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O Terceiro Deus LIVRO III A Dança de Pedra do Camaleão 13

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O Terceiro DeusLIVRO III

A Dança de Pedra do Camaleão

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A MÁSCARA MATERNAL

Salgado com as lágrimas do leite de sua mãe.

(fragmento — origem desconhecida)

Enfiou o rubi na órbita do olho esquerdo, ouviu-o encaixar-se, e,em seguida, sentiu a sua forma dentro da cabeça. Uma pedra igualproporcionava-lhe uma sensação de peso frio na palma da mão.Erguendo-a, encheu a outra órbita e, em seguida, inclinou a cabeça.Com um violento piscar de olhos, ajeitou as pedras, talhadas de formaa ocuparem cada uma das órbitas, com os eixos cristalinos alinhadosde maneira a que aquelas parecessem focadas. Embora os Mestres lhetivessem roubado a visão, não a podiam privar daquele olhar vermelhocomo sangue. Varrendo a divisão com o olhar, Ykoriana notou osmovimentos inquietos produzidos entre as escravas. Nunca deixavaque os lábios se contraíssem num sorriso. Os olhos, mesmo de pedra,são armas.

Exalava perfume enquanto as escravas lhe aplicavam unguentos portodo o corpo, de modo que, mentalmente, escapou da casa proibida epasseava agora no meio de um jardim. As suas narinas inspiravam oalmíscar das rosas mumificadas. Sentiu-se intoxicada com a essência doslírios. Fios de seda de aranhas desceram sobre ela, tão finamente teci-dos que pareciam um líquido a escorrer-lhe dos ombros e dos seios, dosquadris e das coxas. Aprendera a retirar algum consolo da sensualidade.

Embora fosse a filha deles que o filho afirmara que queria ver,Molochite sabia perfeitamente que Ykoriana nunca lhe permitiria

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aproximar-se de Ykorenthe, a menos que esta estivesse protegida pelosbraços dela, sua mãe. Molochite também sabia que, por ser Imperador--Deus, a sua mãe tinha de ser purificada segundo os exactos preceitosda Lei. O Grande Mestre do Domínio do Sangue viera, como era habi-tual, supervisionar o ritual. Ela sentira-lhe a presença, embora eleainda não tivesse falado através do seu homúnculo. Ela passara a odiartodos os Mestres, mas aquele acima de todos, pois considerava-o chefede quem a mantinha prisioneira.

Aquela era uma visita típica de Molochite. Gostava de lhe recordarquanto ela era vulnerável. Sentia prazer em humilhá-la. Agora rara-mente se encontravam, mas ela conseguia controlá-lo através de inter-mediários. Explorara a seu favor os sentimentos lascivos dele, mas,agora que tinha uma filha, só o convidava para a sua cama para renovaro domínio que exercia sobre ele. No resto do tempo permitia que elesatisfizesse os desejos onde podia. Quanto às pequenas rebeldias dele,eram suportáveis. Embora ele usasse as Máscaras, era ela quemgovernava.

As mulheres da Casa das Máscaras sempre haviam tido um papeldeterminante na escolha do Imperador Deus; porém, mesmo ao dei-xarem cair os seus anéis de sangue nas urnas de voto, desperdiçavamo seu poder nas lutas entre elas. O sangue icórico que lhes corria nasveias não lhes permitia manter a supremacia sobre as outras. Atravésdo nascimento, Ikoriana pusera termo a tal desunião. Sendo a primeiramulher de sangue puro em quatro gerações, os seus anéis de sanguevaliam oito milhares de votos. Poder suficiente para dominar a Casadas Máscaras. Suficiente até para lhe permitir governar sozinha, seassim o desejasse, contra metade do poder das Casas dos Grandes. Cor-ria-lhe nas veias o sangue com que todas as mães sonhavam, o que aslevara a ser mães. Contudo, a amarga ironia era que tal poder só lhetrouxera sofrimento.

O homúnculo do Grande Sábio murmurou e as escravas começarama cobri-la com vestes de brocado, mais espessas que uma couraça. Sen-tiu o temor habitual, de ser aprisionada, de sufocar dentro das rou-pagens.

Era criança quando o seu pai morrera. Amara o seu irmão Kuma-tuya, mas nunca o perdoara por ele ter presenteado o seu amante, SuthSardian, com Azurea, irmã de ambos. Azurea morrera de parto ao dar--lhe um filho, Carnelian. Com o desgosto a sobrepor-se à política,Ykoriana exigira que o irmão exilasse Suth, como recompensa pelosvotos dela na eleição do irmão como Imperador Deus. Como vingança,

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Kumatuya mandara arrancar os olhos da irmã. Esta nunca imaginaraque os Mestres o apoiassem. Um erro estúpido. Todos quantos seafadigavam nas casas proibidas dos Escolhidos tinham motivos parasaber quanto os Mestres temiam e odiavam as mulheres.

Aproximava-se um cortejo. Traziam-lhe a filha. À pressa, estendeua mão para aquela a que chamava a «máscara maternal» e escondeu orosto por detrás dela. Detestava aquela máscara. No entanto, mandara--a fazer para que a filha não se assustasse ao vê-la, não queria que afilha visse o seu rosto murcho, os seus olhos de rubi. Aquelas odiosaspedras que usava para expressar cóleras amargas, para aterrorizar, mas,acima de tudo, como forma de desafiar os Mestres que sempre insis-tiam que ela devia usar olhos de jade, ou de obsidiana, que reflectissemqualquer das máscaras que o Imperador-Deus usasse.

Logo que o cortejo se deteve, os seus ouvidos ficaram à escuta dotinir de jóias por entre o ressoar dos metais. Quando ouviu os passoshesitantes da filha, foi como se os raios de Sol se tivessem derramadosobre o rosto de Ykoriana. Tocou o ouro frio da máscara para se asse-gurar de que tinha o rosto escondido. Fez os dedos delinearem osorriso amável, o pequeno nariz, os seus olhos adoráveis em forma deconcha e de safira azul como o céu. Como os vestidos não lhe per-mitiam pôr-se em pé, ordenou que erguessem Ykorenthe até si.Procurou o rosto da filha com as mãos, encontrando a curva conhecidado queixo e acariciando-a. — Ykorenthe, a minha felicidade — excla-mou alegremente.

Ykoriana desejava pegar na criança, mas o peso das mangas con-sumia-lhe toda a energia. O tagarelar sem palavras de Ykorenthe eramais doce que qualquer música. Protegê-la tornara-se o ponto ful-cral da vida de Ykoriana, esquecera o desejo premente de ver o rostomiúdo da filha. Fora-lhe dito que a menina herdara a beleza do pai.A filha que perdera, Flama, também fora bonita. O tempo não adoçarao desgosto de Ykoriana. A segregação entre homens e mulheres fizerados seus filhos, Molochite e Osidian Nephron, dois estranhos para ela,mas, quanto a Flama, conservara-a tão perto de si quanto a Lei per-mitia. Teimosa, a rapariga desentendera-se com a mãe acerca da eleiçãodo sucessor de Kumatuya. Se tivesse disposto de tempo suficiente,Ykoriana estava convencida de que teria conseguido envenenar o amorde Flama por Nephron. Os espiões de Ykoriana haviam conseguidorevelações suficientes para que a filha não alimentasse ilusões acercado papel que lhe estava destinado se Nephron se tornasse Deus. O san-gue de Flama era ainda mais icórico do que o de Ykoriana. Nephron

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teria desposado a irmã e a mãe deles teria sido exilada para as pro-fundezas das casas proibidas imperiais. Ainda assim, tinha amadosuficientemente Flama para se arriscar a sofrer tal destino. Quem Yko-riana subestimara fora o outro filho. Molochite reconhecera que osvotos de Flama neutralizariam os que a mãe de ambos lhe desse. Tam-bém reconhecera que o irmão era mais popular do que ele próprio,não só na Casa das Máscaras mas muito mais para lá, entre os Grandes.Receando perder, Molochite assassinara a própria irmã. Enraivecida,Ykoriana estivera prestes a entregá-lo à justiça dos Mestres; salvara-oo facto de a mãe não se deixar dominar pelas paixões. Flama estavamorta e, graças à sua morte, Ykoriana abrira caminho para o poder,por intermédio de Molochite.

Como ela tivesse vacilado, espalhara-se por Osrakum o boato deque Ykoriana tinha assassinado a filha. O horror e a indignaçãotinham dado lugar à meditação, à apreciação de quanto o boatocontribuía para que ela se tornasse temida. Aprendera com os Mestresque o medo era um meio de adquirir poder. Os inimigos tinhamtirado partido da sua distracção. Em plena confusão provocada pelospreparativos para as famílias se mudarem para os seus palácios, acimada Muralha Sagrada, o Senhor Aurum convocara o Concílio e conse-guira que Suth fosse eleito Aquele-Que-Precede. Ykoriana poderia terevitado a nomeação se tivesse disposto de tempo para mobilizar os seusapoiantes entre os Grandes. Porém, pensando melhor, atribuíra àjogada de Aurum o seu justo valor: não passara de um acto dedesespero. O melhor seria permitir que o velho tonto deixasse o seupartido sem chefe, quando partisse numa daquelas missões fúteis àCasa de Exílio do Norte Remoto. O mundo que interessava, o mundoque ela conhecia, era delimitado pela muralha de montanhas à voltade Osrakum. Para lá dos montes, não falando do barbarismo esquá-lido da Terra Protegida, era o nada. Com a sua característica excentri-cidade, Suth decidira que nem esperaria que o exilassem para umadas cidades de lá, mas partira, juntamente com o filho, para uma dasgélidas ilhas existentes do outro lado do mar nórdico. Uma situaçãoque até a divertiu. Soubera o que Aurum desconhecia, que o exílio deSuth fora há muito anulado, mas que ele decidira não regressar.

Ainda assim, Ykoriana tivera de tomar precauções. Os seus agentesrecrutaram à pressa um Senhor dos Grandes de menor importância,Vennel, para acompanhar Aurum e, com promessas de um filho nas-cido de uma mulher da Casa dela, comprara-lhe os olhos e os ouvidos.Ao receber uma carta do tonto, ficara bem menos divertida. Contra

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todas as suas expectativas, Suth regressara às Três Terras na companhiade Aurum. A inquietude dera lugar ao pânico quando eles desapa-receram da Torre do Mar. Receara que, no caso de chegarem a Osra-kum a tempo, pudessem influenciar os Grandes para que elesdecidissem a eleição a favor de Osidian Nephron. A oferta para lhesarmar uma cilada partira dos Hanuses. Para que não a julgassemimplicada, não respondera aos dois irmãos. Estes sabiam que, sefalhassem, ela os abandonaria aos Mestres. A conjura dos irmãos sóconseguira ferir Suth. Ninguém a acusara, mas a maioria pensava queela estava por detrás do acontecimento. O cisma entre as facçõesaprofundara-se. Os apoiantes de Molochite, o candidato de Ykoriana,decidiram-se antes de mais por terem medo dela; a oposição fortale-cera-se igualmente e florescia desde que Suth regressara a Osrakum.Obrigara Molochite a negociar a própria eleição dele com os Grandes.Foram usadas quer a coação quer a sedução. O golpe final, o de trazerImago Jaspar para a sua causa, convencera-a de que tinha a vitóriacomo certa, mas os esquemas de Ykoriana não resultaram. A votaçãofoi-lhe desfavorável.

Acariciou Ykorenthe e sorriu-lhe, por detrás da máscara. EnquantoSuth e Aurum celebravam, ela roubara-lhes a vitória. Antes da eleição,Imago informara-a de que Osidian Nephron passara para o JardimProibido de Yden, na companhia de Carnelian, filho de Suth. Assemelhanças entre os actos deles e os dos seus pais tinham-na per-turbado, mas quando a votação fora contrária a Molochite, o desesperode Ykoriana foi suficiente para a levar a desferir um último golpe. Jáautorizara que Molochite dormisse na cama dela. Ele passara anos afarejar atrás dela e fora essencial trazê-lo para a cama antes que assu-misse o poder imperial. Renunciando à sua reclusão perantetestemunhas, deixara que ele lhe pusesse um filho no ventre. Se desseà luz uma rapariga, e se a filha um dia se voltasse contra a mãe, Yko-riana poderia provar que a filha fora concebida antes de o pai ter sidofeito Deus, podendo, por isso, retirar-lhe os anéis dos votos. Isso acon-tecera antes de Ykoriana começar a amá-la, embora desejasse não tervoltado a ser tão fraca. Uma filha amada constituía uma tremenda vul-nerabilidade.

Ykoriana deu grande valor aos anéis de ferro, que exigira aosHanuses como prova de que Osidian e o seu amante tinham sido mor-tos. Este triunfo provocara um outro, quando Suth levou os Mestresa cometerem o erro fatal que os deixava na dependência dela. OsMestres, como era natural, suspeitaram que a mão de Ykoriana se

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encontrava por detrás do desaparecimento, mas, sem provas, não ousa-ram acusá-la. Ela assegurara-se de que os cadáveres jamais seriamencontrados. Os Mestres não tiveram escolha, e endeusaram Molochitedurante uma Apoteose. Ao casar com ela, o novo Imperador Deus derainício ao reinado de ambos.

Sentia o bafo quente da filha junto à orelha. Ykoriana acariciou--lhe a pequena cabeça.

Forçar o Concílio a depor Suth não lhe proporcionara a satisfa-ção que previra. Conseguira que Aurum fosse deposto. Lutando parase salvar, o velho tonto revelara-lhe as razões que tinham levado Sutha não regressar logo que o seu exílio fora revogado. Vennel, que nãoconseguira encontrar a solução do enigma, como ela pedira, sofreraas consequências. Aquele fora o segredo de que Aurum se servira paracontrolar Suth durante a eleição, esperando vir a exercer influên-cia sobre Osidian Nephron logo que este se tornasse Imperador Deus.A informação não fora tão valiosa para ela quanto o velho tonto jul-gara. Só conseguira convencê-la a enviá-lo para o exílio, em vez deo eliminar. Ykoriana sorriu, a imaginar o desespero dele. Sendo-lhenegado o herdeiro que esperara, teria de gastar os anos que lhe res-tavam longe de Osrakum, aprisionado na desolação do mundo exterior.

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