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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
O TERRORISMO ISLÂMICO INTERNACIONAL: “EFEITO COLATERAL” DA
ORDEM HEGEMÔNICA NORTE-AMERICANA
Hermes Moreira Jr.1
RESUMO
As estruturas de poder do sistema internacional contemporâneo se encontram sob controle de uma única grande potência, os Estados Unidos, que busca, por meio do processo de mundialização de fluxos de capitais, informações e pessoas, expandir sua dominação a todas as esferas desse sistema. Frente a essa pretensa ação hegemônica norte-americana, uma série de movimentos de resistência tem atuado no sentido de desestabilizar as estruturas da ordem internacional. Logo, o presente artigo pretende demonstrar de que modo o terrorismo islâmico internacional pode ser considerado um “efeito colateral” dessa ordem hegemônica unipolar e como ele tem agido como resposta contra-hegemônica a esse processo de dominação.
Palavras-chave: terrorismo internacional. Estados Unidos. ordem internacional. hegemonia norte-americana
INTRODUÇÃO
A queda do muro de Berlim e a dissolução da União Soviética significaram o ruir de
uma ordem internacional que prevalecera durante a Guerra Fria e dividira o mundo em dois
blocos com estratégias e políticas antagônicas por quase meio século. O conflito bipolar entre os
Estados Unidos e a União Soviética representava mais do que a disputa entre dois modelos de
organização política e social. Além do conflito no plano ideológico, movido pela oposição
existente entre o “capitalismo de mercado” e o “socialismo de estado”, a manutenção da Guerra
Fria representava a solidificação de uma ordem internacional emergente no pós II Guerra.
Contudo, as transformações ocorridas na geopolítica mundial no pós-Guerra Fria e a
nova distribuição das forças políticas e sociais apresentaram ao sistema internacional um cenário
mais dinâmico que o anterior, apoiado sob as bases de uma nova configuração de poder, que se
desenvolvia sob a hegemonia unipolar norte-americana. Supostos vencedores do conflito, os
norte-americanos aproveitaram o clima de otimismo no cenário internacional para propor sua
“ordem” como valor universal.
Nessa perspectiva, à “nova ordem mundial” que se constituía estava associada a
universalização dos princípios liberais e democráticos, acrescendo a premissa de solidificação da
1 Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (2007). Mestrando em Relações Internacionais e Desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNESP/Marília.
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governança global via ONU. Predominava a percepção de que os valores e princípios
simbolizados pelos EUA se expandiriam a todas as sociedades sem qualquer forma de resistência.
O mundo parecia estar norte-americanizado.
Esta visão, somada à desintegração do modelo ideológico que se contrapunha ao
capitalismo liberal ocidental, propiciou a formulação de teses como a do “Fim da história”, do
cientista político norte-americano Francis Fukuyama (1989). Segundo ele, a democracia liberal foi
proclamada como o agente do fim da história, pois os conflitos ideológicos seriam substituídos
pela razão democrática, uma vez que as sociedades que desafiavam esse modelo estavam aderindo
gradual e voluntariamente esse regime. Quando o processo estivesse completo, todas as
sociedades compartilhariam dos mesmos ideais e valores, e não haveria mais conflitos ou
oposições de interesses no sistema. No momento em que esse processo se concretizasse a
sociedade internacional estaria consolidada.
Com o enfraquecimento do socialismo – ameaça sistêmica à ordem capitalista – a
globalização da economia acentuaria a expansão do mercado em detrimento do Estado, apoiada
nas premissas básicas do liberalismo: garantia da propriedade privada e confiança no império da
lei (AYERBE, 2005b). Em seguida, a estabilidade internacional seria buscada através da
constante expansão e consolidação do regime liberal e democrático.
Porém, a proposta do liberalismo somente se tornaria viável a partir da criação de um
núcleo de parceiros que compartilhasse os mesmos valores, sem contestar o centro do sistema.
Desse modo, a nova ordem internacional teria que se constituir como reflexo do modelo
vitorioso: um sistema capitalista polarizante e imperialista, de centros dominantes e periferias
dominadas (AMIN, 2006). Contudo, ao mesmo tempo em que o capitalismo se depara com
novos horizontes, emergem divergências e tensões por parte daqueles que discordam da nova
ordem unipolar e hegemônica proposta.
Ademais, o projeto de expansão norte-americano expressa um processo histórico-
social que possui seu pilar central na dimensão militar. Ao se reconhecer como potência
dominante de um sistema unipolar, os Estados Unidos passaram a praticar a extensão da
Doutrina Monroe, sob a justificativa de guardião da ordem internacional e gestor do sistema,
calculando suas ações de acordo com a necessidade de realização de seus interesses nacionais.
A despeito das intenções da potência, este período de unipolaridade norte-americana
tem sido marcado por formas de resistência no plano internacional. Essa resistência surge, em
grande medida, identificada a países da periferia do sistema capitalista, a partir de movimentos
sociais que visam combater os processos de globalização hegemônica impostos pelo centro do
sistema, denominados por Boaventura Sousa Santos como localismos globalizados e os
globalismos localizados (SANTOS, 2002). Não obstante, Sader (2002) observa que esses focos
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de combate e resistência à dominação também podem estar acompanhados de reivindicações
culturais ou étnicas, pautadas em um fundamentalismo religioso que constrói o conflito em
termos de enfrentamento entre valores espirituais e materiais.
Em geral, processos de resistência adquirem caráter radicalizado a partir do momento em
que a sobrevivência, imaginária ou real, das comunidades locais se encontra ameaçada. Em
meio a este processo de fragmentação cultural é que a violência se inscreve, favorecendo o
surgimento de ações extremistas, que se constituem com grande freqüência a ataques contra o
centro dominante do sistema.
No século XXI, esse processo se desenvolve por meio da ampliação de ações
terroristas a partir de um recrutamento transnacionalizado, com objetivos políticos e identidade
consolidados, operando dentro de uma lógica própria de desestabilização do sistema. A
particular orientação islâmica dos envolvidos mais recentemente nesse processo é uma resposta
à situação vivida por essas sociedades. Segundo Gomez:
[...] redes islamistas y milicias de jihaidis se expandían a lo largo de los focos de conflicto, combinando fundamentalismo religioso y terrorismo transnacional. Buscando apoyo y legitimidad en poblaciones desesperanzadas y sumergidas en la pauperización económica y la opresión política, se orientaban a partir de una visión estratégica dicotómica que divide el mundo en Occidente e Islam, y declaraban la guerra santa (2002: 262).
Assim, podemos compreender que a ação terrorista internacional possui um caráter de
resistência à dominação hegemônica, que está vinculada a um processo histórico e cultural.
Dessa forma, precisamos entender como se desenvolveu esse processo histórico nas sociedades
islâmicas, para então buscar interpretações acerca do terrorismo jihadista como um movimento
de contestação contra-hegemônico, e deflagrado como efeito colateral da ordem imposta pelo
centro do sistema.
O FUNDAMENTALISMO ISLÂMICO
O controle político do Oriente Médio é considerado questão-chave para o domínio
hegemônico dos Estados Unidos no sistema internacional. A região possui consideráveis
reservas de recursos naturais (sobretudo petróleo), além do aspecto geopolítico, devido ao
posicionamento estratégico na contenção de possíveis potências desafiantes, como Rússia,
China, Índia, Irã e mesmo a Europa Ocidental.
A história recente do Oriente Médio é caracterizada por intervenções, depredações,
dominação e repressão por parte das potências ocidentais. A corrida imperialista de finais do
século XIX e início do século XX fez com que a região passasse a ser palco de rivalidades das
potências européias. A idéia de tornar legítima a autoridade européia sobre as colônias era
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essencial para a defesa dos interesses das elites dominantes. Como observado por Hourani
(2005), eram buscadas justificativas para esse processo, tais como a superioridade da civilização
européia e a necessidade de levar aos territórios conquistados a prosperidade alcançada a partir
do desenvolvimento do senso de ordem e justiça, conforme o padrão ocidental.
Ademais, esse imperialismo de finais do século XIX e início do XX, buscava novos
mercados consumidores e novos fornecedores de matérias-primas, novos parceiros e novas redes
de fluxo financeiro e comerciais. Impulsionadas pela lógica da revolução industrial, em um
ambiente europeu que vivia a depressão econômica e o protecionismo das economias nacionais,
as grandes potências capitalistas ocidentais foram ao oriente para garantir sua hegemonia.
Ao longo do século XX os reflexos dessa dominação ocidental estiveram presentes em
praticamente todos os conflitos que envolveram os países da periferia do sistema, sobretudo no
Oriente Médio. Constata-se que a arbitragem das potências ocidentais no desenrolar destes
conflitos está na origem da maior parte dos conflitos atuais na região. Em muitos casos,
inclusive, esse processo foi responsável pelo acirramento de guerras civis e pelo surgimento de
grupos fundamentalistas. Em sua essência, conforme nos mostra Massoulié (1994), tais grupos
acreditam que para reencontrar os verdadeiros caminhos do Islã, os muçulmanos devem “beber
nas fontes de sua própria história” e não mais se submeter a nenhuma espécie de superioridade
estrangeira.
Dentre estes grupos surgiria uma nova força política no Oriente Médio, a Irmandade
Muçulmana2, que buscava fazer do Islã um sistema constitutivo supremo e perfeito, destinado a
englobar e ordenar o conjunto das atividades humanas. A Irmandade Muçulmana se posicionava
contra a ocidentalização e contra o Islã institucional e liberal, seguia os passos do legado
islâmico e as etapas da jihad3:
[...] o primeiro grau da guerra santa consiste em expulsar o mal de seu próprio coração; o grau mais elevado é a luta armada pela causa de Deus. Os graus intermediários são o combate pela palavra, pela pena, pela mão e pela palavra de verdade que dirigimos às autoridades injustas (MASSOULIÉ, 1994: 32).
O exemplo da Irmandade Muçulmana impulsionou o surgimento de outros
movimentos de afirmação identitária. A busca pela autodeterminação, pela autenticidade ligada
a um passado glorioso e pela aversão à modernidade identificada com o Ocidente, constituíram 2 A Irmandade Muçulmana se organiza em 1928 sob a liderança de Hassan al Banna em resposta à secularização da Turquia e contra o colonialismo britânico no Egito. Al Banna acreditava que o mundo muçulmano e árabe enfrentava uma ameaça sem precedentes com a hegemonia ocidental, impregnada com os valores da democracia, o que fatalmente levaria aos países árabes e muçulmanos ao abandono da verdadeira comunidade (ummah) e conseqüentemente a um enfraquecimento do Islã. A salvação era o retorno a uma comunidade verdadeiramente muçulmana. 3 Pode ser entendida como uma luta, mediante vontade pessoal, para se buscar e conquistar a “fé perfeita”, utilizada frequentemente para defender ou difundir o islamismo.
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as bases para o desenvolvimento do fundamentalismo religioso islâmico. Neste aspecto, a
religião possui a capacidade de fornecer um elemento de unidade e identidade essencial no
trabalho ideológico de construção de movimentos de resistência e contestação. Utilizada como
uma expressão de negação do sistema, a noção de religião é instrumentalizada para fins de
destruição da ordem existente, em busca de uma regressão ao passado, mas é implementada por
meio de mecanismos modernos (PECEQUILO, 2003).
Desse modo, na abordagem fundamentalista, o passado faz o papel do presente, como
meio de afirmar e reabilitar a identidade frente ao desafio ocidental. O fundamentalismo
islâmico contemporâneo pretende ressuscitar a tradição e projeta um futuro “radioso” através de
uma releitura ideológica do passado. Segundo al-Jabri (1999), esse fundamentalismo apresenta-
se como “movimento religioso e político que busca a renovação, ou seja, uma nova
interpretação dos dogmas e das leis da religião, baseadas diretamente nos fundamentos do Islã”.
Porém, deve-se ter bem claro que o fundamentalismo não é exclusividade do
islamismo. O termo, assim argumenta Halliday (2002), originou-se como uma resposta à ciência
e à razão, e como fonte de reação ao pensamento crítico que reinterpretava e desafiava as
escrituras sagradas. O fundamentalismo desenvolveu-se com o intuito primeiro de invocar um
retorno literal a estes textos sagrados e outro, posterior, de aplicar essas doutrinas na vida social
e política. Deve-se destacar que o fundamentalismo é um fenômeno político central de nossos
tempos, é um movimento que aspira obter e, uma vez obtido manter, o poder político e social.
A despeito de toda invocação do passado, a linguagem e as políticas do
fundamentalismo podem ser vistas como uma forma de ideologia contemporânea, que
ecleticamente faz uso de temas tradicionais para propósitos contemporâneos. Ainda de acordo
com Halliday (2002), os movimentos fundamentalistas buscam, sobretudo, estabelecer
identidade, oferecer uma história legitimadora, criar um programa de mobilização para ascensão
ao poder, e construir uma nova sociedade, muitas vezes contendo elementos de nacionalismo,
anti-imperialismo, contestação e rebelião.
Desse modo, o elemento do fundamentalismo islâmico que abala o Ocidente é a
sobrevivência da idéia reacionária de retorno ao passado, que procura fechar o Oriente dentro de
suas tradições. Trata-se de um movimento que impede que haja outro movimento rumo a um
desenvolvimento histórico linear, e que combate a secularização e o caminho trilhado pelos
valores liberais ocidentais. Assim, as sociedades islâmicas passam a ser dotadas de
posicionamentos a-históricos, a-temporais e a-críticos, fechada em valores tradicionais e
conservadores, muitas vezes extremistas e violentos.
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Em contrapartida, o Ocidente continua seu processo de intervenção e expansão, não
mais nos moldes tradicionais de dominação colonial direta, mas a partir de um processo de
tentativa de homogeneização cultural e consolidação de um ordenamento sistêmico.
A CONSTRUÇÃO DA PAX AMERICANA
A constituição da hegemonia norte-americana tem se desenhado através de um
processo histórico que emerge no período pós II Guerra Mundial, com a consolidação dos
Estados Unidos como principal potência do cenário internacional. Ao construir um ordenamento
político e institucional vinculado a seus interesses e valores, os Estados Unidos buscaram
montar as estruturas4 necessárias para que, num momento posterior, se lançassem como única
superpotência do sistema, capaz de garantir a multidimensionalidade de sua primazia no cenário
unipolar que se constituía.
Ao passo que findada a Guerra Fria os Estados Unidos teriam vencido seu último
desafio frente ao objetivo de criação de uma ordem unipolar baseada em suas regras e sua
ideologia, eles estariam prontos para consolidar seu projeto Imperial. Para atingir este objetivo,
em um primeiro momento, ao longo da década de 1990, os Estados Unidos optaram por uma
política de soft power5, que privilegia o multilateralismo e a capacidade de influenciar e ditar
preferências de valores.
Contudo, a opção por essa via não significou o abandono de uma atitude impositiva no
plano internacional. Nesses moldes, a manutenção da hegemonia norte-americana deveria se dar
de acordo com a tradição do “império benigno”, que buscava prioritariamente garantir seus
interesses espalhados por todo o planeta. Este tom pôde ser percebido no discurso da ex-
secretária de Estado do governo Clinton, Madeleine Albright, que em certa ocasião caracterizou
os Estados Unidos como a “nação indispensável”.
No entanto, a linha conservadora do establishment americano, formada em sua maioria
por políticos do partido republicano, persistia na afirmação de que a postura multilateralista e a
ênfase nos temas econômicos e ideológicos adotadas pela política externa americana nestes
últimos anos refletiam uma perda de poder e caracterizavam atitude de fraqueza, passando ao
mundo uma possível imagem de vulnerabilidade. Segundo os interesses desses quadros do
4 Utilizamos aqui a idéia de estruturas hegemônicas, apresentado por Guimarães (2002), que inclui vínculos de interesse e de direito, organizações internacionais, atores públicos e privados, e elaboração permanente de normas de conduta (p. 28). 5 Os conceitos de soft power e hard power são melhor definidos em: NYE Jr., Joseph. O paradoxo do poder americano. São Paulo: Unesp, 2002.
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establishment, seria necessário promover um processo de revitalização e incremento das forças
armadas para a reconstrução do poder nacional. Ficariam em segundo plano as questões
econômicas, humanitárias, e a importância dos regimes e organizações internacionais. O
unilateralismo norte-americano deveria ser responsável por preservar a condição de potência
hegemônica e maximizar a influência e o poder americano no sistema6.
Os atentados de 11 de Setembro e o desafio proposto pelos grupos terroristas
antiamericanos tornaram-se o mote necessário para que a administração republicana conseguisse
colocar em prática sua política. Baseada em um novo perfil unilateral, agressivo e ofensivo de
atuação, a política externa norte-americana buscou legitimidade na “luta contra o terrorismo”.
Esse processo veio acompanhado da divulgação de sua nova Estratégia de Segurança
Nacional, em 2002, conhecida como Doutrina Bush, ou também como Doutrina Preventiva. Tal
doutrina consiste na antecipação aos riscos de segurança, agindo por meio de ações preventivas
– sejam elas diplomáticas ou guerras – antes que estes riscos se concretizem. Assim, a grande
potência do sistema passara a atuar com novo foco nas relações internacionais: ação preventiva
para a antecipação de crises internacionais, empreendendo maiores esforços na prevenção,
administração e resolução de novos conflitos.
Para tanto, conforme observa Derghoukassian (2002), os formuladores da política
externa norte-americana trouxeram de volta ao debate político e acadêmico os conceitos de
“Estado pária7” e “Estado falido8”, utilizando esses termos e suas definições como instrumentos
para possíveis ações intervencionistas nestes países. E a partir deste referencial é que os policy-
makers norte-americanos passaram a justificar suas ações prioritárias.
Nessa perspectiva unilateralista de condução de política externa é que a administração
de George W. Bush busca consolidar um projeto de dominação universal. Essa atitude visa
colocar os Estados Unidos como responsáveis pela punição dos inimigos da ordem sistêmica e
tenta advogar para si um papel de polícia global. Os norte-americanos pretendem ser vistos,
conforme afirma Ayerbe (2005b) “já não como guardiões do mundo livre, mas como protetores
das fronteiras que separam a civilização da barbárie, dotando a guerra contra o terrorismo de
contorno bem amplos”.
6 Esta discussão é desenvolvida em Moreira Jr., Hermes (2008). Liberais e Conservadores na Política Externa Americana. Disponível em: www.cenáriointernacional.com.br p.1-15. 7 Estados que desafiam as regras impostas por outros Estados mais poderosos e que desafiam o status quo, sendo designados (como Estado pária) por seu nível de engajamento na comunidade internacional, e considerados ilegítimos e ameaçadores para a estabilidade mundial. Outros termos também se referem a esse grupo de países: rogue states ou eixo do mal. Essa classificação compreende inimigos diretos da administração americana que boicotam o sistema, como: Iraque, Irã, Síria, Coréia do Norte e Cuba (DERGHOUKASSIAN, 2002). 8 Estados em que o subdesenvolvimento apresenta-se como marca insuperável, colocando-os sob constante ameaça de colapso em itens básicos de sobrevivência, como alimentação, saúde e segurança física. (AYERBE, 2005a).
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Do ponto de vista de Giovanni Arrighi (1996), “a hegemonia mundial refere-se
especificamente à capacidade de um Estado exercer funções de liderança e governo sobre um
sistema de nações soberanas”. Logo, a atitude norte-americana no intuito de garantir sua ordem
hegemônica deveria combinar dominação e liderança. Contudo, na atual administração essa
política não tem sido observada.
A imposição do atual modelo econômico proposto pelos Estados Unidos, que busca a
maximização dos lucros de suas empresas no exterior através da liberalização de mercados,
resulta em outro efeito. Acaba por fim gerando conseqüências danosas nos países e regiões com
menor capacidade de adaptação à competição global, acentuando as disparidades entre ricos e
pobres e contribuindo para inflamar sentimentos fundamentalistas (AYERBE, 2005b).
Portanto, denota-se dessa análise que parte central do movimento terrorista atual
responde a crises sistêmicas que atingem diretamente a periferia, combatendo seus motores e
efeitos. Trata-se de uma resposta à frustração causada pelas promessas de prosperidade,
liberdade e igualdade propagadas pelo Ocidente durante a construção e exportação de seu
modelo, que, na verdade, se reproduz sob as faces contraditórias da globalização.
Desse modo, a escalada militar e o endurecimento da política externa norte-americana
no pós 11 de Setembro, deflagram uma “guerra” em busca da satisfação de objetivos próprios, e
revela que por trás da “cruzada contra o terrorismo” estão os interesses da grande potência em
sufocar qualquer foco de contestação à sua pretensa ordem hegemônica.
O FOCO DE RESISTÊNCIA CONTRA-HEGEMÔNICA
Devido ao acelerado processo de mundialização em curso, que interconecta econômica
e tecnologicamente habitantes de diversas regiões do planeta, a ação terrorista adquire status
internacional, e pode ser entendida como “um movimento de contra-hegemonia na medida em
que é vista como movimento de recusa e oposição aos valores difundidos por um grupo
hegemônico” (LASMAR, 2003).
A atual série de atentados perpetrados contra os símbolos da civilidade ocidental marca
uma tendência observada na evolução recente do terrorismo internacional. Essa escalada do
terrorismo contemporâneo trata-se do terrorismo de resistência. De acordo Arend (2005), o
terrorismo de resistência visa a desestabilização do Estado através do uso (e da ameaça) da
violência, gerando tensionamentos sistemáticos no seio das sociedades ocidentais.
Para isso, devemos levar em consideração a vulnerabilidade constitutiva das
sociedades periféricas, crescentemente urbanizadas, porém com importantes segmentos da
população em situação de precariedade. Desse modo, os momentos de desestabilização da
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política internacional deixam de ter suas origens em agressões e disputas entre os Estados e
passam a surgir de conflitos assimétricos, entre a sociedade expansiva ocidental e os núcleos
contra-hegemônicos fundamentalistas.
É nestas sociedades periféricas que amadurecem as idéias de ódio e destruição ao
centro dominante do sistema, transformando esse em alvo do terror. O fundamentalismo
extremista religioso e o terrorismo de resistência buscam a instabilidade do sistema e o
rompimento da atual ordem internacional através do conflito.
O terrorismo é um fenômeno moral e político singular, que, segundo Halliday (2005),
está interligado aos temas de revolta e oposição à opressão. Para ele, no mundo contemporâneo,
essa tem sido a forma mais recorrente de resistência e insurgência política contra a dominação
hegemônica. Dessa forma, deve-se entender que o terrorismo é apenas uma parte, ou etapa, de
um sequenciamento de atos vinculados a um projeto político último.
A campanha terrorista internacional pode ser caracterizada como um vetor que,
constituindo-se como movimento contra-hegemônico, visa desafiar diretamente esta ordem
hegemônica que busca se estabelecer no cenário internacional. Portanto, o terrorismo
internacional não tem como objetivo específico a tomada do poder, seu objetivo direto é a
desestabilização do regime vigente através do terror induzido na população, buscando uma ação
desintegradora. Neste sentido, nas palavras de Pecequilo (2003) percebe-se que
[o] combate ao sistema se dará por dentro, e a partir dos mecanismos e estruturas deste mesmo sistema, utilizando-se de seus canais para a expansão e desenrolar dos movimentos, ao mesmo tempo em que o negará em seus princípios, valores e formas de organização (p.59).
A ação destes grupos terroristas pretende impor a desestabilização do inimigo, o
desmembramento do tecido social, fazendo com que o grupo opressor perca seu elemento de
coesão (REINARES, 2005). Halliday (2005) afirma que a característica global do terrorismo é
essencial para que haja maior compreensão por parte de todos da “face negra” da globalização.
Nesse aspecto, tal processo demonstra que além da prosperidade do Ocidente existe um mundo
privado destes “benefícios” que a vida moderna pode proporcionar, sobretudo nas áreas
periféricas do sistema econômico internacional.
Este sentimento de privação e desigualdade passou a ser explorado pelas redes e
milícias islâmicas, que se expandiram paulatinamente ao longo da última década. Dessa forma,
combinando fundamentalismo religioso e terrorismo, e procurando apoio e legitimidade em
populações desesperançadas e submergidas em uma pauperização econômica e opressão
política, esses grupos extremistas alimentam suas mensagens e recrutam novos combatentes
para sua “guerra santa” (GOMEZ, 2002).
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Desse modo, o terrorismo internacional se refere àquele que encontra na ordem
imperial a identificação do seu inimigo e busca desestabilizar todo o sistema internacional no
intuito de combater seu centro. Assim, os terroristas internacionais atacam grupos estrangeiros e
Estados que identificam também como aliados de seu inimigo, procurando agir como
movimento capaz de romper com a ordem hegemônica imposta ao sistema.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As contradições desencadeadas pela lógica da globalização e da concomitante
expansão de valores ocidentais, bem como os impactos da modernização, em sociedades que
não se encontravam totalmente preparadas para integrar-se à globalização, resultaram em graves
problemas sociais e econômicos. Em vista desse mesmo processo, as nações não-ocidentais
passaram a conviver com a influência em suas sociedades de valores distintos de suas raízes
sociológicas e culturais, tais como: a democracia liberal, o livre comércio, os direitos humanos,
o individualismo, etc.
Nas palavras de Arend, isto significa que
[a] expansão do Ocidente se relaciona com a globalização dos conflitos na civilidade na medida em que ela universaliza um conjunto de valores em detrimento de outros, colocando as bases do sistema de legitimação no qual se basearão as atitudes e idéias políticas em âmbito global (AREND, 2006).
Essa influência, dos valores externos, trouxe a essas sociedades novas fontes de
conflitos. Os problemas de segurança eclodiram principalmente ao se contraporem, na maioria
das vezes, a instituições políticas discriminatórias, ideologias de exclusão nacional, e políticas
intergrupais e elitistas agressivas. Sua inserção se dá em uma história problemática de grupos
culturais e geografia étnica.
Nessa perspectiva, o terrorismo atuaria como ator contra-hegemônico dentro desta
lógica de combate aos grupos dominadores, buscando alternativas capazes de superar a ordem
estabelecida. A resistência a essa ordem, hegemônica, pretensamente imperial e
intervencionista, faz da ação terrorista a maior forma de insurgência política à estabilidade
global do sistema capitalista dirigido pelos Estados Unidos.
Percebe-se que o terrorismo se trata de um reflexo das contradições internas e externas
que o próprio sistema controlado pelo Ocidente lhe impõe. Dentro desta perspectiva, a “guerra
contra o terrorismo” e o “mito do terrorismo universal” se encaixaram perfeitamente nos planos
de política doméstica e internacional dos Estados Unidos, que aplicam sua doutrina de ação
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unilateral através da política de guerra permanente e do intervencionismo imperial e
hegemônico.
Contudo, diferentemente daquilo que se costuma fazer pensar, o terrorismo não se
restringe apenas à inspiração religiosa islâmica. A violência motivada por discursos políticos e
teocráticos tem se desenvolvido também a partir de setores fundamentalistas de origens
distintas, tanto cristãs como judaicas. Portanto, a violência e o terrorismo não podem ser
vinculados a qualquer doutrina ou dogma religioso.
Até mesmo porque, segundo aponta Tariq Ali (2002), o fundamentalismo imperialista
e neoliberal norte-americano passou a apoiar a lógica militar, tanto nas “Guerras do Petróleo”
quanto na “Guerra contra o terrorismo”. Logo, deve-se levar em conta que o terrorismo surge
como efeito colateral desta ordem hegemônica norte-americana, e dialeticamente, de acordo
com a apropriação feita dele, pode operar tanto como forma de resistência, quanto como
ferramenta de garantia de ordenamento no sistema internacional.
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