retido, que lança para a eternidade, ora, a eternidade é sem tempo, de forma que não podemos notar a temporalização do tédio senão no abandono do tempo e na perdição total no não haver tempo, na eternidade do instante.

Assim se temporalizam os elementos afinadores que tomamos como aberturas do filosofar, enquanto a decepção está em cada uma delas como estopim, como fundamental e originária, e portanto, como antes, durante e depois da aparição de cada uma delas. Ainda que em cada uma delas apareça uma fuga da decepção mesma, o estar decepcionado, pode muito bem ser tomado como o elemento afinador fundamental e originário do filosofar contemporâneo, aquele que permanecia oculto e que agora se desvela para nós na tomada de consciência do estar decepcionado característico de nossa atual filosofia desesperada, angustiada, amedrontada, esperançosa e entediada em sua atitude niilista.

É por isso que nos é tão difícil distinguir, entre os diversos textos filosóficos do último século, qual é a Stimmung ou Befindlichkeit que o fez emergir enquanto filosofia. Claro está que cada filósofo, a partir do impulso primeiro da decepção com o que ficou pra trás na tradição, parte em seu filosofar guiado pelo outro elemento afinador no qual aquela decepção o lançou, assim talvez seja conosco neste investigar sobre o caráter patológico da filosofia atual, talvez por decepção nos lançamos nos cinco elementos afinadores, a saber, do desespero, da angústia, do medo, da esperança e do tédio, e decepcionados pela impossibilidade de fundamentação de nossa teoria em um desses estar afinado, retornamos para a decepção mesma como o originário elemento que nos faz iniciar o filosofar, e assim tentamos apontar tal estar decepcionado como o começo de toda filosofia atual, quando na verdade talvez esta filosofia que é minha filosofia cheia de um não querer sê-lo se inicie pela decepção, talvez uma ou outra siga o mesmo caminho, talvez o antigo espanto tenha retornado ou mesmo a dúvida mostre novamente as garras, quem sabe até, talvez, na verdade, cada uma parta de um elemento afinador diferente. Mas é possível que este filosofar decepcionado esteja certo, já que tudo se trata de fato de um estar decepcionado com a tradição que nos condenou a ser somente uma filosofia de perspectivas, e toda filosofia atual se inicie pela decepção mesma. Talvez por fim, mesmo o espanto dos gregos tenha sido trazido à luz por uma decepção com a incapacidade de compreender o mundo a partir do mito, e a própria dúvida tenha achado terreno na modernidade devido ao fato de se estar decepcionado com uma filosofia que somente se dedicava a encontrar o ente em sua entidade e nada mais, deixando de lado toda certeza. Mas isso são questões, apesar de fundamentais, para outro momento (divagações assim exigem tempo e esforço que nos tirariam de nosso caminho). Para nós basta a compreensão da possibilidade, da possibilidade estrutural e nada além, de ser a decepção o páthos imperante de nosso filosofar.

Capítulo III: – Diagnóstico de uma época –

Indivíduo: um frágil olhar da filosofia em sua direção Agora, partindo da possibilidade da existência em todo poder e magnitude deste elemento

afinador fundamental e originário da decepção, é preciso perguntar se todo aquele que se insere num indagar filosófico, em qualquer época, pode iniciar por este ser e estar decepcionado. Parece-nos que não, pois que seria preciso ter necessariamente com o que se decepcionar. Talvez aqui já haja uma resposta

66 Vale ressaltar que a compreensão destas temporalizações deve seguir a compreensão heideggeriana do horizonte temporal ekstático, o que significa dizer que cada uma delas, desespero, angústia, medo, esperança, temporalizam-se no todo temporal da existência, na unicidade e co-pertencência disto que ao senso comum convém chamar passado, presente e futuro.

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aquela divagação do final do parágrafo anterior de o espanto e a dúvida terem se originado na decepção, ou talvez a questão ganhe ainda mais profundidade e dificuldade de ser analisada, mas não é uma questão que nos toca aqui, como disse. É preciso firmar, porque é só isso que temos e podemos fazer por hora, que somente o filosofar atual inicia-se pela decepção. E se esta é nossa meta, precisamos realizar nosso malabarismo investigativo para confirmar tal afirmação ou então, pô-la de lado.

Para confirmar o que foi alcançado no parágrafo anterior preciso agora firmar os pés no chão e, partindo deste filosofar atual mesmo, com todas as suas características, buscar encontrar exatamente aquele que, ao iniciar uma investigação filosófica nesta época, nesta nossa contemporaneidade, já se insere por inteiro na decepção. Este “quem” que inicia sua investigação já deve ser necessariamente um indivíduo, um homem de ciência, ou até um filósofo, porém desde que parta exatamente do momento em que foi deixado pra trás tudo o que uma tradição enfadada e caduca trazia em sua bagagem saturada, desde que ele inicie no momento em que a dúvida e a busca de uma certeza indubitável deixam de ser o páthos da filosofia. Este “quem” já deve estar decepcionado e iniciar seu indagar em meio e transpassado por esta decepção.

Este “quem” pode realizar sua investigação sendo um “quem” inserido na época tal qual qualquer outra pessoa? Não. Ele deve olhar para esta época e deve destacar-se dela, ele deve sê-la e ao mesmo tempo ultrapassá-la, deve estar à frente dela, deve respirá-la e deve olhá-la de longe. Disto tiramos que este “quem” não pode decepcionar-se se estiver imerso em sua época somente? A resposta é, se este “quem” não abandonar a sua época e escolher a si, não poderá jamais decepcionar-se, porque jamais será aberto, sem a decepção, para ele, o si mesmo a partir de um elemento afinador qualquer (medo, angústia, esperança, desespero, tédio, etc.). Em outras palavras, só quem volta-se a si mesmo pode decepcionar-se, ou ainda, um “quem” imerso em meio a multidão, ao rebanho, permanecerá nesta mesma multidão e neste mesmo rebanho indo pra qualquer lugar, mas nunca marchando até si mesmo. Como se decepcionar com esta multidão que se é? Todo decepcionar-se já indica um distanciar-se, um afastar-se daquilo com que se está decepcionado. O próprio decepcionar-se consigo mesmo é já um afastar-se de si que remete ao mais fundamental movimento de volta a si, ao mais intrínseco fundamento da existência. Este paradoxo deve ser deixado de lado para uma análise posterior, quando se buscar exatamente esta existência fundamental do homem, que talvez nem se inicie num decepcionar-se consigo mesmo. A questão que ganha primazia no momento é outra. Por que este “quem” deve necessariamente ser alguém destacado de sua época e consequentemente do resto da humanidade, da humanidade universalmente conceituada? Por que este “quem” deve ser um indivíduo? Isto é o que devemos investigar agora. §8 – O Cavaleiro da Fé e o Andarilho: o indivíduo voltando pra casa e o espírito-livre partindo com sua sombra

Em seu texto “Os Conceitos Fundamentais da Metafísica”, Heidegger aponta para um fato curioso, que obviamente não explicita nem aprofunda. No final de sua investigação sobre a temática do tédio e sua temporalização como um alongar do tempo e aprisionar o ser-aí (Ser-aí) no “instante”, encontramos a afirmação de que é exatamente quase um século antes que, com o dinamarquês Kierkegaard, surge pela primeira vez na filosofia a clara possibilidade de uma mudança de rumo, e esta possibilidade se apresenta exatamente como a elaboração do conceito de instante67. Curiosamente é aqui, com este conceito que parece romper-se toda segurança do falar filosófico tradicional, pois para Kierkegaard, falar no instante não é falar de um agora, de um curto período que traz o porvir e ao mesmo tempo renega-o como passado, de uma parte instantânea de tempo pinçada de todo o resto, mas exatamente de um momento do tempo que pode ser apontado como um momento eterno, um segundo que se estende por muito mais, e este estender-se só é possível quando o olhar do homem volta-se para si mesmo e adentra o mais fundo de sua existência, de sua individualidade. Tornado indivíduo, o homem então escolhe a si, decide-se por si mesmo e então passa a olhar o próprio tempo com outros olhos. O

67 Mais exatamente no final do quarto capítulo da primeira parte, denominado “O Caráter Temporal do Tédio Profundo”, onde encontramos: “O que designamos aqui com a palavra „instante‟ aponta para o que Kierkegaard compreendeu realmente pela primeira vez na filosofia – uma compreensão, com a qual começa a possibilidade de uma época completamente nova da filosofia desde a antiguidade”.

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conceito de instante está em muitas obras de Kierkegaard, e desempenha uma função em cada uma delas. Na obra “O Conceito de Angústia” aparece o instante como sendo o que realiza a síntese da existência humana. Para Kierkegaard o homem é enquanto existente em sua mais intrínseca natureza duas sínteses, de corpo e alma, de tempo e de eterno, o espírito realiza a síntese de corpo e alma e o instante a síntese de tempo e eterno68, deste modo o homem poderia encontrar-se consigo mesmo em sua individualidade, porque nesta síntese de sua existência torna-se espírito no instante.

A interpretação heideggeriana deste momento da filosofia e a cunhagem de um conceito próprio de instante não vem aqui ao caso, mas somente o fato de que, com Kierkegaard, pela primeira vez, o homem decide-se neste instante enquanto espírito por si mesmo sendo um singular e finito, e não um conceito universal de homem entregue a uma liberdade também universal. Aqui é preciso olhar para si mesmo e perceber que se está só, e que sozinho se deverá escolher o caminho. Para nós, neste momento, não é importante o caráter religioso (da síntese de tempo e eterno realizada pelo instante) que dá peso a esta idéia de tornar-se indivíduo de Kierkegaard, mas unicamente esta idéia de que no instante, como um momento que pode alongar-se pela eternidade na escolha individual, este mesmo indivíduo liberta-se de qualquer conceito, ou pré-conceito filosófico, moral ou religioso e busca exatamente a si mesmo, enquanto espírito que se decidiu por si mesmo, para então partir em direção ao mundo.

O indivíduo torna-se leve ao tornar-se livre, e isto tudo só é mesmo possível na medida em que o mundo lhe deixou assumir sua leveza, no sentido de que este mundo não mais o pode aprisionar em suas regras, suas leis e convenções morais. Para Kierkegaard, cada passo deste indivíduo então se torna uma volta pra casa e um tornar-se a cada vez mais novamente indivíduo. Esta marcha só é possível porque uma época inteira permite esta mudança de olhar. Uma filosofia que não sabe mais onde segurar-se para não desmoronar – onde a razão absoluta, a razão pura deixa de ser buscada, onde não faz mais sentido falar de metafísica como ciência dos primeiros princípios e primeiras causas, neste mundo desfeito de sua sistemática, pronto outra vez e posto outra vez nesta prontidão para ser interpretado – apresenta-se e clama por uma investigação. Este é o sentido do dizer de Heidegger sobre a possibilidade de mudança do filosofar a partir do instante kierkegaardiano como o olhar para si e aceitar-se como indivíduo do homem que ao fazer isto se liberta da tradição filosófica e não mais se espanta, nem duvida, mas sim apenas decide continuar a marcha e entender tudo outra vez, a partir de outros começos que não mais os mantidos pela tradição metafísica.

Do instante à libertação. É como decidir-se partir pelo mundo como um andarilho solitário, olhando este mundo com uma alegria nova, buscando-o com os olhos de outra sabedoria, mais jovial, mais leve, vendo um mundo desconhecido onde apenas uma aparência de verdade soube impor-se sobre a efetividade desconhecida. Tudo desmorona nesta época, exatamente nesta época em que um danês fala de um tornar-se espírito num instante renovador, e um alemão fala de niilismo, interpretação, gaia ciência, além-homem e vontade de poder. Kierkergaard e Nietzsche notaram a mesma problemática, a mesma doença afligindo a filosofia de sua época, e notaram mesmo esta doença atingir sua própria época. O que Nietzsche chamaria poucos anos à frente de niilismo, Kierkegaard nomeou em seu livro “O Tempo Presente” de nivelamento69, ou seja, uma perda da paixão onde tudo ainda se mantêm de pé, porém esvaziado de toda significação, de todo sentido, uma perda dos caminhos, dos absolutos, onde cada coisa fica vazia numa reflexão pronta somente para ser repetida.

Logo, ambos notaram, diante deste mundo onde tudo começava a ruir, diante deste niilismo e deste nivelamento: era preciso um novo homem, um homem capaz de partir sozinho e encontrar uma filosofia do futuro, nova em suas buscas e na maneira de se dar enquanto busca, nova porque não mais sistemática, não mais metafísica, não mais moral. Este homem, este indivíduo capaz de sobressair-se diante do rebanho amorfo marchando pro mesmo lugar sempre, para Kierkegaard seria o verdadeiro ser cristão, para Nietzsche um espírito-livre, o além-homem.

Este deve ser nosso objetivo neste momento, tentar, na medida do possível, caracterizar este novo homem, este indivíduo. Até que ponto podemos falar de indivíduo na filosofia nietzschiana? Ou não o podemos? Até que ponto o abandono da razão e da moral assemelham o indivíduo de Kierkegaard

68 No capítulo III desta obra encontramos: “A síntese do temporal e do eterno não é nova. Não é senão a primeira, sustentada pelo espírito, em que o homem se mostra alma e corpo. Assim que se fixa o espírito, tem-se o instante”. 69 Em inglês o livro chama-se “The Present Age”, e nos traz o termo “Leveling”, que traduzimos por “Nivelamento”, como disse antes.

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e o espírito-livre, o além-homem de Nietzsche? E onde os diferenciam? Onde entram as discussões sobre o espírito no filosofar de Nietzsche sobre um homem que é fundamentalmente instinto, organismo? E onde entram as discussões sobre os instintos no filosofar de Kierkegaard sobre um homem que precisa compreender que é ao mesmo tempo corpo e alma unidos por um espírito? Há algo como um instante de decisão para Nietzsche como há para Kierkegaard? Qual o papel da razão para Kierkegaard? E para Nietzsche, qual o papel da paixão? Como um homem pode tornar-se exatamente o que é para poder superar a si mesmo? E isto, uma superação de si, é mesmo possível?

Temos clareza da problemática advinda do pretender cruzar a filosofia destes dois pensadores distintos. Tentaremos seguir em frente ainda assim, nunca perdendo de vista o objetivo mais fundamental e peculiar da filosofia de ambos: de Kierkegaard como uma busca do verdadeiro ser cristão, esquecido e abandonado pelos homens ao longo da história, e como a busca do caminho que leve o indivíduo de volta pra casa (que para ele é a eternidade suprema de Deus); e de Nietzsche como a tentativa de manter aberta a possibilidade de surgimento de espíritos-livres no futuro, e de esclarecer os erros fundamentais há muito surgidos e esquecidos, quais sejam eles, todas as divagações metafísicas e valorações morais e cristãs, bem como a tentativa de firmar uma ciência mais clara, liberta destes preconceitos, feita finalmente por um homem de ciência não moralizado, não cristianizado, um homem além do animal, e além do homem, além do bem e do mal, que não mais é só uma ponte, mas sim alguém que a atravessou e se tornou além de si mesmo, tornou-se um além-homem. a) Olhares sobre a racionalidade: demasiada reflexão e contaminação por valores morais e metafísicos.

Nietzsche olha sua época e nota claramente uma viciosa contaminação por valores morais e

metafísicos demasiadamente humanos. Repete-se que o conhecimento das coisas é a busca pela verdade destas coisas, e que a busca pela verdade é a busca pelo bem, e que este bem é a felicidade de todos os homens. Sim, para Nietzsche, se repete isso sem nem levar em conta que tudo isso foi um dia “inventado” por uma racionalidade muito criativa, que notou a necessidade destas coisas para prosseguir seu “desenvolvimento”, exatamente quando as coisas necessitavam serem determinadas, diferenciadas umas das outras. Esqueceu-se disso no decorrer da história da filosofia, que não passa de história da metafísica, e agora Nietzsche percebe uma tarefa irrecusável, a saber: mostrar exatamente estes erros fundamentais de um homem que é humano, demasiado humano.

Por sua vez, Kierkegaard também, num olhar para sua época, havia dito: “Nossa época é essencialmente uma época de entendimento e reflexão, sem paixão”70. Uma época assim, com estas características é visivelmente escrava da razão, e isto é um ponto negativo, porque ser escravo de uma racionalidade vazia de paixão é ser escravo de uma moral universal sem sentido para qualquer existência individual concreta.

Paixão, para Kierkegaard, é o que movimenta a existência humana individual, sem paixão, qualquer um permanecerá estagnado diante de um sem destino que não faz sentido, que não parte de lugar algum e se encaminha para lugar nenhum. Uma interpretação da filosofia kierkegaardiana leva o pensador paraense Benedito Nunes a afirmar:

Interesse, consciência de existir, inquietação, sofrimento, aspiração do infinito, desejo de imortalidade, tudo isso

integra o conceito de paixão (páthos), frequentemente utilizado por Kierkegaard. A paixão é a mola da dialética;

sem ela, faltaria ao espírito o impulso e a elasticidade que o fazem saltar.

(NUNES, Benedito. Filosofia Contemporânea. Cap.II: De Kierkegaard a Nietzsche).

Ora, ser sem paixão é, então, existir preso em uma reflexão que não se renova. Isto é o mesmo

que dizer: é estar preso ao que já está firmado, a uma tradição qualquer que já entrega embalada na porta de casa as normas de como se deve agir, o que se deve fazer, como se deve pensar. E, torno a dizer, a despeito do peso religioso que Kierkegaard dá à sua interpretação desta época, ambos, o danês e Nietzsche, acabam por dizer a mesma coisa. Independentemente do fato de cada olhar levar consigo uma

70 Na tradução inglesa encontramos: “Our age is essentially one of understanding and reflection, without passion”

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carga interpretativa e trazer de volta a necessidade de assunção por novas posturas e a realização de conclusões diversas para solucionar o problema, é inegável que ambos observam uma mesma época, passando por mesmos problemas, a saber: o de um esquecimento de si mesmo enquanto ser humano, e uma mistificação metafísica da essência deste homem, bem como de todas as coisas. A solução para o problema, e até mesmo, a causa dele, podem ser diferentemente interpretadas por Nietzsche e Kierkegaard, mas o problema é inegavelmente o mesmo. É inegável que um niilismo, um nivelamento, uma doença, transpassa aquele momento do início ao fim, e o faz clamar por um novo olhar, uma nova interpretação, uma solução. O excesso de reflexão transformou os seres humanos, assim como os valores morais e metafísicos enraizados, em um rebanho triste e inativo.

Não se pode agir sem paixão, diz-nos o pensamento do danês, e não se pode agir sem abandonarmos, ou ao menos tomarmos consciência de que nossos preconceitos morais muito antigos governam nossa racionalidade. Mas que ação é essa que é impossibilitada aqui? Justamente uma ação livre, individual, que esboçada por um homem liberto da moralidade, do julgo de uma excessiva reflexão que tudo esvazia, realizada por um homem prenhe de paixão, uma ação que pode renovar (no sentido de mostrar o futuro) tanto a filosofia quanto a própria “esperança” da possibilidade de existência de espíritos-livres e indivíduos.

A razão, então, não é a faculdade primordial do homem, é preciso ir além dela. Para Kierkegaard é preciso saltar por sobre ela e encontrar uma fé que justifique o absurdo e o paradoxo da existência religiosa; para Nietzsche é preciso entendê-la unicamente como uma peça orgânica com funções tal qual qualquer outra parte deste organismo que é o homem, e é preciso curá-la da doença que é a moralidade nela enraizada, é preciso partir daí e alcançar o homem tal qual ele é, com todos seus instintos e pulsões, desejos e necessidades orgânicas e com sua absoluta vontade de poder, e este é o homem em toda sua nua e crua humanidade. Mas mesmo que ambos os filósofos apontem caminhos diversos, é óbvia a necessidade de mudança de rumo, exatamente porque uma frágil razão não pode servir de guia para o futuro da humanidade, exatamente por ser frágil no que toca exatamente ao mais importante, o abandono das leis morais para um salto de fé (Kierkegaard) ou o retorno ao homem como ele é de fato, livre de qualquer conceituação moral e metafísica (Nietzsche).

Mas devemos nos aprofundar exatamente na busca daquele “quem” que indaga sobre esta época, este “quem” identifica-se com o que Kierkegaard chama indivíduo, e com o que Nietzsche chama espírito-livre. Este “quem” é exatamente um solitário pensador de sua própria existência, que existe a partir dos movimentos de suas paixões71, um andarilho que sai pelo mundo em companhia unicamente de sua sombra, e que pode nos mostrar quais as características do homem que precisa tornar-se o que é para superar a si. Para compreender isto é preciso que respondamos aquelas questões antes colocadas. E é pra elas que nos dirigimos agora. b) Duas concepções de indivíduo: um que necessita voltar para casa para tornar-se si mesmo e ganhar a eternidade, e outro que parte solitário em seu voo de águia para ultrapassar a si mesmo e se tornar além de si.

Há um indivíduo na filosofia de Nietzsche? Se há, como ele se apresenta? Ou como se deve

apresentar? Ele deve apresentar-se a si mesmo como este que é? Ou deve antes tornar-se o que é para então se apresentar diante de quem quer que seja?

Na obra “O Viajante e sua Sombra”, aforismo 200, Nietzsche diz o seguinte: “Quem se afasta completamente da natureza se afasta também de si: jamais lhe será dado beber na taça mais vivificadora que se possa encher em sua fonte interior”. Aqui encontramos uma direção, um direcionamento que aponta para o caminho onde possivelmente se encontra a individualidade, este é aquele que leva a sua fonte interior e que não se afasta da natureza, pelo contrário, é nela mesma que permanece.

Estaria a individualidade então voltada a um olhar para si enquanto natureza e num encontrar o que de mais natural há em si? Talvez isto já seja forçar demais a interpretação. O que encontramos na

71 No sentido kierkegaardiano.

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filosofia de Nietzsche é que o homem deve ser investigado por uma psicologia a partir dele mesmo, a partir do que ele é de fato. Isto não quer dizer que uma psicologia deve investigar o que há de natural no ser humano, porque exatamente o ser humano é todo natureza, unicamente ele aprendeu a esconder-se, a mascarar-se por detrais de uma vestimenta moral que de tanto ser usada aderiu à pele e parece agora se mostrar que sua retirada fora resultaria num retirar a pele e o próprio homem da existência, de tão entranhados que estes erros de esquecimento histórico estão na razão humana. É por esta razão que no último aforismo deste mesmo texto Nietzsche diz:

Foram colocadas muitas correntes no homem para que desaprendesse a se comportar como um animal; e, na

verdade, se tornou mais meigo, mais espiritual, mais alegre, mais refletido que todos os animais. Desde então

ainda sofre por não ter tido por tanto tempo ar puro e movimentos livres – essas correntes, repito ainda e

sempre, são, contudo, esses erros pesados e significativos das representações morais, religiosas e metafísicas.

(NIETZSCHE. O Viajante e sua Sombra. Aforismo 350.)

Somente quando forem arrancadas estas correntes postas para separar o homem do animal é

que, para Nietzsche, poderá o homem de fato tornar-se o que é, para então alçar caminho em direção a sua superação.

Se todos os valores são animais, para superar a animalidade é necessário então, tirar as correntes e ultrapassar esta moral. Isto quer dizer deixar de lado os instintos e necessidades animais do homem? Pelo contrário, só quando o homem se permitir sentir esta animalidade até o limite poderá ele alçar o voo para além de si, para além do animal e além do homem. E este homem que ultrapassou o animal e o homem é o indivíduo? Não podemos afirmar isto ainda, mas já vemos que existe este indivíduo no pensamento de Nietzsche também, precisamos encontrar suas características mais peculiares, aquilo que o faz tornar-se indivíduo.

“Nas explosões da paixão e nos delírios do sonho e da loucura, o homem redescobre sua história primitiva e aquela da humanidade”72. Nas paixões e nos delírios? Nada de razão aparece aqui para apontar o homem no que ele é? Não. E isto porque a razão veio a ser no homem, exatamente quando ele dela necessitava para sua expansão, para multiplicar seus âmbitos de atuação, para determinar o que necessitava de determinação e sobreviver. O homem moralizado está bastante longe de sua natureza, porque hermeticamente preso pela moral, pela civilidade, por isso eles, estes homens morais, não podem compreender o homem mesmo no que ele é, e inventam conceitos fantasmas que nada falam da natureza humana. São necessários novos homens capazes de viver justamente nestas explosões da paixão e nestes delírios, para redescobrirem a si mesmos em sua história.

Se “todas as coisas que duram muito tempo de tal modo se impregnam aos poucos de razão que a origem que tiram da desrazão se torna inverossímil” 73, é necessário separar as coisas todas da razão e buscar novamente suas origens. Mas por quê? Este homem que abandonou a moral e a razão que sobrevive através dela, para seguir jornada unicamente enquanto homem, a ponto de superar a si mesmo enquanto homem, é o indivíduo que buscávamos? Parece que sim. Então não é absurdo falar de indivíduo na filosofia de Nietzsche. E podemos enfim dizer que, se o homem é de fato “uma corda estendida entre o animal e o super-homem. Uma corda sobre um abismo”74, este indivíduo é exatamente aquele que a atravessou, que ignorou os perigos que o impediam de permanecer parado, de pé sobre esta ponte, ignorou o forte desejo de voltar atrás e o medo de seguir em frente, o indivíduo é exatamente aquele que se tornou o que Zaratrusta tanto anunciara para ouvidos que não lhe podiam ouvir, tornou-se o além-homem. E o além-homem é possuidor de um espírito-livre, de um alegre saber e de uma marcha interminável para dentro de si, em sua solidão.

Este, o “quem” do indivíduo nietzschiano, já alcançamos, resta-nos saber se ele assemelha-se ao indivíduo que aponta Kierkegaard. O indivíduo para Kierkegaard consiste exatamente naquele homem que entregou tudo que possuía, toda sua vida, para receber de volta a si mesmo na eternidade, como ele

72 Nietzsche. Aurora. Aforismo 312. 73 Nietzsche. Aurora. Aforismo 1 74 Nietzsche. Assim Falava Zaratrusta. Prólogo, parte IV.

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mesmo diz na voz do jovem apaixonado que perdera tudo, como o Jó da Bíblia75, mas ganhara tudo outra vez, no instante sublime da repetição. Sim, para Kierkegaard o indivíduo deve perder tudo, e este tudo que se perde é o que leva à recompensa pelo salto no escuro. É o mundo que se perde aqui, é toda racionalidade que se esvai, é o tempo, é o corpo que o indivíduo abandona, para ganhar a eternidade, para ganhar sua alma, exatamente no momento em que chega de volta à casa que é só sua: Deus. Para Kierkegaard esta dialética confusa, fundamentada sempre no paradoxo, é que entrega ao ser humano sua individualidade, nesta volta pra casa que é a volta pra Deus o homem vive a mais verdadeira repetição, porque perdeu tudo, para ganhar outra vez, porque saiu de si, para encontrar-se consigo mesmo outra vez, com a diferença de que tudo agora está renovado.

A partir disso só está claramente firmada a incompatibilidade dos indivíduos nas ideias do filólogo e do danês? Talvez não, se observarmos que, independente do fim ao qual chega o indivíduo, o que fundamenta as duas concepções é uma renúncia primeira e fundamental da racionalidade, da moral e deste mundo moralizado. Na filosofia de Kierkegaard existem três estágios, no estético o indivíduo vive para si, e para seus prazeres, aqui há uma semelhança tremenda com o indivíduo nietzschiano, mas para Kierkegaard este homem não é um indivíduo de fato, porque ele é apenas escravo de sua animalidade, jamais ele poderia ser tomado como alguém que superou o animal e o homem e tornou-se livre como a águia, tornou-se um espírito-livre.

No segundo estágio temos o homem ético, este universalizou toda sua existência, e sua individualidade tornou-se um conceito tal que pode ser atribuído a toda humanidade. Kierkegaard vê aqui um ponto positivo, na medida em que ficou pra trás a falta de reflexão do estágio estético. Mas aqui há demasiada reflexão, e falta paixão. Logo, como vimos, não há movimento sem paixão para Kierkegaard, por isso é preciso ultrapassar este estágio para um terceiro, o estágio religioso. Aqui neste estágio o homem torna-se um indivíduo porque abandonou as leis morais para aceitar a si mesmo diante de Deus. Aqui ele recebe de volta as paixões com o peso sagrado da eternidade, as paixões se condensam na fé e este indivíduo pode então voltar pra casa.

Sem paixão, para Nietzsche, não é possível também ultrapassar a si mesmo. Pois sem paixão não se pode arrebentar as correntes da racionalidade, não se pode libertar-se da moral e da metafísica impregnada como uma doença em nós, sem paixão não se pode tornar-se único, não se pode afastar do rebanho e tornar-se um viajante solitário, um andarilho.

Então, se a pergunta era: até que ponto o abandono da razão e da moral assemelham o indivíduo de Kierkegaard e o espírito-livre, o além-homem de Nietzsche? E onde os diferenciam? A resposta é esta: a semelhança está exatamente na necessidade de libertar-se da racionalidade tola, aprisionada em amarras morais, e na necessidade de voltar-se para si mesmo, de lançar-se até o mais fundo da existência, e depois ressurgir novamente dono de si, como um indivíduo; e a diferença está também exatamente aí, porque este indivíduo não pode ser o mesmo numa filosofia que aponta a necessidade de um retorno pra casa que é a eternidade e numa filosofia que aponta o voo solitário da águia como o estar à frente de seu tempo, como um atravessar a ponte e tornar-se algo além, não mais apenas animal, nem mesmo apenas homem, mas sim um além-homem, um espírito-livre. A diferença é que, o indivíduo, no mais extremo ponto que se pode chegar da individualidade, para Kierkegaard é o que ele denomina o cavaleiro da fé76, e para Nietzsche o indivíduo é o que ele denomina o além-homem, o espírito-livre. c) A colocação de questões relativas aos cuidados acerca da análise da época a partir de dois pensadores distintos. A questão do espírito em Nietzsche e dos instintos em Kierkegaard: contraposição de idéias. Explanação acerca do “quem” daqueles que precisam superar sua época. E ainda: paixão, fé e vontade de poder.

75 Em sua obra “A Repetição” Kierkegaard apresenta a correspondência de um jovem com seu confidente. Este jovem considera ter perdido tudo ao perder a amada, e se compara dramaticamente ao personagem bíblico Jó, que também perdera tudo. Em meio as suas dores ele chega à conclusão de que perdera tudo para ganhar de volta em dobro a eternidade, no que ele chama de repetição. 76 Na obra “Temor e Tremor”, Kierkegaard apresenta seu conceito de cavaleiro da fé, e diz que este é exatamente aquele que abandonou toda racionalidade para justificar suas ações apenas pelo absurdo da crença no paradoxo do Deus tornado homem, morto e ressuscitado. O maior exemplo de um cavaleiro da fé, Kierkegaard encontra na pessoa de Abraão, não por acaso denominado o pai da fé, porque contra todas as leis que a razão podia dar, levou seu filho ao sacrifício unicamente para cumprir um pedido irracional e desumano de Deus.

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Quais cuidados devemos tomar antes de prosseguirmos? Muita atenção precisamos! E antes de pôr adiante o outro pé, é necessário uma advertência... Há uma volta pra casa em Nietzsche, e esta é um voltar-se para si paradoxal, porque é um voltar-se para si que se põe em afastamento justo por abandonar uma espécie de consciência de si que não é senão invenção de uma racionalidade desde muito moralizada. Ao mesmo tempo, este é um abandonar o mundo que põe este “quem” que abandona justamente em direção ao mundo mesmo. O que significa este paradoxo? Significa que o espírito-livre é aquele único que separa-se do rebanho e volta para o mundo mesmo. Ele é o único a retornar ao mundo exatamente porque é num mundo que inexiste que busca moradia a moralidade e seus personagens morais. Na mesma medida ele é o único que volta pra casa exatamente porque é o único que volta a si, pois é sabido que é num “eu” absurdo e universalizado que encontram semelhança os homens morais, religiosos e metafísicos.

Este paradoxo precisa estar bem entendido, e se o entendermos ele acaba por se dissolver, pois aqui, há um partir de si que retorna para si, e um abandonar o mundo que leva para o mundo, na medida em que este “quem” abandona uma consciência de si universalmente inexistente para voltar ao que de fato se é – um ser humano, com todos os instintos e pulsões – um “quem” que faz este retorno amoraliza-se e pode dançar a beira do abismo cantando a liberdade e a possibilidade de olhar o mundo das mais diversas formas: “Deixamos a terra, subimos a bordo! Destruímos a ponte atrás de nós, melhor, destruímos a terra atrás de nós”77. Exulta este “quem”, cheio de uma nova alegria, de uma nova euforia e nova serenidade, cheio de si e de mundo. Sim! Este “quem” que deixa o mundo deixa pra trás sem remorso uma fantasia da razão, um mundo logicamente organizado regido por leis universais e por uma moral que se une ao conhecimento para levar ao bem da humanidade, mas este “quem” abandona este mundo ilusório e volta para o mundo mesmo, para o desconhecido mundo que se estende e une ao oceano também desconhecido que se derrama ao redor e em sua própria existência.

Este é o cuidado que devemos tomar aqui: Nietzsche jamais pregou uma elevação espiritual, nem seus textos vieram edificar como os de Kierkegaard; porém diante de uma época que se afogava em si mesma, diante da problemática de uma época, ambos seguiram caminhos que, mesmo diversos, ao serem cruzados nesta breve e até ingênua investigação, revelam semelhanças assustadoras, que não são jamais – eis onde é preciso atenção – semelhanças interpretativas, conceituais, de crenças ou algo assim, mas semelhanças que advêm mais da própria época e da problemática em que ela se encontrava inserida, do que do olhar filosófico-interpretativo das críticas de Nietzsche ou Kierkegaard.

O que acontece é simples e pode ser descrito assim: diante de uma torre a desmoronar, da qual se pode ouvir os ruídos do concreto e da estrutura enferrujada não mais podendo sustentar-se, dois indivíduos – e esta palavra vêm aqui com todo o peso – a observam e tentam descrevê-la, tanto quanto ao seu momento de queda, quanto ao seu futuro ao chão. Para o alemão, cair é seu destino, e ficar ao chão sua mais alegre realidade, para o danês cair não pode ser um destino, porque reerguer-se ao infinito o é. Dito isto, podemos prosseguir.

O espírito. É absurdo dizer que para Nietzsche o espírito é o sintetizador de alma e corpo, porque o espírito do homem comum, o homem do rebanho, exatamente é algo que se esforça para ser somente alma, quando traz consigo muito de corpo. O espírito-livre aceita ser alma e corpo, e torna-se de fato alma e corpo, porque torna-se o que é, torna-se corpo, onde algo como uma alma aponta aquilo que de racional se apresenta. Mas isto é somente retórica de bolso. É preciso entender este espírito-livre para Nietzsche, e isto nos leva a pergunta se é possível falar de um espírito, no sentido tradicional que carrega o pensar filosófico, na filosofia de Nietzsche.

O homem, demasiadamente humano, é fundamentalmente um organismo, com instintos, pulsões, vontades e necessidades. Algo como um espírito (como o da filosofia tradicional) não existe neste organismo homem. Por que então esta ilusão? Por que se falou tanto em espírito ao longo da filosofia?

De muito longe vem este erro. Quando da necessidade grega ou talvez antes dela, de universalizar as coisas todas, de criar conceitos universais que os pudessem justificar em sua vontade de verdade, de tornar eterno estes conceitos e identificá-los com o Bem, o Belo, o Justo. Eis que é aqui que

77 Nietzsche. A Gaia Ciência. Aforismo 124 – No horizonte do infinito.

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surge uma grande ilusão: aquela que diz que o homem racional é consciente de si, de sua existência. Esqueceu-se que esta própria racionalidade não é a faculdade fundamental do homem, que ela é somente uma faculdade com funções como outra qualquer. O homem foi aos poucos se tornando um só, unificando-se através de suas mais fantásticas criações metafísicas, sempre ancoradas num Deus necessário, que por sua vez se ancorava numa moral nociva à saúde individual, à saúde humana. O homem moralizado, vivendo em meio às correntes, tolhido por escolha, segue sua rotina de rebanho sempre aos tropeços, e quando cai numa ação imoral que é sua natureza volta-se aos seus e diz:

“Nada nos é mais fácil do que ser sábios, pacientes e circunspectos. Gotejamos óleo da indulgência e da

simpatia, somos justos de um modo absurdo, perdoamos tudo. Precisamente por isso, devemos comportar-nos

de modo mais severo; precisamente por isso, devemos, de tempos a tempos, cultivar uma pequena emoção, um

pequeno vício... Não temos nenhuma outra maneira de auto-superação: é esta nossa ascética, a nossa

penitência”... Tornar-se pessoal – a virtude do “impessoal”...

(NIETZSCHE. O Crepúsculo dos Ídolos. Incursões de um extemporâneo. 28 – Os “impessoais” têm a

palavra)

Dizem isto e voltam ao rebanho estes homens unificados. Jamais se tornam de uma vez por

todas pessoal, jamais se tornam indivíduo. São uma multidão, uma massa amorfa. Nietzsche observa esta realidade e só pode apontar uma saída: o afastamento da multidão. Os espíritos-livres destroem este mundo unificado, este mundo impessoal, destroem e se afastam dele. Passam a observar o mundo como ele é, desconhecido, cheio de mistérios e aventuras, e dentro deste mundo, tomam consciência de que um mundo unificado não pode ser mundo senão àqueles que não sabem tornar-se corpo, e precisam fugir dele para uma alma pura, elevada, para um espírito que é imagem e semelhança de Deus, para sua metafísica e moral. Por isso Nietzsche pode dizer:

De fato, nós outros, filósofos, “livres espíritos”, sabendo que “o antigo Deus está morto”, sentímo-nos

iluminados como por uma nova aurora; o nosso coração transborda de gratidão, de espanto, de pressentimento e

de expectativa... eis que enfim, mesmo se não está claro, o horizonte de novo parece livre, eis que enfim os

nossos barcos podem voltar a partir e vogar diante de todos os perigos.

(NIETZSCHE. A Gaia Ciência. Aforismo 343 – A nossa serenidade)

Os espíritos-livres superaram, ou como diz Nietzsche, transvaloraram todos os valores que

aprisionam a humanidade, descobriram enfim o segredo que esta humanidade não quer ver, não quer possuir, aquele que revela que eles próprios mataram seu Deus e ainda assim lhe erguem altares. É de dentro do niilismo que brota este espírito-livre, não para descartá-lo, mas para renová-lo e vivê-lo mais intensamente, pois todos os caminhos estão abertos outra vez, tudo outra vez é novo.

Tudo é novo também quando o indivíduo escolhe a si mesmo e supera o nivelamento que mantêm todos unificados na multidão. Mas aqui, para Kierkegaard, tudo é novo de uma forma eternamente diferente. Tudo precisa ser novo porque o velho está corroído pelo excesso de reflexão. Ainda assim, quando Nietzsche diz “o aumento de consciência é um perigo, e quem vive no meio de europeus conscientes, sabe mesmo que se trata de uma doença”78, diz o mesmo que Kierkegaard quando este aponta o nivelamento que retira dos homens toda paixão e lhes entrega à uma reflexão moral demasiada artificial e diz que é desta patologia que deve o indivíduo fugir. E quando Kierkegaard diz:

Todo espírito sério, minimamente atento ao caráter desta época verá, sem dificuldade, toda a importância que há

em se opor de maneira corajosa e radical... e em se opor, digo, a uma confusão que, do ponto de vista filosófico

e social, pretende desmoralizar “os Indivíduos” invocando “a humanidade” ou categorias sociais que dependem

do fantástico... só é possível opor-se a esta confusão levando os homens, se possível, à consciência da sua

individualidade!

(KIERKEGAARD. Ponto de vista explicativo de minha obra de escritor. Apêndice)

78 Nietzsche. A Gaia Ciência. Aforismo 354 - Do gênio da espécie.

O Tempo e o Eterno______________________________________________________________dennisPOTTER

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Acaba por dizer o mesmo que Nietzsche diria anos à frente em seu O Crepúsculo dos Ídolos,

referindo-se ao espírito-livre e o encontrar-se a margem da sociedade que lhe é imposto:

É na sociedade, na nossa sociedade domesticada, medíocre, castrada, que um homem natural, o qual vem da

montanha ou das aventuras do mar, degenera necessariamente em delinqüente. Ou quase necessariamente,

porque há casos em que tal homem se revela mais forte que a sociedade.

(NIETZSCHE. O Crepúsculo dos Ídolos. Incursões de um extemporâneo. 45 – O Delinqüente que lhe é afim)

Ambos dizem o mesmo. Que a época em que se encontravam claramente impedia o

surgimento de indivíduos, e quando estes, por esforços além, brotavam do seio desta mesma sociedade, desta mesma época, eram posto de lado pelo rebanho, pela multidão. O indivíduo é posto de lado pela multidão nivelada da qual ele se arranca justamente no momento da assunção de sua individualidade e por assumir essa individualidade. Este indivíduo, ao sair de sua artificial vida reflexiva no tomar para si de volta todas as paixões escondidas pelo manto divinizado da razão, sai desta multidão e volta pra si, volta pra casa, porém, diferente de Nietzsche, para Kierkegaard esta casa não é um organismo onde uma razão brotou para realizar algumas funções, mas sim uma síntese que põe o homem em íntima relação com o Deus Verdadeiro, aquele esquecido pela própria multidão nivelada que se chama povo de Deus e cristãos. Esta cristandade não se diferencia em nada dos que eles chamam gentios (ou não cristãos), a não ser no fato de terem escolhido perder-se na multidão, de terem aceitado uma reflexão que lhes retirava de si e os lançava num mundo onde todas as coisas ainda estão de pé, porém esvaziadas de todo movimento, porque esvaziadas de toda paixão.

Este indivíduo foge do mundo e entrega-se ao mundo então renovado, assim como o espírito-livre, porém a diferença está na renovação que se realiza, enquanto o espírito-livre se lança ao mundo desconhecido, aberto a todas as aventuras, o indivíduo aqui em Kierkegaard chamado o cavaleiro da fé, entrega-se a este mundo para superá-lo ao infinito, e este indivíduo é o cavaleiro da fé porque exatamente ao escolher e assumir sua individualidade, lança-se num mundo abraçado pelo Eterno, pelo divino, e este lançamento é um salto no escuro, um passo cego no e para o absurdo do paradoxo da fé.

Como Kierkegaard justifica não ser este jogar-se nos braços de Deus um retorno à moralização da qual fugira? Não é esta mesma crítica que Nietzsche poderia lhe ter feito? A de não ter saído do lugar com todo um falatório que permanece a mesma ladainha religiosa? Nietzsche com certeza faria tal crítica. Mas para Kierkegaard uma justificação racional ou científica aqui, mesmo de uma ciência interpretativa, uma ciência de perspectivas, é que seria um não sair do lugar. E de retorno o danês poderia dizer à Nietzsche: tu não saístes do lugar, pois na fuga de tua doença esbarraste na pior delas, a ilusão de liberdade num mundo desconhecido supostamente aberto em todos os seus caminhos, mas que na verdade encontra-se cerrado, te puseste como numa solitária, pois uma mudança de olhar que não pode mudar nem o mundo, nem a nós mesmos em nossa existência, senão enquanto o ceder-nos uma leveza qualquer descartável, é somente uma outra prisão onde voluntariamente nos inserimos, e um sair de um corpo que é instinto velado por uma moral e receber um corpo que se aceita como instinto que não se domina e não se pode dominar, talvez porque não se quer, é somente descobrir que à doença que se tem acumula-se outra nova ainda mais velada e nociva.

Ora, ele diria isto porque a justificação para seu salto está no próprio abandono da razão em prol de si mesmo, da escolha de sua individualidade. Para Kierkegaard só este movimento liberta do nivelamento, porque só ele traz consigo nada de racionalidade, o que ele exige realiza-se na outra esfera da existência, na esfera da fé, onde razão nenhuma pode entrar. O indivíduo que realiza esta mudança não deixa por isso de ser quem sempre foi, mas ele torna-se o que é, como o espírito-livre, porém não a partir de um ceder aos instintos e ao corpo, e aqui há outra diferença. Para Nietzsche, por ser organismo, por ser impulsos e instintos, o homem deve aceitar-se assim e não lutar para tolher sua natureza com valorações morais. Mas para Kierkegaard, ainda que seja instinto, impulsos, ainda que o homem seja carne, há nele a centelha divina da eternidade, porém esta eternidade não pode roubar a natureza deste homem, porque é enquanto carne que ele deve se apresentar em sua individualidade perante Deus. O dogma do pecado original, que diz ser um homem um pecador, é entendido por Kierkegaard como o que