O Tigre da Malásia

1367
— Tigrezinhos, defendam a minha ilha! Gritou Sandokan para os piratas aglomerados na praia. SANDOKAN EMILIO SALGARI

Transcript of O Tigre da Malásia

Page 1: O Tigre da Malásia

— Tigrezinhos, defendam a minha ilha! — Gritou Sandokan para os piratas aglomerados na praia.

SANDOKAN

EMILIO SALGARI

Page 2: O Tigre da Malásia

SANDOKANEMILIO SALGARI

PRIMEIRA PARTEO TIGRE DA MALÁSIA

IO NAUFRÁGIO DO YOUNG INDIA

Page 3: O Tigre da Malásia

— Mestre Bill, onde estamos?

— No coração da Malásia, meu caro Kammamuri.

— Ainda falta muito tempo para chegarmos ao nosso destino?

— Por acaso aborreces-te?

— Não, mas tenho muita pressa e parece-me que o Young Indira vai muito devagar.

Page 4: O Tigre da Malásia

Mestre Bill, americano de nascença, marinheiro de cerca de quarenta anos, mais de um metro e meio de altura, lançou um olhar de descontentamento ao seu companheiro, um belo indiano de vinte e quatro ou vinte e cinco anos, de estatura alta, tez muito bronzeada, feições correctas. Usava argolas nas orelhas e ao

Page 5: O Tigre da Malásia

pescoço tinha um riquíssimo colar de ouro.

— Estás a insultar o navio! — Gritou o americano, indignado. — O Young Indira anda devagar!

— Para quem tem pressa, mestre Bill, até um cruzador que corre a quinze nós à hora anda devagar!

— Porquê tanta pressa? — Perguntou o mestre, coçando a cabeça. —

Page 6: O Tigre da Malásia

Tens alguma herança à tua espera, malandro?

— Qual herança! Se soubesse...

— Anda, diz lá, rapaz.— Não oiço deste

ouvido.— Compreendo: fazes-

te surdo. Hum! Aqui há gato! Aquela rapariga que tens contigo... Hum!

— Bem! Diga lá, mestre, quando chegamos?

— Aonde?

Page 7: O Tigre da Malásia

— A Sarawak.— O homem põe e

Deus dispõe, meu rapaz. Podemos ser apanhados por um tufão que nos mande a todos para o outro mundo.

— E depois?— E depois, podemos

ser atacados pelos piratas que nos mandem para o fundo do mar com um kriss cravado entre as costelas.

Page 8: O Tigre da Malásia

— O quê? — Perguntou o indiano, fazendo uma careta. — Há piratas por aqui?

— Tantos quantos na tua terra são os estranguladores.

— A sério?— Olha lá ao longe, na

direcção ao gurupés. O que é que vês?

— Uma ilha.— Pois bem, aquela

ilha é um ninho de piratas.

Page 9: O Tigre da Malásia

— Como se chama?— Mompracem. Só o

nome dá arrepios.— A sério?— Ali vive um homem

que foi o terror da Malásia.

— Como se chama?— Tigre da Malásia.— Se nos assaltasse, o

que aconteceria?— Um massacre geral.

Aquele homem é mais cruel do que os tigres da selva.

Page 10: O Tigre da Malásia

— E os ingleses nunca tentaram exterminá-los? — Perguntou o indiano surpreendido.

— Destruir os Tigres de Mompracem é obra — Respondeu o marinheiro, enquanto mascava um pedaço de tabaco. — Há alguns anos, em 1852, os ingleses cercaram a ilha com uma poderosa frota e fizeram prisioneiro o terrível Tigre, mas antes de chegarem a Labuan

Page 11: O Tigre da Malásia

ele fugiu não se sabe como.

— E regressou a Mompracem?

— Não logo. Durante dois anos ninguém ouviu falar dele, mas em princípios de 1854 reapareceu à frente de um novo bando de malaios e daiaques da pior espécie. Massacrou os poucos ingleses que se haviam instalado na ilha, recuperou — A e

Page 12: O Tigre da Malásia

recomeçou os seus feitos sanguinários.

Naquele instante um assobio soou na coberta do Young Indira, acompanhado por um golpe de vento fresco que fez gemer o três-mastros.

— Oh! Oh! — Fez mestre Bill, levantando a cabeça e cuspindo o tabaco. — Daqui a pouco vamos dançar.

Page 13: O Tigre da Malásia

— Acha, mestre? — Perguntou o indiano, inquieto.

— Vejo além uma nuvem negra de bordas cor de cobre, que não prenuncia certamente a calma.

— Corremos perigo?— O Young Indira é um

barco sólido. No entanto, é preciso ter os olhos bem abertos. As ondas começam a agitar-se.

Page 14: O Tigre da Malásia

Mestre Bill não se enganava. O mar da Malásia, até então limpo como um cristal, começava agora a encrespar-se e a ganhar uma cor de chumbo que não prometia nada de bom.

A leste, na direcção da grande ilha de Bornéu, aparecia uma nuvem negra que, pouco a pouco, obscurecia o sol quase no crepúsculo.

Page 15: O Tigre da Malásia

Ao primeiro golpe de vento seguia-se uma espécie de calma, que tornava mais apreensivos os ânimos de toda aquela gente. A leste ouvia-se o ribombar de um trovão.

— Desimpeçam a coberta! — Gritou o capitão Mac— Clintock aos passageiros.

Todos obedeceram contrariados, descendo pelas escotilhas de proa

Page 16: O Tigre da Malásia

ou de popa. Um deles, contudo, ficara na coberta. Era o indiano Kammamuri.

— Hei, saiam daí! — Bramiu o capitão.

— Capitão — Disse o indiano aproximando-se com passo firme — Corremos perigo?

— Sabê-lo-ás quando a tempestade tiver passado.

Page 17: O Tigre da Malásia

— Tenho de desembarcar em Sarawak, capitão.

— Hás-de desembarcar se o navio não se afundar.

— Mas eu não quero naufragar. Em Sarawak tenho uma pessoa que...

— Mestre Bill, tire-me daqui este homem.

O indiano foi arrastado dali e atirado para a escotilha da proa.

Page 18: O Tigre da Malásia

Estava na hora. O vento começava a soprar de leste com grande violência. A nuvem negra tinha aumentado, cobrindo quase por inteiro a abóbada celeste.

O Young Indira era um magnífico três-mastros muito bem conservado para os seus quinze anos, de construção leve, mas sólida, oferecia uma

Page 19: O Tigre da Malásia

grande extensão de pano dos golpes do vento.

Partira de Calcutá a 26 de Agosto de 1856, com um carregamento de carris de ferro destinado a Sarawak e ocupado por catorze marinheiros, dois oficiais e seis passageiros. Graças à sua velocidade e aos bons ventos, tinha alcançado em menos de treze dias as águas do mar malaio e

Page 20: O Tigre da Malásia

precisamente à vista da temida ilha de Mompracem, um covil de piratas de que era preciso fugir.

Infelizmente a tempestade estava para rebentar. O mar exigia o seu tributo antes do fim da travessia e ver-se-á em seguida que tipo de tributo!

Às oito da noite, a escuridão era quase completa. O Sol tinha

Page 21: O Tigre da Malásia

desaparecido no meio das massas vaporosas e o vento começava a soprar com extrema vio-lência, fazendo ouvir rugidos assustadores.

O mar, sacudido até aos limites extremos do horizonte, subia rapidamente. Ondas enormes, crispadas de espuma, formavam-se como por encanto, batendo umas nas outras e caindo novamente,

Page 22: O Tigre da Malásia

partindo-se com raiva contra Mompracem, a qual emergia com a sua massa lúgubre e sinistra nas trevas.

O Young Indira corria à bolina, ora lançando-se sobre as móveis montanhas rasgando com os cimos dos mastros a caliginosa massa das nuvens, ora precipitando-se nas depressões das quais se esforçava para sair.

Page 23: O Tigre da Malásia

Os marinheiros, descalços, de cabelos ao vento, os rostos enrugados, manobravam no meio da água que não encontrava alívio nos escoadouros. Comandos e pragas misturavam-se com os silvos da tem-pestade.

Às nove da noite, o três-mastros, sacudido como um brinquedo, ou melhor, como uma palha,

Page 24: O Tigre da Malásia

encontrava-se nas águas de Mompracem.

Apesar de todos os esforços de mestre Bill, que partia as mãos na barra do leme, o Young Indira, foi arrastado para tão perto da costa repleta de recifes, de ilhotas de coral e de fundos baixos, fazendo até temer que se partisse.

O capitão Mac— Clintock, com grande

Page 25: O Tigre da Malásia

terror, entreviu numerosos fogos acesos entre as sinuosidades da praia e, sob a luz de um relâmpago, direito sobre a borda extrema de um penhasco gigantesco que caía a pique sobre o mar, avistou também o vulto imponente de um homem de estatura alta, braços cruzados sobre o peito, impassível ao desencadear da tempestade.

Page 26: O Tigre da Malásia

— Que Deus nos guarde! — Exclamou mestre Bill, que também tinha avistado o homem.

— Aquele homem era o Tigre da Malásia!

A sua voz foi sufocada pelo rebentamento assustador de um trovão que se repercutiu, de eco em eco, nas profundezas do céu. Aquele rebentamento pareceu o sinal para uma música ensurdecedora,

Page 27: O Tigre da Malásia

indescritível. O espaço inflamou-se de norte a sul, de leste a oeste, como se todo o universo se incendiasse, iluminando sinistramente o mar em tempestade.

Os raios serpenteavam no ar, descrevendo mil curvas diversas, mergulhando entre as ondas ou girando vertiginosamente ao redor do navio, seguidos

Page 28: O Tigre da Malásia

por aguaceiros que cresciam de intensidade.

O mar, como se quisesse competir com esses trovões, ergueu-se descomunalmente. Já não eram ondas, mas montanhas de água cintilante sob a viva luz dos relâmpagos, que se lançavam furiosamente em direcção ao céu, como se fossem atraídas por uma força sobrenatural e que se

Page 29: O Tigre da Malásia

amontoavam umas sobre as outras, mudando de forma e de dimensão.

O vento entrava, por vezes, a fazer parte daquela competição assustadora, rugindo furiosamente, em-purrando na sua frente nuvens de chuva tépida.

O três-mastros tinha muita dificuldade em enfrentar os elementos em fúria. Havia momentos em que os

Page 30: O Tigre da Malásia

marinheiros não sabiam se ainda flutuavam ou se já se haviam afundado, tal era a massa de água que saltava sobre as amuradas meio partidas.

Para cúmulo da desgraça, à meia-noite, o vento que soprava, cada vez mais violento, de norte, passou de repente a soprar de leste.

Já não era possível lutar mais. Continuar em frente com o tufão que

Page 31: O Tigre da Malásia

assaltava à proa era tentar a morte. Apesar de nenhum ancoradouro se apresentar a oeste, exceptuando as temidas costas de Mompracem, o capitão Mac— Clintock teve de conformar-se a fugir à velocidade que permitiam as poucas velas ainda desfraldadas.

Tinham passado duas horas desde que o Young Indira havia mudado de bordo, perseguido com

Page 32: O Tigre da Malásia

tenacidade pelos vagalhões, que pareciam ter jurado a sua perda.

Os relâmpagos agora rareavam e a escuridão era tão cerrada que não permitia ver a duzentos passos de distância.

De repente, chegou aos ouvidos do capitão o fragor característico das ondas quando se quebram contra os recifes, ruído que um marinheiro sabe

Page 33: O Tigre da Malásia

distinguir no meio das mais assustadoras tempestades.

Apesar de se considerar bastante longe dos recifes de Mompracem, suspeitou da sua vizinhança.

— Olha à proa! — Berrou ele, dominando com a voz o ruído das ondas e os assobios do vento.

— Os recifes! Trovões! — Berrou uma voz.

Page 34: O Tigre da Malásia

O capitão Mac— Clintock arriscou-se a ir à proa, agarrando-se ao cabo da vela de traquete para se içar sobre as amuradas.

Não se via nada; contudo, através das rajadas, ouvia-se distintamente rugir a ressaca. Não havia que enganar. A poucos cabos de âncora do três-mastros erguia-se uma cadeia de recifes, talvez

Page 35: O Tigre da Malásia

uma ramificação dos de Mompracem.

— Cuidado a virar! — Gritou ele.

Mestre Bill, reunindo todas as suas forças, puxou para junto de si a barra do leme. Quase no mesmo instante o navio tocou.

O choque fora pouco sensível. Somente uma parte da falsa-quilha tinha sido rasgada pelas pontas aguçadas das

Page 36: O Tigre da Malásia

madrepérolas que formavam os cumes dos recifes. Infelizmente, o vento soprava ainda de popa e as ondas empurravam para a frente.

A tripulação, que naquela terrível situação mantinha um extraordinário sangue-frio, conseguiu virar de bordo. O Young Indira assentou ao largo com uma orla de duzentos

Page 37: O Tigre da Malásia

metros fugindo às encostas em torno das quais bramiam as ondas. Parecia que tudo havia de correr bem. A sonda, lançada à pressa, tinha dado quatro braças de profundidade pela proa. A esperança de salvar o navio começava a nascer no espírito da tripulação.

De repente, o fragor da ressaca voltou a fazer-se ouvir na direcção da hasta de proa.

Page 38: O Tigre da Malásia

O mar levantava-se com maior violência do que antes, assinalando uma nova barreira de recifes.

— Assenta tudo, Bill! — Bradou o capitão Mac— Clintock.

— Os recifes debaixo da proa! — Gritou um marinheiro, que tinha descido até à parte inferior do gurupés.

A sua voz não chegou à popa. Uma montanha de

Page 39: O Tigre da Malásia

água foi atirada para estibordo afastando violentamente o três-mastros para bombordo, deitando por terra a tripulação agarrada aos braços das velas e quebrando as embarcações contra as gruas.

Ouviu-se um rugido enorme, um desabamento de madeiras desfeitas, depois um golpe que fez

Page 40: O Tigre da Malásia

oscilar os mastros da popa até à proa. O Young Indira fora esventrado pelas pontas aguçadas dos recifes, e seis marinheiros, arrancados pelas ondas, tinham-se esmagado contra os escolhos.

IIOS PIRATAS DA

MALÁSIA

Page 41: O Tigre da Malásia

A última hora tinha soado para o desgraçado três-mastros.

Encaixado entre duas rochas, que apenas deixavam entrever as suas pontas negras, denteadas de mil agulhas pelo eterno movimento das águas, com a quilha despedaçada, mais não era do que um destroço impossível de recuperar, que mais cedo ou mais

Page 42: O Tigre da Malásia

tarde o mar teria indubitavelmente desmantado e disperso.

Em volta, o mar espumava quebrando-se e requebrando-se contra os recifes, arrastando consigo fragmentos de amuradas, de madeiras e de embarcações, que batiam entre si com mil rangidos.

No três-mastros os sobreviventes, loucos de terror, corriam da proa à

Page 43: O Tigre da Malásia

popa gritando e praguejando. Um trepava aos enfrechates, outro avançava até à gávea, um terceiro um pouco mais acima, até ao topo dos mastros. Um quarto saltava como se estivesse em cima de carvões ardentes, um quinto fazia passar um salva-vidas em volta do corpo, um sexto preparava um flutuador

Page 44: O Tigre da Malásia

para onde ir assim que o navio se despedaçasse.

O capitão Mac— Clintock e o mestre Bill eram os únicos que se mantinham calmos.

Uma vez que o três-mastros se mantinha imóvel como se estivesse pregado aos recifes, apressaram-se a descer para o porão. Viram de imediato que já não havia esperança de voltar a fazê-lo flutuar,

Page 45: O Tigre da Malásia

uma vez que estava já cheio de água.

— Vamos — Disse o mestre Bill, com voz comovida — O pobrezinho exalou o último suspiro. Nenhum estaleiro seria capaz de reparar a terrível mutilação.

— Tens razão, Bill — Respondeu o capitão ainda mais comovido. — Este é o túmulo do valoroso Young Indira.

Page 46: O Tigre da Malásia

— E o que fazemos agora?

— É preciso esperar pela alvorada.

— Acha que resiste aos golpes de mar?

— Assim espero.— Vamos encorajar os

que estão na coberta. Estão mortos de medo.

Os dois lobos-do-mar voltaram para a coberta. Os marinheiros e os passageiros, com rostos transformados pelo

Page 47: O Tigre da Malásia

terror, precipitaram-se ao seu encontro, interrogando-os com viva ansiedade.

— Estamos perdidos? — Perguntavam uns.

— Vamos ao fundo? — Perguntavam outros.

— Há esperança de nos salvarmos?

— Onde é que estamos?

— Calma, rapazes — Disse o capitão. — Por

Page 48: O Tigre da Malásia

enquanto não corremos perigo.

O indiano Kammamuri, que mostrara tanta pressa em chegar a Sarawak, aproximou-se do comandante.

— Capitão — Disse ele, com voz tranquila — Vamos para Sarawak?

— Bem vês que é impossível, Kammamuri.

— Mas eu tenho de lá ir.

Page 49: O Tigre da Malásia

— Não sei o que te hei-de dizer. O navio está imóvel como um pontão.

— Tenho lá o meu patrão, capitão.

— Terá de esperar.O olhar vivo do indiano

enevoou-se e o seu rosto, que tinha qualquer coisa de feroz, tornou-se escuro.

— Kali protege-os — Murmurou.

— Nem tudo está perdido ainda,

Page 50: O Tigre da Malásia

Kammamuri — Disse o capitão.

— Então não vamos ao fundo?

— Já disse que não. Vamos ter calma, rapazes. Amanhã saberemos em que ilha ou recife naufragámos e veremos o que se pode fazer. Eu garanto as vossas vidas.

As palavras do capitão animaram os marinheiros, que

Page 51: O Tigre da Malásia

começavam a ter esperanças de se salvar. A calma não tardou a reinar na coberta do navio naufragado.

De resto, a tempestade começava a enfraquecer. As grandes nuvens, aqui e ali rasgadas, deixavam entrever, de vez em quando, o tremeluzir dos astros. O vento, depois de ter assobiado e rugido, acalmava-se pouco a pouco.

Page 52: O Tigre da Malásia

Todavia, o mar continuava a manter-se bastante agitado. Ondas gigantescas corriam em todas as direcções, investindo com extrema violência contra os recifes e desfazendo-se de encontro a eles com um ruído assustador. O navio, sacudido, batido à proa e à popa, gemia como um moribundo, deixando que lhe tirassem pedaços de

Page 53: O Tigre da Malásia

amurada e fragmentos da quilha despedaçada. Em certos momentos, pelo contrário, oscilava com tanta força da proa até à popa que fazia temer que fosse arrancado ao banco de madrepérolas e apanhado no meio das vagas. Por sorte ficou inteiro, e os marinheiros, malgrado o perigo iminente e as ondas que se elevavam de quando

Page 54: O Tigre da Malásia

em quando na coberta, puderam saborear algumas horas de sono.

Às quatro da manhã, a oriente, começou a clarear. O sol levantava-se com aquela rapidez própria das regiões tropicais, anunciado por uma cor vermelha magnífica. O capitão, de pé no cesto do mastro principal, ladeado por mestre Bill, tinha os olhos fixos a norte, onde

Page 55: O Tigre da Malásia

se erguia, a menos de duas milhas, uma massa obscura que devia ser terra.

— Bem, capitão — Perguntou o mestre, que mascava o seu pedaço de tabaco — Conhece aquela terra?

— Creio que sim. Ainda está escuro, mas os recifes que a circundam fazem-me suspeitar que seja Mompracem.

Page 56: O Tigre da Malásia

— By God! — Murmurou o americano, fazendo uma careta. — Viemos partir as pernas num lugar muito feio.

— Temo-o bem, Bill. A ilha não goza de boa fama.

— Diga antes que é um ninho de piratas. Capitão, o Tigre da Malásia voltou.

— O quê! — Exclamou Mac— Clintock, sentindo correr pelos ossos um

Page 57: O Tigre da Malásia

arrepio. — O Tigre da Malásia de volta a Mompracem?

— Sim.— É impossível, Bill!

Esse homem terrível desapareceu há vários anos.

— Mas estou-lhe a dizer que voltou. Há quatro meses, assaltou o Arghilah de Calcutá, que só lhe escapou muito a custo. Um marinheiro que tinha conhecido o

Page 58: O Tigre da Malásia

pirata sanguinário contou-me que o havia visto na proa de um parau.

— Então estamos perdidos. Não tardará a assaltar-nos.

— By God! — Gritou o mestre, ficando, de repente, pálido.

— O que é que tens?— Veja, capitão! Veja lá

ao fundo!

Page 59: O Tigre da Malásia

— São paraus, são paraus! — Gritou uma voz da coberta.

O capitão, não menos pálido do que o mestre, olhou na direcção da ilha e viu quatro barcos que dobravam um cabo que estava apenas a três milhas.

Eram quatro grandes paraus malaios, baixos de casco, leves, esguios, de velas com cerca de quarenta metros, de

Page 60: O Tigre da Malásia

formas alongadas, sustentadas por mastros triangulares.

Estes barcos, que correm com uma velocidade surpreendente e que, graças ao balanceiro que têm a sotavento e à larga sustentação que levam a barlavento, desafiam os tufões mais tremendos; são geralmente usados pelos piratas malaios, os quais

Page 61: O Tigre da Malásia

não temem assaltar com eles os maiores navios que se aventuram nos mares da Malásia.

O capitão não o ignorava, e logo que os viu apressou-se a descer à coberta. Em poucas palavras informou a tripulação do perigo que os ameaçava. Só uma resistência implacável podia salvá-los.

O arsenal do navio, para maior desgraça, não

Page 62: O Tigre da Malásia

era muito bom. Faltavam os canhões, as espingardas mal chegavam para armar a tripulação e estavam em grande parte mal conservadas. Havia, contudo, sabres de abordagem enferrujados, mas ainda em bom estado, algumas pistolas, alguns revólveres e um bom número de machados.

Page 63: O Tigre da Malásia

Os marinheiros e os passageiros, armados como podiam, precipitaram-se para a popa que, encontrando-se imergida, podia oferecer uma boa escalada. A bandeira dos Estados Unidos subiu majestosamente no topo da vela e mestre Bill fixou-a com pregos.

Estava na hora. Os quatro paraus malaios, que corriam como

Page 64: O Tigre da Malásia

pássaros, já só estavam a setecentos ou oitocentos passos e preparavam-se para atacar o pobre três-mastros.

O sol que então se erguia no horizonte permitia ver claramente quem os tripulava.

Eram oitenta ou noventa homens, seminus, armados com estupendas carabinas incrustadas de

Page 65: O Tigre da Malásia

madrepérola e de lâminas de prata, com parangs de aço finíssimo, com cimitarras, com kriss serpenteantes com a ponta sem dúvida envenenada no sumo de upas e com clavas enormes, chamadas kampilang, que eles manejavam com se fossem pauzinhos.

Alguns eram malaios de cor de azeitona, de grandes membros e de

Page 66: O Tigre da Malásia

feições cruéis; outros eram belíssimos daiaques de estatura alta, com os braços e as pernas cobertos de anéis de cobre. Também estavam alguns chineses e javaneses. Todos estes homens fixavam os olhos no navio e agitavam furiosamente as armas, emitindo gritos ferozes. Pareciam querer assustar os náufragos, antes de os atacarem.

Page 67: O Tigre da Malásia

A quatrocentos passos de distância ribombou um tiro de canhão no primeiro parau. A bala, de calibre considerável, estilhaçou o mastro de gurupés, que se dobrou, mergulhando a ponta no mar.

— Ânimo, rapazes — Gritou o capitão Mac— Clintock. — Se o canhão fala é sinal de que a dança começou. Fogo!

Page 68: O Tigre da Malásia

Alguns tiros de espingarda seguiram o comando. Gritos assustadores rebentaram a bordo dos paraus, sinal infalível de que nem todo o chumbo se tinha perdido.

— Assim está bem, rapazes! — Gritou mestre Bill. — Batam com força, mesmo no meio do grupo. Esses focinhos feios não terão

Page 69: O Tigre da Malásia

a coragem de vir ter connosco. Ho! Fogo!

A sua voz foi coberta por uma série de detonações que vinham do largo. Eram os piratas que começavam o ataque.

Os quatro paraus pareciam crateras em chamas, lançando tremendas saraivadas de ferro. Disparavam os canhões, disparavam as espingardas, disparavam

Page 70: O Tigre da Malásia

as carabinas, esmagando, deitando por terra, estraçalhando tudo com uma precisão matemática.

Em pouco tempo quatro náufragos jaziam sem vida sobre a coberta. O mastro do traquete, partido por baixo do cesto, abateu-se sobre a coberta obstruindo-a com vergas, velas e cabos. Aos gritos de triunfo sucederam-se

Page 71: O Tigre da Malásia

gritos de pavor, de dor e gemidos de agonia.

Era impossível resistir àquele furacão de ferro que chegava com tal rapidez, fazendo saltar mastros, amuradas, madeiros.

Os náufragos, vendo-se perdidos, depois de terem descarregado sete ou oito vezes os mosquetões, e sem sucesso, apesar das blasfémias do capitão e

Page 72: O Tigre da Malásia

de mestre Bill, abandonaram o posto fugindo para estibordo, escondendo-se por detrás dos escombros da maquinaria e das embarcações. Alguns deles perdiam sangue e gemiam de dor. Os piratas, protegidos pelos seus canhões, ao fim de um quarto de hora atingiram a popa do navio tentando içar-se para bordo.

Page 73: O Tigre da Malásia

O capitão Mac— Clintock tentou evitar a abordagem, mas uma descarga de canhão matou-o juntamente com três homens.

Um grito terrível ecoou pelo ar:

— Viva o Tigre da Malásia!

Os piratas atiram as carabinas, empunhando as cimitarras, os machados, as maças, os kriss e entregam-se

Page 74: O Tigre da Malásia

intrepidamente ao assalto agarrando-se às amuradas e aos enfrechates. Alguns lançam-se para o cimo dos mastros dos paraus, correm como macacos ao longo das vergas e caem sobre a maquinaria do três-mastros deixando-se escorregar para a coberta. Num instante os poucos defensores, esmagados pelo número, caem na

Page 75: O Tigre da Malásia

proa, na popa, no convés ou no castelo.

Perto do mastro principal ainda restava um homem armado com um grande e pesado sabre de abordagem.

Este homem, o último do Young Indira, é o indiano Kammamuri, que se defendia como um valente dando golpes à direita e à esquerda.

Um golpe de maça parte-lhe a arma. Dois

Page 76: O Tigre da Malásia

piratas atiram-se a ele e deitam-no por terra apesar da sua desesperada resistência.

— Socorro! socorro! — Gritou o desgraçado com a voz estrangulada.

— Parem! — Ribombou de repente uma voz. — Esse indiano é um valente!

IIIO TIGRE DA MALÁSIA

Page 77: O Tigre da Malásia

O homem que lançara em tão boa hora aquele grito poderia ter trinta e dois ou trinta e quatro anos.

Era de alta estatura, pele branca, feições finas, aristocráticas, olhos azuis e bigode preto que sombreava os lábios sorridentes.

Vestia com extrema elegância: casaco de veludo castanho com botões de ouro, apertado

Page 78: O Tigre da Malásia

na cintura por uma larga faixa de seda azul, calças de brocatel, longas botas de pele vermelha, de ponta revirada e um largo chapéu de palha na cabeça. Ao tiracolo levava uma magnífica carabina indiana e à cintura pendia-lhe uma cimitarra de punho de ouro, encimado por um diamante do tamanho de uma avelã, de um enorme esplendor.

Page 79: O Tigre da Malásia

Com um gesto fez afastar os piratas, aproximou-se do indiano, que não pensava em levantar-se, tal era a surpresa de se sentir ainda vivo, e olhou-o durante instantes com grande atenção.

— O que dizes? — Perguntou finalmente ao indiano, em tom jovial.

— Eu? — Exclamou Kammamuri, que se interrogava sobre quem

Page 80: O Tigre da Malásia

poderia ser este homem de pele branca, que comandava aqueles terríveis piratas.

— Estás surpreendido de ainda sentires a cabeça em cima dos ombros?

— Tão surpreendido, que até me pergunto se estou mesmo vivo de verdade.

— Não duvides, jovem.— Não ma vai cortar

então?

Page 81: O Tigre da Malásia

— Se não o permiti antes, não sei porque deixaria que ta cortassem depois.

— Porquê? — Perguntou ingenuamente o indiano.

— Em primeiro lugar, porque não és um branco.

Kammamuri fez um gesto de surpresa.

— Ah! — Exclamou. — Vocês odeiam os brancos?

Page 82: O Tigre da Malásia

— Sim.— E o senhor,

porventura não é branco?

— Por Deus, português dos quatro costados!

— Então não percebo porque é que...

— Alto aí, rapaz. Esta conversa não me agrada.

— Pode ser, e depois?— E depois, porque és

um valente e eu gosto dos valentes.

Page 83: O Tigre da Malásia

— Sou marata — Disse o indiano com orgulho.

— Uma raça que tem um bom nome. Diz lá, desagradava-te seres um dos nossos?

— Eu, pirata?— E por que não? Por

Deus! Serias um bravo companheiro.

— E se recusasse?— Já não responderia

pela tua cabeça.— Se se trata de salvar

a pele, tornar-me-ei

Page 84: O Tigre da Malásia

pirata. Quem sabe, se calhar é melhor.

— Bravo, rapaz. Kotta, vai buscar-me uma garrafa de uísque. Os americanos não navegam sem uma boa provisão.

Um malaio desceu à cabina do pobre Mac— Clintock e instantes depois regressava com dois copos e uma garrafa poeirenta, à qual tinha feito saltar o gargalo.

Page 85: O Tigre da Malásia

— Uísque — Leu o homem branco na etiqueta. — Estes americanos são excelentes homens.

Encheu duas taças e estendeu uma ao indiano, perguntando-lhe:

— Como te chamas?— Kammamuri.— À tua saúde,

Kammamuri.— À sua senhor...

Page 86: O Tigre da Malásia

— Eanes — Disse o homem branco.

E, de um só trago, emborcaram os dois copos.

— Ora meu jovem — Disse Eanes, sempre de bom humor — Vamos ter com o capitão Sandokan.

— Quem é esse senhor Sandokan?

— Por Deus! O Tigre da Malásia.

— E vão levar-me até esse homem?

Page 87: O Tigre da Malásia

— Claro, meu caro, e ficará muito contente por receber um marata. Vamos, Kammamuri.

O indiano não se mexeu. Parecia embaraçado e olhava ora para os piratas, ora para a popa do navio.

— O que é que tens? — Perguntou Eanes.

— Senhor... — Disse o marata hesitante.

— Fala.— Não lhe vão tocar?

Page 88: O Tigre da Malásia

— Quem?— Tenho uma mulher

comigo.— Uma mulher! Branca

ou indiana?— Branca.— E onde está ela?— Escondi-a no porão.— Trá-la à coberta.— Não lhe vão tocar?— Tens a minha

palavra.— Obrigado, senhor —

Disse o marata com voz comovida.

Page 89: O Tigre da Malásia

Correu para a popa e desapareceu pela escotilha. Poucos instantes depois voltava a subir para a coberta.

— Onde está essa mulher? — Perguntou Eanes.

— Vem aí, mas nem uma palavra senhor. Ela é louca.

— Louca? Mas quem é?— Ei-la! — Exclamou

Kammamuri. O

Page 90: O Tigre da Malásia

português virou-se para a popa.

Uma mulher de uma beleza inacreditável, envolta num grande manto de seda branco, saíra de repente pela escotilha, parando perto do tronco do mastro da mezena. Podia ter quinze anos. A sua estatura era elegante, graciosa, flexível, a sua pele rosada, os olhos grandes, negros e doces, o nariz

Page 91: O Tigre da Malásia

pequeno e direito, os lábios finos, vermelhos como coral, entreabertos num inexplicável sorriso que deixava entrever duas filas de pequenos dentes de uma brancura deslumbrante. Uma cabeleira opulenta, muito negra, separada na testa por um grande diamante, caía-lhe pelos ombros numa desordem pitoresca e ainda mais para baixo até à cintura.

Page 92: O Tigre da Malásia

Ela olhou para todos aqueles homens armados, aqueles cadáveres que obstruíam a coberta e todos os destroços sem que uma contracção de medo, horror ou curiosidade se desenhasse no seu rosto gentil.

— Quem é aquela mulher? — Perguntou Eanes, com um estranho tom na voz, segurando uma mão de Kammamuri

Page 93: O Tigre da Malásia

e apertando-a com muita força.

— A minha patroa — Respondeu o marata. — A Virgem do Pagode do Oriente.

Eanes deu alguns passos em direcção à louca que continuava imóvel como uma estátua e olhou para ela fixamente.

— Que semelhança! — Exclamou, empalidecendo.

Page 94: O Tigre da Malásia

Regressou rapidamente para junto de Kammamuri e agarrou-o novamente pela mão:

— Aquela mulher é inglesa? — Perguntou, com voz alterada.

— Nasceu na Indira de pais ingleses.

— Por que enlouqueceu?

— É uma longa história.— Hás-de contá-la ao

Tigre da Malásia. Embar-

Page 95: O Tigre da Malásia

quemos, marata, e vocês, tigrezinhos, limpem bem esta carcaça e depois incendeiem-na. O Young Índia morreu.

Kammamuri aproximou-se da louca, pegou-lhe na mão e fê-la descer para o parau do português. Ela não opusera qualquer resistência, nem pronunciara sílaba alguma.

Page 96: O Tigre da Malásia

— Partamos — Disse Eanes, tomando o leme.

O mar pouco a pouco acalmara. Só à volta dos escolhos espumava e rugia, erguendo-se em largas vagas.

O parau, guiado por aqueles marinheiros hábeis e intrépidos, superou os recifes batendo e fazendo ricochete sobre as vagas e afastou-se com enorme rapidez deixando para

Page 97: O Tigre da Malásia

trás um rasto branco, no meio da qual passeavam enormes tubarões.

Ao fim de dez minutos atingiu a ponta extrema da ilha; deu a volta sem diminuir de velocidade e navegou em direcção a uma ampla baía que se abria em frente de uma graciosa aldeia composta de vinte ou mais cabanas, defendida por uma linha tripla de trincheiras armadas de

Page 98: O Tigre da Malásia

grandes canhões e muitas espingardas, de altas paliçadas e de profundos fossos.

Uma centena de malaios seminus, mas todos armados até aos dentes, saiu das trincheiras e lançou-se para a praia soltando gritos selvagens, agitando os kriss envenenados, as cimitarras, os machados,

Page 99: O Tigre da Malásia

as lanças, as carabinas e as pistolas.

— Onde estamos? — Perguntou Kammamuri, com inquietação.

— Na nossa aldeia — Respondeu o português.

— É aqui que vive o Tigre da Malásia?

— Mora lá em cima, onde esvoaça aquela bandeira vermelha.

O marata ergueu a cabeça e, no topo de um gigantesco penhasco que

Page 100: O Tigre da Malásia

caía a pique sobre o mar, avistou uma grande cabana defendida por muitas paliçadas, no cimo da qual se agitava majestosamente uma grande bandeira vermelha adornada com uma cabeça de tigre.

— Vamos lá acima? — Perguntou, com alguma emoção.

— Sim, amigo — Respondeu Eanes.

Page 101: O Tigre da Malásia

— Como me irá receber o terrível homem?

— Como se deve acolher um corajoso.

— E a Virgem do Pagode do Oriente vem connosco?

— Por enquanto não.— Porquê?— Porque aquela

mulher se parece com...Interrompeu-se. Uma

rápida comoção tinha subitamente alterado as

Page 102: O Tigre da Malásia

suas feições. Kammamuri apercebeu-se disso.

— Parece-me comovido, senhor Eanes — Disse.

— Enganas-te — Respondeu o português, puxando para si a barra do leme, para evitar a ponta extrema de um recife que resguardava a baía. — Desembarca, Kammamuri.

Page 103: O Tigre da Malásia

O parau tinha encalhado com a proa virada para a costa.

O português, Kammamuri, a louca e os piratas desembarcaram.

— Conduzam esta mulher até à melhor casa da aldeia — Disse Eanes, apontando a louca aos piratas.

— Vão fazer-lhe mal? — Perguntou Kammamuri.

Page 104: O Tigre da Malásia

— Ninguém ousará tocar-lhe — Disse Eanes. — As mulheres são mais respeitadas aqui do que na Indira e na Europa. Vem, marata.

Dirigiram-se para um penhasco gigantesco e subiram uma escada estreita escavada na pedra, defendida de vez em quando por sentinelas armadas com carabinas e cimitarras.

Page 105: O Tigre da Malásia

— Porquê tantas precauções? — Perguntou Kammamuri.

— Porque o Tigre da Malásia tem cem mil inimigos.

— Não é amado o capitão?

— Para nós é um ídolo, mas os outros... Se soubesses, Kammamuri, como é odiado pelos ingleses. Chegámos. Não tenhas medo.

Page 106: O Tigre da Malásia

Com efeito, tinham chegado à grande cabana, defendida por trincheiras, grades, fossos, canhões, morteiros e espingardas antigas. O português empurrou prudentemente uma grande porta de madeira de teca capaz de resistir ao canhão e introduziu Kammamuri num quarto revestido de seda vermelha, cheio de

Page 107: O Tigre da Malásia

carabinas da Europa, de mosquetes indianos e persas, bacamartes, pistolas, cimitarras, machados, kriss malaios, yatagan turcos, punhais, garrafas, rendas, tecidos, porcelanas da China e do Japão, montes de ouro, barras de prata, vasos transbordantes de pérolas e de diamantes.

No meio, sedimentado sobre um rico tapete persa, Kammamuri viu

Page 108: O Tigre da Malásia

um homem de pele bronzeada, envergando um riquíssimo trajo à oriental, com vestes de seda vermelha bordada a ouro e grandes botas de pele vermelha e ponta revirada. Não devia ter mais de trinta e quatro ou trinta e cinco anos. De estatura alta e musculosa, com uma cabeça soberba coberta por uma farta cabeleira, encaracolada, negra, que

Page 109: O Tigre da Malásia

lhe caía sobre os ombros robustos.

A sua testa, o olhar cintilante, os lábios finos, desenhando um sorriso indefinível, a barba magnífica que incutia ao mesmo tempo respeito e temor.

No conjunto, adivinhava-se que aquele homem possuía a ferocidade de um tigre, a agilidade de um

Page 110: O Tigre da Malásia

quadrúmano e a força de um gigante.

Assim que viu entrar os dois homens, num impulso sentou-se, olhando fixamente para eles.

— O que me trazes? — Perguntou ele com uma voz metálica, vibrante.

— A vitória, antes de mais — Respondeu o português. — Mas trago um prisioneiro.

Page 111: O Tigre da Malásia

O rosto do homem escureceu.

— É esse indiano, o indivíduo que poupaste? — Perguntou ele, depois de alguns instantes de silêncio.

— Sim, Sandokan. Desagrada-te?

— Sabes que respeito os teus caprichos, meu amigo.

— Eu sei, Tigre da Malásia.

Page 112: O Tigre da Malásia

— E o que quer esse homem?

— Tornar-se num tigre. Vi-o combater: é um herói.

O olhar do Tigre relampejou. As rugas que sulcavam o seu rosto desapareceram, como as nuvens sob um vigoroso golpe de vento.

— Aproxima-te — Disse ao indiano.

Kammamuri, ainda surpreendido por se

Page 113: O Tigre da Malásia

encontrar perante o lendário pirata, que durante tantos anos havia feito tremer os povos da Malásia, deu um passo em frente.

— O teu nome? — Perguntou o Tigre.

— Kammamuri.— És?— Marata.— Um filho de heróis

então?

Page 114: O Tigre da Malásia

— Tigre da Malásia — Disse o indiano com orgulho.

— Por que deixaste o teu país?

— Para ir para Sarawak.

— Para onde mora aquele cão do James Brooke? — Perguntou o Tigre com tom de ódio.

— Não sei quem é James Brooke.

Page 115: O Tigre da Malásia

— Melhor assim. Quem tens em Sarawak, para ires para lá?

— O meu patrão.— O que faz ele? É

soldado do rajá?— Não, é prisioneiro do

rajá.— Prisioneiro? E

porquê?O indiano não

respondeu.— Fala — Disse

brevemente o pirata. — Quero saber tudo.

Page 116: O Tigre da Malásia

— Terá paciência para me ouvir? A história é tão longa quanto terrível.

— As histórias terríveis e sanguinárias agradam-me; senta-te e conta.

IVUM TERRÍVEL DRAMA

Kammamuri não esperou que lhe repetissem o pedido. Sentou-se no meio de um monte de veludos gastos, salpicados aqui e

Page 117: O Tigre da Malásia

ali de manchas, acendeu um cigarro que lhe estendia o português e, depois de alguns instantes silencioso, começou:

— Tigre da Malásia, já ouviu falar das Sunderbunds do Ganges sagrado?

— Não conheço essas terras — Respondeu o pirata — Mas sei o que é o delta de um rio. Estás a falar dos bancos que

Page 118: O Tigre da Malásia

obstruem a foz do grande rio?

— Sim, dos grandes e incontáveis bancos cobertos de canas gigantes e povoados por animais ferozes que se estendem por muitas milhas da foz do Hugly à do Ganges. O meu patrão nasceu ali, numa ilha que se chama a Selva Negra. Era belo, forte, corajoso, o mais corajoso que alguma vez

Page 119: O Tigre da Malásia

encontrei na minha vida aventurosa. Nada o fazia tremer: nem o veneno da cobra-capelo, nem a força prodigiosa da pitão, nem as garras do grande tigre de Bengala, nem a armadilha dos seus inimigos.

— E o seu nome? — Perguntou o pirata. — Quero conhecer esse herói.

— Chamava-se Tremal-Naik, o Caçador de Tigres

Page 120: O Tigre da Malásia

e de Serpentes da Selva Negra.

O Tigre da Malásia, ao ouvir esse nome, levantou-se, fixando com os olhos o marata.

— Disseste caçador de tigres? — Perguntou.

— Sim.— Porquê essa

alcunha?— Porque caçava os

tigres da selva.— Um homem que

enfrenta os tigres só

Page 121: O Tigre da Malásia

pode ser corajoso. Mesmo sem o conhecer, já sinto afecto por esse valente indiano. Continua: estou a ficar impaciente.

— Uma noite, Tremal-Naik regressava da selva. Estava uma noite magnífica, uma verdadeira noite de Bengala; o ar era doce e perfumado, o horizonte ainda brilhava e o

Page 122: O Tigre da Malásia

firmamento poucas estrelas tinha.

«Havia já percorrido um longo caminho sem encontrar vivalma, quando lhe apareceu, a menos de vinte passos, entre um arbusto de mussenda, uma jovem de uma beleza maravilhosa.»

— Quem era?— Uma criatura de tez

rosada, cabelos negros e olhos grandes.

Page 123: O Tigre da Malásia

«Fixou-o por um instante com olhar melancólico, depois desapareceu. Tremal-Naik foi tão vivamente atingido no coração que ardeu de amor por aquela aparição.

«Poucos dias depois era cometido um crime nas margens de uma ilha que se chama Raimangal. Um dos nossos, que tinha ido para ali caçar tigres, era

Page 124: O Tigre da Malásia

encontrado morto com uma corda ao pescoço.»

— Oh! — Exclamou o pirata surpreso. — Quem poderia ter estrangulado um caçador de tigres?

— Se for paciente já o saberá. Tremal-Naik, como disse, era um homem corajoso. Levou-me com ele e desembarcámos à meia-noite em Raimangal, re-solvidos a vingar o nosso

Page 125: O Tigre da Malásia

desventurado compa-nheiro.

«Primeiro ouvimos mil ruídos misteriosos que saíam de debaixo da terra, depois do tronco de um gigantesco banian surgiram vários homens nus, com tatuagens bizarras. Aqueles homens eram os assassinos do pobre caçador de tigres.»

— E então? — Perguntou o pirata cujos

Page 126: O Tigre da Malásia

olhos brilhavam de alegria.

— Tremal-Naik nunca hesitava. Um tiro de carabina deitou por terra o chefe daqueles indianos, depois fugimos.

— Bravo, Tremal-Naik! — Exclamou o Tigre com entusiasmo. — Continua. Divirto-me mais a ouvir histórias do que a abordar um navio carregado de minério amarelo.

Page 127: O Tigre da Malásia

— O meu patrão, para fazer desaparecer as pe-gadas daqueles homens que tinham vindo em nossa perseguição, separou-se de mim e refugiou-se num grande pagode onde encontrou... Adivinhe quem?

— A jovem?— Sim, a jovem que

era prisioneira daqueles homens.

— Mas quem eram?

Page 128: O Tigre da Malásia

— Os adoradores de uma divindade cruel que apenas anseia por vítimas humanas. Chama-se Kali.

— A terrível deusa dos tugues indianos?

— A deusa dos estranguladores.

— Esses homens são mais ferozes do que os tigres. Oh! Eu conheço-os — Disse o pirata. — Tive alguns no meu bando.

Page 129: O Tigre da Malásia

— Um tugue no teu bando? — Exclamou o marata, estremecendo. — Estou perdido.

— Não tenhas medo, Kammamuri. Em tempos tive alguns, mas agora já não. Continua o teu relato.

— A rapariga, que já amava o meu patrão, conhecendo os perigos que o rodeavam, implorou-lhe que partisse naquele instante, mas

Page 130: O Tigre da Malásia

ele não era homem para ter medo. Ficou ali à espera dos ferozes tugues, resolvido a medir forças com eles e, se pudesse, a raptar a prisioneira. Mas tinha confiado demais nas próprias forças. Pouco depois, doze homens armados de cordas entravam e atiravam-se contra ele e apesar da obstinada defesa era deitado por terra e

Page 131: O Tigre da Malásia

apunhalado pelo chefe dos estranguladores, o feroz Suyodhana.

— E não morreu? — Perguntou Sandokan, muito interessado.

— Não morreu — Continuou Kammamuri. — Mais tarde encontrei-o na selva, ensanguentado, com o punhal cravado ainda no peito, mas vivo.

— E por que é que o tinham atirado para a

Page 132: O Tigre da Malásia

selva? — Perguntou Eanes.

— Para que os tigres o devorassem. Levei-o para a nossa cabana e depois de muitos cuidados ficou curado, mas o coração permaneceu ferido pelos olhos negros da jovem; já não se podia curar.

«Um dia, depois de escapar a várias emboscadas dos tugues, resolveu partir para

Page 133: O Tigre da Malásia

Raimangal, decidido a tudo para rever a criatura amada. Embarcámos de noite, durante uma tempestade, descemos o Mangal e chegámos à ilha.

«Nenhum homem vigiava à entrada do banian e penetrámos debaixo da terra por entre obscuros corredores. Sabíamos que os tugues, não tendo

Page 134: O Tigre da Malásia

conseguido eliminar do coração da rapariga de olhos negros o amor por Tremal-Naik, haviam decidido queimá-la viva para acalmar a ira da monstruosa deusa e nós queríamos salvá-la.»

— Mas por que é que aquela mulher estava proibida de amar? — Perguntou Eanes.

— Porque ela era a guardiã do pagode consagrado à deusa Kali

Page 135: O Tigre da Malásia

e, como tal, devia manter-se pura.

— Que cambada de patifes!

— Continuo: depois de percorrermos longos corredores e de termos morto algumas sentinelas, encontrámo-nos numa sala enorme sustentada por cem colunas e iluminada por uma enorme quantidade de lâmpadas que

Page 136: O Tigre da Malásia

espalhavam uma luz cadavérica em seu redor.

«À volta estavam sentados duzentos indianos, de mãos amarradas. No meio erguia-se a estátua da deusa; à frente um tanque onde nadava um peixinho vermelho e que se dizia conter a alma da deusa; mais adiante erguia-se uma grande fogueira.

Page 137: O Tigre da Malásia

«À meia-noite apareceu o chefe Suyodhana, com os seus sacerdotes que arrastavam a infeliz rapariga, já entorpecida pelo ópio e por misteriosos perfumes. Já não opunha qualquer resistência.

«Estavam já a poucos passos da fogueira; um homem já tinha acendido um archote, os tugues já tinham começado a

Page 138: O Tigre da Malásia

entoar a oração dos defuntos, quando eu e Tremal-Naik nos lançámos como leões para o meio do grupo disparando à esquerda e à direita.

«Derrubar aquela muralha humana, arrancar a jovem às mãos dos sacerdotes e fugir através das obscuras galerias foi questão de um momento.

Page 139: O Tigre da Malásia

«Para onde fugíamos? Nenhum de nós sabia, mas não pensávamos nisso naquele instante. Apenas tentávamos ganhar terreno aos tugues que, refeitos da surpresa, se tinham de imediato lançado em nossa perseguição.

«Corremos durante uma hora penetrando cada vez mais no interior da terra, até que encontrámos um poço

Page 140: O Tigre da Malásia

por onde entrámos numa caverna sem saída. Ao tentarmos sair era tarde demais: os tugues tinham-nos fechado lá dentro.»

— Maldição! — Exclamou Sandokan. — Por que não estava lá eu com os meus Tigrezinhos? Teria feito uma compota de todos esses indianos sanguinários. Continua, marata, que a tua

Page 141: O Tigre da Malásia

história é interessan-tíssima. Diz-me, fugiram?

— Não.— Com mil trovões!— Cercaram-nos,

deixaram-nos sedentos acendendo em redor da caverna imensas fogueiras que nos assavam vivos; depois deitaram sobre nós um jacto de água à qual estava misturado não sei que narcótico. Assim que matámos a nossa sede

Page 142: O Tigre da Malásia

tombámos por terra atingidos por uma síncope e caímos nas mãos dos nossos inimigos.

«Estávamos já conformados a morrer, uma vez que nenhum de nós ignorava que os tugues desconheciam a piedade e, contudo, fomos poupados. A morte era demasiado doce para a mente perversa de Suyodhana,

Page 143: O Tigre da Malásia

o chefe dos estranguladores. Este tinha formado um terrível projecto com intenção de arrancar do coração da jovem o amor por Tremal-Naik e de desembaraçar-se do meu patrão que poderia tornar-se para eles num temível inimigo.

«Mas naquele tempo um homem corajoso, resoluto, a quem os tugues tinham raptado a

Page 144: O Tigre da Malásia

filha, fazia-lhes uma guerra sem tréguas. Esse homem era um inglês conhecido por capitão MacPherson.

«Centenas e centenas de tugues haviam caído pela sua mão e ele perseguia-os dia e noite sem lhes dar tréguas, poderosamente ajudado pelo governo inglês. Nem as armadilhas dos estranguladores, nem os punhais dos fanáticos

Page 145: O Tigre da Malásia

sectários tinham conseguido atingi-lo, nem as mais infernais intrigas contra ele haviam sido bem-sucedidas.

«Suyodhana, que o temia bastante, lançou contra ele Tremal-Naik prometendo-lhe a mão da Virgem do Pagode do Oriente, assim se chamava a rapariga de cabelos negros que o meu patrão tanto amava.

Page 146: O Tigre da Malásia

A cabeça do capitão deveria ser o presente de casamento!»

— E Tremal-Naik aceitou? — Perguntou o Tigre, com viva ansiedade.

— Ele amava demasiado a Virgem e aceitou o horrível pacto de sangue que lhe havia imposto o Pai das Sagradas Águas do Ganges, o impiedoso Suyodhana. Não lhe

Page 147: O Tigre da Malásia

narrarei tudo o que ele fez, todos os perigos que teve de enfrentar para poder aproximar-se daquele desgraçado capitão.

«Uma fortuita combinação proporcionou-lhe o meio para se poder tornar um dos seus criados, mas um dia foi descoberto e teve de penar muito para recuperar a liberdade e salvar a vida.

Page 148: O Tigre da Malásia

«Não renunciou contudo ao projecto imposto pelos tugues e um dia conseguiu embarcar num navio conduzido pelo capitão MacPherson na direcção das Sunderbunds para assaltar no seu esconderijo os seguidores da deusa sanguinária.

«Nessa mesma noite, escoltado por alguns cúmplices, entrava na

Page 149: O Tigre da Malásia

cabina do capitão para o decapitar. A sua consciência gritava-lhe que não cometesse esse crime, mas mesmo assim estava decidido já que só matando aquele temível adversário poderia recuperar a noiva, ou pelo menos acreditava nisso, desconhecendo a perversidade do fanático Suyodhana.»

Page 150: O Tigre da Malásia

— E matou-o? — Perguntaram Sandokan e Eanes, com ansiedade.

— Não — Disse Kammamuri. — Naquele instante o nome da mulher amada escapou dos lábios do meu patrão e aquele nome tinha sido ouvido pelo capitão que entretanto acordara.

«Aquele nome foi um choque para ambos: poupou um assassínio e um crime arrepiante uma

Page 151: O Tigre da Malásia

vez que o capitão era o pai da mulher amada pelo meu patrão.»

— Por Júpiter! — Exclamou Eanes. — Que história terrível nos contas...

— A verdade, senhor Eanes.

— Mas o teu patrão não conhecia o nome da noiva?

— Sim, mas o pai tinha assumido outro nome para não dar a entender

Page 152: O Tigre da Malásia

aos tugues que lutava para recuperar a filha e porque temia, que ao sabê-lo, eles a matassem.

— Continua — Disse Sandokan.

— Pode imaginar o que aconteceu. O meu patrão confessou tudo: tinha finalmente entendido a infernal astúcia de Suyodhana.

«Ofereceu-se para orientar o capitão pelas

Page 153: O Tigre da Malásia

cavernas dos sectários. Desembarcaram, em Raimangal. O meu patrão entrou no templo sub-terrâneo fingindo levar com ele a cabeça do capitão e quando pôde rever a rapariga amada, os ingleses abateram-se sobre os tugues.

«Mas Suyodhana tinha saído vivo do assalto imprevisto dos inimigos e quando o meu patrão, o capitão, a noiva e os

Page 154: O Tigre da Malásia

seus soldados abandonaram os subterrâneos para regressar ao navio, ouviram-no gritar com uma voz ameaçadora: 'Havemos de nos rever na selva!'

«E aquele homem sinistro mantinha a palavra. Em Raimangal tinham-se reunido várias centenas de estranguladores, já

Page 155: O Tigre da Malásia

informados da expedição do capitão MacPherson.

«Guiados por Suyodhana caíram sobre os ingleses. A tripulação do navio acorreu em vão em auxílio do seu capitão.

«Todos caíram entre as ervas gigantes da selva, esmagados e o capitão foi o primeiro. Até o navio foi capturado, incendiado e feito explodir.

Page 156: O Tigre da Malásia

«Só Tremal-Naik e a sua noiva foram poupados. Teria Suyodhana remorsos por matar também o meu patrão, que tanto tinha feito por aqueles infames, ou teria esperanças de fazer dele um tugue?. Nunca percebi.

«Três dias depois de ter enlouquecido com um licor que o haviam obrigado a engolir, o

Page 157: O Tigre da Malásia

meu patrão era preso pelas autoridades inglesas, próximo do forte William. Tinha sido denunciado como um tugue e testemunhas não haviam faltado, uma vez que, também em Calcutá, aquela seita contava com muitos seguidores.

«Foi poupado apenas por ser louco, mas condenado à deportação perpétua para a ilha de

Page 158: O Tigre da Malásia

Norfolk, a sul de uma terra chamada Austrália, segundo me disseram.»

— Que drama! — Exclamou o Tigre após alguns instantes de silêncio. — Esse Suyodhana odiava assim tanto o pobre Tremal-Naik?

— O chefe dos sectários pretendia destruir para sempre a paixão que ardia no

Page 159: O Tigre da Malásia

coração da Virgem do Pagode.

— Era um monstro esse feroz chefe dos tugues.

— Mas o teu patrão ainda continua louco? — Perguntou Eanes.

— Não, os médicos ingleses conseguiram curá-lo.

— E não se defendeu? Não revelou tudo?

— Tentou fazê-lo, mas não acreditaram nele e

Page 160: O Tigre da Malásia

trataram-no ainda como semilouco.

— Mas porque está ele agora em Sarawak...

— Porque o barco que o transportava para Norfolk naufragou perto de Sarawak. Infelizmente não ficará muito tempo nas mãos do rajá.

— E porquê?— Porque da Indira já

partiu um navio e dentro de seis ou sete dias, se os meus cálculos não

Page 161: O Tigre da Malásia

falharem, chegará a Sarawak. Esse navio dirige-se a Norfolk.

— Como se chama esse navio?

— O Helgoland.— Viste-o?— Antes de deixar a

Indira.— E para onde ias no

Young Indira?— Para Sarawak salvar

o meu patrão — Disse Kammamuri com firmeza.

Page 162: O Tigre da Malásia

— Sozinho?— Sozinho.— És um jovem

corajoso, meu bom marata — Disse o Tigre da Malásia. — E o que fez o terrível Suyodhana com a Virgem do Pagode do Oriente?

— Manteve-a prisioneira nos subterrâneos de Raimangal, mas a desgraçada, depois do sanguinário ataque dos

Page 163: O Tigre da Malásia

tugues na selva, enlouqueceu.

— Mas como é que fugiu das mãos dos tugues? — Perguntou Eanes.

— Mas ela fugiu? — Perguntou Sandokan.

— Sim, irmãozinho.— E onde se encontra?— Sabê-lo-ás mais

tarde. Kammamuri, conta lá como é que ela fugiu — Disse Eanes.

Page 164: O Tigre da Malásia

— Conto em poucas palavras — Disse o marata. — Eu tinha ficado com os tugues mesmo depois da terrível vingança de Suyodhana e vigiava atentamente a Virgem do Pagode.

«Passado algum tempo, soube que o meu patrão havia sido condenado a ir para a ilha de Norfolk e que o navio que o transportava tinha naufragado em

Page 165: O Tigre da Malásia

Sarawak: nessa altura pensei na fuga.

«Comprei uma canoa, escondi-a no meio da selva e, numa noite de orgia, quando os tugues completamente bêbados já não conseguiam sair dos subterrâneos, dirigi-me ao pagode sagrado, apunhalei os indianos que a guardavam, agarrei na Virgem e fugi. No dia seguinte encontrava-me em

Page 166: O Tigre da Malásia

Calcutá e quatro dias depois a bordo do Young Índia.»

— E a Virgem? — Perguntou Sandokan.

— Está em Calcutá — Apressou-se a dizer Eanes.

— É bela?— Belíssima — Disse

Kammamuri. — Tem cabelos negros e os olhos são negros como dois carvões.

— E como se chama?

Page 167: O Tigre da Malásia

— A Virgem do Pagode.— Não tem outro

nome?— Sim.— Diz-mo.— Chama-se Ada

Corishant.Ao ouvir aquele nome,

o Tigre da Malásia tinha dado um salto, soltando um grito.

— Corishant! Corishant! O nome da adorada mãe da minha pobre Mariana! Meu

Page 168: O Tigre da Malásia

Deus! Meu Deus! — Gritou em tom desesperado.

Depois abateu-se sobre o tapete com o rosto visivelmente alterado e as mãos crispadas sobre o coração. Um rouco soluço, que pareceu um rugido, lacerou o seu peito.

Kammamuri, assustado e surpreso, levantara-se para acorrer em auxílio do pirata que parecia ter

Page 169: O Tigre da Malásia

sido ferido de morte, mas duas mãos robustas seguraram-no.

— Uma palavra — Disse-lhe o português, segurando-o pelos ombros. — Como se chamava o pai da jovem?

— Harry Corishant — Respondeu o marata.

— Santo Deus! E era?— Capitão dos sipaios.— Sai daqui!— Mas porquê? O que

aconteceu?

Page 170: O Tigre da Malásia

— Silêncio, sai daqui!E segurando-o pelos

ombros empurrou-o bruscamente para fora, fechando a porta dando duas voltas à chave.

VA CAÇA AO

HELGOLANDO pirata de

Mompracem tinha-se rapidamente refeito daquela estranha e terrível comoção. O seu

Page 171: O Tigre da Malásia

rosto, embora ainda alterado, recuperara aquela expressão orgulhosa que incutia respeito e terror aos mais corajosos e, nos seus lábios, apesar de pálidos, paira um sorriso melancólico.

Grandes gotas de suor surgiam na sua face, levemente crispada e uma chama sinistra ardia naqueles olhares.

Page 172: O Tigre da Malásia

— Passou a tempestade? — Perguntou Eanes, sentando-se a seu lado.

— Sim — Disse o Tigre, com voz surda.

— Sempre que ouves um nome que te recorde a defunta Mariana, agitas-te e passas mal.

— Amei demasiado aquela mulher... Eanes. Essa recordação tão bruscamente evocada magoou-me mais do que

Page 173: O Tigre da Malásia

uma bala de carabina que entrasse no meu peito... Mariana, minha pobre Mariana!

Um segundo soluço lacerou o peito daquele homem.

— Coragem, meu irmão — Disse Eanes, que estava bastante comovido. — Não te esqueças que és o Tigre da Malásia.

Page 174: O Tigre da Malásia

— Certas recordações até para um tigre são tremendas.

— Vamos falar de Ada Corishant?

— Sim, Eanes.— O que vais fazer?— Eanes — Disse

Sandokan com voz triste. — Lembras-te do que a minha mulher disse uma tarde debaixo de um majestoso durião?

— Sim, lembro-me. «Sandokan, meu

Page 175: O Tigre da Malásia

valoroso amigo tenho uma prima que adoro na longínqua Indira. É filha de uma irmã de minha mãe.»

— Continua, Eanes.— Prossigo, meu

irmãozinho. «Ela desapareceu, não se sabe onde está. Diz-se que os tugues indianos a raptaram, Sandokan, meu valoroso amigo, salva-a, devolve-a ao infeliz pai.»

Page 176: O Tigre da Malásia

— Basta, basta, Eanes! — Exclamou o pirata com voz angustiante. — Oh! Essas recordações partem-me o coração. E nunca mais rever essa pobre mulher? Mariana, minha adorada Mariana!

O pirata tinha posto a cabeça entre as mãos e começou a soluçar.

— Sandokan — Disse Eanes — Tens de ser forte.

Page 177: O Tigre da Malásia

O pirata ergueu de novo a cabeça.

— Sou forte — Disse.— Queres continuar a

conversa?— Sim.— Desde que te

mantenhas calmo.— Ficarei calmo.— O que farás por Ada

Corishant?— O que farei? E ainda

me perguntas? Irei salvá-la de imediato, depois

Page 178: O Tigre da Malásia

irei a Sarawak libertar o noivo dela.

— Ada Corishant está a salvo, Sandokan — Disse Eanes.

— A salvo! A salvo! — Exclamou o pirata levantando-se de um salto. — E onde está ela?

— Aqui.— Aqui! E por que é

que não mo disseram antes?

— Porque aquela jovem se parece com a tua

Page 179: O Tigre da Malásia

defunta mulher apesar de não ter nem cabelos de ouro, nem olhos azuis como o mar. Temia que sofresses um rude golpe ao vê-la.

— Eu quero vê-la, Eanes, eu quero vê-la!

— Vê-la-ás de imediato.Abriu a porta.

Kammamuri, tomado de uma indizível ansiedade, estava sentado numa jaula sem fundo, à espera de ser chamado.

Page 180: O Tigre da Malásia

— Senhor Eanes! — Exclamou com voz trémula, lançando-se na direcção do português.

— Calma, Kammamuri.— Irão salvar o meu

patrão?— Assim o esperamos

— Disse Eanes.— Obrigado, senhor,

obrigado!— Agradece-me

quando o tivermos salvado. Agora desce até

Page 181: O Tigre da Malásia

á aldeia e trás até cá a tua patroa.

O marata desceu a estreita escada em declive, gritando de alegria...

— Bom rapaz — Murmurou o português.

Voltou para dentro e aproximou-se de Sandokan que voltara a sentar-se e escondia o rosto entre as mãos.

— Em que é que estás a pensar, meu

Page 182: O Tigre da Malásia

irmãozinho? — Perguntou, com voz afectuosa.

— No passado, Eanes — Respondeu o pirata.

— Nunca penses no passado, Sandokan. Já sabes que te faz sofrer. Diz-me, irmãozinho, quando partimos?

— De imediato.— Para Sarawak?— Para Sarawak.— Será um osso duro

de roer. O rajá de

Page 183: O Tigre da Malásia

Sarawak é poderoso e odeia os piratas.

— Eu sei, mas os nossos homens chamam-se os Tigres de Mompracem e eu o Tigre da Malásia.

— Seguimos directamente para Sarawak ou cruzaremos perto das costas?

— Cruzaremos na vasta baía. Antes de desem-barcar temos de afundar o Helgoland.

Page 184: O Tigre da Malásia

— Compreendo o teu plano.

— Aprova-lo?— Sim, Sandokan, e...Parou de repente. A

porta tinha-se subitamente aberto e apareceu Ada Corishant, a Virgem do Pagode do Oriente.

— Olha para ela, Sandokan! — Exclamou o português.

O pirata virou-se. Ao ver aquela mulher em pé

Page 185: O Tigre da Malásia

na soleira da porta emitiu um grito e recuou, cambaleando, até à parede.

— Que semelhança! — Exclamou. — Que seme-lhança!

A louca não se mexera. Conservava uma abso-luta imobilidade, mas olhava fixamente para o pirata.

De repente, deu dois passos para a frente e pronunciou uma palavra:

Page 186: O Tigre da Malásia

— São tugues?— Não — Disse

Kammamuri, que a tinha seguido. — Não, patroa, não são tugues.

Ela sacudiu a cabeça, aproximou-se de Sandokan que parecia incapaz de se afastar da parede e pôs-lhe a mão sobre o peito.

— São tugues? — Repetiu ela.

— Não, patroa, não — Disse o marata.

Page 187: O Tigre da Malásia

Ada abriu o grande manto de seda branca descobrindo uma couraça de ouro cravejada de grandes diamantes, no meio da qual se destacava, em alto-relevo, uma serpente com cabeça de mulher. Olhou para aquele misterioso símbolo dos estranguladores indianos, depois olhou

Page 188: O Tigre da Malásia

para o peito de Sando-kan.

— Porque é que não vejo a serpente? — Perguntou, com voz levemente alterada.

— Por que estes homens não são tugues — Disse Kammamuri.

Um brilho resplandeceu nos olhos da louca, mas depressa se apagou. Teria compreendido o que disse Kammamuri? Talvez.

Page 189: O Tigre da Malásia

— Kammamuri — Disse Eanes em voz baixa. — E se pronunciasses o nome do noivo dela?

— Não, não! — Exclamou o marata, com terror. — Desmaiaria.

— Está sempre assim tão calma?

— Sempre, mas faça com que não oiça o som de um ramsinga ou de um tarè, e que não veja uma corda ou uma estátua da deusa Kali.

Page 190: O Tigre da Malásia

— Porquê?— Porque nesse caso

foge e delira durante vários dias.

Nesse instante a louca virou-se, dirigindo-se lentamente para a porta. Kammamuri, Eanes e Sandokan já refeitos da emoção, seguiram-na.

— Que pretende ela fazer? — Perguntou Eanes.

— Não sei — Respondeu o marata.

Page 191: O Tigre da Malásia

A louca, assim que saíra, parara observando com curiosidade as trincheiras e as paliçadas que defendiam a cabana, depois encaminhou-se para a borda do gigantesco penhasco, olhando para o mar.

De repente debruçou-se como se quisesse ouvir melhor o barulho das ondas e soltou uma gargalhada, exclamando:

— O Mangal!

Page 192: O Tigre da Malásia

— O que diz? — Perguntaram Sandokan e Eanes ao mesmo tempo.

— Penso que esteja a confundir o mar com o rio Mangal que banha a ilha dos tugues.

— Pobre mulher! — Exclamou Sandokan, sus-pirando.

— Esperas conseguir fazê-la voltar ao seu juízo? — Perguntou Eanes.

Page 193: O Tigre da Malásia

— Sim, espero — Respondeu Sandokan.

— De que maneira?— Digo-te depois de

termos libertado Tremal-Naik.

— Aquela infeliz vem connosco?

— Sim, Eanes. Durante a nossa ausência os in-gleses poderiam lançar-se sobre Mompracem e levá-la.

— Quando partimos? — Perguntou Kammamuri.

Page 194: O Tigre da Malásia

— De imediato — Disse Sandokan. — Temos muito caminho a percorrer e o Helgoland poderá não estar longe.

— Desçamos à aldeia.Kammamuri segurou

Ada pela mão e desceu a pequena escada, seguido pelo Tigre da Malásia e por Eanes.

— Qual a tua impressão daquela infeliz? — Perguntou o português a Sandokan.

Page 195: O Tigre da Malásia

— Uma impressão dolorosa, Eanes — Disse o pirata. — Ah! Se eu pudesse um dia fazê-la feliz!

— Parece-se com a defunta Mariana?

— Sim, sim, Eanes! — Exclamou Sandokan com voz comovida. — Tem as mesmas feições da mi-nha pobre Mariana! Basta, Eanes, não fale-mos mais daquela morta.

Page 196: O Tigre da Malásia

Isso faz-me sofrer, sofrer muito!

Tinham chegado às primeiras cabanas da aldeia. Nesse momento, entravam na baía os paraus carregados com os despojos do Young Indira.

As tripulações, ao avistarem o seu chefe, saudaram-no entusiasticamente, agitando com frenesim as suas armas.

Page 197: O Tigre da Malásia

— Viva o invencível Tigre da Malásia — Grita-vam.

— Viva o nosso valoroso capitão! — Respondiam os piratas da aldeia.

Sandokan com um único gesto convocou em seu redor todos os piratas, que não eram menos de duzentos, a maioria malaios e daiaques do Bornéu, homens corajosos como

Page 198: O Tigre da Malásia

leões, ferozes como tigres, prontos a morrer pelo seu chefe, que adoravam como a um deus.

— Ouçam-me — Disse ele. — O Tigre da Malásia prepara-se para fazer uma expedição que talvez venha a custar a vida a muitos de nós.

«Tigres de Mompracem. Nas costas de Bornéu reina um homem, um filho de uma

Page 199: O Tigre da Malásia

raça que tanto mal nos fez e que nós tanto odiamos, um inglês, enfim. Esse homem, o maior inimigo da pirataria malaia, tem em seu poder um amigo meu, noivo desta pobre louca que é prima da defunta rainha de Mompracem.»

Um enorme grito levantou-se à volta de Sandokan.

Page 200: O Tigre da Malásia

— Salvemo-lo! Salvemo-lo!

— Tigres de Mompracem, quero salvar o noivo desta infeliz.

— Havemos de o salvar, Tigre da Malásia, havemos de o salvar! Quem é que o tem prisioneiro?

— O rajá James Brooke, o exterminador de piratas.

Page 201: O Tigre da Malásia

Desta vez não foi um grito o que irrompeu dos peitos dos piratas, mas um rugido de ira.

— Morte a James Brooke!

— Morte ao exterminador dos piratas!

— A Sarawak! Todos a Sarawak!

— Vingança, Tigre da Malásia!

— Silêncio! — Disse com voz ribombante o

Page 202: O Tigre da Malásia

Tigre da Malásia. — Kará-OIó, avança.

Um homem enorme, de pele amarelada, com os membros carregados de anéis de cobre e o peito adornado com contas de vidro, com dentes de tigre, com conchas e de tufos de cabelos, aproximou-se, empunhando um sabre pesado.

Page 203: O Tigre da Malásia

— Quantos homens tem o teu bando? — Per-guntou-lhe Sandokan.

— Oitenta — Respondeu o pirata.

— Tens medo de James Brooke?

— Nunca tive medo de ninguém. Quando o Tigre da Malásia me mandar lançar sobre Sarawak, irei ao assalto e atrás de mim virão todos os meus homens.

Page 204: O Tigre da Malásia

— Vais embarcar com o teu bando no Pérola de Labuan. Não preciso de te dizer que o parau está carregado de balas e de pólvora.

— Está bem, capitão.— E eu, o que devo

fazer, capitão? — Perguntou um velho malaio, desfigurado por mais de vinte cicatrizes.

— Tu, Nayala, ficarás em Mompracem; deixa

Page 205: O Tigre da Malásia

que sejam os jovens a ir a Sarawak!

— Ficarei aqui, porque me ordenas e defenderei a ilha enquanto tiver uma gota de sangue nas veias.

Sandokan e Eanes ficaram ainda a falar com os capitães dos bandos, depois subiram para a grande cabana.

Os seus preparativos foram breves. Escondi-das sob as vestes umas

Page 206: O Tigre da Malásia

bolsas contendo grandes diamantes que unidos representavam um valor de quase dois milhões e escolhidas as carabinas, as pistolas, as cimitarras e os kriss de ponta afiada e envenenada, regressaram de novo à costa.

O Pérola de Labuan, coberto de velas, ondulava na pequena enseada. Na coberta estavam enfileirados os

Page 207: O Tigre da Malásia

oitentas daiaques de Kará-OIó, prontos para o manobrar.

— Tigrezinhos — Disse Sandokan dirigindo-se aos piratas aglomerados na praia — Defendam a minha ilha.

— Defendê-la-emos — Responderam em coro os Tigres de Mompracem, agitando as armas.

Sandokan, Eanes, Kammamuri e a Virgem do Pagode do Oriente

Page 208: O Tigre da Malásia

subiram para uma embarcação e alcançaram o navio que, depois de libertas as amarras, navegou para o mar alto saudada por gritos de:

— Viva o Pérola de Labuan! Viva o Tigre da Malásia! Viva os Tigres de Mompracem!

VI

Page 209: O Tigre da Malásia

DE MOMPRACEM A SARAWAK

O Pérola de Labuan, com o qual o chefe dos piratas de Mompracem estava para levar a cabo a audaz expedição, era um dos melhor equipados, dos mais sólidos e belos paraus que sulcavam os mares da Malásia.

Tinha cento e cinquenta ou cento e sessenta toneladas de

Page 210: O Tigre da Malásia

calado, isto é, o triplo dos paraus vulgares. A quilha era estreitíssima, as formas esbeltas, a proa alta e sólida, os mastros fortíssimos e as velas enormes. Quando havia vento deixava para trás os barcos a vapor e os veleiros mais rápidos da Ásia e da Austrália.

Nada havia nele que fizesse pensar num navio corsário. Não tinha canhões à vista, nem

Page 211: O Tigre da Malásia

uma tripulação numerosa, nem portinholas. Parecia um elegante parau mercantil e transportava uma carga preciosa, na rota da China ou das Indiras. O mais astuto lobo-do-mar ter-se-ia enganado.

Mas quem tivesse descido ao porão teria podido ver de que espécie era a carga. Não eram tapetes, nem ouro, nem especiarias, nem

Page 212: O Tigre da Malásia

chá: eram bombas, espingardas, punhais, grandes sabres de abordagem e barris de pólvora em tal quantidade que fariam saltar duas fragatas de alto bordo.

Quem depois entrasse sob a grande guarita teria podido ver seis grandes canhões de longo alcance, colocados sobre os carretos, prontos a disparar, para

Page 213: O Tigre da Malásia

não falar de dois morteiros, machados e pesados parangs, as armas favoritas dos daiaques do Bornéu.

Ultrapassados os incontáveis rochedos e recifes, que dificultavam aos navios a entrada da pequena baía, o veloz Pérola de Labuan dirigiu a proa em direcção à costa do Bornéu.

O tempo estava esplêndido e o mar

Page 214: O Tigre da Malásia

tranquilo; no céu, poucos cirros cor de fogo, no mar nada. Nem uma vela, nem um traço de fumo que assinalasse um barco a vapor no horizonte, nem ondas. A imensa extensão de água, cor de chumbo, estava perfeitamente tranquila, embora soprasse um ligeiro vento fresco.

Em menos de vinte minutos, o veloz barco

Page 215: O Tigre da Malásia

atingiu a ponta sul extrema da ilha, por trás da qual acabava de se desfazer o esqueleto do Young Indira e ganhou o largo, inclinado vaidosamente a bombordo, deixando atrás da popa uma linha perfeita.

Eanes e Kammamuri, depois de conduzirem a Virgem do Pagode à maior e mais bonita cabina de popa, tinham

Page 216: O Tigre da Malásia

voltado a subir para a coberta, onde Sandokan passeava de braços cruzados sobre o peito e a cabeça baixa, imerso em profundos pensamentos.

— O que é que achas do nosso barco? — Perguntou Eanes ao marata, que, apoiado ao coroamento de popa, olhava atentamente as costas desmoronadas de Mompracem que

Page 217: O Tigre da Malásia

desapareciam rapidamente.

— Não me lembro de alguma vez ter navegado num barco tão veloz quanto este, senhor Eanes — Disse o marata. — Os piratas, ao que parece, sabem escolher os seus navios.

— Tens razão, meu caro. Não há navio a vapor que se compare a este valoroso Pérola de Labuan. Em poucos dias,

Page 218: O Tigre da Malásia

se este vento não diminuir, avistaremos as costas de Sarawak.

— Sem combates?— Isso não se pode

saber. O Pérola de Labuan é neste mar conhecido e muitos são os cruzadores que batem as costas de Bornéu. Pode acontecer que algum deles queira medir forças com o Tigre da Malásia.

— E se isso acontecer?

Page 219: O Tigre da Malásia

— Caramba, aceitaremos o desafio. O Tigre da Malásia nunca recusa um combate.

— Não gostava que um barco grande nos assal-tasse.

— Não teríamos medo. Temos no porão espin-gardas e sabres suficientes para munir a população de uma cidade de primeira classe, bombas que cheguem para cobrir

Page 220: O Tigre da Malásia

uma frota inteira e pólvora em quantidade para fazer explodir mil casas.

— Mas só oitenta homens.

— Mas tu sabes que homens são os nossos?

— Sei que são corajosos, mas...

— São daiaques, meu caro.

— O que é que isso quer dizer?

Page 221: O Tigre da Malásia

— Gente que não tem medo de lançar-se contra uma muralha de ferro defendida por cem canhões, quando sabem que do outro lado há cabeças para cortar.

— Caçam as cabeças, esses daiaques?

— Sim, meu jovem. Os daiaques, que vivem nas grandes florestas do Bornéu, chamam-se caçadores de cabeças.

Page 222: O Tigre da Malásia

— São terríveis companheiros então.

— Formidáveis.— E também perigosos.

Se uma noite lhes desse na cabeça decapitar-nos?

— Não tenhas medo, rapaz. Respeitam-nos e temem-nos mais a nós do que às suas divindades. Basta uma palavra, um só olhar do Tigre para os amansar.

— E quando chegaremos a Sarawak?

Page 223: O Tigre da Malásia

— Dentro de cinco dias se não tivermos acidentes.

— Tempestades?— Puf — Fez o

português, erguendo os ombros. — O Pérola de Labuan guiado por um lobo-do-mar como Sandokan, ri dos mais temíveis ciclones. São os cruzadores que de vez em quando nos vêm aborrecer.

— Há muitos então?

Page 224: O Tigre da Malásia

— Pululam como plantas venenosas. Portugueses, ingleses, holandeses e espanhóis juraram uma guerra de morte contra a pirataria.

— Até que um belo dia os piratas desapareçam.

— Oh! Nunca mais! — Exclamou Eanes, com profunda convicção. — A pirataria durará enquanto existir um único malaio.

— E porquê?

Page 225: O Tigre da Malásia

— Porque a raça malaia é refractária a qualquer princípio de civilização. Não conhece o roubo, o incêndio, o saque, os terríveis meios que lhes dão para viver na abundância. A pirataria malaia conta com vários séculos de vida e continuará ainda durante muitos mais. É uma herança sanguinária que se transmite de pai para filho.

Page 226: O Tigre da Malásia

— Mas não enfraquece esta raça? Os contínuos combates devem provocar grandes vazios.

— Coisa pouca, Kammamuri, coisa pouca! A raça malaia é fecunda como as plantas venenosas, como os insectos nocivos. Se morre um, nasce outro e este não é menos valoroso nem menos sanguinário do que o pai.

Page 227: O Tigre da Malásia

— O Tigre da Malásia é malaio?

— Não, é de Bornéu e de uma casta elevada.

— Diga-me, senhor Eanes. Como é que um homem tão temível que assalta navios, trucida tripulações inteiras, saqueia e incendeia aldeias, que finalmente espalha o terror por toda a parte, se ofereceu generosamente para

Page 228: O Tigre da Malásia

salvar o meu patrão que nunca conheceu?

— Porque o teu patrão foi o noivo de Ada Corishant.

— Conhecia Ada Corishant? — Perguntou Kammamuri, com surpresa.

— Nunca a viu.— Então não percebo...— Hás-de perceber,

Kammamuri. Em 1852, isto é, há cinco anos atrás, o Tigre da Malásia

Page 229: O Tigre da Malásia

estava no auge. Tinha muitos e ferozes tigres, muitos paraus, muitos canhões. Com uma só palavra fazia tremer todos os povos da Malásia.

— Já então estava ao lado do Tigre?

— Sim, e desde há vários anos. Um dia, Sandokan foi informado de que em Labuan vivia uma rapariga belíssima e sentiu vontade de a

Page 230: O Tigre da Malásia

conhecer. Dirigiu-se a Labuan, mas foi descoberto por um cruzador, vencido e ferido. Com penas infinitas e completamente só conseguiu esconder-se nos bosques e daí chegou a uma casa habitada por... Adivinha por quem?

— Não sei.— Pela rapariga que

desejava ver.

Page 231: O Tigre da Malásia

— Oh! Que estranha combinação!

— O Tigre da Malásia nunca tinha amado até então senão as lutas, os massacres, as tempestades. Mas ao ver a rapariga apaixonou-se loucamente.

— Quem? O Tigre? É impossível! — Exclamou Kammamuri.

— Estou a contar-te factos verídicos — Disse Eanes. — Amou a

Page 232: O Tigre da Malásia

rapariga, a rapariga amou-o também e decidiram fugir juntos.

— Porquê fugir?— A rapariga tinha um

tio, capitão de marinha, um homem rude, violento, inimigo acérrimo do Tigre da Malásia. Não relato as lutas tremendas que se travaram entre ingleses e piratas, as desgraças que tocaram o Tigre, o bombardeamento de

Page 233: O Tigre da Malásia

Mompracem, as fugas. Dir-te-ei somente que Sandokan pôde finalmente fazer sua a rapariga e refugiar-se em Batávia. Eu e trinta tigrezinhos seguimo-lo.

— E os outros?— Tinham morrido

todos.— E por que é que o

Tigre regressou a Mom-pracem?

Eanes não respondeu. O marata, surpreendido

Page 234: O Tigre da Malásia

por não receber resposta, levantou os olhos e viu-o limpar rapidamente uma lágrima.

— Mas está a chorar! — Exclamou.

— Não é verdade — Disse Eanes.

— Para quê negá-lo?— Tens razão,

Kammamuri. Até o Tigre da Malásia, que nunca havia chorado, também a ele vi caírem lágrimas.

Page 235: O Tigre da Malásia

Sinto um nó na garganta sempre que penso em Mariana Guillonk.

— Mariana Guillonk! — Exclamou o marata. — Quem é?

— Era a jovem que fugiu com o Tigre da Malásia.

— Era parente de Ada Corishant?

— Prima, Kammamuri.— Foi então por isso

que o Tigre prometeu salvar Tremal-Naik e a

Page 236: O Tigre da Malásia

sua noiva. Diga-me, senhor Eanes, Mariana Guillonk está viva?

— Não, Kammamuri — Disse Eanes, com tristeza. — Há dois anos que repousa num túmulo.

— Morta!— Morta.— E o tio?— Está vivo e continua

a procurar Sandokan. Lord James Guillonk jurou que o enforcaria comigo*

Page 237: O Tigre da Malásia

— E onde está ele agora?

— Não sabemos...— Teme encontrá-lo?— Digo-te que tenho

um pressentimento. Mas... Já não acredito em pressentimentos! — Acendeu um cigarro e pôs-se a passear na coberta. O marata notou que aquele homem, habitualmente tão risonho, ficara triste, de repente.

Page 238: O Tigre da Malásia

— Talvez tenham sido as recordações a pô-lo tão triste — Murmurou, e desceu para a cabina da louca.

O vento continuava a manter-se bom, tinha até tendência a aumentar, acelerando mais o andamento do Pérola de Labuan, não demorou a atingir os sete nós à hora, velocidade que lhe permitia chegar

Page 239: O Tigre da Malásia

rapidamente ao cabo Sirik.

Ao meio-dia foram avistadas a bombordo as Nómades, grupo de ilhotas situadas a quarenta milhas da costa do Bornéu, habitadas principalmente por piratas que se davam às mil maravilhas com os de Mompracem. Alguns paraus, até, se aproximaram do Pérola de Labuan, desejando à

Page 240: O Tigre da Malásia

tripulação e ao seu capitão um bom saque.

Uma ou outra vela longínqua, um bergantim e alguns juncos chineses foram avistados durante o dia, mas o Tigre da Malásia, que temia chegar depois do Helgoland e não queria expor os seus homens num combate inútil, não se preocupou com aqueles barcos.

Page 241: O Tigre da Malásia

Na manhã seguinte, aos primeiros alvores da madrugada, foi avistada Whale, uma ilha de tamanho considerável, distante cento e dez milhas de Mompracem, rodeada por inúmeros recifes que tornam dificílima a atracagem. Uma canhoneira com bandeira holandesa, que batia a costa, sem dúvida em busca de um navio corsário ali

Page 242: O Tigre da Malásia

refugiado depois de ter cometido um qualquer golpe, ao avistar o Pérola de Labuan fez-se ao largo a todo o vapor. A coberta num instante se cobriu de marinheiros armados de carabinas de longo alcance e os artilheiros colocaram a descoberto, a estibordo, um grande canhão.

— Ah! — Exclamou Eanes aproximando-se de Sandokan que olhava

Page 243: O Tigre da Malásia

com tranquilidade para a canhoneira. — Meu irmão, aquela besta farejou qualquer coisa e está a preparar-se para nos dar caça.

— Não acredites nisso — Respondeu o Tigre. — Limitar-se-á a seguir-nos.

— Não gosto muito de ser seguido por uma canhoneira.

— Tens medo?

Page 244: O Tigre da Malásia

— Não, meu irmão. Mas se ela nos seguisse até Sarawak?

— Por que havia de nos seguir até Sarawak? Se suspeitar de nós dá-nos luta e nós fá-la-emos ir a pique.

— Desconfia, meu irmão. Disseram-me que James Brooke tem uma boa frota que muda muitas vezes de bandeira e de aparência

Page 245: O Tigre da Malásia

para dar caça aos piratas.

— Conheço as astúcias desse lobo-do-mar. Sei que uma vez, para atrair os piratas, tirou os mastros ao seu navio, o Realista, para os metralhar assim que estivessem ao alcance dos tiros.

— É verdade, Sandokan, que esse homem diabólico exterminou todos os

Page 246: O Tigre da Malásia

piratas que batiam as costas de Sarawak?

— É verdade, Eanes. O Realista purgou as costas de meio Bornéu, destruindo todos os paraus, incendiou as aldeias, bombardeou as fortalezas. Aquele homem tem sangue nas veias, mas não tanto quanto os piratas de Mompracem.

— Queres medir-te com ele?

Page 247: O Tigre da Malásia

— Assim o espero. O Tigre dará ao exterminador de piratas um golpe terrível.

— Ah! — Exclamou o português.

— O que tens?— Olha para a

canhoneira, Sandokan. Está a convidar-nos a mostrar a nossa bandeira.

— Não lhes mostrarei seguramente a minha.

Page 248: O Tigre da Malásia

— Então qual? — Perguntou Eanes.

— Hei, Kai-Malú, mostra àqueles curiosos uma bandeira inglesa, holandesa ou portuguesa.

Passados instantes, uma bandeira portuguesa esvoaçava na popa do parau.

A canhoneira, satisfeita, fez-se quase de imediato ao largo, já não na direcção da ilha

Page 249: O Tigre da Malásia

de Whale, que ainda se via no horizonte, mas rumo ao Sul.

Aquela rota fez o Tigre da Malásia e os seus companheiros franzir o sobrolho.

— Hum! — Fez o português. — Aqui há coisa.

— Eu sei, irmão.— Aquela canhoneira

dirige-se para Sarawak, estou certo. Assim que estiver fora da nossa

Page 250: O Tigre da Malásia

vista, modificará a sua rota.

— Os homens que a navegam são espertos, farejaram que somos piratas.

— O que vais fazer?— Nada, por enquanto.

Aquela canhoneira hoje anda mais depressa do que nós.

— Será que nos vai esperar a Sarawak?

— É provável.

Page 251: O Tigre da Malásia

— Talvez nos arme uma emboscada na foz do rio com a frota de Brooke.

— Havemos de nos bater.

— Só temos oito canhões, Sandokan.

— Nós sim, mas o Helgoland deve certamente ter mais do que nós.

Durante dois dias o Pérola de Labuan navegou a cerca de

Page 252: O Tigre da Malásia

trinta milhas da costa do Bornéu, assinalada pelo cume do monte Patau, um cone gigantesco coberto de soberbas florestas.

Na manhã do terceiro dia, depois de uma breve calmaria, dobrava o cabo Sirik, promontório rochoso coroado por algumas ilhas e ilhotas, que encerra a norte a vasta baía de Sarawak.

Page 253: O Tigre da Malásia

Sandokan, que temia encontrar-se de um momento para o outro frente a frente com a frota de James Brooke, mandou carregar os canhões, esconder dois terços da tripulação e içar a bandeira holandesa. Depois disso, apontou a proa para o cabo Taniong-Datu, que fecha a baía a ocidente, perto do qual deveria passar o Helgoland

Page 254: O Tigre da Malásia

proveniente da Indira. Cerca do meio-dia desse dia, para surpresa geral, o Pérola de Labuan cruzava-se com a canhoneira holandesa que encontrara três dias antes nas águas da ilha de Whale. Sandokan, ao vê-la, deixou cair um violento murro sobre a amurada.

— Outra vez a canhoneira! — Exclamou franzindo a testa e

Page 255: O Tigre da Malásia

mostrando os dentes, brancos e aguçados como os de um tigre.

— Queres que eu dê sangue a beber aos meus tigres.

— Está a espiar-nos, Sandokan — Disse Eanes.

— Mas eu hei-de afundá-la.

— Não o farás, Sandokan. Um tiro de canhão pode ser ouvido pela frota de Brooke.

Page 256: O Tigre da Malásia

— Eu rio da frota do rajá.

— Sê prudente, Sandokan.

— Serei prudente já que assim queres, mas verás que aquela canhoneira nos há-de fazer uma emboscada na foz do Sarawak.

— Não és o Tigre da Malásia, tu?

— Sim, mas a bordo temos a Virgem do

Page 257: O Tigre da Malásia

Pagode. Poderia ser atingida por uma bala.

— Os nossos peitos serão o escudo dela.

A canhoneira holandesa estava a duzentos metros do Pérola de Labuan. Da sua coberta viam-se o capitão armado de um óculo e, aglomerados na proa, cerca de trinta marinheiros armados de carabinas. À popa, alguns artilheiros

Page 258: O Tigre da Malásia

rodeavam um grande canhão.

Deu duas voltas em redor do parau descrevendo um grande semicírculo, depois virou de bordo metendo a proa para Sul, ou seja para Sarawak.

Era tal a velocidade, que em menos de três quartos de hora apenas se avistava um fino penacho de nuvens.

Page 259: O Tigre da Malásia

— Maldição! — Exclamou Sandokan — Se voltar a estar na minha mira, afundo-te com uma única bordada. O Tigre, mesmo quando não está de mau-humor, não deixa que se aproximem três vezes impunemente.

— Havemos de a encontrar em Sarawak, Sandokan — Disse Eanes.

Page 260: O Tigre da Malásia

— Assim o espero, mas...

Um grito vindo de cima interrompeu-o brusca-mente.

— Ei! Um barco a vapor no horizonte! — Tinha gritado um pirata encavalitado na verga do mastro principal.

— Talvez seja um cruzador! — Exclamou Sandokan, cujo olhar se iluminou. — De onde vem?

Page 261: O Tigre da Malásia

— Do Norte — Respondeu o gajeiro.

— Consegues vê-lo bem?

— Só vejo o fumo e a extremidade dos mastros.

— Se for o Helgoland! — Exclamou Eanes.

— É impossível! Viria de ocidente e não de norte.

— Pode ter tocado Labuan.

Page 262: O Tigre da Malásia

— Kammamuri! — Gritou o Tigre. O marata correu para o pirata.

— Conheces o Helgoland? — Perguntou o Tigre.

— Sim, patrão.— Então segue-me!Subiram até à

extremidade do mastro principal e fixaram os olhos sobre a esverdeada superfície do mar.

VII

Page 263: O Tigre da Malásia

O HELGOLANDNaquela linha onde o

oceano se confundia com o horizonte, apareceu quase do nada um navio de três mastros do qual se adivinhavam, apesar de ainda estar bastante longe, as grandes dimensões. Da chaminé saía uma tira de fumo negro que o vento arrastava para longe. O seu tamanho, a sua estrutura, os seus

Page 264: O Tigre da Malásia

mastros, davam logo a conhecer que aquele navio pertencia à categoria dos barcos de guerra.

— Estás a vê-lo, Kammamuri? — Perguntou Sandokan, que o fixava com extrema atenção, como se quisesse conhecer a bandeira que flutuava no topo de uma das velas.

— Sim — Respondeu o marata.

Page 265: O Tigre da Malásia

— Conhece-lo?— Espere um pouco,

patrão.— É o Helgoland?— Espere... parece-

me... Sim, sim, é o Helgoland!

Um brilho sinistro lampejou nos olhos do Tigre da Malásia.

— Ali há trabalho para todos! — Disse o pirata.

Agarrou-se a uma corda e deixou-se escorregar para a

Page 266: O Tigre da Malásia

coberta. Os seus piratas, que brandiam as armas, correram para junto dele interrogando-o com o olhar.

— Eanes! — Chamou.— Eis-me, irmão —

Disse o português acorrendo da popa.

— Desce com seis homens ao porão e arromba os flancos do parau.

Page 267: O Tigre da Malásia

— O quê! Arrombar os flancos do parau? Estás louco?

— Tenho um plano. A tripulação do barco ouvirá os nossos gritos, acorrerá e acolher-nos-á como náufragos. Tu serás um embaixador português rumo a Sarawak e nós a tua escolta.

— E depois?— Uma vez no barco,

não será difícil a homens

Page 268: O Tigre da Malásia

como nós tomá-lo. Despacha-te: o Helgoland avança.

— Irmão, és um grande homem! — Exclamou o português.

Fez armar dez homens e desceu ao porão cheio de armas, de barris de pólvora, de balas e de velhos canhões que serviam de lastro. Cinco homens colocaram-se a bombordo e os outros

Page 269: O Tigre da Malásia

cinco a estibordo, com os machados na mão.

— Ânimo, rapazes — Disse o português. — Batam com força mas que os buracos não sejam demasiados grandes. Temos de ir ao fundo lentamente para não sermos comidos pelos tubarões. Os dez homens começaram a dar machadadas contra os lados do navio. Dez minutos depois, dois

Page 270: O Tigre da Malásia

enormes jactos de água apareciam no porão, correndo para a popa. O português e os dez piratas correram para a coberta.

— Estamos a afundar-nos — Disse Eanes. — Aguentem-se rapazes e escondam as pistolas e os kriss debaixo dos casacos. Amanhã vamos precisar deles.

— Kammamuri — Gritou Sandokan. —

Page 271: O Tigre da Malásia

Conduz a tua patroa para a coberta.

— Teremos de nos atirar ao mar, capitão? — Perguntou o marata.

— Não é preciso. Mas se for necessário, eu levarei a jovem.

O marata agarrou na patroa sem que ela opusesse a mais pequena resistência e levou-a para a coberta.

O barco estava a uma boa milha de distância,

Page 272: O Tigre da Malásia

mas avançava à velocidade de catorze ou quinze nós à hora. Dentro de poucos minutos encontrar-se-ia nas águas do parau. O Tigre da Malásia aproximou-se de um canhão e disparou-o. A detonação foi, com o vento, levada até ao barco, que de imediato dirigiu a proa na direcção do parau.

Page 273: O Tigre da Malásia

— Socorro! Acudam! — Gritou o Tigre.

— Socorro! Socorro!— Estamos a afundar-

nos!— Acudam! Acudam! —

Gritaram os piratas.O parau, inclinado a

estibordo, afundava-se lentamente, balançando como se estivesse embriagado. Por baixo, no porão, ouvia-se a água precipitar-se com um ruído surdo pelos

Page 274: O Tigre da Malásia

dois rombos e os barris baterem uns contra os outros e partirem-se contra as amuradas e contra os canhões. O mastro principal, partido, balançou por um instante, depois desabou no mar arrastando na queda a grande vela.

Foram disparados seis ou sete tiros de espingarda, para apressar o socorro do navio.

Page 275: O Tigre da Malásia

— Deitem ao mar as artilharias — Comandou Sandokan, que sentia o parau fugir-lhe debaixo dos pés.

Os canhões foram atirados ao mar, depois os barris de pólvora, as balas, as âncoras, o lastro que estava na coberta, as amarras, os mastros sobressalentes.

Seis homens, depois de pegarem em baldes, desceram ao porão para

Page 276: O Tigre da Malásia

abrandar o ímpeto das águas que entravam com fúria.

O barco estava agora a trezentos metros de distância e tinha parado. Seis embarcações com marinheiros destacaram-se dos seus flancos, diri-gindo-se a toda a velocidade em direcção ao parau que se afundava.

— Socorro! Socorro! — Gritou Eanes, em pé

Page 277: O Tigre da Malásia

sobre a amurada de bombordo rodeado por todos os piratas.

— Coragem — Gritou uma voz a partir do bote mais próximo.

As embarcações avançavam com fúria, fendendo ruidosamente as águas. Os timoneiros, sentados na popa, com a barra do leme na mão, encorajavam os marinheiros que remavam com furor e em

Page 278: O Tigre da Malásia

perfeito acordo, sem perder um golpe de remos.

Em breves instantes, o parau viu-se abordado por todos os lados. O oficial que comandava a pequena esquadra, um jovem moreno em cujas veias devia correr sangue indiano, saltou para a coberta do barco que estava a ficar submerso.

Page 279: O Tigre da Malásia

Ao ver a louca tirou cortesmente o chapéu.

— Despachem-se — Disse — Primeiro a senhora depois os outros. Têm alguma coisa para salvar?

— Nada, comandante — Disse Eanes. — Deitámos tudo ao mar.

— Embarquem!A Virgem do Pagode

primeiro, depois Eanes, Sandokan e alguns malaios e daiaques

Page 280: O Tigre da Malásia

saltaram para a embarcação do oficial, enquanto os outros se acomodavam como podiam nas outras cinco.

A pequena esquadra afastou-se rapidamente, dirigindo-se para o barco que avançava a pouco vapor.

A água chegava então à coberta do parau, que oscilava da proa à popa abanando o instável mastro de traquete. O

Page 281: O Tigre da Malásia

pobre barco parecia lutar para se manter à tona.

De repente deitou-se sobre o flanco direito, virou-se, depois desapareceu sob as ondas, formando um pequeno redemoinho que atirou a embarcação a uma vintena de metros, apesar dos esforços hercúleos dos marinheiros. Uma grande vaga estendeu-se para o

Page 282: O Tigre da Malásia

largo, levando os destroços.

— Pobre Pérola! — Exclamou Eanes, que sentiu um aperto no coração.

— De onde vinham? — Perguntou o oficial do Helgoland, que até então permanecera em silêncio.

— De Varauni — Respondeu Eanes.

— Abriu-se uma brecha?

Page 283: O Tigre da Malásia

— Sim, depois de batermos contra os recifes da ilha Whale.

— Quem são estes homens de cor que trazem convosco?

— Daiaques e malaios. É uma escolta de honra que me foi concedida pelo sultão de Bornéu.

— Mas então quem sois...?

— Eanes Gomera y Maranhão, capitão de S. M. Católica o Rei de

Page 284: O Tigre da Malásia

Portugal, embaixador na corte do sultão de Varauni.

O oficial tirou o chapéu.— Estou muito feliz por

tê-lo salvo — Disse, fazendo uma vénia.

— E eu agradeço, senhor — Disse Eanes, fazendo também ele uma vénia. — Sem a vossa ajuda, a esta hora nenhum de nós estaria vivo.

Page 285: O Tigre da Malásia

As embarcações tinham chegado ao pé do barco. A escada foi baixada e o oficial, Eanes, Ada, Sandokan e todos os outros subiram para a coberta, onde eram esperados ansiosamente pelo capitão e pela tripulação.

O oficial apresentou Eanes ao capitão do barco, um belo homem de uns quarenta anos com dois grandes

Page 286: O Tigre da Malásia

bigodes, com a pele curtida e bronzeada pelo sol equatorial.

— Foi uma verdadeira sorte, senhor, ter chegado em tão boa altura — Disse o lobo-do-mar apertando a mão direita que o português lhe estendia. — Imergir-se na grande bacia salgada é uma coisa de arrepiar, quando se sabe que no fundo há temíveis tubarões.

Page 287: O Tigre da Malásia

— Certamente, meu caro capitão. A minha irmã teria tido muito medo.

— É a sua irmã, senhor embaixador? — Perguntou o capitão, olhando a louca que ainda não tinha pronunciado uma palavra.

— Sim, capitão, mas a infeliz é louca.

— Louca!— Sim, comandante.

Page 288: O Tigre da Malásia

— Tão jovem e tão bela! — Exclamou o capitão olhando com compaixão a Virgem do Pagode. — Talvez esteja cansada.

— Creio que sim, capitão.

— Sir Strhafford, conduza a senhora à melhor cabina da popa.

— Permita, porém, que o criado dela a siga — Disse Eanes. —

Page 289: O Tigre da Malásia

Acompanha-a, Kammamuri.

O marata pegou na mão da jovem e seguiu o oficial até à popa.

— O senhor também deve estar cansado e faminto — Disse o capitão dirigindo-se a Eanes.

— Não digo que não, capitão. Há duas longas noites que não dormimos e há dois dias que não comemos.

Page 290: O Tigre da Malásia

— Para onde se dirigiam?

— Para Sarawak. A propósito, permita-me, capitão, que lhe apresente S.A.R. Orango Kahaian, irmão do sultão de Varauni — Disse Eanes apresentando Sandokan.

O capitão apertou a mão do Tigre da Malásia.

— Por Deus! — Exclamou. — Um embaixador e um

Page 291: O Tigre da Malásia

príncipe no meu barco! Isto é um acontecimento. Não preciso de lhes dizer, senhores, que o meu navio está à vossa disposição.

— Muito obrigado, capitão — Disse Eanes. — Também vão para Sarawak?

— Precisamente e faremos a viagem juntos.

— Que sorte!

Page 292: O Tigre da Malásia

— Vão encontrar-se com o rajá James Brooke?

— Sim, capitão, tenho de assinar um tratado importante.

— Conhece o rajá?— Não, capitão.— Hei-de apresentar-

lho, senhor embaixador. Sir

Strhafford, conduza estes senhores à sala da

Page 293: O Tigre da Malásia

popa e mande servir-lhes o almoço.

— E os nossos marinheiros, onde os irão alojar, capitão? — Perguntou Eanes.

— Na entrecoberta, se vos agradar.

— Obrigado, capitão.Eanes e Sandokan

seguiram o oficial que os conduziu a uma vasta cabina fornecida com camas e mobilada com muita elegância.

Page 294: O Tigre da Malásia

As duas janelas, separadas por vidros grossos e cortinas de seda, davam para a popa do navio e permitiam que a luz e o ar entrassem livremente.

— Sir Strhafford — Disse Eanes — Quem temos na cabina ao lado da nossa?

— O capitão à direita, e a sua irmã à esquerda.

— Muito bem. Trocaremos algumas

Page 295: O Tigre da Malásia

palavras através das paredes.

O oficial retirou-se, depois de os ter avisado que o steward chegaria em breve com o almoço.

— Bem, meu irmão, como estás? — Perguntou Eanes, quando ficaram sós.

— Corre tudo às mil maravilhas — Respondeu Sandokan. — Aqueles pobres diabos acreditam

Page 296: O Tigre da Malásia

mesmo que somos dois cavalheiros.

— O que achas do barco?

— É um barco de primeira classe que fará óptima figura em Sarawak.

— Contaste os homens que estão a bordo?

— Sim, são cerca de quarenta.

— Ah! — Exclamou o português, fazendo uma careta.

Page 297: O Tigre da Malásia

— Tens medo de quarenta homens?

— Não digo que não.— Estamos em bom

número e somos todos escolhidos, Eanes.

— Mas os ingleses têm bons canhões.

— Encarreguei Hirundo de me vir dizer os meios de que o barco dispõe.

— Quando daremos o golpe?

Page 298: O Tigre da Malásia

— Esta noite. Amanhã, ao meio-dia, estaremos na foz do rio.

— Calado, vem aí o steward.

O criado, ajudado por dois moços, trazia um lauto almoço: dois bifes em sangue, um pudim colossal, garrafas escolhidas de vinho francês e de gin. Os dois piratas, que estavam com apetite, sentaram-se à mesa, atacando o

Page 299: O Tigre da Malásia

almoço. Estavam a começar, quando do lado de fora se ouviu um passo silencioso e um ligeiro sibilar.

— Entra, Hirundo — Disse Sandokan.

Um belo jovem, ar de bronze, de olhar vivo, entrou fechando a porta atrás dele.

— Senta-te e conta, Hirundo — Disse Eanes. — Onde estão os nossos?

Page 300: O Tigre da Malásia

— Na entrecoberta — Respondeu o jovem daiaque.

— O que estão a fazer?— Acariciam as armas.— Quantos canhões há

na bateria? — Perguntou Sandokan.

— Doze, Tigre.— Estes ingleses estão

bem armados. James Brooke terá um osso duro de roer, se pensar em nos fazer uma abordagem; com uma

Page 301: O Tigre da Malásia

única bordada, mandaremos ao fundo o seu famoso Realista.

— Assim o creio, Tigre.— Ouve-me, Hirundo, e

guarda bem na cabeça as minhas palavras.

— Sou todo ouvidos.— Que nenhum dos

nossos homens se mexa, por agora. Quando a Lua se puser, virem os canhões da bateria e subam em massa à aberta gritando: fogo!

Page 302: O Tigre da Malásia

Fogo! Os marinheiros, os oficiais e o capitão subirão à aberta e nós atacá-los-emos, se não se renderem. Compreendeste?

— Perfeitamente, Tigre da Malásia. Tem mais alguma coisa a dizer-me?

— Sim, Hirundo. Quando saíres daqui entras na cabina da Virgem do Pagode que é contígua a esta, e dirás a Kammamuri para

Page 303: O Tigre da Malásia

barricar solidamente a porta o não sair enquanto durar o combate.

— Compreendi, Tigre da Malásia.

— Vai e obedece.Hirundo saiu e entrou

na cabina da Virgem do Pagode.

— Vamos matá-los a todos? — Perguntou Eanes a Sandokan.

— Não, Eanes, vamos obrigá-los a renderem-

Page 304: O Tigre da Malásia

se. Não gostaria de matar estes homens que nos acolheram com tanta gentileza.

Os dois piratas terminaram tranquilamente a refeição esvaziando várias garrafas, bebendo chá; depois estenderam-se nas duas camas, esperando pacientemente o sinal para se precipitarem para a coberta.

Page 305: O Tigre da Malásia

Cerca das oito o sol desapareceu no horizonte e as trevas estenderam-se, pouco a pouco, sobre a ampla superfície de água que rapidamente se tornava obscura.

Sandokan deitou uma olhadela para fora da janela.

A bombordo, a grande distância, pareceu-lhe ver uma massa preta erguer-se na direcção

Page 306: O Tigre da Malásia

das nuvens; na popa, ainda que ao longe, uma vela esbranquiçada passava rente ao horizonte.

— Estamos à vista do monte Matang — Murmurou. — Amanhã estaremos em Sarawak. — Aproximou-se da porta da cabina e ficou à escuta.

Ouviu duas pessoas descer as escadas a cochichar, depois duas

Page 307: O Tigre da Malásia

portas abriram-se e fecharam-se; uma à direita e a outra à esquerda.

— Bem — Voltou a murmurar. — O capitão e o tenente entraram nas suas cabinas. Tudo corre às mil maravilhas.

Ouviu bater as nove na cabina do capitão, depois as dez, por fim as onze. Remexeu-se como se tivesse sido tocado por

Page 308: O Tigre da Malásia

uma pilha eléctrica. Saltou da cama.

— Eanes — Exclamou.— Irmão — Disse o

português.O Tigre da Malásia deu

dois passos na direcção da entrada com a mão direita no punho da cimitarra. Um grito terrível soou no barco, perdendo-se no mar.

— Fogo! Fogo!— Vamos subir! —

Exclamou Sandokan.

Page 309: O Tigre da Malásia

Os dois piratas, aberta a porta, lançaram-se para a coberta como dois tigres.

VIIIA BAÍA DE SARAWAK

Ao grito terrível de: fogo! Fogo! O engenheiro tinha de imediato mandado parar o barco.

Reinava na coberta uma confusão indescritível quando apareceram os dois

Page 310: O Tigre da Malásia

piratas. Do castelo de proa, seminus, ou em camisa, os marinheiros saíam, ainda meio ensonados, chocando uns com os outros, empurrando-se, caindo e levantando-se. Os homens de vigia, não menos aterrorizados, pensando que o fogo já tivesse ganho proporções alarmantes, recolhiam os baldes espalhados pela coberta. Das escotilhas

Page 311: O Tigre da Malásia

subiam em fúria os Tigres de Mompracem, com o kriss entre os dentes e as pistolas em punho, prontos para a luta. Comandos, gritos, imprecações, exclamações, perguntas, cruzavam-se por todo o lado.

— Onde é o fogo? — Perguntava um.

— Na bateria — Respondia outro.

Page 312: O Tigre da Malásia

— O que é que está a arder?

— Formem a corrente!— Trovões! Às bombas!— Capitão! Onde está o

capitão?— Aos vossos lugares!

— Gritava o oficial. — Ânimo, rapazes, às bombas! Aos vossos lugares! — De repente, uma voz estridente ressoa no meio da coberta do barco imóvel.

— A mim, Tigres!

Page 313: O Tigre da Malásia

O Tigre da Malásia lança-se para o meio dos seus homens. Na mão direita segura com força a cimitarra que brilha sob a vaga claridade das lanternas da proa.

Um grito feroz vocifera:— Viva o Tigre da

Malásia!Os marinheiros,

surpreendidos, assustados ao verem todos aqueles homens armados prontos a

Page 314: O Tigre da Malásia

lançarem-se contra eles, precipitavam-se para a proa e para a popa pegando nos machados, nas alavancas, nas amarras.

— Traição! Traição! — Grita-se de todos os lados.

Os piratas, de kriss na mão, preparam-se para arrombar aquelas duas muralhas humanas. O Tigre da Malásia com um

Page 315: O Tigre da Malásia

assobio interrompe o ataque.

O capitão tinha aparecido na coberta e dirigia-se corajosamente para ele com o revólver na mão direita.

— O que é que se passa? — Perguntou ele, com voz imperiosa.

Sandokan saiu do grupo indo na sua direcção.

— Bem o vê, capitão — Disse ele. — Os meus

Page 316: O Tigre da Malásia

homens atacaram os vossos.

— Quem é o senhor?— O Tigre da Malásia,

meu capitão.— Como! Onde está o

embaixador?— Ali no meio, com a

pistola em punho, pronto a disparar sobre si se não se render rapidamente.

— Miserável!— Calma, capitão. Não

se insulta impunemente

Page 317: O Tigre da Malásia

o chefe dos piratas de Mompracem.

O capitão deu três passos atrás.

— Piratas! — Exclamou. — Vocês são piratas!

— E dos mais temíveis.— Para trás! — Gritou

ele erguendo o revólver — Para trás, ou mato-vos!

— Capitão — Disse Sandokan avançando. — Nós somos oitenta, todos

Page 318: O Tigre da Malásia

armados e decididos a tudo e vocês apenas tendes quarenta homens. Não vos odeio e não os quero sacrificar inutilmente; portanto, rendam-se e juro que não vos faremos algum mal.

— Mas afinal o que quer?

— O vosso barco.— Para depois

percorrerem o mar como corsários?

Page 319: O Tigre da Malásia

— Não, para cumprir uma boa acção, capitão, para reparar uma injustiça dos homens.

— E se eu recusar?— Eu lançaria os meus

Tigres contra vós.— Mas querem

derrubar-me!Sandokan desapertou

um cinto bem cheio que trazia sob o jaquetão e mostrou-o ao capitão:

— Há aqui um milhão em diamantes: tome!

Page 320: O Tigre da Malásia

O capitão olhou para ele espantado.

— Não compreendo — Disse. — Tem homens suficientes para tomar o barco sem muitos sacrifícios e em vez disso oferece-me um milhão! Quem é o senhor?

— Sou o Tigre da Malásia — Disse Sandokan. — Vamos, rendam-se ou serei obrigado a soltar os meus Tigres.

Page 321: O Tigre da Malásia

— Mas o que farão dos meus homens?

— Embarcarão nas chalupas e serão livres.

— E para onde vamos?— A costa do Bornéu

não é muito distante.O capitão hesitava.

Talvez temesse que depostas as armas os piratas se lançassem sobre os seus homens para os massacrar.

Eanes adivinhou de imediato o que passava

Page 322: O Tigre da Malásia

pela mente do capitão e deu um passo em frente:

— Capitão — Disse não tem razão para duvidar da palavra do Tigre da Malásia, uma vez que ele nunca faltou às promessas que fez.

— Tem razão — Disse o comandante. — Rapazes, deponham as armas, toda a resistência é inútil.

Os marinheiros não hesitaram um só instante

Page 323: O Tigre da Malásia

e atiraram para a coberta facas, machados, alavancas e aspas.

— Bons rapazes — Disse Sandokan.

A um seu sinal as duas baleeiras e as três chalupas foram lançadas ao mar, depois de terem sido bem fornecidas de víveres.

Os marinheiros, inermes, desfilaram por entre os piratas tomando

Page 324: O Tigre da Malásia

lugar nas embarcações. O capitão foi o último.

— Senhor — Disse ele parando diante do Tigre da Malásia. — Não temos nem uma arma para nos defendermos, nem uma bússola para nos orientarmos.

Sandokan arrancou de uma pequena corrente que lhe pendia do peito uma bússola de ouro e estendendo-a ao oficial:

— É para vos guiar.

Page 325: O Tigre da Malásia

Tirou do cinto as duas pistolas e de um dedo um magnífico anel ornado com um diamante do tamanho de uma avelã e estendeu estes três objectos ao capitão.

— Estas armas para se defenderem, este anel como recordação e esta bolsa cheia de diamantes para vos pagar o barco que vos tomei — Disse Sandokan.

Page 326: O Tigre da Malásia

— Sois o homem mais estranho que jamais en-contrei na minha vida — Disse o capitão recebendo os três objectos.

O capitão fez uma ligeira continência com a mão e desceu para a embarcação, que de imediato ganhou o largo seguida por todas as outras, dirigindo-se para oeste.

Page 327: O Tigre da Malásia

Vinte minutos depois, o Helgoland deixava essas paragens, rumo à costa de Sarawak que distava no máximo uma centena de milhas.

— Agora vamos ao encontro de Kammamuri e da sua patroa — Disse Sandokan, depois de fixar a rota. — Esperemos que nada tenha acontecido à pobre Ada.

Page 328: O Tigre da Malásia

Desceu a pequena escada de popa com Eanes e bateu à porta da cabina do marata.

— Quem é? — Perguntou Kammamuri.

— Sandokan.— Vencemos, capitão?— Sim, meu amigo.— Viva o Tigre da

Malásia! — Gritou o bravo marata.

Retirou as mobílias que tinha amontoado atrás

Page 329: O Tigre da Malásia

da porta e abriu-a. Eanes e Sandokan entraram.

O marata estava armado até aos dentes. Ainda tinha na mão a cimitarra e o cinto estava cheio de pistolas e punhais.

A louca estava estendida sobre uma pequena poltrona, ocupada a arrancar as pétalas de uma rosa-da-china, que pouco antes

Page 330: O Tigre da Malásia

havia tirado de um vaso de flores.

Ao ver entrar Sandokan e Eanes, levantou-se e fixou-os com um olhar que demonstrava um profundo terror.

— Os tugues! Os tugues! — Exclamou.

— São nossos amigos, patroa — Disse o marata.

Ela olhou para Kammamuri, depois caiu novamente sobre a poltrona, voltando a

Page 331: O Tigre da Malásia

arrancar as pétalas à flor que tinha na mão.

— Os gritos dos combatentes produziram alguma impressão na desgraçada? — Perguntou Sandokan ao marata.

— Sim — Disse ele. — Levantou-se a tremer, gritando: os tugues! Os tugues! Mas, pouco a pouco, acalmou-se.

— Mais nada?— Mais nada, capitão.

Page 332: O Tigre da Malásia

— Vigia-a, Kammamuri.— Não a deixarei.Eanes e Sandokan

voltaram para a coberta. Nesse mesmo instante, os homens de vigia assinalavam, a sul, um ponto avermelhado que avançava com rapidez.

Eanes e Sandokan correram para a proa olhando atentamente naquela direcção.

Page 333: O Tigre da Malásia

— Deve ser a lanterna de um navio — Disse o português.

— Claro que é. Isso deixa-me bastante inquieto — Respondeu Sandokan.

— Porquê, meu irmão?— Aquele navio pode

encontrar a chalupa.— Só nos faltava mais

esta!— Não te assustes,

Eanes. O Helgoland tem bons canhões. Mas...

Page 334: O Tigre da Malásia

Aquele navio é a vapor. Não vês, Eanes, aquela linha avermelhada que se ergue no céu?

— Por Júpiter! Tens razão!

— E se fosse...— Quem?— Aos canhões,

rapazes! Aos canhões! — Vociferou o Tigre da Malásia.

— O que estás a fazer? — Perguntou Eanes,

Page 335: O Tigre da Malásia

agarrando-o por um braço.

— É a canhoneira, Eanes.

— Qual canhoneira?— A que nos seguia.— Por Júpiter!— Vamos afundá-la.— Estás louco!— Mas não a estás a

ver?— Claro que a vejo,

mas se disparas na direcção dela, em Sarawak vão-nos

Page 336: O Tigre da Malásia

bombardear. Se não afundar à primeira salva, irá a correr ter com aquele danado do Brooke para nos denunciar.

— Por Alá! — Exclamou Sandokan.

— Deixemo-nos estar quietos — Disse Eanes.

— E se encontrar as chalupas?

— Não é fácil, Sandokan. A noite está escura, as chalupas vão para oeste e a

Page 337: O Tigre da Malásia

canhoneira, se não estou enganado, tem a proa virada a norte. Um encontro, em tais circunstâncias, não é fácil. Estou enganado?

— Não, mas ver aquela canhoneira...

— Calma, irmão. Deixa-a seguir para norte.

A canhoneira que seguia os piratas de Mompracem estava então muito próxima. A bombordo e a estibordo

Page 338: O Tigre da Malásia

brilhavam as lanternas verde e vermelha e no cimo do mastro de traquete a branca. À popa, avistava-se o timoneiro em pé, ao lado da roda do leme.

Passou muito perto do Helgoland descrevendo uma espécie de semicírculo e desapareceu rumo ao norte, deixando atrás de si um rasto fosforescente.

Page 339: O Tigre da Malásia

Não tinham ainda decorrido dez minutos quando se ouviu ao largo uma voz gritar:

— Ó da canhoneira!Sandokan e Eanes, ao

ouvirem aquele chama-mento, correram para o convés, olhando atentamente para norte.

— As chalupas? — Perguntou Sandokan, inquieto.

Page 340: O Tigre da Malásia

— Apenas vejo a canhoneira, ali ao fundo — Disse Eanes.

— Mas aquele chamamento vinha do largo.

— Teremos ouvido mal?

— Duvido, Eanes.— O que fazemos?— Mantemo-nos

atentos e avançamos com precaução.

Sandokan permaneceu sobre a coberta durante

Page 341: O Tigre da Malásia

algumas horas, na esperança de ouvir outro grito, mas não ouviu mais do que as ondas a bater contra os flancos do barco.

À meia-noite, tranquilo mas preocupado, descia à cabina do capitão seguido de Eanes e deitava-se na cama.

Durante toda a noite, o Helgoland avançou pela baía de Sarawak. Os homens de vigia nada

Page 342: O Tigre da Malásia

tinham visto de extraordinário, apenas tinha sido vista passar, perto das duas horas da manhã, a uns quinhentos metros para estibordo, uma grande sombra negra que desaparecera pouco depois. Todos a tinham confundido com um parau que navegava sem lanternas.

De madrugada, quarenta milhas separavam o barco da

Page 343: O Tigre da Malásia

foz do Sarawak, nas margens do qual, a poucas horas de marcha, se erguia a cidadela homónima.

O mar estava tranquilo e o vento bastante bom. Aqui e ali viam-se alguns paraus, com as suas velas imensas e a oeste o monte Matang, gigantesco pico sobre cujos flancos trepavam arbustos verdejantes.

Page 344: O Tigre da Malásia

Sandokan, que não se sentia tranquilo naquele mar batido pelos barcos de James Brooke, o exterminador dos piratas malaios, mandou desfraldar a bandeira inglesa no mastro principal, a grande tira vermelha, mandou carregar os canhões, amontoar bombas na bateria, abrir a Santa Bárbara e armar os seus homens.

Page 345: O Tigre da Malásia

Às 11 da manhã, a sete milhas surgia a costa, bastante baixa, coberta de belas florestas e protegida por largos recifes. Ao meio-dia, o Helgoland contornava a península, avançando durante algum tempo pela baía, e pouco depois deitava âncora na foz do rio, para lá da ponta de Montabas.

IX

Page 346: O Tigre da Malásia

A BATALHA

A foz do rio, que forma uma espécie de porto protegido por bancos de areia e por recifes contra os quais se quebra a fúria do mar, apresenta um espectáculo magnífico. À direita, à esquerda e nas duas margens estendiam-se magníficos arbustos de pisang com folhas gigantescas e frutos de

Page 347: O Tigre da Malásia

um amarelo dourado, de estupendos mangostões, de gambir, de betei e de colossais árvores da cânfora, em cujos ramos gritavam bandos de macacos, de uma bela cor verde, e tagarelavam tucanos com os seus bicos enormes.

No rio iam e vinham barcos, barcaças, paraus malaios, buguises, de Bornéu e de Macaçar, grandes giong javaneses,

Page 348: O Tigre da Malásia

juncos chineses e pequenos navios holandeses e ingleses, alguns à espera de uma carga, outros de vento propício que lhes permitisse fazerem-se ao mar.

Nos recifes e nas margens viam-se daiaques seminus ocupados na pesca, e bandos de albatrozes, aves gigantescas, muitos com bicos robustos

Page 349: O Tigre da Malásia

capazes de abrir, sem dificuldade, o crânio de um homem, e bandos de uns pássaros marinhos muito velozes.

Sandokan, assim que o Helgoland ancorou num bom lugar, mesmo no centro do rio, apressou-se a deitar um olhar sobre os navios que o rodeavam.

Os seus olhos de imediato caíram sobre um pequeno schooner,

Page 350: O Tigre da Malásia

armado com numerosas peças de artilharia, que lhes barravam a passagem uns trezentos metros mais acima.

Ao ver isto a sua testa franziu-se.

— Eanes — Disse ele ao amigo que estava ao seu lado. — Lê o nome daquele barco.

— Temes alguma coisa? — Perguntou Eanes, apontando os binóculos.

Page 351: O Tigre da Malásia

— Quem sabe? Lê, Eanes.

— O Realista, está escrito na popa.

— Não me enganei. O coração dizia-me que era mesmo aquele o barco que serviu a James Brooke para exterminar os piratas malaios.

— Caramba! — Exclamou o português. — Temos um vizinho extraordinário.

Page 352: O Tigre da Malásia

— Que eu afundava de bom grado, para vingar os meus confrades.

— Não o farás, se ele não nos incomodar. Temos de ser prudentes, irmão, e muito prudentes se quiseres libertar o pobre Tremal-Naik.

— Eu sei e serei prudente.

— Olha, um barco dirige-se para aqui. Quem será aquele homem tão feio? —

Page 353: O Tigre da Malásia

Sandokan curvou-se sobre a amurada e olhou. Uma barcaça escavada num tronco de árvore, com um homem de cor amarelada a bordo. Tinha uma tanga vermelha amarrada à cintura, anéis de cobre nos pés e nas mãos e com um barrete de plumas e um gigantesco bico de tucano na testa.

— É um bazir — Disse Sandokan.

Page 354: O Tigre da Malásia

— O que é que isso quer dizer?

— Um ministro de Dinata ou de Giuwata, as duas divindades dos daiaques.

— O que vem ele fazer a bordo?

— Dar-nos um estúpido presságio.

— Vamos mandá-lo para o diabo. Não sabemos o que fazer dos presságios.

Page 355: O Tigre da Malásia

— Vamos é recebê-lo, Eanes. Vai dar-nos boas informações sobre James Brooke e a sua frota.

A barcaça estava já ao lado do navio. Sandokan mandou deitar a escada e o bazir subiu à coberta com uma agilidade surpreendente.

— O que vens aqui fazer? — Perguntou Sandokan, lalando na língua daiaque.

Page 356: O Tigre da Malásia

— Vender-te os meus presságios — Respondeu o bazir, sacudindo os seus numerosos anéis que tiniam graciosamente.

— Quais?— Ouve-me bem, meu

amigo. Quero saber muitas coisas e se me responderes bem terás um belo kriss e gim suficiente para beberes durante um mês.

Page 357: O Tigre da Malásia

Os olhos do daiaque brilharam de ganância.

— Fala — Disse.— De onde vens?— Da cidade.— O que anda o rajá

Brooke a fazer?— Fortifica-se.— Tem medo de uma

sublevação?— Sim, dos chineses e

do neto de Muda-Hassin, o nosso antigo sultão.

— Alguma vez saíste de Sarawak?

Page 358: O Tigre da Malásia

— Nunca.— Viste trazer para

Sarawak um prisioneiro da cor do bronze?

O bazir pensou alguns instantes.

— Um homem grande e belo? — Perguntou.

— Sim, grande e belo — Disse Sandokan.

— Que tinha a cor dos indianos?

— Sim, era um indiano.— Vi-o desembarcar há

uns meses.

Page 359: O Tigre da Malásia

— Onde é que o encerraram?

— Não sei, mas isso pode dizer-te um pescador que mora lá em baixo — Disse o daiaque, apontando para uma cabana de folhas que se erguia na margem esquerda. — Esse homem acompanhou o prisioneiro.

— Quando posso ver esse pescador?

Page 360: O Tigre da Malásia

— Agora está a pescar, mas esta tarde voltará à cabana.— Chega. Hirundo,

oferece o teu kriss a este homem e coloca na canoa dele um barril de gin.O pirata não deixou que

lho dissessem duas vezes. Mandou trazer para a canoa um pequeno barril de gim e deu o seu kriss ao bazir que partiu contente

Page 361: O Tigre da Malásia

como se lhe tivessem oferecido uma província inteira.— O que pensas fazer,

irmão? — Perguntou Eanes, assim que o daiaque saiu da coberta.— Agir de imediato —

Respondeu Sandokan. — Dentro de uma hora será noite e mandaremos buscar o pescador.— E depois?— Quando soubermos

onde se encontra Tremal-

Page 362: O Tigre da Malásia

Naik, iremos a Sarawak ao encontro de James Brooke.— James Brooke?— Não iremos como

piratas, mas como grandes personagens. Tu serás um embaixador holandês.— Corremos um grande

perigo, Sandokan. Se Brooke se aperceber do ardil, manda-nos enforcar.

Page 363: O Tigre da Malásia

— Não tenhas medo, Eanes. Ainda não foi entrançada a corda que enforcará o Tigre.— Capitão — Disse

nesse instante Hirundo, aproximando-se de Sandokan. — Estão a chegar alguns navios.O Tigre da Malásia e

Eanes voltaram-se para a foz do rio e viram dois bergantins de guerra, com a bandeira inglesa e numerosas peças de

Page 364: O Tigre da Malásia

artilharia, a bordejar ao largo, procurando dobrar a ponta de Montabas.— Oh! — Fez Eanes. —

Há novos barcos de guerra.— Surpreende-te, se

calhar? — Perguntou o Tigre da Malásia.— Um pouco, irmão.

Aqui, neste rio, sob o olhar de Brooke, não me sinto seguro.

Page 365: O Tigre da Malásia

— Estás enganado, Eanes. Aqui há sempre barcos ingleses.Os dois bergantins,

depois de bordejar durante meia hora, entravam no rio, rebocados por uma meia-dúzia de embarcações. Saudaram a bandeira do rajá com dois tiros de canhão, passaram a estibordo do Helgolande foram deitar âncora, um à direita, o outro à

Page 366: O Tigre da Malásia

esquerda do Realista a uma distância de apenas vinte metros. Quando concluíram a manobra, a escuridão caía rapidamente cobrindo os arbustos, os recifes, os barcos, os juncos, os paraus e as águas do rio.Foi o momento

escolhido por Sandokan para enviar os seus homens a terra buscar o pescador. Uma embarcação foi descida e

Page 367: O Tigre da Malásia

Hirundo, acompanhado por outros três piratas, dirigiram-se nela para a margem.Sandokan seguiu-os

com o olhar enquanto pôde, depois começou a passear na coberta, fumando o seu cachimbo.Não tinha ainda dado

duas voltas, quando o português correu para ele com o rosto transtornado.

Page 368: O Tigre da Malásia

— Sandokan! — Exclamou.— O que tens? —

Perguntou o pirata. — Que cara aterrorizada é essa?— Sandokan, prepara-se

qualquer coisa contra nós.— É impossível! —

Exclamou o Tigre, deitando em volta um olhar ameaçador.

Page 369: O Tigre da Malásia

— Sim, Sandokan, prepara-se um ataque. Olha para o mar.Sandokan, que apesar

de tudo estava inquieto, dirigiu o olhar para a foz do rio. As suas mãos abriram-se e fecharam-se em torno do kriss e da cimitarra.Ali, perto dos recifes,

entrevia-se uma massa negra, enorme, ameaçadora, ancorada de modo a fechar a

Page 370: O Tigre da Malásia

saída. Não foi preciso muito para o reconhecerem: era um barco de grandes dimensões que apresentava o flanco ao Helgoland.— Com mil trovões! —

Murmurou cheio de raiva. — Será verdade? Não acredito.— Mas não estás a ver

que virou a boca dos seus canhões? — Disse Eanes.

Page 371: O Tigre da Malásia

— Mas quem queres tu que nos tenha traído?— Talvez a canhoneira.— Não é possível. A

canhoneira ia para norte.— Mas às duas da

manhã os homens de vigia viram uma massa negra, rapidíssima, correr rumo a Sarawak.— E achas que...?— A canhoneira traiu-

nos — Terminou Eanes. — Talvez tenha recolhido os ingleses da

Page 372: O Tigre da Malásia

embarcação, e, quem sabe, talvez o homem que gritou: «Ó da canhoneira!» fosse um marinheiro inglês que se atirou ao mar durante o combate.Sandokan virou-se e

dirigiu o olhar em direcção ao Realista. O navio de James Brooke ainda estava no seu lugar, mas os dois navios ingleses tinham-se aproximado do

Page 373: O Tigre da Malásia

Helgoland, que assim se encontrava entre dois fogos.— Ah! — Exclamou

Sandokan — Querem guerra! Pois seja! Hão-de ver quem eu sou.Ainda não tinha

terminado, quando um grito agudíssimo partiu da margem esquerda, na direcção que Hirundo tomara.— Socorro! Socorro! —

Ouviu-se gritar.

Page 374: O Tigre da Malásia

Sandokan, Eanes e os piratas saltaram como um só homem para estibordo, procurando distinguir o que se passava na tenebrosa floresta.— Que voz! — Exclamou

um pirata.— Que Dinata me

mande cortar a cabeça se não era a voz de Hirundo — Disse um daiaque de estatura atlética.

Page 375: O Tigre da Malásia

— Hei! Hirundo! — Gritou Eanes.Dois tiros de espingarda

soaram por entre os arbustos, seguidos de quatro mergulhos.Embora a escuridão

fosse profunda, os piratas entreviram quatro vultos que nadavam em direcção ao navio.— É Hirundo! —

Exclamou um pirata.

Page 376: O Tigre da Malásia

— Ai! A coisa está a ficar séria! — Exclamou outro.— Será que nos estão a

pregar uma partida? — Perguntou um terceiro.— Silêncio, rapazes. —

Disse o Tigre. — Lancem cordas.Os quatro homens, que

nadavam como peixes, em poucos instantes alcançaram o barco. Agarraram-se às cordas, e subir até às amuradas foi para eles fácil.

Page 377: O Tigre da Malásia

— Hirundo — Chamou Sandokan, reconhecendo os quatro piratas enviados pouco antes à procura do pescador.— Capitão — Disse o

daiaque, sacudindo a água de cima. — Estamos cercados.— Com mil trovões! —

Ribombou o Tigre. — Depressa, conta-me o que viste.— Vi lá em baixo,

naqueles bosques,

Page 378: O Tigre da Malásia

soldados do rajá, armados com espingardas, escondidos atrás de troncos de árvores ou no meio dos arbustos. Parecem estar à espera de um sinal para começar a fazer fogo.— Tens a certeza de que

não estás enganado?— Estão lá mais de

duzentos homens e vi-os com estes olhos. Não ouviram os dois tiros de

Page 379: O Tigre da Malásia

espingarda que dispararam sobre nós?— Sim, ouvi.— O que fazemos

irmão? — Perguntou Eanes.— Já não é possível

retirarmos. Vamos preparar-nos e ao primeiro tiro de canhão havemos de dar luta. Tigrezinhos, a mim!Os piratas que se

mantinham a uma distância respeitosa,

Page 380: O Tigre da Malásia

avançaram ao chamamento do Tigre. Os seus olhos brilhavam como carvões e as suas mãos acariciavam os punhos do kriss. Já sabiam do que se tratava e estremeciam de impaciência.— Tigres de

Mompracem. — Disse Sandokan. — James Brooke, o exterminador dos piratas malaios, prepara-se para nos

Page 381: O Tigre da Malásia

atacar. Milhares de malaios e de daiaques foram assassinados por aquele homem. Jurem perante mim que vingarão aqueles homens.— Juramos —

Responderam em coro os piratas, tomados por um terrível entusiasmo.— Tigres de

Mompracem — Retomou Sandokan. — somos um contra quatro, mas o

Page 382: O Tigre da Malásia

Tigre da Malásia está convosco. Ferro e fogo enquanto restarem balas e pólvora a bordo, e depois chamas da proa até à popa. Esta noite temos de mostrar àqueles cães como sabem combater os tigres de Mompracem, comandados pelo Tigre da Malásia. Aos vossos lugares, Tigrezinhos, aos vossos lugares! Quando eu mandar, fogo!

Page 383: O Tigre da Malásia

Um grito surdo respondeu às mágicas palavras do Tigre da Malásia. Os piratas, encabeçados por Eanes, precipitaram-se para a bateria, apontando as gargantas negras dos bronzes na direcção dos navios inimigos.Na coberta ficaram dois

piratas de pé ao lado do leme e Sandokan, que do castelo de proa espiava

Page 384: O Tigre da Malásia

atentamente a acção do inimigo.Os quatro navios que se

preparavam para destruir o Helgoland, com os seus quarenta canhões, pareciam adormecidos. Contudo, viam-se sombras que se agitavam à proa e à popa.— Estão-se a preparar —

Murmurou Sandokan cerrando os dentes. — Dentro de dez minutos

Page 385: O Tigre da Malásia

esta baía estará iluminada sob o fogo de mais de cinquenta canhões e esta calma solene será interrompida pelo rugido dos bronzes, pelo rebentar das bombas, pelo assobio das balas, pelos gritos dos feridos, pelos «hurras» dos vencedores. Será um belo espectáculo!

Page 386: O Tigre da Malásia

De repente, o seu semblante ficou carregado.— E Ada — Murmurou;

— E se uma bala a colhesse? Sambigliong! Sambigliong!O daiaque que tinha

esse nome acorreu prontamente ao chamamento do chefe.— Aqui estou eu,

capitão — Disse.

Page 387: O Tigre da Malásia

— Onde está Kammamuri? — Perguntou Sandokan.— Na cabina da Virgem

do Pagode.— Vai ter com ele e

coloca em volta das paredes todas as pipas, todas as ferragens e todos os colchões de palha que encontrares no porão e no quadro da popa.

Page 388: O Tigre da Malásia

— Trata-se de defender das balas a cabina da Virgem?— Sim, Sambigliong.— Deixe comigo,

capitão. O ferro não chegará lá dentro.— Vai, meu amigo!— Uma palavra, capitão.

Tenho de ficar na cabina?— Sim, e ficas

encarregado de salvar a Virgem se formos obrigados a abandonar o

Page 389: O Tigre da Malásia

navio. Sei que és o melhor nadador da Malásia. Despacha-te, Sambigliong; o inimigo prepara-se para nos atacar.O daiaque precipitou-se

para a popa. Sandokan regressou ao centro do navio olhando atentamente o rio. Do barco que fechava a foz do rio tinha partido, de repente, um foguete. Quase no mesmo

Page 390: O Tigre da Malásia

instante, um relâmpago balançava na coberta do Realista, seguido de uma impressionante detonação.O Tigre da Malásia deu

um salto enquanto a extremidade do pequeno mastro principal, partida por uma bala de oito, caía na coberta com grande estrondo.— Tigres! — Gritou ele.

— Fogo! Fogo!

Page 391: O Tigre da Malásia

Um grito tremendo respondeu-lhe:— Viva o Tigre da

Malásia! Viva Mompracem!Seguiu-se um breve

silêncio, um silêncio ameaçador, depois a baía incendiou-se de um extremo ao outro.Dos quatro navios

inimigos saíam labaredas, fumo e balas, rompendo por todo o lado a escuridão e o

Page 392: O Tigre da Malásia

silêncio da noite; das florestas saiu um nutrido fogo de mosquete que se estendia para a direita e para a esquerda.A batalha tinha

começado. Os cinco barcos combatiam com uma raiva indizível, relampejando, ribombando, vomitando furacões de ferro que fendiam o ar com assobios estridentes.

Page 393: O Tigre da Malásia

As tripulações, enegrecidas pela pólvora, ébrias de entusiasmo, carregavam e descarregavam sem parar as artilharias, procurando destruir-se uma à outra, encorajando-se com gritos selvagens.O Helgoland, no meio da

baía, solidamente ancorado, defendia-se com fúria indizível contra

Page 394: O Tigre da Malásia

os gigantes que o cobriam de fogo.Parecia um barco de

ferro defendido por um exército de titãs. Caíam as vergas, estremeciam os mastros, as embarcações eram rasgadas, as amuradas demolidas, os flancos desfeitos, morriam os homens, mas o que é que isso importava? Havia pólvora e balas para todos e a todos

Page 395: O Tigre da Malásia

respondia com fúria crescente, com raiva crescente, resolvido a perecer em vez de se render.A cada tiro, a cada

descarga, na bateria ouviam-se os Tigres de Mompracem gritar:— Vingança! Viva

Mompracem!O Tigre da Malásia de

pé, no meio da coberta, contemplava o horrível espectáculo.

Page 396: O Tigre da Malásia

Como era belo aquele homem, ali, na coberta do seu barco que lhe tremia debaixo dos pés, à luz de cinquenta canhões, com os olhos em chamas, os cabelos soltos ao vento, os lábios abertos num terrível sorriso e com a cimitarra em punho! Como era belo aquele pirata que sorria enquanto a morte lhe assobiava em volta, enquanto os mastros

Page 397: O Tigre da Malásia

caíam diante e atrás dele, enquanto a metralha rugia aos seus ouvidos, estilhaçando as tábuas da coberta, enquanto as bombas rebentavam lançando os seus estilhaços em fogo!Os seus próprios

inimigos, ao vê-lo no heróico barco, impassível no meio daquele furacão de ferro, sentiam-se apanhados por uma vontade louca de gritar:

Page 398: O Tigre da Malásia

— Viva o Tigre da Malásia! Viva o herói da pirataria malaia!A batalha durava há

meia hora, cada vez mais furiosa. O Helgoland esmagado pelo fogo ininterrupto daquelas cinquentas bocas, dilacerado pela metralha, despedaçado pela tempestade de bombas cada vez mais compacta, já mais não era do que uma carcaça fumegante.

Page 399: O Tigre da Malásia

Já não restavam mastros, manobras, amuradas ou madeiras inteiras. Era como uma esponja, cujos furos deixavam passar a água do rio. Ainda disparava, continuava a responder aos quatro inimigos que tinham jurado afundá-lo, mas já não se sentia capaz de prosseguir. Dez piratas jaziam sem vida na bateria; dois canhões já não ribombavam,

Page 400: O Tigre da Malásia

desmontados pelo fogo infernal do inimigo; as bombas fraquejavam; a popa cheia de água já se ia afundando pouco a pouco.Mais dez ou quinze

minutos e o heróico Helgoland iria ao fundo. Eanes, que cumpria com bravura o seu dever descarregando um dos canhões maiores, apercebeu-se da gravidade da situação.

Page 401: O Tigre da Malásia

Correndo o risco de receber uma descarga de metralha na cabeça, lançou-se para a coberta no meio da qual estava o Tigre da Malásia.— Irmão! — Gritou.— Fogo, Eanes! Fogo! —

Vociferou Sandokan. — Estes vão fazer-nos uma abordagem.— Já não nos

aguentamos, irmão! O barco está a ir a pique!— Com mil trovões!

Page 402: O Tigre da Malásia

— O que fazemos? Os minutos são preciosos.Um estrondo enorme

sufocou a sua voz. O castelo de proa, dilacerado por uma salva de granadas, tinha desabado, destruindo parte da coberta e do quarto dos marinheiros. O Tigre da Malásia lançou um grito de raiva.— Acabou! A mim,

Tigres, a mim!

Page 403: O Tigre da Malásia

Precipitou-se para a bateria de onde os Tigres de Mompracem continuavam a bombardear os barcos inimigos. Um homem, o marata Kammamuri, pôs-se em frente dele.— Capitão — Disse — A água invade a cabina da Virgem.— Onde está Sambigliong? — Perguntou o Tigre.— Na cabina.

Page 404: O Tigre da Malásia

— A Virgem está viva?— Sim, capitão.— Conduzam-na à coberta e estejam prontos para se atirarem ao rio. Tigres, todos para a coberta! O inimigo vem à abordagem!Os piratas descarregaram os canhões pela última vez e subiram à coberta cheia de mortos.Os navios inimigos, rebocados por algumas

Page 405: O Tigre da Malásia

chalupas, aproximavam-se para abordar o Helgoland.— Sandokan! — Gritou Eanes não vendo aparecer o amigo. — Sandokan!A resposta foram os gritos vitoriosos das tripulações inimigas e as carabinas dos piratas.— Sandokan! — Repetiu — Sandokan!— Estou aqui, irmão — Respondeu uma voz.

Page 406: O Tigre da Malásia

O Tigre da Malásia lançou-se para a coberta com a cimitarra na mão direita e uma tocha acesa na esquerda. Atrás dele vinham Sambigliong e Kammamuri acompanhado da Virgem do Pagode.— Tigres de Mompracem! — Vociferou Sandokan. — Fogo mais uma vez!

Page 407: O Tigre da Malásia

— Viva o Tigre! Viva Mompracem! — Gritavam os piratas.E Helgoland balançava como um bêbado e fendia-se sob as contínuas descargas do inimigo.Pelos flancos abertos

entravam as águas, arrastando-o rapidamente para o fundo.Da proa, da popa, das escotilhas, das

Page 408: O Tigre da Malásia

portinholas das baterias saíam densas colunas de fumo.A voz do Tigre da Malásia fez-se ainda ouvir entre o estrondo dos canhões.— Salve-se quem puder! Sambigliong, atira-te ao rio com a Virgem!O daiaque e Kammamuri saltaram para a água com a jovem que perdera os sentidos, e atrás deles precipitaram-se todos os outros, nadando entre os

Page 409: O Tigre da Malásia

navios inimigos que se encontravam bordo com bordo com o navio que se estava a afundar.No barco ficara um

homem. Era o Tigre da Malásia. Na mão direita segurava ainda a cimitarra e na esquerda a tocha. Um terrível grito soou dos seus lábios; um brilho feroz balança nos seus olhos.— Viva Mompracem! —

Ouviram-no ainda gritar.

Page 410: O Tigre da Malásia

Um «hurra» formidável ecoou no ar. Vinte, quarenta, cem homens lançaram-se com as armas em punho para a coberta oscilante do Helgoland.O Tigre da Malásia não

esperou por eles. Com um salto prodigioso superou a amurada e desapareceu nas águas do rio.Quase nesse mesmo

instante, o barco que se

Page 411: O Tigre da Malásia

afundava abria-se com um horrível ribombar e uma chama gigantesca erguia-se no céu, iluminando o rio, os navios inimigos, os bosques, os montes, atirando à direita e à esquerda miríades de estilhaços incandescentes.Navios e tripulação

desapareceram entre o fumo e as chamas do Helgoland, que explodira

Page 412: O Tigre da Malásia

com o rebentamento da Polvoreira!

SEGUNDA PARTEO RAJÁ DE SARAWAK

IATABERNA CHINESA

— Olá, bom homem!— Milord!— Para o diabo com o milord.— Sir!— Para o inferno com o sir.

Page 413: O Tigre da Malásia

— Mestre!— Que te apanhe um caranguejo.— Monsieur! Senhor!— Vai-te enforcar. Que raio de almoço é este?— Chinês, senhor, chinês como a taberna.— E tu queres que eu

coma chinês! Que bichos são estes que se estão a mexer?— Camarões bêbados de Sarawak.— Vivos?

Page 414: O Tigre da Malásia

— Pescados há meia hora, milord.— E tu queres que eu coma camarões vivos?— Cozinha chinesa, monsieur.— E este assado?— Cão jovem, senor. — O quê?— Cão jovem.— E tu queres que eu coma cão? E este guisado?— É gato, senor.— Um gato!

Page 415: O Tigre da Malásia

— Um prato de mandarim, sir.— E estes fritos?— Ratos fritos em manteiga.— Malvado chinês!

Queres-me matar!— Cozinha chinesa,

senhor.— Cozinha infernal,

queres tu dizer. Camarões bêbados, fritos de rato, cão assado e gato guisado ao almoço!

Page 416: O Tigre da Malásia

Se o meu irmão aqui estivesse desatava a rir. «Vamos, não devemos

ser enojados. Se os chineses comem esta bodega, também um branco a pode comer. Coragem, português!»O homem que assim

falava, sentou-se na cadeira de bambu, tirou do cinto um magnífico kriss com o punho de ouro coberto com magníficos diamantes e

Page 417: O Tigre da Malásia

desfez o cão assado que deitava um perfume apetitoso.Entre cada dentada,

pôs-se a observar o local onde se encontrava.Era um quarto muito

baixo, com as paredes pintadas com dragões monstruosos, flores estranhas, luas sorridentes, animais que vomitavam fogo. A toda a volta havia cadeiras e esteiras sobre as quais

Page 418: O Tigre da Malásia

ressonavam chineses, com a cabeça tapada, uma trança compridíssima e bigodes pendentes; aqui e ali, sem ordem, havia mesas de todas as dimensões ocupadas por malaios feios, cor de azeitona, dentes pretos, e por daiaques belíssimos, seminus com os membros cobertos de anéis de latão e armados de pesados parangs,

Page 419: O Tigre da Malásia

facalhões com meio metro de comprimento que, provavelmente, já tinham cortado um bom número de cabeças nas grandes florestas do Sul. Alguns daqueles homens mascavam siri, composto de folhas de betei e de nozes de areca, cuspindo saliva, outros bebiam grandes copos de arak ou de tuwak, e outros ainda fumavam longos cachimbos de ópio.

Page 420: O Tigre da Malásia

— Hum! — Resmungou o nosso homem, esventrando um gato. — Que caras feias. Não sei como é que aquele malandro do James Brooke tem estes biltres sob a sua alçada. Deve ser uma grande raposa e um...Um assobio agudo,

vindo do exterior da taberna, cortou-lhe a palavra.— Oh! — Exclamou.

Page 421: O Tigre da Malásia

Encostou dois dedos aos lábios e imitou o assobio.— Senhor! — Gritou o

taberneiro, ocupado a esfolar um grande cão acabado de esganar.— Que o teu Confúcio te

enforque.— Chamou, monsieur?— Silêncio. Esfola o teu

cão e deixa-me em paz.Um indiano alto, de

belas formas, quase nu, com um cinto de seda em volta dos rins e um

Page 422: O Tigre da Malásia

kriss pendurado do lado direito, entrou olhando em volta. O nosso homem, que estava a limpar uma pata de gato, vendo o recém-chegado levantou-se, murmurando:— Kammamuri!Estava para abandonar

o lugar quando um rápido sinal do indiano, acompanhado por um olhar suplicante, o fez parar.

Page 423: O Tigre da Malásia

— Há algum perigo no ar — Voltou a murmurar. — Mantém-te atento, amigo.O indiano, depois de

hesitar um pouco, sentou-se em frente dele. O taberneiro acorreu.— Uma chávena de

tuwak!— É para trincar?— A tua trança — Disse

o indiano, rindo.

Page 424: O Tigre da Malásia

O chinês virou costas fazendo uma careta e mandou levar uma chávena e um jarro de tuwak.— Estamos a ser

espiados? — Perguntou com um fio de voz o homem que estava à sua frente, continuando a devorar o almoço.O indiano acenou

afirmativamente com a cabeça.

Page 425: O Tigre da Malásia

— Que apetite, senhor — Disse depois em voz alta.— Não como há vinte e

quatro horas, meu caro — Respondeu o nosso homem que era o bom Eanes, o amigo do Tigre da Malásia.— Vem de longe?— Da Europa. Oh

taberneiro, um pouco de tuwak!

Page 426: O Tigre da Malásia

— Dou-vos do meu, se não se importar — Disse Kammamuri.— Aceito, jovem. Senta-

te ao pé de mim e prova todas estas bodegas que estão à minha frente.O marata não se fez

rogado e sentou-se ao lado do português e começa a comer.— Podemos falar —

Disse Eanes, passado algum tempo. — Ninguém pode suspeitar

Page 427: O Tigre da Malásia

que somos amigos. Salvaram-se todos?— Todos, patrão Eanes

— Respondeu Kammamuri. — Antes que chegasse a madrugada, uma hora depois da vossa partida, deixámos os densos bosques da margem e refugiámo-nos num grande pântano. O rajá tinha mandado soldados patrulhar a foz do rio, mas não conseguiu

Page 428: O Tigre da Malásia

encontrar as nossas pegadas.— Sabes, Kammamuri,

que fomos hábeis a fugir ao rajá?— Meio minuto de

atraso e teríamos todos ido pelos ares. Foi bom para nós a noite estar tão escura, assim aqueles biltres não nos viram nadar para a margem.— A pobre Ada não

sofreu nada?

Page 429: O Tigre da Malásia

— Nada mesmo, patrão Eanes. Ajudado por Sambigliong, pude transportá-la para terra com toda a facilidade.— Onde está Sandokan

agora?— A oito milhas daqui,

no meio de um bosque cerrado.— Em segurança,

portanto.— Não sei. Vi guardas

do rajá a rondar a floresta.

Page 430: O Tigre da Malásia

— Diabo!— E o senhor não corre

nenhum perigo?— Eu? Quem será o

louco que me tomará por um pirata? Eu, um branco, um europeu!— Mas tenha cuidado

senhor Eanes. O rajá deve ser um homem muito esperto.— Eu sei, mas nós

somos mais espertos do que ele.

Page 431: O Tigre da Malásia

— Sabe alguma coisa de Tremal-Naik?— Nada, Kammamuri.

Interroguei várias pessoas, mas sem êxito.— Pobre patrão —

Murmurou Kammamuri.— Havemos de o salvar,

prometo-te — Disse Eanes. — Esta noite meterei mãos à obra.— O que quer fazer?— Procurar aproximar-

me do rajá e, se possível, tornar-me seu amigo.

Page 432: O Tigre da Malásia

— Mas como?— Tenho uma ideia que

me parece boa. Vou provocar uma rixa, fazer confusão, vou fingir que quero cortar a cabeça a alguém e vou deixar que os guardas do rajá me prendam.— E depois?— Quando estiver preso

hei-de inventar uma história qualquer e fazer-me passar por um nobre

Page 433: O Tigre da Malásia

lorde, por um baronete... Ah! Que bela ideia!— O que tenho de fazer?— Nada, meu caro

marata. Vais logo ter com Sandokan e dizes-lhe que tudo está a correr cada vez melhor. Mas amanhã vens rondar a residência do rajá. Talvez eu precise de ti.O marata levantou-se.— Um momento — Disse

Eanes, tirando do bolso

Page 434: O Tigre da Malásia

uma mala bem cheia e estendendo-lha.— O que é que eu faço

com isto?— Para levar a cabo o

meu projecto é preciso que eu não tenha uma moeda na bolsa. Dá-me antes o teu kriss, que não tem nenhum valor e leva o meu que tem demasiado ouro e demasiados diamantes.

Page 435: O Tigre da Malásia

— Taberneiro do demónio, seis garrafas de vinho de Espanha.— Quer-se embebedar?

— Perguntou Kammamuri.— Já vais ver. Adeus,

meu caro.O indiano atirou para a

mesa um xelim e saiu, enquanto o português destapava as garrafas que não custavam menos de três esterlinas.

Page 436: O Tigre da Malásia

Bebeu dois ou três copos e o restante ofereceu-o aos malaios que estavam ao pé dele, aos quais nem parecia verdade ter encontrado um europeu tão generoso.— Taberneiro! — Gritou

ainda o português. — Traz-me mais vinho e um prato de luxo qualquer.O chinês, todo contente

por fazer tão grande negócio e rezando ao seu

Page 437: O Tigre da Malásia

bom Buda para que todos os dias lhe mandasse uma dúzia de fregueses como este, trouxe novas garrafas e uma terrina de delicadíssimos ninhos de salangana, temperados com vinagre e sal e que só os ricos podem saborear.O português, apesar de

ter comido por dois, voltou a dar aos dentes, a beber e a oferecer

Page 438: O Tigre da Malásia

vinho a todos os vizinhos.Quando acabou, o sol

tinha-se posto, havia uma boa meia hora e na taberna tinham sido acesas gigantescas lanternas, que lançavam sobre os bebedores uma luz pálida.Acendeu um cigarro,

examinou a bateria das suas pistolas e levantou-se murmurando:

Page 439: O Tigre da Malásia

— Vamos embora, caro Eanes. O taberneiro criará uma confusão enorme, eu farei mais do que ele, virão os guardas do rajá e eu serei preso. Nem Sandokan, estou certo, teria idealizado um plano melhor.Deitou ao ar duas ou

três nuvens de fumaça e dirigiu-se tranquilamente para a porta. Estava para a atravessar, quando

Page 440: O Tigre da Malásia

sentiu que o seguravam pelo casaco.— Monsieur! — Disse

uma voz.Eanes virou-se

carrancudo e encontrou na sua frente o taberneiro.— O que queres,

malandro? — Perguntou, fingindo-se ofendido.— A conta, senor.— Que conta?— Não me haveis

pagado, gentleman.

Page 441: O Tigre da Malásia

Deveis-me três esterlinas, sete xelins e quatro penny.— Vai para o diabo. Não

tenho um tostão nos meus dez bolsos.O chinês de amarelo

que era passou a cinzento.— Mas haveis de me

pagar — Gritou, agarrando as roupas do português.

Page 442: O Tigre da Malásia

— Larga a minha roupa, canalha! — Berrou Eanes.— Deveis-me três

esterlinas, sete xelins e...— E quatro penny, eu

sei, mas não te hei-de pagar, biltre. Vai esfolar o teu cão e deixa-me em paz.— Sois um ladrão,

gentleman? Vou mandar-vos prender!— Tenta!

Page 443: O Tigre da Malásia

— Socorro! Prendam este ladrão! — Berrou o chinês, furibundo.Quatro criados

precipitaram-se para ajudar o seu patrão, armados de caçarolas, panelas e escumadeiras. Era o que o português desejava, armar confusão a qualquer custo.Com mão de ferro

agarrou o taberneiro pela garganta, levantou-o do

Page 444: O Tigre da Malásia

chão e atirou-o para fora da taberna indo bater com o nariz nas pedras da rua. Depois carregou os quatro criados distribuindo pontapés com enorme rapidez, de modo que os desgraçados se encontraram um em cima do outro ao lado do patrão.— Socorro,

compatriotas! — Berrava o taberneiro.

Page 445: O Tigre da Malásia

— Ladrão! Assassino! Cortem-lhe a cabeça! Matem-no! — Berravam os criados.

IIUMA NOITE NA PRISÃO

Aqueles gritos de chineses num bairro chinês deviam ter o mesmo efeito que um gong batido numa rua de Cantão ou de Pequim.Com efeito, em menos

de cinco minutos, cerca

Page 446: O Tigre da Malásia

de duzentos trançudos filhos do Império Celeste, armados de bambus, facas, pedras e chapéus-de-chuva, estavam reunidos em frente da porta da taberna, lançando gritos assustadores.— Chega no ladrão! —

Gritavam uns, brandindo ameaçadoramente paus e facas.

Page 447: O Tigre da Malásia

— Enforca o branco! — Berravam outros, mostrando as facas.— Atira-o ao rio!— Sangrem esse cão!— Corta-lhe a cabeça!

Mata-o! Afoga-o! Queima-o! Sufoca-o!Os bebedores,

assustados por toda aquela confusão e temendo serem lapidados, desampararam a loja a toda a pressa, uns saindo

Page 448: O Tigre da Malásia

pela porta e misturando-se ao bando, outros saltando pelas janelas, que felizmente não eram demasiado altas. Ali apenas ficou o português, que ria às gargalhadas, como se assistisse a uma brilhantíssima farsa.— Muito bem! — Gritava

ele armando as pistolas e tirando do cinto o kriss.Um chinês, que gritava

mais alto que todos na

Page 449: O Tigre da Malásia

primeira fila, atirou-lhe uma pedrada, mas o calhau partiu um grande jarro de sam-sciú, cujo licor se derramou pelo chão.— Malandro! — Gritou o

português tu assim arruínas o taberneiro.Apanhou o calhau e

devolveu-o ao agressor partindo-lhe um dente.Gritos ainda mais

agudos ecoaram no bairro, fazendo acorrer

Page 450: O Tigre da Malásia

mais chineses, que tentavam entrar na taberna, mas, ao verem as pistolas que o por-tuguês lhes apontava, apressavam-se a mostrar as solas de feltro dos tamancos.— Vamos lapidá-lo! —

Gritou uma voz.— E a minha taberna? —

Gemeu o taberneiro.— Pedradas, amigos!

Pedradas!

Page 451: O Tigre da Malásia

Uma saraivada de calhaus entrou pela taberna, estilhaçando as lanternas, os jarros, os pratos, as terrinas, os vasos.O português, uma vez

que a confusão se estava a tornar perigosa, descarregou para o ar as duas pistolas.Aos dois disparos

responderam sete tiros disparados na rua, mas sem outro sucesso que

Page 452: O Tigre da Malásia

não fosse o de aumentar a confusão.De repente, ouviram-se

várias vozes gritar:— Deixem passar!

Deixem passar!— Os guardas do rajá!O português respirou.

Aquela confusão, aqueles paus no ar, aquelas facas, aquelas saraivadas de calhaus, aqueles mosquetões e aquele aumento contínuo

Page 453: O Tigre da Malásia

da multidão, começavam a inquietá-lo.— Vamos armar

confusão, agora que já não há nenhum perigo — Disse.Atirou-se para cima de

uma mesa e virou-a estilhaçando todas as garrafas, os vasos e os pratos que estavam em cima dela.— Prendam-no!

Prendam-no! — Berrou o taberneiro. — Aquele

Page 454: O Tigre da Malásia

branco vai-me partir tudo.— Deixem passar!

Deixem passar os guardas! — Gritavam alguns.A multidão dividiu-se e à

porta da taberna apa-receram dois homens de cor escura, altos, robustos, de casaco e calças de tecido branco empunhando uma grande espada.

Page 455: O Tigre da Malásia

— Para trás! — Gritou o português, apontando sobre eles as pistolas.— Um europeu! —

Exclamaram os dois guardas, maravilhados.— Digam antes um

inglês — Disse Eanes.Os dois guardas

embainharam as espadas.— Não queremos fazer-

lhe qualquer mal — Disse um dos dois. — Estamos ao serviço do rajá

Page 456: O Tigre da Malásia

Brooke, vosso compatriota.— E o que querem de

mim?— Libertar-vos desta

turba.— E conduzir-me para

uma prisão qualquer?— Nisso pensará o rajá.— Conduzir-me-ão até

ele?— Sem dúvida.— Se é assim, então

vou. Nada tenho a temer do rajá Brooke.

Page 457: O Tigre da Malásia

Os dois guardas puseram-no no meio e voltaram a desembainhar as espadas para o proteger da raiva dos chineses, que tinha atingido o auge.— Deixem passar —

Gritaram.Os chineses, em grande

número, não obedeceram a essa intimação. Queriam a todo o custo enforcar o europeu, já que os

Page 458: O Tigre da Malásia

guardas não o tinham espetado, como haviam esperado.Os dois guardas,

contudo, não desanimaram. Distribuindo bofetadas à direita e à esquerda e vigorosos pontapés, conseguiram abrir caminho e levaram o prisioneiro para uma ruela estreita jurando que matariam quantos os

Page 459: O Tigre da Malásia

seguissem. Aquela ameaça teve êxito.Os chineses, depois de

terem berrado em todos os tons e lançado imprecações contra Eanes, os guardas e o próprio rajá que acusavam de proteger os ladrões, dispersaram deixando sozinhos o taberneiro e os seus quatro criados em mau estado.

Page 460: O Tigre da Malásia

Sarawak não é uma cidade vasta e não tem muitas ruas, de maneira que os dois guardas, em menos de cinco minutos, chegaram ao palacete do rajá, construído em madeira como todas as habitações dos brancos que povoam as pequenas colinas dos arredores.No topo esvoaçava uma

bandeira, que ao português pareceu vermelha como a

Page 461: O Tigre da Malásia

inglesa; frente à porta estava um empertigado indiano armado de espingarda e baioneta.— Vão-me conduzir ao

rajá?— É demasiado tarde —

Respondeu um dos guardas. — O rajá está a dormir.— E onde vou eu passar

a noite?— Dar-lhe-emos um

quarto.

Page 462: O Tigre da Malásia

— Desde que não seja uma cave.— Um compatriota do

rajá não se mete numa cave.O português foi

mandado entrar, subir uma escada e conduzido a um quartinho com as janelas defendidas por esteiras de folhas de nipa, uma rede de fibras de coco, alguns móveis de proveniência europeia

Page 463: O Tigre da Malásia

e uma lâmpada que já tinha sido acesa.— Por Júpiter! —

Exclamou, esfregando alegremente as mãos. — Vou dormir muito bem.— Desejais alguma

coisa? — Perguntou um dos guardas.— Que me deixem

dormir — Respondeu Eanes.Um guarda saiu, mas o

outro sentou-se perto da porta metendo na boca

Page 464: O Tigre da Malásia

uma noz de areca envolvida numa folha de betei.O português franziu a

testa, mas depressa se tranquilizou.— Vou aproveitar para o

fazer falar. Há muitas coisas que ignoro e que este homem sabe certamente.Enrolou um cigarro,

acendeu-o, inspirou um pouco de fumo e

Page 465: O Tigre da Malásia

aproximando-se do guarda:— Jovem, és indiano?— Bengalês, sir— Disse

o guarda.— Estás aqui há muito

tempo?— Dois anos.— Ouviste falar de um

pirata que se chama o Tigre da Malásia?— Sim.Eanes reprimiu com

dificuldade um gesto de alegria.

Page 466: O Tigre da Malásia

— É verdade que o Tigre está aqui? — Perguntou.— Não sei, mas diz-se

que os piratas assaltaram um barco a vinte ou trinta milhas da costa e que depois desembarcaram.— Onde?— Não se sabe

exactamente onde, mas havemos de o saber.— De que maneira?— O rajá tem bons

espiões.

Page 467: O Tigre da Malásia

— Diz-me, é verdade que há alguns meses naufragou um barco inglês perto do cabo Taniong-Datu?— Sim — Disse o

indiano. — Era um barco de guerra proveniente de Calcutá.— Quem correu em seu

auxílio?— O nosso rajá com o

seu schooner o Realista.— A tripulação foi salva?

Page 468: O Tigre da Malásia

— Toda, incluindo um indiano condenado à deportação perpétua, já não me lembro em que ilha.— Um indiano

condenado à deportação perpétua! — Exclamou Eanes, fingindo a máxima surpresa. — E quem era ele?— Um indiano, já lhe

disse.— Sabes o seu nome?

Page 469: O Tigre da Malásia

O bengalês pensou durante alguns instantes.— Chamava-se Tremal-

Naik.— E que crime tinha

cometido? — Perguntou Eanes, trepidante.— Disseram-me que

tinha morto uns ingleses.— Que bandido! E ainda

está aqui esse indiano?— Está preso no fortim.— Em qual?— O que está no monte.

Só há um em Sarawak.

Page 470: O Tigre da Malásia

— Tem guarnição o fortim?— Estão lá os

marinheiros do barco naufragado.— Muitos?— Uns sessenta no

máximo.Eanes fez uma careta.— Sessenta homens! —

Murmurou. — E se calhar também lá há canhões!Acendeu um segundo

cigarro e pôs-se a passear pelo quarto,

Page 471: O Tigre da Malásia

meditando. Manteve-se assim durante alguns minutos, depois estendeu-se sobre a rede, pediu à sentinela que baixasse a intensidade da lâmpada e fechou os olhos.Apesar de prisioneiro e

com muitos pensamentos pela cabeça, o português dormiu como se estivesse a bordo do Pérola de Labuan ou na

Page 472: O Tigre da Malásia

cabana do Tigre da Malásia. Quando acordou, um raio de sol penetrava através das folhas de nipa que serviam de persianas.Olhou na direcção da

porta, mas a sentinela já lá não estava. Ao vê-lo dormir, e talvez também ao ouvi-lo ressonar, tinha-se ido embora, certa de que um prisioneiro daquele

Page 473: O Tigre da Malásia

género não teria saltado pelas janelas.— Muito bem — Disse o

português. — Aproveitemos.Saltou da rede, levantou

a esteira e debruçou-se pela janela, respirando o ar fresco da manhã.Sarawak apresentava

uma bela vista com as suas verdejantes colinas adornadas de elegantes palacetes de madeira; com o seu grande rio à

Page 474: O Tigre da Malásia

sombra de soberbas árvores e sulcado por pequenos paraus, por velozes pirogas, por ligeiros e compridos barcos a remos; com as bizarras casinhas, de telhado arqueado e pintadas de cores brilhantes, do bairro chinês; as suas cabanas de folhas de nipa, plantadas em postes de uma altura respeitável, do bairro daiaque e as

Page 475: O Tigre da Malásia

suas ruas e ruelas apinhadas de chineses, de daiaques, de buguises e de macaçareses.O português percorreu,

com um rápido olhar, a cidade e parou os olhos sobre as colinas. Como foi dito, havia elegantes palacetes de madeira habitados pelos europeus. Mais além, via-se uma graciosa igreja e não muito distante, um forte, solidamente

Page 476: O Tigre da Malásia

construído e não com poucas grades.O português olhou-o

com atenção.— É ali que está Tremal-

Naik — Murmurou. — Como libertá-lo?Naquele mesmo

instante uma voz atrás dele dizia-lhe:— O rajá espera-o.Eanes virou-se e

encontrou à sua frente o bengalês.

Page 477: O Tigre da Malásia

— Ah! Sois vós, amigo? — Disse, sorrindo. — Como está o rajá Brooke?— Espera-o, sir.— Vamos apertar-lhe a

mão.Saíram, subiram uma

escada e entraram numa sala, cujas paredes desapareciam sob uma verdadeira camada de armas de todos os tamanhos e de todas as formas.

Page 478: O Tigre da Malásia

— Entrai nesse gabinete — Disse o bengalês.O português sentiu um

arrepio. «O que é que vou

contar?» murmurou. «Coragem, Eanes! Tens uma raposa velha à tua frente.»Empurrou a porta e

entrou resolutamente no gabinete, no meio do qual, em frente de uma mesa cheia de mapas geográficos, estava

Page 479: O Tigre da Malásia

sentado o rajá de Sarawak.

IIIO RAJÁ JAMES BROOKE

James Brooke, a quem a Malásia inteira e a marinha dos dois mundos muito devem, merece algumas linhas de história.Este homem audaz, que

ao preço de lutas terríveis, de esforços de

Page 480: O Tigre da Malásia

gigante, ganhou a alcunha de exterminador de piratas, descendia da família do baronete Vyner que, sob Carlos II, foi lord-mayor de Londres. Muito jovem ainda, tinha-se alistado no exército das Índias como alferes, mas ferido gravemente numa luta contra os homens do Bornéu apresentara pouco depois a sua demissão retirando-se

Page 481: O Tigre da Malásia

para Calcutá. A vida tranquila não era feita para o jovem Brooke, homem frio e positivo sim, mas dotado de uma energia extraordinária e amante das aventuras mais arriscadas.Curado da ferida voltou

à Malásia percorrendo-a em todas as direcções. A esta viagem deve ele a sua celebridade, que mais tarde se tornou mundial.

Page 482: O Tigre da Malásia

Profundamente impressionado pela incessante pirataria e pelos massacres horrendos que faziam os piratas malaios, bem como pelo tráfico dos homens de cor, tinha-se proposto, apesar dos grandes perigos que o esperavam, esmagar uns e outros e tornar assim segura a navegação e livre a Malásia.

Page 483: O Tigre da Malásia

James Brooke era um homem muito persistente. Vencidos os obstáculos que lhe opusera o seu governo à execução do ousado projecto, armava um pequeno schooner, o Realista, e em 1838 zarpava para Sarawak, cidadela do Bornéu, que então não contava com mais de 1500 habitantes. Desembarcava aí num mau momento.

Page 484: O Tigre da Malásia

A população de Sarawak, talvez incitada pelos piratas malaios, tinha-se revoltado contra o seu sultão Muda-Hassin e a guerra fervia com extrema violência. Brooke cedo ofereceu o braço ao sultão, pôs-se à cabeça das tropas e, após numerosos combates, em menos de vinte meses dominou a revolução.

Page 485: O Tigre da Malásia

Terminada a campanha, saía para o mar contra os piratas e os mercadores de carne humana. Aguerrida a tripulação com um cruzeiro de dois anos, dava início às batalhas, às destruições, aos extermínios, aos incêndios. Não se pode calcular o número de piratas mortos por ele, das embarcações e dos paraus afundados, dos covis incendiados. Foi

Page 486: O Tigre da Malásia

cruel, impiedoso, talvez até de mais.Vencida a pirataria,

voltou para Sarawak. O sultão Muda-Hassin, reconhecido pelos grandes serviços que lhe havia prestado, nomeava-o rajá da cidadela e do distrito.Em 1857, ano em que

se deram os acontecimentos que estamos a narrar, James Brooke estava no auge

Page 487: O Tigre da Malásia

da sua grandeza, que com um só gesto fazia tremer até o sultão de Varauni, isto é, o sultão do mais vasto reino da grande ilha de Bornéu.Ao escutar o barulho

que Eanes fez ao entrar, o rajá levantou-se com prontidão. Apesar de ter ultrapassado os cinquenta há alguns anos e do cansaço de uma vida agitadíssima, era ainda um homem

Page 488: O Tigre da Malásia

robusto, cuja energia transparecia do olhar vivo, brilhante. Algumas rugas sulcavam o seu rosto e a brancura dos cabelos anunciava uma rápida velhice.— Alteza! — Disse Eanes

inclinando-se.— Sois bem-vindo,

compatriota — Disse o rajá retribuindo o cumprimento.O acolhimento era

encorajador. Eanes, que

Page 489: O Tigre da Malásia

ao entrar no gabinete tinha sentido o coração bater com maior força, tranquilizou-se.— O que lhe aconteceu

ontem à noite? — Perguntou o rajá, depois de lhe ter apontado uma cadeira. — Os meus guardas contaram-me que até tiros de pistola disparou. Não devemos irritar os celestiais, meu caro, que aqui são numerosos e não gostam

Page 490: O Tigre da Malásia

muito dos rostos brancos.— Tinha feito uma longa

marcha, Alteza, e estava a morrer de fome. Encontrando-me em frente de uma taberna chinesa entrei para comer e para beber, embora não tivesse um único xelim na bolsa.— Como! — Exclamou o

rajá. — Um compatriota meu sem um xelim? Ouçamos de onde chega

Page 491: O Tigre da Malásia

e que motivo o traz aqui. Eu conheço todos os brancos que habitam o meu Estado, mas nunca o vi.— É a primeira vez que

ponho pé em Sarawak — Disse Eanes.— E de onde vem?— De Liverpool.— Mas em que barco

veio?— Com o meu iate,

Alteza.

Page 492: O Tigre da Malásia

— Ah! Tendes um iate? Mas quem é afinal?— Lord Giles Welker de

Closeburn — Disse Eanes, sem hesitar.O rajá estendeu-lhe a

mão que o português se apressou a apertar muito calorosamente.— Estou feliz por acolher

no meu Estado, um lorde da nobre Escócia — Disse o rajá.

Page 493: O Tigre da Malásia

— Obrigado, Alteza — Respondeu Eanes, inclinando-se.— Onde deixou o iate? 4

— Na foz do Palo.— E como chegou até

aqui?— Percorrendo pelo

menos duzentas milhas por terra, entre bosques e pântanos, vivendo de fruta e de serpentes como um verdadeiro selvagem.

Page 494: O Tigre da Malásia

O rajá olhou-o com surpresa.— Perdeu-se? —

Perguntou.— Não, Alteza.— Uma aposta?— Também não.— E então?— Uma desgraça.— O seu iate naufragou?— Não, foi afundado a

tiros de canhão, depois de ter sido esvaziado de tudo o que continha.— Mas por quem?

Page 495: O Tigre da Malásia

— Pelos piratas, Alteza.O rajá, o exterminador

dos piratas, levantou-se de rompante com os olhos cintilantes, o rosto animado de uma terrível cólera.— Os piratas! —

Exclamou. — Ainda não foram exterminados, esses malditos?— Parece que não,

Alteza.— Haveis visto o chefe

dos piratas?

Page 496: O Tigre da Malásia

— Sim — Disse Eanes.— Que homem era?— Bastante belo, com

cabelos muito negros, olhos cintilantes, tez bronzeada.— Era ele! — Exclamou

o rajá com viva emoção.— Ele quem?— O Tigre da Malásia.— Quem é este Tigre da

Malásia? Ouvi este nome outras vezes — Disse Eanes.

Page 497: O Tigre da Malásia

— É um homem poderoso, milord, um homem que possui a coragem do leão e a ferocidade do tigre, e que guia um bando de piratas que não tem medo de nada. Esse homem há três dias deitava âncora na foz do meu rio.— Que audácia! —

Exclamou Eanes, que a custo travou um tremor. — E havei-lo atacado?

Page 498: O Tigre da Malásia

— Sim, ataquei-o e derrotei-o. Mas a vitória custou-me cara.— Ah!— Ao ver-se cercado,

depois de uma luta obstinadíssima que custou a vida a sessenta dos meus homens, deu fogo às pólvoras e mandou pelos ares o seu barco com um dos meus.— Então morreu?— Duvido, milord.

Mandei procurar o seu

Page 499: O Tigre da Malásia

cadáver mas não foi possível encontrá-lo.— Será que ainda está

vivo?— Suspeito que se tenha

refugiado nos bosques com um bom número dos seus.— Será que vai tentar

atacar a cidade?— É um homem capaz

de tentar o golpe, mas não me apanhará indefeso. Mandei vir tropas daiaques que me

Page 500: O Tigre da Malásia

são fidelíssimas e mandei vários indianos da minha guarda inspeccionar as florestas.— Fazeis bem, Alteza.— Assim o creio, milord

— Disse o rajá, rindo. — Mas continue a sua história. De que modo os atacou o Tigre?— Tinha deixado dois

dias antes Varauni metendo a proa rumo ao cabo Sirik. Tinha a intenção de visitar as

Page 501: O Tigre da Malásia

principais cidades de Bornéu, antes de regressar a Batávia e depois à Indira.— Fez uma viagem de

prazer?— Sim, Alteza. Estava no

mar há onze meses.— Prossiga, milord.— Perto do pôr-do-sol do

terceiro dia, o iate deitava âncora perto da foz do rio Palo. Deixei-me conduzir para terra e penetrei sozinho nas

Page 502: O Tigre da Malásia

florestas com a esperança de abater uma babirussa ou uma dúzia de tucanos. Caminhava havia duas horas, quando ouvi um tiro de canhão, depois um segundo, um terceiro, finalmente um estrondo contínuo, furioso. «Assustado, voltei a

correr para a costa. Era demasiado tarde. Os piratas tinham abordado o meu iate, morto ou

Page 503: O Tigre da Malásia

feito prisioneira a tripulação e estavam a saqueá-lo. «Fiquei escondido até o

meu barco ir a pique e os piratas se afastarem, depois precipitei-me para a praia. Apenas vi cadáveres que a ondulação rolava nos recifes, destroços e a extremidade do pequeno mastro principal que saía meio pé das ondas.

Page 504: O Tigre da Malásia

«Toda a noite, desesperado, dei voltas perto da foz do rio, chamando, mas em vão, os meus desgraçados marinheiros. De manhã, pus-me em marcha seguindo a costa, atravessando florestas, pântanos e rios, alimentando-me de fruta e de aves que a minha carabina procurava. «Em Sedang cedi a

minha arma e o meu

Page 505: O Tigre da Malásia

relógio, a única riqueza que possuía, e descansei durante quarenta e oito horas. Depois de adquirir novas roupas a um colono holandês, um par de pistolas e um kriss, pus-me novamente em viagem e aqui cheguei, esfomeado, exausto e sem um xelim.»— E agora que conta

fazer?— Em Madras tenho um

irmão e na Escócia tenho

Page 506: O Tigre da Malásia

ainda bens e castelos. Vou escrever para que me mandem alguns milhares de esterlinas e no primeiro barco que aqui chegar voltarei para Inglaterra.— Lord Welker — Disse

o rajá — Ponho a minha casa e a minha bolsa à sua disposição, e farei tudo para que não se aborreça enquanto estiver no meu Estado.

Page 507: O Tigre da Malásia

Um brilho de alegria passou pelo rosto de Eanes.— Mas Alteza... —

Balbuciou, fingindo-se embaraçado.— Aquilo que faço por si,

milord, fá-lo-ia por qual-quer compatriota meu.— Como poderei

agradecer-vos?— Se um dia for à

Escócia, haverá de me compensar.

Page 508: O Tigre da Malásia

— Juro-vos, Alteza. Os meus castelos estarão sempre abertos para si e para qualquer um dos vossos amigos.— Obrigado, milord —

Disse o rajá, rindo.Soou uma campainha.

Um indiano apareceu.— Este senhor é meu

amigo — Disse o rajá, apontando-lhe o português. — Ponho à sua disposição a minha casa, a minha bolsa, os

Page 509: O Tigre da Malásia

meus cavalos e as minhas armas.— Está bem, rajá —

Respondeu o indiano.— Para onde vai agora,

milord? — Perguntou o príncipe.— Vou dar uma volta

pela cidade e se me permitis, Alteza, vou dar uma volta pelos bosques. Sou um amante da caça.— Vem jantar comigo?— Farei os possíveis,

Alteza.

Page 510: O Tigre da Malásia

— Pandij irá conduzi-lo ao seu quarto.Estendeu a mão a Eanes

que lha apertou vigorosamente dizendo:— Obrigado, Alteza, pelo

que fazeis por mim.— Até à vista, milord.O português saiu do

gabinete precedido pelo indiano e entrou no quarto que lhe estava destinado.— Vai-te embora —

Disse ao indiano. — Se

Page 511: O Tigre da Malásia

precisar dos teus serviços, toco.Depois de ficar sozinho,

o português deu uma vista de olhos pelo quarto. Era vasto, iluminado por duas janelas que olhavam para as colinas, coberta de belíssimas tunghoa (papel às flores de Tung) e mobilada com requinte. Havia uma boa cama, uma mesa, várias cadeiras de bambu muito

Page 512: O Tigre da Malásia

ligeiro, cuspideiras chinesas e uma bela lâmpada dourada, proveniente, sem dúvida, da Europa, e várias armas europeias, indianas, malaias, de Bornéu.— Muito bem —

Murmurou o português, esfregando as mãos. — O meu amigo Brooke trata-me como se eu fosse um verdadeiro lorde. Hei-de mostrar-te, meu caro,

Page 513: O Tigre da Malásia

que raça de Lord Welker eu sou. Mas prudência, Eanes, prudência! Tens de te haver com uma raposa velha.Nesse instante um

assobio agudo soou lá fora. O português estremeceu.— Kammamuri — Disse.

— Isto é uma imprudência.

IVNO BOSQUE

Page 514: O Tigre da Malásia

Foi fechar a porta com o trinco e aproximou-se com precaução da janela. A quarenta passos do palacete, sob a fresca sombra de uma árvore sacarífera, uma estupenda palmeira de folhas longas, estava o marata apoiado a um longo bambu munido na extremidade de uma aguçada ponta de ferro, provavelmente enve-nenada. O português viu

Page 515: O Tigre da Malásia

ao lado dele um pequeno cavalo carregado com dois grandes cestos de folhas de nipa, cheios de frutos de todas as espécies e de pães de sagu.— O marata é mais

prudente do que eu pensava — Murmurou Eanes. — Parece um provedor das minas.Enrolou um cigarro e

acendeu-o. A luz da pequena chama atraiu

Page 516: O Tigre da Malásia

logo o olhar de Kammamuri.— O rapaz viu-me —

Disse Eanes — Mas não se mexeu. Compreende que é preciso ser prudente.Fez-lhe um sinal com a

mão e depois voltou para dentro e abriu uma gaveta da mesinha. Havia folhas de papel, um tinteiro, penas e uma bolsa bem cheia que fez,

Page 517: O Tigre da Malásia

ao bater, um som metálico.— O meu amigo Brooke

pensou em tudo — Disse o português, rindo. — Estas são esterlinas novas.Tirou uma folha de

papel, cortou-a pela metade e escreveu em caracteres muito pequenos: «Sê prudente e olha

bem à tua volta. Vai-me

Page 518: O Tigre da Malásia

esperar à taberna do chinês.»Enrolou o pedacinho de

papel e arrancou da parede um troço cilíndrico, de madeira dura, furado no meio, armado na extremidade de um ferro de lança bem preso com tiras de rotang. Era um sumpitan, uma zarabatana, de 1,40 metros de comprimento e com a qual os daiaques lançam a sessenta

Page 519: O Tigre da Malásia

passos, e com uma extraordinária precisão, flechas molhadas no sumo muito venenoso de upas.— Ainda devo ser hábil

— Disse o português, examinando a arma.Arrancou uma flecha de

20 centímetros de com-primento, enfiou nela a folha escrita e fê-la entrar na zarabatana. Um forte sopro bastou para a lançar até ao

Page 520: O Tigre da Malásia

marata, que foi rápido a recolhê-la e a arrancar o papel.— E agora vamos sair —

Disse Eanes, ao ver afastar-se Kammamuri.Pôs a tiracolo uma

espingarda de dois canos e saiu, respeitosamente saudado pela sentinela.Ao percorrer ruas e

ruelas, ladeadas por cabanas assentes em postes, debaixo das quais dormiam porcos,

Page 521: O Tigre da Malásia

cães e saltitavam macacos, deitando um cheiro insuportável, em menos de um quarto de hora chegou à taberna à frente da qual estava preso o cavalo do marata.— Preparemos umas

esterlinas — Disse o português. — Prevejo uma cena borrascosa.Olhou para dentro da

taberna. Num canto, sentado em frente de

Page 522: O Tigre da Malásia

uma terrina de arroz, estava Kammamuri; e atrás do balcão com um par de óculos de quartzo fumado, estava o taberneiro, ocupado a rabiscar uma grande folha de papel com um pincel de tamanho respeitável.— Olá! — Gritou o

português entrando.O taberneiro levantou a

cabeça ao ouvir aquele chamamento. Vê-lo, pôr-

Page 523: O Tigre da Malásia

se em pé e correr ao seu encontro empunhando orgulhosamente uma monstruosa pena suja de tinta-da-china, foi coisa de um instante.— Bandido! — Berrou.O português foi pronto a

pará-lo.— Venho pagar-te —

Disse, atirando para a mesa um punhado de esterlinas.— Justo Buda! —

Exclamou o chinês,

Page 524: O Tigre da Malásia

precipitando-se sobre as moedas. — Oito esterlinas! Peço-vos perdão, senhor...— Está calado e traz

uma garrafa de vinho da Espanha.O taberneiro em quatro

saltos correu a ir buscar uma garrafa que colocou à frente de Eanes, depois lançou-se para o gong pendurado na porta e pôs-se a bater nele furiosamente.

Page 525: O Tigre da Malásia

— O que é que estás a fazer? — Perguntou Eanes.— Estou a salvá-lo,

senor — Respondeu o chinês. — Se não aviso os meus amigos de que pagou, não sei o que lhe aconteceria dentro de poucos dias.Eanes atirou para a

mesa outras dez esterlinas.

Page 526: O Tigre da Malásia

— Diz aos teus amigos que Lord Welker paga as bebidas — Disse.— Mas vós sois um

príncipe, milord! — Gritou o chinês.— Deixa-me sozinho.O chinês, apanhadas as

esterlinas, saiu para encontrar os seus amigos, que, alarmados por aqueles toques precipitados, acorriam de todos os lados armados de bambus e de facas.

Page 527: O Tigre da Malásia

Eanes sentou-se em frente de Kammamuri destapando a garrafa.— Que novidades, meu

bravo marata? — Perguntou.— Más, senhor Eanes —

Respondeu Kammamuri.— Sandokan corre

algum perigo?— Ainda não, mas

poderá vir a ser descoberto de um instante para o outro. Nas florestas rondam

Page 528: O Tigre da Malásia

guardas e daiaques. Ontem à noite fui mandado parar e interrogado e esta manhã aconteceu-me a mesma coisa.— E tu o que disseste?— Fiz-me passar por um

provedor das minas de Poma. Para enganar melhor estes espiões muni-me de um cavalo e de alguns cestos.

Page 529: O Tigre da Malásia

— És esperto, Kammamuri. Onde se encontra Sandokan?— A seis milhas daqui,

acampado perto de uma aldeia em ruínas. Está-se a fortificar, temendo ser atacado.— Vamos ter com ele.— Quando?— Assim que tivermos

esvaziado uma garrafa.— Há alguma coisa no

ar?

Page 530: O Tigre da Malásia

— Fiquei a saber onde está preso o teu patrão.O marata pôs-se de pé

num salto, fora de si com a alegria.— Onde está? Onde

está? — Perguntou com voz sufocada.— No fortim da cidade,

guardado por cerca de sessenta marinheiros ingleses.O marata deixou-se cair

na cadeira, desenco-rajado.

Page 531: O Tigre da Malásia

— Vamos salvá-lo na mesma, Kammamuri — Disse Eanes.— E quando?— Assim que pudermos.

Vou ter com Sandokan para projectar um plano.— Obrigado, senhor

Eanes.— Deixa lá os

agradecimentos e bebe.O marata esvaziou a

taça.— Quer que partamos?

Page 532: O Tigre da Malásia

— Partamos — Atirando para a mesa alguns xelins.— O caminho é longo e

difícil e será necessário torná-lo ainda mais longo para enganar os espiões.— Não tenho pressa.

Disse ao rajá que vou à caça.— Tornou-se amigo do

rajá?— Certamente.— De que maneira?

Page 533: O Tigre da Malásia

— Conto-te pelo caminho.Saíram da taberna. O

português pôs-se à frente e Kammamuri atrás, segurando o cavalo pela rédea.— Viva Lord Welker! —

Gritou uma voz.— Viva o lorde! Viva o

generoso branco! — Berraram várias outras vozes.O português virou-se e

viu o taberneiro rodeado

Page 534: O Tigre da Malásia

por um grande bando de chineses de taças na mão.— Adeus, rapazes! —

Gritou.— Viva o generoso

lorde! — Vociferaram os chineses erguendo e batendo as taças.Saídos do bairro chinês,

ladeado de lojecas atafulhadas de rolos de papel florido de Tung, de fardos de seda, de caixas de chá de todas as

Page 535: O Tigre da Malásia

qualidades, de leques, de óculos, de cadeiras de bambu, de lanternas microscópicas e lanternas gigantescas, de armas, de amuletos, de vestes, de tamancos, de chapéus de todas as formas e dimensões, tudo coisas provenientes dos portos do Império Celeste, entraram no bairro malaio não muito diferente do bairro daiaque, talvez mais sujo

Page 536: O Tigre da Malásia

e malcheiroso, depois subiram as colinas e daí alcançaram os bosques.— Caminhe com

precaução — Disse Kammamuri ao português. — Encontrei várias cobras esta manhã e também vi as pegadas de um tigre.— Conheço os bosques

do Bornéu, Kammamuri — Respondeu Eanes. — Não temas por minha causa.

Page 537: O Tigre da Malásia

— Já cá veio?— Não, mas percorri

várias vezes os bosques do reino de Varauni.— Em batalha?— Às vezes.— Eram inimigos do

sultão de Varauni?— Sim. Ele odiava os

piratas de Mompracem porque em cada batalha venciam a sua frota.— Patrão Eanes, o Tigre

da Malásia foi sempre pirata?

Page 538: O Tigre da Malásia

— Não, meu caro. Em tempos foi um poderoso rajá do Bornéu setentrional, mas um inglês ambicioso fomentou a revolta das tropas e da população e destronou-o depois de lhe ter morto o pai, a mãe, os irmãos e as irmãs.— E ainda está vivo esse

inglês?— Sim, está vivo.— E não o puniram?

Page 539: O Tigre da Malásia

— É demasiado forte. Mas o Tigre da Malásia ainda não morreu.— Patrão Eanes, por que

se associou a Sandokan?— Não me associei,

Kammamuri, fui feito prisioneiro quando navegava rumo a Labuan.— Sandokan não

matava os prisioneiros?— Não, Kammamuri.

Sandokan foi sempre feroz para com os seus

Page 540: O Tigre da Malásia

mais acérrimos inimigos e generoso para com os outros e especialmente para com as mulheres.— E sempre o tratou

bem, patrão Eanes?— Amou-me mais do

que um irmão!— Diga-me, patrão

Eanes, quando tiver libertado o meu patrão, regressa a Mompracem?— É provável,

Kammamuri. O Tigre da Malásia precisa de

Page 541: O Tigre da Malásia

emoções para sufocar a sua dor.— Qual é a sua dor?— A de ter perdido

Mariana Guillonk.— Amava-a muito,

então?— Imensamente.— É bastante estranho

que um homem tão feroz e tão terrível se tenha apaixonado por uma mulher.

Page 542: O Tigre da Malásia

— E para mais por uma mulher inglesa — Acres-centou Eanes.— Do tio de Mariana

Guillonk nunca mais souberam nada?— Nada, por agora.— Será que está cá?— Pode ser.— Tem medo dele?

— Talvez e...— Alto aí — Gritou nesse instante uma voz. Eanes e Kammamuri pararam.

V

Page 543: O Tigre da Malásia

NARCÓTICOS E VENENOSDois homens tinham-se

levantado por detrás de um cetting, planta trepadeira, cujo suco é tão venenoso que em poucos instantes mata um boi. Um era indiano, alto, magro, nervoso, vestido de tecido branco e armado de uma longa carabina incrustada de prata; o outro era um daiaque de belas formas, com os membros

Page 544: O Tigre da Malásia

extraordinariamente carregados de anéis de latão e de pérolas de Veneza e os dentes enegrecidos pelo sumo, caldo da madeira siuka. Um único ciawat, pedaço de pano de algodão, cobria-lhe a cintura e um lenço vermelho a cabeça, mas trazia um verdadeiro arsenal. A terrível zarabatana com as flechas molhadas no suco de upas pendia-lhe

Page 545: O Tigre da Malásia

de um ombro; o formidável parang, pesado sabre de lâmina larga embutida com pedaços de latão, que usam para decapitar os inimigos, balançava-lhe à cintura; a corda, que sabem usar talvez melhor ainda do que os tugues indianos, apertava-lhe a cintura. Não faltava sequer o kríss, de lâmina

Page 546: O Tigre da Malásia

serpenteante e envenenada.— Alto lá! — Repetiu o

indiano, avançando.O português fez a

Kammamuri um gesto rápido e avançou com os dedos da mão direita sobre a espingarda.— O que queres e quem

és tu? — Perguntou ao indiano.— Sou guarda do rajá de

Sarawak — Respondeu o

Page 547: O Tigre da Malásia

interpelado. — E o senhor?— Lord Giles Welker,

amigo de James Brooke, o teu rajá.O indiano e o daiaque

apresentaram armas.— Esse homem está ao

seu serviço, milord? — Perguntou o indiano, indicando Kammamuri.— Não — Respondeu

Eanes. — Encontrei-o na floresta e tendo ele

Page 548: O Tigre da Malásia

medo dos tigres pediu para me seguir.— Aonde vais? —

Perguntou o indiano ao marata.— Disse-te esta manhã

que sou provedor dos placers de Poma — Disse Kammamuri. — Para quê perguntar-me também agora aonde vou?— Porque assim o quer

o rajá.— Diz ao teu rajá que eu

sou um súbdito fiel dele.

Page 549: O Tigre da Malásia

— Passa.Kammamuri alcançou

Eanes que tinha seguido o seu caminho, enquanto os dois espiões voltavam a esconder-se debaixo do arbusto venenoso.— O que pensa, senhor

Eanes, destes homens? — Perguntou o marata, quando teve a certeza de que não o podiam ouvir nem ver.— Penso que o rajá é

astuto como uma raposa.

Page 550: O Tigre da Malásia

— Separamo-nos?— Sim, Kammamuri.

Aqueles dois espiões podem ter alguma suspeita e seguir-nos durante um bom pedaço de caminho.— Vamos despistá-los.Kammamuri abandonou

o caminho até então percorrido e virou à esquerda, seguido pelo cavalo e pelo português. O caminho depressa se tornou muito difícil.

Page 551: O Tigre da Malásia

Milhares e milhares de árvores, umas direitas, outras dobradas e contorcidas e arbustos e trepadeiras, apertavam-se dificultando a passagem.Havia aqui colossais

árvores de cânfora, ali arengas sacaríferas, que, feridas, dão um licor açucarado e inebriante quando é deixado fermentar; mais além soberbas palmeiras

Page 552: O Tigre da Malásia

pinang, que se dobravam sob o peso das nozes que formavam grandes cachos; depois belíssimas mangueiras, altas como cerejeiras, cujos frutos, do tamanho de laranjas, são os mais saborosos e os mais delicados que se encontram na terra, e arecas de folhas grandíssimas, plantas, estas três últimas, que dão a borracha. E como

Page 553: O Tigre da Malásia

se todas estas não bastassem para tornar difícil o caminho, rotang desmesurados, que no Bornéu ocupam o lugar das lianas e nepentes, corriam de uma árvore à outra formando autênticas redes, que o marata e o português eram obrigados a cortar a golpes de kriss.Percorrida meia milha,

descrevendo voltas compridas para

Page 554: O Tigre da Malásia

encontrar passagens, saltando árvores, furando arbustos, cortando raízes e amarras vegetais à direita e à esquerda, os dois piratas chegaram às margens de um canal de água negra e putrefacta. Kammamuri cortou um ramo e mediu a profundidade.— Dois pés — Disse. —

Venha, patrão Eanes.— Porquê?

Page 555: O Tigre da Malásia

— Vamos entrar no canal e vamos subi-lo durante um bom pedaço. Se os dois espiões nos estiverem a seguir, deixarão de encontrar as nossas pegadas.— És esperto,

Kammamuri.O português subiu para

a sela e atrás dele subiu o marata. O cavalo depois de ter hesitado um pouco, entrou naquelas águas

Page 556: O Tigre da Malásia

putrefactas que deitavam um fedor insuportável e subiu a corrente, cambaleando e escorregando no fundo pantanoso.Depois de dar alguns

passos, voltou para a margem. Eanes e o marata desmontaram e puseram-se à escuta com o ouvido no chão.— Não oiço nada —

Disse Kammamuri.

Page 557: O Tigre da Malásia

— Eu também não — Acrescentou o português. — É longe o acampamento?— Uma milha e meia

pelo menos. Despachemo-nos, patrão.Um caminho aberto

entre os arbustos e o rotang dos animais desaparecia na floresta. Os dois piratas alcançaram-no alargando o passo. Meia hora de-pois, outros dois homens

Page 558: O Tigre da Malásia

levantavam-se detrás de um arbusto, intimando os dois piratas a parar. Kammamuri deu um assobio.— Em frente —

Responderam as duas sentinelas.Eram dois piratas de

Mompracem, armados até aos dentes. Ao verem Eanes deram gritos de alegria.

Page 559: O Tigre da Malásia

— Capitão Eanes! — Gritaram, correndo para ele.— Bom dia, rapazes —

Disse o português.— Pensávamos que

estava morto, capitão.— Os Tigres de

Mompracem têm a pele dura; onde está Sandokan?— A trezentos passos

daqui.— Montem bem a

guarda, amigos. Há

Page 560: O Tigre da Malásia

espiões do rajá no bosque.— Nós sabemos;

matámos um ontem à noite.— Muito bem, tigres.O português e o marata

aceleraram o passo e depressa chegaram ao acampamento implantado perto de um kampong em ruínas. Da aldeia, que em tempos devia ter sido bastante grande, apenas restava

Page 561: O Tigre da Malásia

intacta uma cabana de folhas de nipa, colocada em cima de postes com mais de trinta pés de altura, longe do alcance dos ataques dos tigres e também dos ataques dos homens.Os piratas, contudo,

estavam a reconstruir outras cabanas e plantando sólidas paliçadas para se meterem a coberto e, em caso de súbito ataque

Page 562: O Tigre da Malásia

por parte das tropas do rajá de Sarawak, poderem resistir.— Onde está Sandokan?

— Perguntou Eanes, entrando no acampamento, acolhido com gritos de alegria de todo o bando.— Ali em cima, na

cabana aérea — Responderam os piratas. — Encontraram soldados do rajá, capitão Eanes?

Page 563: O Tigre da Malásia

— Aquilo que disse às sentinelas digo-o a vocês, tigres — Disse o português. — Estejam alerta que há espiões do rajá no bosque. Vi mais do que um.— Que se mostrem! —

Gritou um malaio, em-punhando um pesadíssimo parang ilang com a ponta em tubo. — Os tigres de Mompracem não temem os cães do rajá.

Page 564: O Tigre da Malásia

— Capitão Eanes — Disse outro — Se encontrar algum desses espiões, diga-lhes que estamos aqui acampados. Há cinco dias que não combatemos e as minhas armas começam a ficar enferrujadas.— Dentro em breve

terão trabalho — Respondeu Eanes.— Viva o capitão Eanes!

— Gritaram os tigres.

Page 565: O Tigre da Malásia

— Ei! Irmão! — Gritou uma voz que vinha do alto.O português levantou os

olhos e viu Sandokan de pé na pequena plataforma da cabana aérea.— O que fazes aí em

cima? — Gritou o português, rindo.— Sobe, Eanes. Tens

uma coisa importante para me dizer.— Claro.

Page 566: O Tigre da Malásia

O português lançou-se para um grande poste que apresentava cortes e com uma surpreendente agilidade chegou à plataforma ou melhor ao terraço da cabana, mas aqui encontrou-se num terrível embaraço. O solo era formado por bambus mas afastados um bom palmo uns dos outros, de modo que os pés do bom Eanes não conseguiam

Page 567: O Tigre da Malásia

encontrar um apoio estável.— Mas isto é uma

armadilha! — Exclamou.— Construção daiaque,

meu irmão — Disse Sandokan, rindo.— Mas que pés têm

estes selvagens?— Talvez mais pequenos

do que os nossos. Um pouco de equilíbrio, caramba!O português,

cambaleando e saltando

Page 568: O Tigre da Malásia

de trave em trave, chegou à cabana.Era discretamente

vasta, dividida em três quartos pequenos de cinco pés de altura e outros tantos de largura, com o chão também formado de bambus vários centímetros afastados uns dos outros, mas cobertos de esteiras.— O que me trazes? —

Perguntou Sandokan.

Page 569: O Tigre da Malásia

— Muitas novidades, meu irmão — Respondeu Eanes, sentando-se. — Mas diz-me, antes de mais nada, onde está a pobre Ada, que não a vi no acampamento?— Este lugar não é

muito seguro, Eanes. Os guardas do rajá podem atacar-nos de um momento para o outro.— Compreendo, meu

irmão; escondeste-a num lugar qualquer.

Page 570: O Tigre da Malásia

— Sim, Eanes. Mandei conduzi-la até à costa.— Quem foi com ela?— Dois homens que me

são muito fiéis.— Ainda está louca?— Sim, Eanes.— Pobre Ada!— Há-de curar-se,

garanto-te.— De que maneira?— Quando estiver

perante Tremal-Naik, terá um choque tão

Page 571: O Tigre da Malásia

grande que recuperará a razão.— Achas?— Acho, ou melhor

tenho a certeza.— Que as tuas

esperanças se tornem realidade.— Agora, diz-me Eanes:

o que tens feito em Sarawak nestes dias?— Muitas coisas. Tornei-

me amigo do rajá.— De que maneira? Diz,

depressa, irmão.

Page 572: O Tigre da Malásia

O português em poucas palavras informou-o daquilo que tinha feito, daquilo que tinha acontecido e daquilo que tinha ouvido. Sandokan ouviu-o atentamente sem o interromper.— Então tu és amigo do

rajá — Disse, quando Eanes terminou.— Amigo íntimo, meu

irmão.— Não suspeita de

nada?

Page 573: O Tigre da Malásia

— Não creio, mas já te disse que sabe que estás aqui.— É preciso libertar

depressa Tremal-Naik. Ah! Se eu pudesse ao mesmo tempo esmagar para sempre esse danado Brooke!— Deixa lá o rajá,

Sandokan.— Ele foi demasiado

feroz para com os nossos irmãos. Eu daria metade do meu sangue para

Page 574: O Tigre da Malásia

vingar os milhares de malaios mortos por esse terrível e impiedoso homem.— Tem cuidado,

Sandokan, só temos sessenta homens.— Tu sabes, Eanes,

daquilo que eu sou capaz — Disse com um tom de voz que fazia tremer. — Conheces o meu passado.— Eu sei, Sandokan, que

desafiaste a ira de reinos

Page 575: O Tigre da Malásia

e de impérios europeus. Mas a prudência nunca é de mais.— Seja: serei prudente.

Contentar-me-ei com a libertação de Tremal-Naik.— Uma coisa talvez

mais difícil do que a outra, Sandokan.— Porquê?— Há sessenta brancos

no fortim e peças de canhão.

Page 576: O Tigre da Malásia

— O que são sessenta homens?— Espera um pouco,

meu irmão. Esquecia-me de te dizer que o fortim está muito próximo da cidade. Ao primeiro tiro de canhão terás os brancos pela frente e as tropas do rajá pelas costas.Sandokan mordeu os

lábios e fez um gesto de desprezo.

Page 577: O Tigre da Malásia

— Mesmo assim temos de o salvar — Disse.— O que devemos

fazer?— Vamos usar a astúcia.— Tens um plano?— Penso que sim.— Fala então.— Sou de Bornéu e

como os meus compatriotas sempre adorei os venenos. Com uma só gota mata-se um homem por mais forte que seja; com outra gota

Page 578: O Tigre da Malásia

adormece-se, faz-se com que pareça morto e pode enlouquecer. O veneno, como vês, é uma arma poderosa.— Sei que durante a

nossa estada em Java lidavas muito com venenos. E lembro-me de que uma vez um poderoso narcótico te salvou da forca.— Eis os primeiros frutos

dos meus estudos e das minhas pesquisas —

Page 579: O Tigre da Malásia

Disse Sandokan. — Ouve-me, Eanes.Procurou no bolso

interior do casaco e tirou uma caixinha de pele, hermeticamente fechada. Abriu-a e mostrou ao português dez ou doze frasquinhos microscópicos cheio de líquidos brancos, esverdeados e negros.— Por Júpiter! —

Exclamou Eanes. — Tens uma enorme variedade.

Page 580: O Tigre da Malásia

— Não é tudo — Disse Sandokan, abrindo uma segunda caixinha contendo pequeníssimas pílulas que exalavam um cheiro forte. — Estes são outros venenos.— E o que é que queres

fazer com esses líquidos e essas pílulas?— Ouve-me com

atenção, Eanes. Disseste-me que Tremal-Naik está preso no forte.— É verdade.

Page 581: O Tigre da Malásia

— Achas que podes entrar no forte, se pedires autorização ao rajá?— Espero que sim. A um

amigo não se nega um favor tão pequeno.— Então tu vais entrar e

pedir para ver Tremal-Naik.— E quando o tiver

visto, o que é que faço?Sandokan tirou da

segunda caixinha três

Page 582: O Tigre da Malásia

pílulas pretas e pô-las na mão de Eanes.— Estas pílulas contêm

um veneno que não mata, mas que suspende a vida durante trinta e seis horas.— Agora compreendo o

teu plano. Tenho de fazer Tremal-Naik engolir uma pílula.— Ou derreter uma no

jarro da água.— Tremal-Naik não dará

mais sinal de vida, julgá-

Page 583: O Tigre da Malásia

lo-ão morto e enterrá-lo-ão.— E nós, de noite,

iremos desenterrá-lo — Disse Sandokan.— O projecto é

estupendo, Sandokan — Disse o português.— Vais tentar o golpe?

Não corres qualquer perigo.— Vou tentar, desde que

me seja permitido entrar no forte.

Page 584: O Tigre da Malásia

— Se não permitirem, corrompe alguns marinheiros. Tens dinheiro?O português, abriu o

casaco, o colete, levantou a camisa e mostrou uma faixa um pouco inchada que lhe apertava a cintura.— Tenho dezasseis

diamantes que juntos valem um milhão.— Se quiseres mais,

fala. O meu cinto contém

Page 585: O Tigre da Malásia

o dobro da tua fortuna e em Batávia temos ouro suficiente para comprar toda a frota de Portugal.— Eu sei, Sandokan. Por

agora contento-me com os meus dezasseis diamantes.— Agora esconde estas

pílulas e também estes dois frasquinhos — Disse Sandokan. — Um, o verde, contém um narcótico que não suspende a vida, mas

Page 586: O Tigre da Malásia

que adormece profundamente durante doze horas; o outro, o vermelho, contém um veneno que mata instantaneamente e sem deixar vestígios. Quem sabe: podem ser-te úteis.O português escondeu

as pílulas e os frasquinhos, pôs a espingarda a tiracolo e levantou-se.— Vais-te embora?

Page 587: O Tigre da Malásia

— Sarawak fica longe, meu irmão.— Quando darás o

golpe?— Amanhã.— Mandas logo

Kammamuri avisar-me.— Sem falta; adeus,

irmão.Desceu a perigosa

escada, saudou os tigres e voltou a enfiar-se na floresta, procurando orientar-se. Tinha percorrido seiscentos ou

Page 588: O Tigre da Malásia

setecentos metros, quando o marata se juntou a ele.— Mais novidades? —

Perguntou o português, parando.— Uma e talvez grave,

senhor Eanes — Disse o marata. — Um pirata regressou agora mesmo ao acampamento e relatou ao Tigre ter visto, a três milhas daqui, um bando de daiaques

Page 589: O Tigre da Malásia

guiado por um velho branco.— Se o encontrar

desejar-lhe-ei uma boa viagem.— Espere, senhor Eanes

— Disse o marata. — O pirata disse que aquele velho de pele branca se parecia com aquele homem que jurou enforcar o Tigre.— Lord James Guillonk!

— Exclamou Eanes, empalidecendo.

Page 590: O Tigre da Malásia

— Sim, patrão Eanes, aquele homem parecia-se com o tio da defunta mulher de Sandokan.— É impossível! É

impossível!.. Quem foi o pirata que o viu?— O malaio

Sambigliong.— Sambigliong! —

Balbuciou Eanes. — Esse malaio estava connosco quando raptámos a sobrinha de Lord James, aliás, se a memória não

Page 591: O Tigre da Malásia

me engana, ele mesmo afrontou o lorde que estava para me esmagar o crânio. Por Júpiter! Corro um grande perigo.— Qual? — Perguntou o

marata.— Se Lord Guillonk for a

Sarawak estou perdido. Vai ver-me, reconhecer-me apesar de já terem passado quase cinco anos desde a última vez que nos encontrámos,

Page 592: O Tigre da Malásia

mandar-me prender e enforcar.— Mas o malaio não

disse que aquele velho era o lorde. Era parecido e mais nada.— Foi Sandokan quem

te mandou avisar-me?— Sim, patrão Eanes!— Vais dizer-lhe que

estarei alerta, mas que procure capturar esse velho de pele branca. Adeus, Kammamuri, amanhã de manhã

Page 593: O Tigre da Malásia

espero por ti na taberna chinesa.O português, muito

inquieto, retomou a marcha, olhando bem à sua volta e abrindo bem os ouvidos, assustado por poder encontrar-se de um momento para o outro perante aquele velho. Felizmente não se ouvia, sob as gigantescas plantas, nenhuma voz humana, nem nenhum sinal. Os únicos ruídos

Page 594: O Tigre da Malásia

que rompiam o silêncio eram os gritos dos argus gigantes, magníficos faisões que esvoaçavam às centenas, catatuas pretas e os sons roucos dos macacos narigudos.Caminhou assim, com

grandes precauções, entre os arbustos inextricáveis e gigantescos, ora virando à direita ora à esquerda, durante cinco horas. Só chegou a Sarawak ao

Page 595: O Tigre da Malásia

pôr-do-sol, exausto e esfomeado como um lobo. Pensando ser demasiado tarde para ir jantar ao palacete do rajá, dirigiu-se à taberna do chinês.Depois de um lauto

repasto e várias garrafas, regressou ao palacete. Antes de entrar, perguntou à sentinela se um velho de pele branca tinha chegado, mas

Page 596: O Tigre da Malásia

obteve uma resposta negativa e subiu.O rajá tinha-se retirado

para o seu quarto há várias horas.— É melhor assim —

Murmurou Eanes. — Um caçador que regressa sem um papagaio poderia alarmar aquela velha raposa desconfiada.Acendeu o trigésimo

cigarro e foi dormir, depois de ter posto as

Page 597: O Tigre da Malásia

pistolas e o kriss debaixo do travesseiro.

VITREMAL-NAIK

Embora estivesse bastante cansado, o bom português não foi capaz de pregar olho durante toda a noite. Aquele velho branco que guiava um grupo de daiaques e que era tão parecido com o tio da defunta mulher do Tigre, que fora visto

Page 598: O Tigre da Malásia

na vizinhança da cidade pelo malaio Sambigliong, continuava na sua mente e enchia-lhe a alma de fortes inquietações.Em vão procurava

tranquilizar-se repetindo para si mesmo que talvez o malaio se tivesse enganado, que o lorde ainda devia estar longe, talvez em Java, na Indira, ou ainda mais longe, em Inglaterra. Parecia-lhe sempre ouvir

Page 599: O Tigre da Malásia

a voz do velho no corredor contíguo; parecia-lhe sempre ouvir um fragor de armas no palácio.Por várias vezes, não

sabendo dominar a sua inquietude, abriu prudentemente as janelas e por várias vezes foi abrir a porta do quarto temendo que tivessem sido colocadas sentinelas para lhe impedir que fugisse.

Page 600: O Tigre da Malásia

Adormeceu já quase de madrugada, mas foi um sono agitado, cheio de pesadelos e que durou horas. Acordou com o som de um gong.Levantou-se, vestiu-se,

enfiou nas sacolas um par de pistolas curtas e dirigiu-se para a porta. Nesse mesmo instante bateram à porta.— Quem é? —

Perguntou com ansiedade.

Page 601: O Tigre da Malásia

— O rajá espera-o no gabinete — Disse uma voz.Eanes sentiu um arrepio

correr-lhe por todos os ossos. Abriu a porta e encontrou-se perante um indiano.— É só o rajá? —

Perguntou, com os dentes cerrados.— Só, milord—

Respondeu o indiano.— O que quer de mim?

Page 602: O Tigre da Malásia

— Espera-o para tomar chá.— Vou já ter com ele —

Disse Eanes, dirigindo-se para o gabinete do príncipe.O rajá estava sentado

em frente da sua mesa sobre a qual estava um serviço de chá em prata. Ao ver Eanes entrar, levantou-se com um sorriso nos lábios, estendendo-lhe a mão.

Page 603: O Tigre da Malásia

— Bom dia, milord! — Exclamou. — Voltou tarde ontem à noite?— Perdoai-me, Alteza,

se faltei à refeição, mas a culpa não é minha — Disse Eanes, sossegado pelo sorriso do rajá.— O que vos aconteceu?— Perdi-me nos

bosques.— Mas tinha um guia.— Um guia!— Disseram-me que ia

convosco um indiano que

Page 604: O Tigre da Malásia

se faz passar por um provedor das minas de Poma.— Quem lho disse,

Alteza? — Perguntou Eanes, fazendo um esforço extraordinário para manter a calma.— Os meus espiões,

milord.— Alteza, tendes boa

gente ao vosso serviço.— Creio que sim —

Disse o rajá, sorrindo. — Encontrou esse homem?

Page 605: O Tigre da Malásia

— Sim, Alteza.— Até onde vos

acompanhou?— Até uma pequena

aldeia de daiaques.— Imagina quem era

esse homem?— Quem era? —

Perguntou Eanes, pronunciando com dificuldade aquelas duas palavras.— Um pirata — Disse o

rajá.

Page 606: O Tigre da Malásia

— Um pirata! É impossível, Alteza.— Posso assegurá-lo.— E não me matou?— Os piratas de

Mompracem, milord, por vezes são generosos como o seu chefe.— É generoso o Tigre da

Malásia?— É o que se diz. Conta-

se que, por várias vezes, deu de presente grandes diamantes a pobres diabos a quem poucos

Page 607: O Tigre da Malásia

momentos antes tinha dado tiros e golpes de sabre.— É um pirata muito

estranho, então?— É corajoso e generoso

ao mesmo tempo.— Mas estais certo,

Alteza, de que aquele indiano faz parte do bando de Mompracem?— Certíssimo, já que os

meus espiões o viram falar com piratas do Tigre da Malásia. Mas já

Page 608: O Tigre da Malásia

não falará mais com eles, juro-vos. A esta hora deve estar nas mãos dos meus homens.Nesse instante, na rua,

ouviram-se gritos e forte golpe de gong. Eanes, pálido, agitadíssimo, precipitou-se para a janela para ver o que estava a acontecer e para esconder a própria emoção.— Por Júpiter! —

Exclamou com voz

Page 609: O Tigre da Malásia

estrangulada, ficando ainda mais pálido. — Kammamuri!— O que se passa? —

Perguntou o rajá.— Conduzem para aqui

o meu indiano, Alteza — Respondeu com voz bastante calma.— Eu não me tinha

enganado.Debruçou-se sobre

parapeito e olhou.Quatro guardas,

armados até aos dentes,

Page 610: O Tigre da Malásia

conduziam para o palácio o indiano Kammamuri, ao qual tinham atado os braços com sólidas fibras de rotang. O prisioneiro não opunha qualquer resistência, nem parecia assustado. Avançava com passo calmo e olhava tranquilamente a multidão de daiaques, chineses e malaios que o seguia clamando.— Pobre homem! —

Exclamou Eanes.

Page 611: O Tigre da Malásia

— Tem pena dele, milord? — Perguntou o rajá.— Um pouco, confesso.— Mas aquele indiano é

um pirata.— Eu sei, mas comigo

foi muito gentil. O que fareis dele, Alteza?— Vou tentar fazê-lo

falar antes de mais. Se conseguir saber onde se esconde o Tigre da Malásia...— Atacá-lo-eis?

Page 612: O Tigre da Malásia

— Reunirei os meus guardas e atacá-lo-ei.— E se o prisioneiro não

falar?— Mando enforcá-lo —

Disse friamente o rajá.— Pobre diabo!— Todos os piratas têm

um tratamento igual, milord.— Quando o

interrogareis?— Hoje não tenho

tempo, porque tenho de receber um embaixador

Page 613: O Tigre da Malásia

holandês, mas amanhã estou livre e hei-de fazê-lo falar.Uma luz brilhou nos

olhos do português.— Alteza — Disse,

depois de alguma hesitação. — Posso assistir ao interrogatório?— Se assim o deseja.— Obrigado, Alteza.O rajá sacudiu uma

campainha de prata que estava sobre a mesa. Um chinês vestido de seda

Page 614: O Tigre da Malásia

amarela com uma trança, entrou trazendo uma chaleira de porcelana Ming, cheia de chá fumegante.— Gosta de chá, espero

— Disse o rajá.— Não seria inglês —

Respondeu Eanes, sorrindo.Esvaziaram várias

chávenas da deliciosa bebida; em seguida levantaram-se.

Page 615: O Tigre da Malásia

— Onde pensa ir hoje, milord? — Perguntou o rajá.— Visitar os arredores

da cidade — Respondeu Eanes. — Vi um fortim e, com vossa licença, vou visitá-lo.— Encontrará

compatriotas, milord.— Compatriotas! —

Exclamou Eanes, fingindo ignorar completamente.— Recolhidos por mim

há algumas semanas,

Page 616: O Tigre da Malásia

quando estavam prestes a afogar-se.— Náufragos, portanto?

E o que fazem naquele forte?— Esperam a chegada

de um navio para embarcar e ao mesmo tempo estão de guarda a um tugue indiano que fechei lá dentro.— O quê? Um tugue!

Um tugue indiano! — Exclamou Eanes. — Oh! Gostaria de ver um

Page 617: O Tigre da Malásia

desses terríveis estranguladores.— Desejais isso?— Ardentemente.O rajá pegou numa folha

de papel, escreveu nela algumas linhas, dobrou-a e entregou-a ao português que pegou nela com vivacidade.— Entregue-a ao

tenente Churchill — Disse o rajá. — Ele mostrar-lhe-á o tugue e se o desejar levá-lo-á a

Page 618: O Tigre da Malásia

visitar o fortim apesar de não ter nada de bonito.— Obrigado, Alteza.— Janta comigo esta

noite?— Prometo-vos.— Adeus, milord.Eanes, que não podia

esperar pelo momento de sair daquele gabinete, dirigiu-se para o próprio quarto.— Vamos pensar, Eanes

meu caro — Murmurou, ao encontrar-se sozinho.

Page 619: O Tigre da Malásia

— Trata-se de fazer um grande golpe sem ser descoberto.Acendeu um cigarro e

chegou-se à janela mer-gulhada em profundos pensamentos. Ficou ali, imóvel, com os olhos fixos no fortim, dez ou doze minutos, franzindo de vez em quando a testa. «Já sei!», exclamou de

repente. «Meu caro Brooke, o bom Eanes

Page 620: O Tigre da Malásia

prepara-te uma brincadeira que, se eu tiver tudo bem calculado, vai ser lindíssima. Por Júpiter! Sandokan ficará contente com o seu irmãozinho branco.»Aproximou-se da mesa,

pegou numa caneta e num pedaço de papel e escreveu: «Venho a mando do teu fiel servo Kammamuri, para te salvar. Tremal-Naik, se quiseres ficar

Page 621: O Tigre da Malásia

livre e rever a tua Ada, engole perto da meia-noite as pílulas que aqui encontras, nem antes, nem depois, se puderes.Eanes amigo de Kammamuri.»Pôs dentro da carta

duas pequenas pílulas esverdeadas e fez uma bolinha que escondeu num dos bolsos do casaco.— Amanhã os ingleses

hão-de pensá-lo morto e

Page 622: O Tigre da Malásia

amanhã à noite enterram-no — Murmurou, esfregando as mãos — E mandaremos Kammamuri avisar o meu caro irmão. Ah! Meu caro James Brooke, ainda não sabes do que são capazes os Tigres de Mompracem.Pôs na cabeça um

chapéu de palha em forma de cogumelo, colocou à cintura o fiel kriss, e deixou o quarto

Page 623: O Tigre da Malásia

descendo lentamente as escadas.Ao passar pelo corredor,

viu diante de uma porta um indiano armado de carabina, com a baioneta hasteada.— O que é que está aí a

fazer? — Perguntou o português.— Estou a montar a

guarda — Respondeu a sentinela.— A quem está a

montar a guarda?

Page 624: O Tigre da Malásia

— Ao pirata preso esta manhã.— Tem cuidado para

que não fuja, amigo. É um homem perigoso.— Vou ter os olhos bem

abertos, milord.— Muito bem, rapaz.Saudou-o com a mão,

desceu a escada e saiu para a rua com um sorriso irónico nos lábios. O seu olhar fixou-se de imediato na colina que existia em frente, no

Page 625: O Tigre da Malásia

cimo da qual, entre o verde-escuro das plantas, sobressaía a massa esbranquiçada do fortim.— Ânimo, Eanes —

Murmurou. — Há muito que fazer.Atravessou com passo

tranquilo a cidade, invadida por uma multidão de soberbos daiaques, de horríveis malaios e de trançudos chineses que clamavam

Page 626: O Tigre da Malásia

em todos os tons, vendendo fruta, armas, roupas de todos os tipos e brinquedos de Cantão e tomou um caminho sombreado por altíssimos durion e por arecas, que levava ao fortim.A meio da encosta deu

com dois marinheiros ingleses que desciam à cidade, talvez para receberem ordem do rajá ou para se informarem se algum navio havia

Page 627: O Tigre da Malásia

deitado âncora na foz do rio.— Olá, amigos — Disse

Eanes, saudando-os. — O comandante Churchill está lá em cima?— Deixámo-lo a fumar à

porta do fortim — Disse um dos dois.— Obrigado, amigos.Pôs-se novamente a

caminho e depois de uma longa volta desembocou numa grande praça, no meio

Page 628: O Tigre da Malásia

da qual se elevava o fortim. À porta, apoiado a uma espingarda, estava um marinheiro, ocupado a mastigar um pedaço de tabaco e, a poucos passos, estendido no meio das ervas, fumava um tenente de marinha de alta estatura, com grandes bigodes ruivos. Eanes parou.— Olha! Um branco! —

Exclamou o tenente ao vê-lo.

Page 629: O Tigre da Malásia

— E que está à sua procura — Disse o português.— À minha procura?— Sim!— E o que deseja?— Tenho uma carta para

o tenente Churchill.— O tenente Churchill

sou eu, senhor — Disse o oficial, levantando-se e avançando para ele.Eanes tirou do bolso a

carta do rajá e estendeu-

Page 630: O Tigre da Malásia

a ao inglês que a abriu e a leu atentamente.— Estou às vossas

ordens, milord-disse, depois de a ler.— Vai-me deixar ver o

tugue?— Se quiser.— Acompanhe-me até

junto dele, então. Sempre desejei ver um desses terríveis estranguladores.O tenente meteu no

bolso o cachimbo e

Page 631: O Tigre da Malásia

entrou no fortim seguido por Eanes, que sorria de maneira estranha. Atravessaram um pequeno pátio, no meio do qual enferrujavam quatro velhos canhões de ferro e entraram no edifício construído com a robustíssima madeira de teca, capaz de resistir a uma bala de seis ou mesmo de oito libras.— Cá estamos, milord —

Disse Churchill, parando

Page 632: O Tigre da Malásia

diante de uma sólida porta aferrolhada. — O tugue está aqui dentro.— É manso ou feroz?— É manso como um

tigre domesticado — Disse o inglês, sorrindo.— Então não é preciso

entrarmos armados.— Nunca fez mal a

nenhum de nós, mas eu não entraria sem as minhas pistolas.Tirou os dois ferrolhos e

abriu com precaução a

Page 633: O Tigre da Malásia

porta, esticando o pescoço.— O tugue está a

dormitar — Disse. — Vamos entrar, milord.Eanes sentiu um

arrepio, já não porque tivesse medo do estrangulador, mas por temer que este o perdesse. Com efeito, o indiano podia rejeitar o bilhete e as pílulas e desvendar tudo ao tenente Churchill.

Page 634: O Tigre da Malásia

«Coragem e sangue-frio», murmurou, «não é o momento de recuar.»Passou a soleira da

porta e entrou. Encontrou-se numa cela algo pequena, com as paredes de madeira de teca, iluminada por uma janela com grades sólidas.A um canto, estendido

numa cama de folhas secas e envolvido num curto manto de tela,

Page 635: O Tigre da Malásia

estava o tugue Tremal-Naik, o patrão do indiano Kammamuri, o noivo da infeliz Ada.Era um indiano soberbo,

de cinco pés e seis polegadas de altura, cor de bronze. Tinha o peito largo e robusto, os braços e as pernas eram musculosos, as feições do rosto muito regulares. Eanes, que tinha visto chineses, malaios, javaneses, africanos,

Page 636: O Tigre da Malásia

indianos, bugueses, macaçareses, tagais, não se lembrava de ter encontrado um homem de cor tão belo e tão vigoroso. Apenas Sandokan podia superá-lo.Aquele homem dormia,

mas o seu sono não era tranquilo. O peito levantava-se com dificuldade, o seu rosto amplo e belo franzia-se, os lábios de um

Page 637: O Tigre da Malásia

vermelho vivo, ardente, fremiam e as suas mãos, pequenas como as de uma mulher, abriam-se e fechavam-se como se quisessem apertar alguma coisa e esmagá-la.— Bom homem — Disse

Eanes.— Silêncio, ele está a

falar — Murmurou o tenente.

Page 638: O Tigre da Malásia

Uma palavra saíra dos lábios do indiano, mas uma palavra de dor.— Minha! — Tinha

exclamado.O seu rosto, de repente,

ficou atormentado. Uma veia que lhe sulcava a testa engrossou de um momento para o outro.— Suyodhana —

Murmurou o indiano com um acento de ódio.— Tremal-Naik! — Disse

o tenente.

Page 639: O Tigre da Malásia

Ao ouvir esse nome, o indiano levantou-se com a rapidez de um tigre e fixou sobre o tenente um olhar que brilhava como o de uma serpente.— O que queres? —

Perguntou.— Um senhor quer ver-

te.O indiano olhou para

Eanes que estava uns passos atrás de Churchill. Um sorriso de desdém aflorou-lhe aos lábios,

Page 640: O Tigre da Malásia

deixando a descoberto os dentes brancos como marfim.— Sou por acaso uma

fera? — Perguntou. — Que...Parou e teve um

sobressalto. Eanes, que estava atrás do tenente, tinha-lhe feito um rápido sinal. Sem dúvida compreendera que estava diante de um amigo.

Page 641: O Tigre da Malásia

— Como é que estás aqui dentro? — Perguntou o português.— Como pode estar um

homem que nasceu e viveu livre na selva — Disse Tremal-Naik com voz triste.— É verdade que és um

tugue?— Não.— Mas estrangulaste

pessoas.— É verdade, mas não

sou um tugue.

Page 642: O Tigre da Malásia

— Tu mentes.Tremal-Naik levantou-se

rangendo os dentes e com os olhos deitando chamas, mas um novo gesto do português acalmou-o.— Se me deixasses

levantar o manto, mostrava-te a tatuagem que distingue os tugues.— Levanta-o — Disse

Tremal-Naik.

Page 643: O Tigre da Malásia

— Não se aproxime, milord! — Exclamou o tenente.— Não tenho qualquer

arma — Disse o indiano. — Se levantar o braço, descarrega-me no peito as tuas pistolas.Eanes aproximou-se da

cama de folhas e curvou-se sobre o indiano.— Kammamuri —

Murmurou em voz muito baixa.

Page 644: O Tigre da Malásia

Uma rápida luz brilhou nos olhos do indiano. Com um gesto levantou o manto e recolheu o bilhete contendo as pílulas que o português havia deixado cair.— Viu a tatuagem? —

Perguntou o tenente que tinha, por precaução, uma pistola armada.— Não tem — Disse

Eanes, erguendo-se.— Então não é um

tugue?

Page 645: O Tigre da Malásia

— Quem pode dizê-lo? Os tugues têm tatuagens em várias partes do corpo.— Não tenho — Disse

Tremal-Naik.— Há quanto tempo se

encontra aqui, tenente? — Perguntou Eanes.— Há dois meses,

milord.— Para onde o vão

conduzir?

Page 646: O Tigre da Malásia

— Para uma penitenciária da Austrália.— Pobre diabo!

Podemos sair, tenente.O marinheiro abriu a

porta. Eanes aproveitou para se virar para trás e fazer a Tremal-Naik mais um gesto que significava «obedeça».— Quereis visitar o

fortim? — Perguntou o tenente, depois de fechar e aferrolhar a porta.

Page 647: O Tigre da Malásia

— Parece-me não ter nada de atraente — Respondeu Eanes. — Até à vista no palácio do rajá, senhor.— Até à vista, milord.

VIIA LIBERTAÇÃO DE

KAMMAMURIEnquanto Eanes, agindo

com astúcia, preparava a salvação de Tremal-Naik, o pobre Kammamuri,

Page 648: O Tigre da Malásia

dominado por mil terrores e mil angústias esforçava-se por sair da prisão. Não tinha medo de ser enforcado ou fuzilado como um vulgar pirata; tinha medo de ser submetido a um suplício horrível e de confessar tudo, comprometendo de uma só vez a vida do seu patrão, da infeliz Ada, do Tigre da Malásia, de Eanes e de todos os

Page 649: O Tigre da Malásia

intrépidos piratas de Mompracem.Acabado de ser preso

tinha tentado saltar pelas janelas, mas tinha-as encontrado defendidas por solidíssimas barras de ferro impossíveis de romper sem uma poderosa lima ou uma maça; depois tentara fazer um buraco no chão esperando cair num quarto desabitado, mas depois de ter partido as

Page 650: O Tigre da Malásia

unhas fora obrigado a renunciar. Por último, tentara estrangular o indiano que lhe havia levado a comida, mas quando estava prestes a consegui-lo, tinham acorrido mais indianos para libertar o companheiro.Convencido da

inutilidade dos seus esforços, tinha-se enrolado num canto do quarto, resolvido a

Page 651: O Tigre da Malásia

morrer de fome em vez de provar um alimento que podia conter um narcótico misterioso; resolvido também a deixar que lhe rasgassem as carnes pedaço a pedaço em vez de pronunciar uma só palavra.Tinham passado dez

horas sem que se mexesse. O sol já se tinha posto, as trevas haviam invadido o

Page 652: O Tigre da Malásia

quarto, quando um sibilar em lamento, seguido por um ligeiro golpe, feriu as suas orelhas. Levantou-se sem fazer barulho, deitando em volta um olhar interrogador e ficou de ouvido à escuta. Não ouviu mais nada a não ser gritos roucos dos daiaques e dos malaios que passavam na praça.Aproximou-se

silenciosamente da

Page 653: O Tigre da Malásia

janela e olhou através das barras de feno. Ali, perto de uma gigantesca planta sacarífera, que estendia a sua sombra sobre uma boa parte da praça, estava um homem com um grande chapéu na cabeça e uma espécie de bordão na mão. Conheceu-o à primeira vista.— Patrão Eanes —

Murmurou.

Page 654: O Tigre da Malásia

Deixou a janela e caminhou até à parede em frente. Observou-a atentamente, depois dobrou-se e apanhou uma espécie de flecha em cuja extremidade estava pendurada uma bola de papel.— Aqui dentro está a

salvação — Murmurou. — Ao que parece, o patrão Eanes sabe usar a zarabatana.

Page 655: O Tigre da Malásia

Desdobrou o papel e tirou duas pílulas pretas que estavam no meio, pequeníssimas, e que exalavam um cheiro especial.— Veneno ou narcótico?

— Interrogou-se. — Ah! O papel está escrito.Aproximou-se da janela

e leu atentamente as seguintes linhas: «Tudo corre da melhor

maneira. Tremal-Naik, se não acontecer nenhum

Page 656: O Tigre da Malásia

acidente imprevisto, amanhã estarás livre. As pílulas que te mando aqui, dissolvidas em água, adormecem instantaneamente. Procura a maneira de adormecer o guarda e de fugir. Amanhã, ao meio-dia, espero-te perto do fortim.Eanes.» «Bom Eanes»,

murmurou o marata,

Page 657: O Tigre da Malásia

comovido. «Pensa em tudo.»Encostou-se às grades

da janela e pôs-se a meditar. Um ligeiro toque na porta afastou-o dos seus pensamentos.— Ei-lo — Disse.Aproximou-se

rapidamente, mas sem fazer barulho, de uma mesa em cima da qual havia, além de uma terrina de arroz e de vários frutos, duas

Page 658: O Tigre da Malásia

grandes taças de tuwakonde deitou uma das duas pílulas que instantaneamente se dissolveu.— Quem está aí? —

Perguntou depois.— Guarda do rajá —

Disse uma voz.Aporta abriu-se e um

indiano armado de uma larga cimitarra e de uma longa pistola com a coronha embutida de madrepérola, entrou com

Page 659: O Tigre da Malásia

precaução. Numa mão tinha uma lanterna de talco, semelhante à que usam os chineses, e na outra um cesto cheio de provisões.— Não tens fome? —

Perguntou o guarda, vendo as taças cheias, os frutos intactos e a terrina ainda repleta.O marata em vez de

responder deitou-lhe um olhar turvo.

Page 660: O Tigre da Malásia

— Coragem, amigo — Continuou o guarda. — O rajá é bom e não te enforcará.— Mas vai envenenar-

me — Disse Kammamuri com falso terror.— De que maneira?— Com a comida e com

a bebida que aqui vês.— É por isso que não

provaste nada?— Claro.— Fazes mal, meu

amigo.

Page 661: O Tigre da Malásia

— Porquê?— Porque nem o tutwak,

nem o arroz, nem a fruta contêm veneno algum.— Tu bebias uma taça

desse licor?— Se quiseres!Kammamuri agarrou na

taça dentro da qual tinha dissolvido as pílulas do português e estendeu-a ao guarda.— Bebe — Disse.O indiano, que não

suspeitava de nada,

Page 662: O Tigre da Malásia

chegou a taça aos lábios e bebeu uma boa parte do conteúdo.— Mas... — Disse,

hesitando. — O que é que meteram neste tuwak?— Não sei — Disse o

marata que o olhava atentamente.— Um estranho tremor

agita os meus... Membros.— Ah...

Page 663: O Tigre da Malásia

— Olha! A minha cabeça anda à roda, faltam-me as forças, não estou a ver bem, parece-me...Não acabou. Cambaleou

como se estivesse ferido em pleno peito, levantou as mãos, esbugalhou os olhos e caiu no chão imóvel.Kammamuri precipitou-

se para ele e tirou-lhe a pistola e a cimitarra.Assim armado

aproximou-se da porta e

Page 664: O Tigre da Malásia

ouviu atentamente. Temia que o estrondo causado pelo indiano ao cair atraísse outros guardas. Felizmente nenhum passo se fez ouvir no corredor.— Estou salvo — Disse,

respirando. — Dentro de dez minutos estarei fora da cidade.Tirou os calções curtos,

o casaco e a faixa que o indiano envergava e num ápice vestiu-se. Enrolou

Page 665: O Tigre da Malásia

à volta da cabeça um lenço de maneira a esconder boa parte do rosto e um pouco dos olhos, depois agarrou na cimitarra e pôs a pistola à cintura. «Em frente»,

murmurou. «Passarei por um guarda do rajá.»Abriu, sem fazer

barulho, a porta, percorreu o corredor que estava deserto e escuríssimo, desceu a

Page 666: O Tigre da Malásia

escada e, passando rapidamente diante da sentinela, saiu para a praça.— És tu, Labuk? —

Perguntou uma voz.— Sim — Respondeu

Kammamuri, sem se virar para trás com medo de ser reconhecido por quem o interrogava.— Que Xiva te proteja.— Obrigado, amigo.O marata com passo

rápido, de olhos no

Page 667: O Tigre da Malásia

guarda, de ouvidos alerta, avançava encostado aos muros das casas, escondendo-se, sempre que no fundo da ruas e vielas avistava alguém que se parecesse com um guarda do rajá.Depois de dez bons

minutos chegava aos pés de uma colina no topo da qual, iluminado pela lua, brilhava o fortim. Parou e ficou à escuta.

Page 668: O Tigre da Malásia

Na direcção do rio ouviam-se os sons agudos do yo, espécie de flauta com seis buracos, e o doce tremeluzir do kine, espécie de guitarra com cordas de seda.Na direcção da praça,

onde se erguia o palácio do rajá, nada se ouvia. «Estou salvo»,

murmurou, depois de alguns instantes de atenção angustiada.

Page 669: O Tigre da Malásia

«Ainda não deram pela minha fuga.»Enfiou-se pelos bosques

de mangostões altís-simos, de mangueiras de belíssimo aspecto.Ora saltando de uma

árvore para outra com a agilidade de um macaco para fazer perder o rasto, ora entrando nos charcos de negras e pútridas águas com o mesmo objectivo, e ora atravessando arbustos,

Page 670: O Tigre da Malásia

em menos de uma hora chegou, sem ser descoberto por ninguém, ao fortim.Subiu a uma árvore

altíssima de onde podia ver quem subia e quem descia a colina, e esperou a chegada do português.A noite passou sem

incidentes. Às quatro da manhã o sol surgiu no horizonte, iluminando de uma só vez o rio que

Page 671: O Tigre da Malásia

desaparecia por entre campos férteis e bosques densos, a cidadela e as plantações circundantes.Do alto do seu

observatório o marata viu, algumas horas depois, dois brancos saírem do fortim e lançarem-se a toda a velocidade pelo caminho abaixo.Um dos dois tinha

galões nas mangas do casaco.

Page 672: O Tigre da Malásia

«O que é que se passa?», murmurou Kammamuri. «Para se porem a correr daquela maneira, deve ter acontecido qualquer coisa muito séria no fortim. Será que os da cidade alertaram estes homens acerca da minha fuga?»Agachou-se no meio das

folhas, para não ser visto por quem passava no

Page 673: O Tigre da Malásia

caminho, e esperou ansioso.Uma hora depois os

ingleses regressavam ao fortim, seguidos por um oficial da guarda e por um europeu vestido de tecido branco, que trazia uma caixinha preta pendurada à cintura. «Será um médico?»,

perguntou a si próprio Kammamuri, ficando cinéreo, que é o mesmo que dizer pálido. «Será

Page 674: O Tigre da Malásia

que alguém ficou doente? Se calhar está lá dentro o meu patrão! Senhor Eanes, venha depressa!»Deixou-se escorregar

até ao chão e rastejou na direcção do caminho, resolvido a interrogar alguém. Felizmente bateram as doze horas, depois uma, duas, três, sem que nenhum marinheiro ou guarda passasse por ali.

Page 675: O Tigre da Malásia

Cerca das cinco, um homem com um grande chapéu de palha e um par de pistolas à cintura, surgiu numa curva do caminho. Kammamuri reconheceu-o logo.— Patrão Eanes! —

Exclamou.O português que subia

com passo lento, olhou atentamente à direita e à esquerda como se pro-curasse alguém, parou ao ouvir aquele

Page 676: O Tigre da Malásia

chamamento. Ao avistar Kammamuri apressou o passo e ao chegar perto dele, empurrou-o para dentro de um grande arbusto, dizendo-lhe:— Se algum guarda te

visse estavas despachado e desta vez para sempre; temos de ser prudentes, meu caro.— Aconteceu qualquer

coisa de grave no fortim, patrão Eanes — Disse o marata. — Passou-me

Page 677: O Tigre da Malásia

uma suspeita pela mente e deixei o meu esconderijo.— Uma suspeita! Qual?— Que o meu patrão

esteja fechado lá dentro e esteja moribundo. Vi um branco ir lá para cima e pareceu-me um médico.— Foi mesmo o teu

patrão que pôs em movimento os soldados do fortim.

Page 678: O Tigre da Malásia

— O meu patrão! Então o meu patrão está lá em cima?— Sim, meu caro.— E está mal?— Está morto.— Morto! — Exclamou o

marata, vacilando.— Não te assustes.

Pensam que ele está morto, mas está vivo.— Ah! Patrão Eanes, que

susto me pregou! Deu-lhe algum narcótico para ele beber?

Page 679: O Tigre da Malásia

— Dei-lhe umas pílulas que suspendem a vida durante trinta e seis horas.— E pensam que ele

está morto?— Fulminado.— E como é que o

vamos salvar?— Esta noite vão

sepultá-lo.— Compreendo — Disse

o marata. — Depois de sepultado, nós vamos

Page 680: O Tigre da Malásia

desenterrá-lo e levá-lo para um lugar seguro.— Adivinhaste, meu

caro.— Mas para onde o vão

levar?— Havemos de sabê-lo.— De que maneira?— Quando saírem do

forte nós seguimo-los.— E quando daremos o

golpe?— Esta noite.— Nós os dois.— Tu e Sandokan.

Page 681: O Tigre da Malásia

— Tenho então de o avisar.— Certamente.— E o senhor não vem

connosco?— Não posso.— Não pode?— Não.— E pode-se saber

porquê?— O rajá esta noite dá

um baile em honra do embaixador holandês e não posso faltar sem lançar suspeitas.

Page 682: O Tigre da Malásia

— Ah! — Exclamou o marata, erguendo vivamente a cabeça na direcção do fortim.— O que tens?— Estão a sair homens

do forte.— Por Júpiter!Dois marinheiros tinham

saído transportando numa espécie de maca um corpo fechado numa espécie de rede. Atrás deles saíram outros dois marinheiros armados de

Page 683: O Tigre da Malásia

enxadas e de picaretas e um guarda do rajá.— Preparemo-nos para

partir — Disse Eanes.— Que caminho hei-de

tomar? — Perguntou Kammamuri, com viva ansiedade.— Descem o monte pelo

lado oposto.— Vão enterrá-lo no

cemitério!— Não sei. Vamos dar a

volta ao bosque, mas

Page 684: O Tigre da Malásia

cuidado para não fazer barulho.Saíram dos arbustos e

saltando troncos abatidos, furando arbustos emaranhados e cortando longas raízes, deram a volta ao forte e encontraram-se na vertente oposta. Eanes parou.— Onde estão? —

Perguntou a si próprio.— Estão ali em baixo —

Disse o marata.

Page 685: O Tigre da Malásia

O grupo estava de facto visível. Descia por um caminho muito estreito que conduzia a uma pequena pradaria rodeada de soberbas árvores. No meio, circundado por uma baixa paliçada, havia um espaço eriçado de pedras e de tabuletas de madeira.— Aquilo deve ser o

cemitério — Disse Eanes.

Page 686: O Tigre da Malásia

— Dirigem-se para ali? — Perguntou Kammamuri.— Sim.— Posso respirar, patrão

Eanes. Temia que atirassem o meu pobre patrão ao rio.— Também eu tive esse

pensamento.— Vamos descer?— É inútil. A terra

removida de fresco há-de indicar onde o sepultaram.

Page 687: O Tigre da Malásia

— Tenho de partir?— Espera um momento.Os marinheiros tinham

entrado no cemitério e parado no meio, depondo na terra Tremal-Naik. Eanes viu-os ainda andar por ali alguns instantes como se procurassem alguma coisa, depois um deles levantou a enxada e começou a cavar.— É ali que o vão

enterrar — Disse o português ao marata.

Page 688: O Tigre da Malásia

— Há perigo de o meu patrão morrer asfixiado? — Perguntou Kammamuri.— Não, meu amigo.

Agora vai já a correr ter com Sandokan, manda-o reunir a tropa dele, vir aqui e desenterrar o teu patrão.— E depois?— Depois voltam para o

bosque e eu irei ter convosco. Amanhã à noite poderemos deixar

Page 689: O Tigre da Malásia

estes lugares para sempre. Vai, amigo, vai.O marata não esperou

que lho dissessem duas vezes. Empunhou a pistola e desapareceu por entre as árvores com rapidez.

VIIIEANES NA ARMADILHA

Quando, cerca das 10 horas da noite, Eanes regressou a Sarawak, ficou surpreendido pelo

Page 690: O Tigre da Malásia

extraordinário movimento que reinava em todos os bairros. Pelas ruas e pelas vielas passavam e tornavam a passar a correr chineses em roupa de festa, daiaques, malaios, macaçareses, bugueses, javaneses e tagais, gritando, rindo e dirigindo-se todos para o largo onde se erguia a habitação do rajá. Tinham sentido a festa

Page 691: O Tigre da Malásia

que o seu príncipe ia dar e acorriam em massa, certos de que se divertiriam muito e que beberiam bem mesmo ficando na praça.Abrindo caminho com os

cotovelos e muitas vezes com os punhos, ao fim de uns bons cinco minutos chegava à praça. Numerosas tochas resinosas ardiam aqui e ali iluminando as casas, as altas e belíssimas

Page 692: O Tigre da Malásia

árvores e o palacete do rajá que estava rodeado por uma dupla fileira de guardas bem armados.Uma multidão

considerável, em parte alegre e em parte embriagada, aglomerava-se naquele espaço, dando gritos de alegria. Os cidadãos de Sarawak, ouvindo a orquestra que tocava nos quartos do palacete, dançavam alegremente

Page 693: O Tigre da Malásia

embatendo contra as casas e contra as árvores e batendo e quebrando as filas dos guardas que eram obrigados a pôr as armas em riste. «Chegamos um pouco

atrasados», disse Eanes, rindo. «O Príncipe deve estar preocupado com a minha prolongada ausência.»Fez-se reconhecer pelos

guardas, subiu as escadas e entrou no

Page 694: O Tigre da Malásia

quarto para se arranjar e para largar as armas.— Estão-se a divertir? —

Perguntou ao indiano que o rajá tinha posto à sua disposição.— Muito, milord—

Respondeu o interpelado.— Quem são os

convidados?— Europeus, malaios,

daiaques e chineses.— E, portanto, uma

mistura. Não deve ser preciso vestir o fato

Page 695: O Tigre da Malásia

preto que de resto não tenho.Escovou a roupa, largou

as armas enfiando, contudo, uma pequena pistola numa sacola e dirigiu-se para o salão de baile, parando à porta com a mais viva surpresa estampada no rosto.A sala não era vasta,

mas o rajá tinha mandado decorá-la com um certo gosto.

Page 696: O Tigre da Malásia

Numerosas lâmpadas de bronze, de proveniência europeia, pendiam do tecto dando uma luz muito forte; grandes espelhos adornavam as paredes, esteiras daiaques pintadas com cores vivas cobriam o chão e sobre as mesas sobressaíam grandes vasos de porcelana da China contendo peónias de um vermelho vivíssimo e grandes

Page 697: O Tigre da Malásia

magnólias que perfuma-vam o ambiente.Os convidados não eram

mais de cinquenta, mas quantos trajes e quantos tipos diferentes! Havia quatro europeus todos vestidos de tecido branco, uns quinze chineses vestidos de seda, dez ou doze malaios de tez verde com longas samarras indianas, cinco ou seis chefes daiaques com as

Page 698: O Tigre da Malásia

suas mulheres, mais nus do que vestidos, mas adornados com centenas de pulseiras e colares de dentes de tigre. Os outros eram macaçareses, bugueses, tagais, javaneses que se agitavam como obcecados e que vociferavam como se estivessem furibundos sempre que a orquestra chinesa entoava uma

Page 699: O Tigre da Malásia

marcha impossível de dançar. «Mas que festa é

esta?», perguntou a si próprio Eanes, rindo. «Se uma das nossas senhoras da Europa a visse deixaria do pé para a mão S. A. Brooke e a sua diabólica orquestra.»Entrou na sala e dirigiu-

se ao rajá, o único que vestia um fato preto e que estava conversando com um chinês gordo,

Page 700: O Tigre da Malásia

sem dúvida um dos principais comerciantes da cidade.— Divertem-se aqui —

Disse.— Ah! — Exclamou o

rajá virando-se para ele. — Está aqui, milord? Estava á sua espera há duas horas.— Dei um passeio até ao

fortim e no regresso perdi o caminho.— Assistiu ao funeral do

prisioneiro?

Page 701: O Tigre da Malásia

— Não, Alteza. As cerimónias lúgubres não são muito do meu gosto.— Agrada-lhe esta

festa?— Há um pouco de

confusão, parece-me.— Meu caro, estamos

em Sarawak. Os chineses, os malaios e os daiaques não sabem fazer melhor. Pegue numa daiaque e dê uma volta.

Page 702: O Tigre da Malásia

— Com esta música é impossível, Alteza.— Concordo — Disse o

rajá, rindo.Nesse instante ecoou à

porta um grito que abafou a confusão que reinava na sala.O rajá virou-se

bruscamente e tal como ele também se virou Eanes. Tiveram apenas tempo de ver um indivíduo vestido de branco, com uma longa

Page 703: O Tigre da Malásia

barba cinzenta, que prontamente se afastou.— O que é que se

passa? — Perguntou o rajá.Algumas pessoas

dirigiram-se para a porta mas voltaram para trás quase de imediato.— Espere-me aqui,

milord — Disse o rajá.Eanes não respondeu,

nem se mexeu. Aquele grito, quê talvez não fosse a primeira vez que

Page 704: O Tigre da Malásia

ouvia, tinha calado profundamente a sua alma. Uma ligeira palidez cobriu de imediato o seu rosto, e as suas feições, geralmente tão calmas, alteraram-se por instantes.— Aquele grito! —

Murmurou finalmente. — Onde já o ouvi? Será que vai acontecer uma catástrofe agora que conseguimos trazer o navio a bom porto?

Page 705: O Tigre da Malásia

Meteu uma mão no bolso das calças e silen-ciosamente armou a pistola, resolvido a utilizá-la se fosse necessário.Nesse momento o rajá

regressou. Eanes viu de imediato que uma ruga lhe sulcava a testa. Estremeceu e ficou inquieto.— Então, Alteza? —

Perguntou, fazendo um esforço extraordinário

Page 706: O Tigre da Malásia

para parecer calmo. — O que é que aconteceu?— Nada milord —

Respondeu o rajá pacatamente.— Mas aquele grito? —

Insistiu Eanes.— Foi dado por um

amigo meu.— Por que motivo?— Porque foi apanhado

por uma súbita indispo-sição.— Mas?— Que quer dizer?

Page 707: O Tigre da Malásia

— Aquele grito não era de dor.— Está enganado,

milord. Vamos, pegue numa daiaque e, se for possível, dance uma polca.O rajá afastou-se,

pondo-se a conversar com um dos convidados. Eanes por seu lado ficou ali, seguindo-o com um olhar inquieto.— Aqui há qualquer

coisa — Murmurou. —

Page 708: O Tigre da Malásia

Põe-te em guarda, Eanes.Fingiu afastar-se indo,

ao contrário, sentar-se atrás de um grupo de malaios. Dali viu o rajá virar-se para trás e olhar em volta como se procurasse alguém. Eanes voltou a estremecer.— Está à minha procura

— Disse. — Pois bem, meu caro Brooke, vou pregar-te uma partida

Page 709: O Tigre da Malásia

antes que tu me pregues uma a mim.Levantou-se

demonstrando a maior calma, deu duas ou três voltas à sala, depois parou a dois passos da porta. Ali estava um criado do rajá. Fez-lhe sinal para que se aproximasse.— Quem era o homem

que há pouco gritou? — Perguntou.

Page 710: O Tigre da Malásia

— Um amigo do rajá — Respondeu o indiano.— O nome dele?— Ignoro-o, milord.— Onde está ele agora?— No gabinete do rajá.— Está doente?— Não sei.— Posso ir visitá-lo?— Não, milord. Duas

sentinelas estão de vigia à porta do gabinete com ordem para não deixar passar ninguém.

Page 711: O Tigre da Malásia

— E conheces aquele homem?— De nome não.— É um inglês?— Sim.— Há quanto tempo

está em Sarawak?O indiano pensou alguns

instantes coçando a testa.— Chegou logo a seguir

ao combate que teve lugar na foz do rio — Disse depois.

Page 712: O Tigre da Malásia

— Contra o Tigre da Malásia?— Sim.— É inimigo do Tigre?— Sim, porque o

procurou nos bosques.— Obrigado, amigo —

Disse Eanes metendo-lhe uma rupia na mão.Abandonou a sala e

dirigiu-se ao quarto. Estava pálido e pensativo.Assim que entrou fechou

bem a porta, tirou da

Page 713: O Tigre da Malásia

parede um par de pistolas e um kriss com a ponta envenenada, depois abriu a janela curvando-se sobre o parapeito.Uma dupla fila de

indianos armados de espingardas rodeavam a habitação. Mais além, duzentas ou trezentas pessoas dançavam desordenadamente, emitindo gritos selvagens.

Page 714: O Tigre da Malásia

— A fuga por aqui é impossível — Disse Eanes. — Mas tenho de deixar este palácio o mais depressa possível. Sinto que está próximo um grande perigo e que... — Parou repentinamente, colhido por uma suspeita que lhe passara pela mente. «Aquele grito...»,

murmurou, voltando a empalidecer. «Sim, deve ter sido ele a emiti-lo...

Page 715: O Tigre da Malásia

Sim, ele, Lord Guillonk, o nosso inimigo... Sim, lembro-me que Sambigliong disse que o tinha visto à cabeça de um bando de daiaques, lá, na floresta onde se esconde Sandokan... É ele, sim, é ele!»Precipitou-se para a

mesa e empunhou as pistolas, dizendo:— Eanes não matará o

tio de Mariana Guillonk,

Page 716: O Tigre da Malásia

mas defenderá a própria vida.Aproximou-se da porta e

tirou o trinco, mas não foi capaz de a abrir. Apoiou o ombro contra ela e fez força, mas sem êxito. Uma surda exclamação irrompeu-lhe dos lábios.— Fecharam-me aqui

dentro — Disse. — Estou perdido.Procurou outra saída,

mas havia apenas duas

Page 717: O Tigre da Malásia

janelas e debaixo delas estavam os guardas do rajá e mais além a multidão.— Maldita seja esta

festa! — Exclamou com raiva.Nesse instante ouviu

bater à porta. Levantou as pistolas, gritando:— Quem é?— James Brooke —

Respondeu o rajá do lado de fora.— Só ou acompanhado?

Page 718: O Tigre da Malásia

— Só, milord, e sem armas.— Entrai, Alteza — Disse

Eanes com um acento irónico.Pôs as pistolas à cintura,

cruzou os braços sobre o peito e, de cabeça erguida, com o olhar calmo esperou o aparecimento do formidável adversário.

IXLORD JAMES GUILLONK

Page 719: O Tigre da Malásia

O rajá entrou.Estava sozinho, sem

armas e ainda vestido de preto. Mas já não era o homem calmo e sorridente de antes. Estava pálido, não pelo medo, mas pela cólera; tinha a testa franzida, o olhar cintilante, um sorriso irónico, que magoava ao vê-lo nos seus lábios. Já não era o príncipe de Sarawak; era o exterminador de

Page 720: O Tigre da Malásia

piratas que se preparava para aniquilar um dos mais poderosos chefes da pirataria malaia.Durante alguns

instantes permaneceu imóvel à porta, dardejando sobre Eanes um olhar agudo como a ponta de uma espada, depois deu três passos no quarto. A porta foi de imediato fechada atrás dele.

Page 721: O Tigre da Malásia

— Senhor — Disse com tom duro.— Alteza — Respondeu

Eanes num tom igual.— Se não me engano, já

percebeu o objectivo da minha visita.— Sim, Alteza.

Acomodai-vos.O rajá sentou-se numa

cadeira; Eanes, pelo contrário, apoiou-se à escrivaninha sobre a qual o kríss estava à mão.

Page 722: O Tigre da Malásia

— Senhor — Retomou o rajá com voz tranquila. — Sabe como me chamam em Sarawak?— James Brooke.— Não, chamam-me o

exterminador dos piratas.Eanes fez uma vénia,

sorrindo.— Mau nome, Alteza. —

Disse.— Agora que sabeis

quem é James Brooke, rajá de Sarawak, tiremos

Page 723: O Tigre da Malásia

a máscara e conversemos.— Vamos a isso, Alteza.— Se eu chegasse a

Mompracem...— Ah! — Exclamou

Eanes. — Sabe...— Deixe-me acabar,

senhor. Se eu, repito, chegasse a Mompracem e pedisse hospitalidade ao Tigre da Malásia ou ao seu braço-direito, e eles depois viessem a saber que sou um dos seus

Page 724: O Tigre da Malásia

maiores inimigos, o que fariam comigo?— Por Deus! Se se

tratasse de James Brooke, o Tigre da Malásia ou o seu braço-direito não hesitariam em passar-lhe uma corda pelo pescoço.— Pois bem, senhor

Eanes de Gomera...— Senhor Eanes! —

Interrompeu-o o português. — Quem vos

Page 725: O Tigre da Malásia

disse que sou Eanes de Gomera?— Um homem que já

teve de se haver consigo.— Então fui traído?— Quer dizer que foi

descoberto.— O nome desse

homem, James Brooke! — Gritou Eanes, dando um passo na direcção do rajá. — Eu quero saber!— E se eu me recusasse

a dizê-lo?— Obrigá-lo-ia.

Page 726: O Tigre da Malásia

O rajá deu uma gargalhada.— Ameaça-me — Disse

— E não pensa que atrás daquela porta dez homens armados até aos dentes esperam uma palavra minha para entrar e lançarem-se sobre si. Contudo, vou dar-vos essa satisfação.Bateu as mãos três

vezes. A porta abriu-se e um velho de estatura alta, ainda robusto, com

Page 727: O Tigre da Malásia

o rosto bronzeado pelo sol dos trópicos e uma longa barba branca, entrou em passos lentos. Eanes não conseguiu sufocar um grito.Reconhecera de

imediato aquele homem. Era Lord James Guillonk, o tio da defunta mulher do Tigre da Malásia, o inimigo que havia jurado enforcar os dois chefes da pirataria. Era, enfim, o mesmo homem que o

Page 728: O Tigre da Malásia

pirata Sambigliong tinha visto na floresta à cabeça de uma companhia de daiaques.— Reconhece-me, Eanes

de Gomera? — Perguntou ele com voz surda.— Sim, milord —

Respondeu o português, prontamente refeito do espanto.— Uma voz dizia-me que

um dia encontraria os raptores da minha

Page 729: O Tigre da Malásia

sobrinha Mariana e vejo que não me enganei.— Disse raptores,

milord? Lady Mariana só foi raptada com o consentimento dela. Ela amava o Tigre da Malásia, não o abominava.— Pouco me importa

saber se ela amava ou odiava o pirata. Foi raptada a Lord James Guillonk, seu tio, e isso basta-me. Eanes de

Page 730: O Tigre da Malásia

Gomera, procurei-o durante vários anos. Sabe porquê?— Ignoro-o, milord.— Para me vingar.— Disse que Lady

Mariana não foi raptada. De quem, pois, se quer vingar?— Do mal que me fez ao

privar-me da única parente que tinha, das humilhações sofridas e do mal que fez á minha pátria. Responda-me

Page 731: O Tigre da Malásia

agora: onde está a minha sobrinha? É verdade que morreu?— A sua sobrinha, ou

melhor a mulher do Tigre da Malásia, repousa no cemitério de Batávia, milord. — Disse Eanes com voz triste.— Morta pelo seu

infame raptor.— Não, milord. Pela

cólera. E se o ignora, dir-vos-ei que Sandokan, o sanguinário pirata de

Page 732: O Tigre da Malásia

Mompracem, chora e chorará por muitos anos ainda Lady Mariana Guillonk.— Sandokan! —

Exclamou o lorde com um ódio intraduzível. — Onde está esse homem?— O seu sobrinho,

milord, encontra-se num lugar seguro no território do rajá de Sarawak.— O que faz ele aqui?— Veio salvar um

homem injustamente

Page 733: O Tigre da Malásia

condenado que ama Ada Corishant, sua parente.— Tu mentes — Gritou o

lorde.— Quem é esse

condenado? — Perguntou o rajá, pondo-se de pé.— Não posso dizer —

Respondeu Eanes.— Lord Guillonk — Disse

o rajá. — Tem algum parente com o nome Corishant?— A mãe da minha

sobrinha Mariana tinha

Page 734: O Tigre da Malásia

um irmão chamado Harry Corishant.— Onde vivia esse Harry

Corishant?— Na Indira.— Ainda está vivo?— Disseram-me que

morreu.— Tinha uma filha

chamada Ada?— Sim, mas foi-lhe

raptada pelos tugues indianos e nunca mais se ouviu falar dela.

Page 735: O Tigre da Malásia

— Pensa que ainda possa estar viva?— Não creio.— Então...— Este pirata está-nos a

enganar.— Milord — Disse o

português, levantando a cabeça e olhando-o nos olhos. — Se eu jurasse sobre a minha honra que o que disse é verdade, acreditava em mim?

Page 736: O Tigre da Malásia

— Um pirata não tem honra — Disse com desprezo Lord Guillonk.Eanes empalideceu e a

sua mão correu para a coronha de uma pistola.— Milord — Disse com

voz grave. — Se na minha frente não estivesse o tio da defunta Lady Mariana, a esta hora teria cometido um homicídio. É a quarta vez que lhe dou a vida, não o esqueça.

Page 737: O Tigre da Malásia

— Pois bem, fale. Talvez conceda algum crédito às suas palavras.— Repito o que lhe disse

há pouco. O Tigre da Malásia está aqui para salvar um homem injustamente condenado que ama Ada Corishant, sua parente.— Diga-me o nome

desse homem e o lugar onde se encontra Ada Corishant.

Page 738: O Tigre da Malásia

— Ada Corishant está com o Tigre da Malásia.— Onde?— Não o posso dizer,

agora.— Porquê?— Porque seria capaz de

cair sobre Sandokan e de o fazer prisioneiro ou de o matar. Prometa que o deixais partir em liberdade para a sua ilha e eu digo-lhe onde ele se encontra e o que está a fazer neste momento.

Page 739: O Tigre da Malásia

— Essa promessa não sairá nunca dos meus lábios — Disse o rajá, intervindo. — É altura de o Tigre da Malásia desaparecer para sempre destes mares que ensanguentou durante tantos anos.— Nem dos meus —

Disse Lord Guillonk. — Há cinco anos que espero a vingança.— Pois bem, senhores,

mandai chicotear-me,

Page 740: O Tigre da Malásia

mandai assar-me em lume brando, fazei-me sofrer mil tormentos, da boca de Eanes de Gomera não sairá nem mais uma palavra.Enquanto Eanes falava

assim, dois indianos tinham entrado pela janela e tinham-se aproximado silenciosamente da escrivaninha. Pareciam esperar apenas um sinal para se lançarem.

Page 741: O Tigre da Malásia

— Então? — Disse o rajá, depois de fazer um rápido sinal aos seus homens. — Então não falará?— Não, Alteza —

Respondeu Eanes com firmeza.— Pois bem, senhor, eu,

James Brooke, rajá de Sarawak, prendo-o!A essas palavras os dois

indianos lançaram-se sobre o português, que não se havia apercebido

Page 742: O Tigre da Malásia

da sua entrada, e deitaram-no ao chão arrancando-lhe as pistolas.— Miseráveis! — Gritou

o prisioneiro.Com um esforço

hercúleo, deitou-os por terra, mas outros indianos entraram no quarto e, mais depressa do que leva a contá-lo, prenderam-no e amordaçaram-no.

Page 743: O Tigre da Malásia

— Temos de o matar? — Perguntou o chefe daqueles homens, desembainhando o seu kriss.— Não — Disse o rajá —

Este homem tem de nos fazer uma revelação.— Falará? — Perguntou

Lord Guillonk.— De imediato, milord—

Respondeu Brooke.Fez sinal a um indiano

que saiu; pouco depois regressava trazendo

Page 744: O Tigre da Malásia

numa bandeja de prata uma taça cheia de uma água esverdeada.— O que é essa bebida?

— Perguntou o lorde.— Uma limonada —

Disse o rajá.— Para quê?— Vai fazer falar o

prisioneiro.— Duvido, rajá Brooke.— Verá.— Misturou-lhe um

veneno?

Page 745: O Tigre da Malásia

— Um pouco de ópio e algumas gotas de youma.— É uma bebida

indiana?— Sim, milord.A um sinal, dois indianos

tiraram a Eanes a mordaça, abriram-lhe a boca à força e fizeram-no engolir a limonada.— Atenção, milord —

Disse o rajá. — Em breve saberemos onde se

Page 746: O Tigre da Malásia

esconde o Tigre da Malásia.O prisioneiro fora

novamente amordaçado apesar das mordidelas e dos violentos safanões, para que não incomodasse os convidados, que continuavam a dançar e a beber na sala vizinha, com os seus gritos.Passados cinco minutos,

o seu rosto, pálido pela raiva, começou a ganhar

Page 747: O Tigre da Malásia

cor e os seus olhos a resplandecer como os de uma serpente irritada. As suas contorções e os seus esforços diminuíram pouco a pouco, até que pararam completamente.— Deixem-no rir —

Disse o rajá.Um indiano voltou a

tirar-lhe a mordaça. Coisa estranha: Eanes, que pouco antes parecia querer rebentar de

Page 748: O Tigre da Malásia

cólera, ameaçava agora querer rir!Ria com um riso

convulsivo, e tão forte que parecia ter ficado louco de repente. E como se tal não bastasse, falava sem parar, ora de Mompracem, ora dos tigres, ora de Sandokan, como se diante dele estivessem amigos e não inimigos.

Page 749: O Tigre da Malásia

— Esse homem está louco — Disse Lord Guillonk com surpresa.— Não está louco,

milord— Disse o rajá, rindo. — É a limonada que o faz rir. Os indianos, como pode ver, têm bebidas maravilhosas.— Vai dizer-nos onde se

encontra o Tigre da Malásia?— Sem dúvida. Bastará

interrogá-lo.

Page 750: O Tigre da Malásia

— Amigo Eanes — Disse o lorde, dirigindo-se ao português que continuava a rir ainda mais. — Fala-me do Tigre da Malásia.O português que tinha

sido libertado das cordas que lhe apertavam os pulsos e os pés, ouvindo a voz do Lord tinha-se levantado.— Quem está a falar do

Tigre? — Perguntou. — O Tigre, Ah... Ah! O Tigre

Page 751: O Tigre da Malásia

da Malásia... Quem não o conhece? És tu, velho, que não o conheces? Não conhecer o Tigre, o invencível Tigre... Ah! Ah! Ah!— O Tigre está aqui? —

Perguntou o rajá.— Sim, claro, está aqui,

no território de James Brooke, do rajá de Sarawak. E aquele estúpido do Brooke não sabe... Ah... Ah...

Page 752: O Tigre da Malásia

— Mas este homem está a insultar-vos, Alteza — Disse Lord Guillonk.— O que é que isso

importa? — Disse o rajá, encolhendo os ombros. — Insulta, mas vai entregar-nos o chefe dos piratas de Mompracem.— Continuai então,

Alteza.— Diga-me, Eanes, onde

se esconde Sandokan?— Não sabe? Ah! Ah!

Não sabe onde está

Page 753: O Tigre da Malásia

Sandokan! Está aqui mesmo — Disse Eanes, continuando a rir.— Mas em que lugar?— Em que lugar? Está...

está...Parou. Talvez um rasgo

de lucidez lhe tivesse esclarecido o cérebro no momento em que estava para trair o seu fiel amigo.— Por que paras? —

Perguntou o rajá. — Não sabes onde se encontra?

Page 754: O Tigre da Malásia

Eanes deu uma gargalhada convulsiva, que durou alguns minutos.— Claro que sei — Disse

depois. — Está em Sarawak.— Não estás a dizer a

verdade, Eanes.— Sim, estou a dizer a

verdade. E ninguém sabe isso melhor do que eu... Ah! Ah! Eu não saber onde está Sandokan...

Page 755: O Tigre da Malásia

Ah! Ah! Mas tu estás louco.— Pois bem, diz-me

onde está?— Na cidade, já te

disse... Sim, a esta hora deve ter chegado e vai desenterrar o falso morto... E nós vamos rir, sim vamos rir por termos enganado aquele estúpido do Brooke... Ah! Ah!

Page 756: O Tigre da Malásia

O rajá e Lord Guillonk olharam um para o outro com espanto.— O falso morto! —

Exclamaram a uma voz. — Quem é esse falso morto?— Quem? Não sabes? É

Tremal-Naik, o tugue indiano.— Ah! Miserável! —

Exclamou o rajá. — Agora percebo tudo. Continua, Eanes, meu amigo. Quando é que

Page 757: O Tigre da Malásia

vão desenterrar o falso morto?— Esta mesma noite... E

amanhã vamos rir. Oh, sim, vamos rir. Ah! Ah! Que belo golpe! Ah! Ah!— E é Sandokan quem o

vai desenterrar?— Sim, Sandokan, e esta

mesma noite... Ah! Ah! Amanhã vamos divertir-nos... E Tremal-Naik estará contente... Oh! Sim, contente, muito contente!

Page 758: O Tigre da Malásia

— Chega assim — Disse o rajá. — Agora sabemos o que temos de fazer. Venha, milord.Abandonaram o quarto

e retiraram-se para o gabinete onde os esperava o capitão dos guardas, um belo indiano de estatura alta, de comprovada coragem, de uma rara perspicácia, antigo companheiro de armas do rajá.

Page 759: O Tigre da Malásia

— Kállooth — Disse o príncipe. — De quantos homens de confiança podes dispor?— Sessenta, todos

indianos — Respondeu o capitão.— Que estejam prontos

para partir dentro de dez minutos.— Está bem, rajá. E

depois?— Vais pôr quatro

sentinelas no quarto de Eanes e vais dizer-lhes

Page 760: O Tigre da Malásia

para o matarem como a um cão à primeira tentativa de fuga. Vai!O indiano cumprimentou

e saiu rapidamente.— Também quer vir,

milord? — Perguntou o rajá.— Nem era preciso

perguntar, Alteza — Respondeu Lord Guillonk. — Eu abomino o Tigre da Malásia.

Page 761: O Tigre da Malásia

— Mas é vosso sobrinho, milord — Disse o rajá, sorrindo.— Não o reconheço

como tal.— Está bem. Amanhã,

se a sorte nos sorrir, a pirataria malaia terá perdido para sempre os seus dois chefes. A nós dois, Tigre da Malásia: James Brooke desafia-te.

XNO CEMITÉRIO

Page 762: O Tigre da Malásia

Enquanto na casa do rajá aconteciam os factos agora mesmo narrados, Sandokan, ao qual se tinha juntado o bravo marata, duas horas depois do funeral de Tremal-Naik, aproximava-se a passos largos da cidade seguido por todo o seu terrível bando, armado até aos dentes e pronto para qualquer luta.

Page 763: O Tigre da Malásia

A noite estava belíssima. Milhões e milhões de estrelas brilhavam no céu como diamantes e a Lua deitava sobre os grandes bosques uma luz azulada de infinita doçura.Um silêncio quase

perfeito reinava por todo o lado, apenas rompido, de vez em quando, por uma brisa que vinha do mar e que dobrava, com

Page 764: O Tigre da Malásia

um leve sussurrar, as folhas das árvores.Sandokan com a

carabina debaixo do braço, de olhos bem abertos, de ouvidos atentos para captar o mínimo ruído que assinalasse a presença de algum inimigo, caminhava à frente de todos, seguido, alguns passos atrás, pelo marata.

Page 765: O Tigre da Malásia

Os piratas seguiam-no em fila indiana, com o dedo no gatilho da espingarda, pisando com precaução as folhas secas e os ramos mortos e olhando atentamente à direita e à esquerda para não caírem numa emboscada.Às dez, no momento em

que estava a começar o baile do rajá, os piratas chegavam ao limite

Page 766: O Tigre da Malásia

extremo da imensa floresta.A oriente brilhava, como

uma imensa tira de prata, o rio e perto das suas margens erguiam-se brancas as casas e as cabanas da cidade.No meio destas, o olhar

aguçado de Sandokan distinguiu a habitação do rajá, cujas janelas estavam iluminadas.

Page 767: O Tigre da Malásia

— Vês alguma coisa lá em baixo, Kammamuri? — Perguntou.— Sim, capitão. Vejo

janelas iluminadas.— Com que então,

dança-se em Sarawak.— É isso.— Está bem. Amanhã

James Brooke arrepender-se-á!— Acredito, capitão.— Vai para a frente e

guia-nos até ao cemitério. Mas tem

Page 768: O Tigre da Malásia

cuidado para te manteres longe da cidade.— Não tema, capitão.— Então, em frente.O bando deixou a

floresta e avançou através de uma vasta planície cultivada.Da cidade, quando o

vento soprava um pouco mais forte, vinham gritos confusos, mas nos campos não se via vivalma.

Page 769: O Tigre da Malásia

Apesar disso, o marata não apressou o passo e conduziu o bando para um novo bosque que dava a volta ao monte defendido pelo fortim.Ele sabia que o rajá era

extremamente desconfiado e que tinha espiões em redor da cidade, prevendo um ataque repentino dos piratas de Mompracem. Passados uns vinte

Page 770: O Tigre da Malásia

minutos, fazia sinal ao bando para parar.— O que há? —

Perguntou Sandokan, alcançando-o.— Estamos a chegar ao

cemitério — Disse o marata.— Onde é?— Olhe lá para baixo,

capitão, naquele prado.Sandokan olhou na

direcção indicada e viu o recinto. A Lua fazia clarear os cipós e cintilar

Page 771: O Tigre da Malásia

as cruzes de ferro dos sepulcros europeus.— Ouves alguma coisa?

— Perguntou Sandokan.— Nada — Respondeu o

marata — A não ser o vento que sussurra nos ramos das árvores.Sandokan deu um

assobio. Os piratas apressaram-se a alcançá-lo e a rodeá-lo.— Oiçam-me, Tigres de

Mompracem — Disse ele. — Talvez não aconteça

Page 772: O Tigre da Malásia

nada, mas é preciso desconfiar. James Brooke, eu sei, é um homem perspicaz desconfiado e que daria o seu reino para esmagar o Tigre da Malásia e os seus tigres.— Nós sabemos —

Responderam os piratas.— Tomemos, portanto,

precauções para não sermos incomodados no nosso trabalho. Tu, Sambigliong, vais levar

Page 773: O Tigre da Malásia

oito homens e vais dispô-los em volta do cemitério, a mil passos de distância. Ao primeiro sinal que ouvires, ou ao primeiro homem que vires, mandarás um dos teus homens avisar-me.— Está bem, capitão —

Respondeu o pirata.— Tu, Tanauduriam, vais

levar seis e vais dispô-los em volta do cemitério a quinhentos passos de nós. Virás avisar-me ao

Page 774: O Tigre da Malásia

primeiro sinal que ouvires ou ao primeiro homem que vires.— Assim farei, capitão.— E tu, Aier-Duk, vais

levar quatro homens e vais subir até meio aquela colina. Lá em cima há um fortim habitado e poderia descer alguém.— Estou pronto, Tigre da

Malásia.

Page 775: O Tigre da Malásia

— Vão, pois, e ao meu primeiro assobio venham todos para o cemitério.As três companhias

dividiram-se tomando três direcções diferentes. Os outros piratas, guiados pelo Tigre da Malásia e por Kammamuri, desceram até ao recinto.— Sabes exactamente

onde foi sepultado? — Perguntou Sandokan a Kammamuri.

Page 776: O Tigre da Malásia

— No meio do cemitério — Respondeu o marata.— Muito fundo?— Não sei. Eu e o

capitão Eanes estávamos no sopé do monte, quando os marinheiros o enterraram. Vamos encontrá-lo vivo?— Vivo sim, mas só

acordará amanhã depois do meio-dia.— Para onde vamos,

depois de o desenterrarmos?

Page 777: O Tigre da Malásia

— Vamos voltar para o bosque e assim que Eanes se juntar a nós iremos ter com Ada.— E depois?— Depois partiremos de

imediato. Se James Brooke se apercebe do golpe dar-nos-á caça em todo o território.— Mas estamos sem

parau, capitão.— Compramos um. Eu e

Eanes temos somas consideráveis.

Page 778: O Tigre da Malásia

Haviam chegado ao recinto. Sandokan em primeiro lugar, o marata e os piratas a seguir, entraram no cemitério.— Ao que parece,

estamos sós — Disse Sandokan. — Em frente.Dirigiram-se para o

centro do cemitério e pararam por cima de uma fossa há pouco revolvida.

Page 779: O Tigre da Malásia

— Deve estar aqui — Disse o marata com viva emoção. — Pobre patrão!Sandokan tirou a

cimitarra e levantou com precaução a terra. Kammamuri e os piratas, com os seus kriss, imitaram-no.— Estava fechado num

caixão ou numa rede? — Perguntou Sandokan.— Numa rede —

Respondeu Kammamuri.

Page 780: O Tigre da Malásia

— Escavem devagar; podem feri-lo.Escavaram com

prudência, retiraram a terra com as mãos e chegaram a dois pés de profundidade; nesse momento a ponta de um kriss encontrou um corpo um tanto duro.— Encontrámos — Disse

um pirata, retirando prontamente o braço.

Page 781: O Tigre da Malásia

— Encontraste o cadáver? — Perguntou Sandokan.— Sim — Respondeu o

interpelado.— Tira a terra.O pirata enfiou os

braços na fossa e fez voar terra à direita e à esquerda. Logo apareceu a rede que envolvia Tremal-Naik.— Tenta levantá-la —

Disse Sandokan.

Page 782: O Tigre da Malásia

O pirata agarrou a rede e, reunindo todas as suas forças, começou a puxar. A pouco a pouco a terra levantou-se, depois dividiu-se e o falso morto apareceu.— Meu patrão —

Murmurou o marata com a voz sufocada pela alegria.— Deponham-no aqui —

Disse Sandokan.Tremal-Naik foi colocado

perto da fossa. A rede

Page 783: O Tigre da Malásia

estava perfeitamente imóvel e húmida.— Vejamos — Disse

Sandokan.Empunhou o kriss e com

toda a cautela rompeu o tecido grosso em todo o comprimento, descobrindo Tremal-Naik.O indiano tinha a

aparência de um morto. Os seus músculos estavam rígidos, a sua pele reluzente e de um tom acinzentado mais do

Page 784: O Tigre da Malásia

que bronzeado, os olhos virados que deixavam ver apenas o branco e os lábios abertos e manchados por uma baba sanguinolenta. Quem o visse, diria que aquele homem tinha sido morto por um poderoso veneno.— Meu patrão! —

Repetiu Kammamuri, curvando-se sobre ele. — É mesmo verdade que ele não está morto?

Page 785: O Tigre da Malásia

— Garanto — Respondeu Sandokan.O marata apoiou uma

mão sobre o peito de Tremal-Naik.— O coração dele não

bate — Disse, com terror.— Mas não está morto,

já te disse.— Não, podemos

ressuscitá-lo agora?— É impossível.— E amanhã...O marata não acabou a

pergunta. Na planície

Page 786: O Tigre da Malásia

ecoou de repente um assobio agudo: o assobio de alarme.Sandokan que se tinha

quase ajoelhado ao lado de Tremal-Naik, pôs-se de pé de um salto com a agilidade de um tigre. O seu olhar percorreu de uma só vez a pradaria.— Aproxima-se um

homem — Disse. — Será que estamos ameaçados?

Page 787: O Tigre da Malásia

Um homem, um pirata, aproximava-se do recinto com a rapidez de um veado. Na mão direita tinha uma cimitarra desembainhada que a Lua fazia cintilar como se fosse de prata.Em breves instantes,

depois de ter saltado, com um só salto, a paliçada, chegou perto de Sandokan.— És tu, Sambigliong? —

Perguntou o Tigre da

Page 788: O Tigre da Malásia

Malásia, franzindo a testa.— Sim, meu capitão —

Disse o pirata com a voz quebrada pela longa corrida.— Que novidades me

trazes?— Que vamos ser

atacados.— Por quem?— Nós.Sandokan deu um salto

em frente. Tinha-se modificado de repente.

Page 789: O Tigre da Malásia

Os seus olhos lançavam chamas, os lábios, arreganhados, mostravam dentes brancos como os de um carnívoro. O Tigre da Malásia estava prestes a acordar.— Nós atacados! —

Repetiu ele, apertando com frenesim a sua terrível cimitarra.— Sim, capitão. Um

bando de homens armados saiu da cidade e

Page 790: O Tigre da Malásia

dirige-se para este local — Disse Sambigliong.— Quantos homens são?— Pelo menos sessenta.— E dirigem-se para

aqui?— Sim, capitão.— O que é que

aconteceu? E Eanes? Com mil trovões! Terá sido descoberto? Tem cuidado, James Brooke, tem cuidado!

Page 791: O Tigre da Malásia

— O que devemos fazer? — Perguntou Sambigliong.— Antes de mais, reunir

os nossos homens.Encostou aos lábios um

assobio cujo som fez reunir todos os piratas em torno de Sandokan.— Somos cinquenta e

seis — Disse este — Mas todos corajosos; cem homens não nos fazem medo.

Page 792: O Tigre da Malásia

— Nem duzentos — Disse Sambigliong, desembainhando a cimitarra. — Quando o Tigre da Malásia der o comando, caímos sobre Sarawak e deitamos-Ihe fogo.— Não peço tanto, por

agora — Disse Sandokan. — Oiçam.— Fale, Tigre da

Malásia.— Tu, Sambigliong,

pega em oito homens e

Page 793: O Tigre da Malásia

esconde-te atrás daquelas árvores. Tu, Tanauduriam, pega noutros tantos homens e esconde-te atrás daquele outro grupo de plantas, mesmo em frente de Sambigliong.— Bem — Disseram os

dois chefes.— Tu, Aier-Duk, pegas

em três homens e colocas-te no meio do cemitério.— Está bem.

Page 794: O Tigre da Malásia

— Mas finge que estás a cavar uma fossa.— Porquê?— Para deixar que os

guardas se aproximem sem temor. Eu escondo-me com os outros atrás do muro e quando chegar a altura certa darei o sinal de ataque.— Que vai ser? —

Perguntou Sambigliong.— Um tiro de

espingarda. Dado o sinal, vocês descarregam as

Page 795: O Tigre da Malásia

carabinas sobre o inimigo, depois atacam-no com as cimitarras.— Belo plano! —

Exclamou Tanauduriam. — Vamos apanhá-los no meio.— Aos lugares —

Comandou o Tigre.Sambigliong com os

seus homens foi emboscar-se nos arbustos da direita; Tanauduriam com os outros no da esquerda. O

Page 796: O Tigre da Malásia

Tigre da Malásia ajoelhou-se atrás do muro circundado pelos outros e Aier-Duk com os companheiros pôs-se perto de Tremal-Naik fingindo escavar a terra.Estava na hora. Uma

dupla fila de indianos aparecia então na pradaria, precedida por um homem vestido de branco. Avançavam em silêncio, com as

Page 797: O Tigre da Malásia

espingardas na mão, prontos para atacar.— Kammamuri — Disse

Sandokan que espiava o bando inimigo — Estás a ver aquele homem vestido de branco?— Sim, capitão.— Sabes dizer-me quem

é?O marata franziu as

sobrancelhas e olhou com atenção.— Capitão — Disse com

alguma emoção —

Page 798: O Tigre da Malásia

Aposto que aquele homem é o rajá Brooke.— Ele... ele... —

Exclamou o Tigre com voz de ódio. — Ele vem desafiar-me! Rajá Brooke, estás perdido!— Quereis matá-lo?— O meu primeiro tiro

de espingarda será dele.— Não o fará, capitão.O Tigre da Malásia

virou-se para Kammamuri mostrando os dentes.

Page 799: O Tigre da Malásia

— Quem mo impedirá? — Perguntou com ira.— Capitão, Eanes foi

talvez feito prisioneiro.— É verdade.— Se nós

capturássemos o rajá, não seria melhor?— Compreendo-te. Tu

querias fazer uma troca.— Sim, capitão.— A ideia é excelente,

Kammamuri. Mas eu odeio aquele homem que

Page 800: O Tigre da Malásia

fez tanto mal aos piratas malaios.— Eanes vale mais do

que o rajá.— Tens razão, marata.

Sim, Eanes está preso, diz-me o meu coração.— Então? Quem é que

se vai encarregar de o prender?— Nós os dois. Calado

agora e atento ao sinal.Os indianos tinham

chegado a quatrocentos metros do cemitério.

Page 801: O Tigre da Malásia

Temendo que Aier-Duk, que continuava a escavar imitado por três dos seus companheiros, os descobrisse, tinham-se atirado para o chão e avançavam rastejando.— Mais dez passos —

Murmurou Sandokan.Mas os indianos em vez

de continuarem a avançar, a um sinal do rajá tinham parado, virado o olhar para os

Page 802: O Tigre da Malásia

arbustos que rodeavam a pradaria.Suspeitavam, sem

dúvida, de uma emboscada.Passados alguns

minutos afastaram-se uns dos outros formando uma espécie de semicírculo e retomaram, mas com maior prudência, a marcha em frente.A uma certa altura

Sandokan, que estava

Page 803: O Tigre da Malásia

ajoelhado atrás do muro, levantou-se.Apontou a carabina, fez

mira durante alguns segundos, depois apertou o gatilho. Um tiro ribombou perturbando o profundo silêncio que reinava no cemitério. Um instante depois, um indiano, o chefe de fila, caía com um tiro na testa.

XI

Page 804: O Tigre da Malásia

O COMBATEA detonação não tinha

ainda cessado quando gritos assustadores ecoaram na pradaria, à direita, à esquerda e em frente dos indianos.Logo depois, dez,

quinze, vinte tiros de espingarda partiram dos arbustos com uma enorme rapidez. Quinze ou dezasseis indianos, em parte mortos, em parte feridos, rolavam

Page 805: O Tigre da Malásia

entre as ervas, antes ainda de terem podido usar as armas.— Em frente, meus

tigres! — Gritou o Tigre da Malásia, passando por cima do muro, seguido por Kammamuri, por Aier-Duk e pelos outros. — Em cima desses cães!Sambigliong e

Tanauduriam saíram por detrás dos arbustos com a cimitarra em punho,

Page 806: O Tigre da Malásia

trazendo atrás deles os seus homens.— Viva o Tigre da

Malásia! — Gritaram uns.— Viva Sandokan! Viva

Mompracem! — Gritaram outros.Os indianos, ao verem

todos aqueles homens atacá-los, reuniram-se rapidamente disparando ao acaso as espingardas. Três ou quatro piratas caíram ensanguentando o solo.

Page 807: O Tigre da Malásia

— Em frente, Tigres! — Repetiu o Tigre.Os piratas encorajados

pelo seu chefe lançaram-se furiosamente sobre as fileiras de indianos, dando golpes de sabre sem dó nem piedade a quantos se encontravam na sua frente.O embate foi tão terrível

que os indianos recuaram confusamente uns sobre os outros, formando uma massa

Page 808: O Tigre da Malásia

compacta de corpos humanos.O Tigre da Malásia

penetrou entre eles como uma cunha que entra no tronco de uma árvore e dividiu-os em dois.Dois, cinco, dez piratas

seguiram-no apanhando de costas os indianos, que tendo já perdido qualquer esperança de vencer, se lançavam à

Page 809: O Tigre da Malásia

direita e à esquerda procurando salvar-se.Dez ou doze

mantinham-se no lugar e no meio deles estava James Brooke.Sandokan assaltou

furiosamente aquele grupo, decidido a destruí-lo desde que conseguisse ter nas mãos o seu inimigo mortal.Kammamuri, Aier-Duk e

Tanauduriam tinham-no seguido com muitos

Page 810: O Tigre da Malásia

outros, enquanto Sambigliong dava caça aos fugitivos para os impedir de se reunirem e de voltarem à carga.— Renda-se, James

Brooke — Gritou Sandokan.O rajá respondeu com

um tiro de pistola cuja bala fez cair por terra um pirata.— Em frente, Tigres! —

Gritou Sandokan,

Page 811: O Tigre da Malásia

derrubando um indiano que o tirava de mira.O grupo num instante,

apesar da sua desesperada resistência, foi aberto pelas cimitarras e pelos kríss envenenados dos Tigres de Mompracem. Kam-mamuri e Tanauduriam lançaram-se sobre o rajá impedindo-o de seguir os seus fiéis que fugiam pela pradaria, perseguidos por Aier-Duk

Page 812: O Tigre da Malásia

e pelos seus companheiros.— Renda-se! — Gritou-

lhe Kammamuri, arrancando-lhe o sabre e as pistolas.— Rendo-me —

Respondeu James Brooke, que compreendia que qualquer resistência era inútil.Sandokan avançou com

a cimitarra em punho.

Page 813: O Tigre da Malásia

— James Brooke — Disse em tom de desafio. — És meu.O rajá, que tinha sido

deitado por terra pelo punho de ferro de Tanauduriam, levantou-se olhando para o chefe dos piratas, que nunca tinha visto.— Quem és tu? —

Perguntou com a voz sufocada pela ira.— Olha-me na cara —

Disse Sandokan.

Page 814: O Tigre da Malásia

— Serás tu...— Sou Sandokan, ou

melhor, o Tigre da Malásia.— Tinha suspeitado. Pois

bem, o que quer de James Brooke?— Uma resposta, antes

de mais.Um sorriso irónico

aflorou aos lábios do rajá.— E eu vou responder?

— Disse.

Page 815: O Tigre da Malásia

— Sim, nem que eu tivesse de usar o fogo para vos fazer falar. James Brooke, odeio-te sabes, mas odeio-te como sabe odiar o Tigre. Tu fizeste demasiado mal aos piratas da Malásia, e eu poderia vingar aqueles que tu assassinaste sem piedade.— E se calhar não tinha

direito de os exterminar?

Page 816: O Tigre da Malásia

— E também eu tinha o direito de exterminar os homens de raça branca que me tinham mordido o coração. Mas deixemos os direitos e responda à minha pergunta.— Fala.— O que fez de Eanes?— Eanes! — Exclamou o

rajá. — Esse indivíduo interessa-lhe muito?— Bastante, James

Brooke.

Page 817: O Tigre da Malásia

— Não deixa de ter razão. Aquele branco possui uma coragem extraordinária e pode ser-lhe imensamente útil.— É vosso prisioneiro?— Sim.— Já suspeitava. E

quando?— Esta noite.— De que maneira?— É demasiado curioso,

senhor pirata.— Então não me quer

dizer?

Page 818: O Tigre da Malásia

— Pelo contrário, vou dizer.— Pois então fale.— Conhece Lord

Guillonk?Sandokan, ao ouvir

aquele nome, estremeceu. Uma profunda ruga desenhou-se na sua ampla testa, mas depressa desapareceu.— Sim — Disse com voz

surda.

Page 819: O Tigre da Malásia

— Se não me engano, Lord Guillonk é seu tio.Sandokan não

respondeu.— Foi o seu tio que

reconheceu Eanes e o mandou prender.— Ele! — Exclamou

Sandokan. — Outra vez ele! E onde se encontra Eanes?— Na minha residência,

solidamente amarrado e bem guardado.— O que fará com ele?

Page 820: O Tigre da Malásia

— Não sei, mas vou pensar nisso.— Vai pensar! —

Exclamou o Tigre da Malásia sorrindo, mas com um riso que fazia tremer. — E não pensa, James Brooke, que está na minha mão? E não pensa, James Brooke, que o odeio? E não pensa que amanhã de manhã poderá já não ser o rajá de Sarawak?

Page 821: O Tigre da Malásia

O rajá, apesar de possuir uma coragem mais do que extraordinária, tinha ficado pálido ao ouvir aquelas palavras.— Querem matar-me? —

Perguntou ele com um tom de voz que já não era calmo.— Se não aceitar a

troca, fá-lo-ei — Disse Sandokan friamente.— Uma troca? E qual

seria?

Page 822: O Tigre da Malásia

— Se os seus homens me restituírem Eanes, eu dar-lhe-ei a liberdade.— Aquele homem

interessa-vos muito então?— Bastante.— Porquê?— Porque sempre me

amou como se eu fosse um irmão. Aceitais a proposta?— Aceito — Disse o rajá,

após um momento de reflexão.

Page 823: O Tigre da Malásia

— Deve deixar que o amarre e o amordace.— Porquê?— Os seus homens

poderiam regressar aqui em maior número e dar-nos batalha.— Quer levar-me daqui?— Para um lugar seguro.— Faça aquilo que achar

melhor.Sandokan fez um gesto

a Kammamuri. De imediato quatro macas, formadas por ramos e

Page 824: O Tigre da Malásia

carregadas por robustos piratas, avançaram. A primeira estava livre, a segunda ocupada por Tremal-Naik e as outras duas por daiaques da companhia de Sambigliong, grave-mente feridos.— Amordaça e ata o rajá

— Disse Sandokan ao marata.— Está bem, capitão.Com cordas sólidas

amarrou o rajá que não

Page 825: O Tigre da Malásia

opôs resistência, amordaçou-o com um lenço de seda, depois deitou-o na maca vazia.— Para onde vamos,

capitão? — Perguntou, ao terminar.— Voltámos para o

acampamento — Respondeu Sandokan.Encostou o pequeno

assobio de prata aos lábios e tirou dele três notas agudas.

Page 826: O Tigre da Malásia

Os piratas que perseguiam os indianos voltaram de imediato para trás, com Sambigliong e Aier-Duk.Sandokan fez

rapidamente a chamada. Faltavam onze homens.— Morreram — Disse

Tanauduriam.— Vamos partir —

Comandou Sandokan, sufocando um suspiro.A companhia pôs-se

rapidamente a caminho

Page 827: O Tigre da Malásia

metendo-se pelos bosques, descrevendo um semicírculo em torno da colina dominada pelo fortim. Dez homens guiados por Sambigliong e por Tanauduriam abriam caminho com as carabinas debaixo das axilas, prontos para repelir qualquer ataque; a seguir vinham as macas dos feridos, a do rajá e a de Tremal-Naik.

Page 828: O Tigre da Malásia

Aier-Duk, com os outros, fechava a marcha.A viagem foi rápida. Às

5 da manhã, sem que tivessem encontrado um indiano ou um daiaque, chegavam à aldeia abandonada, defendida por sólidas paliçadas e por terraços.Sandokan enviou alguns

homens para a direita, para a esquerda, para a frente e para as traseiras da aldeia de modo a não

Page 829: O Tigre da Malásia

ser repentinamente atacado pelas tropas de Sarawak; depois mandou desamarrar o rajá, que não tinha tentado pronunciar uma só palavra durante a viagem.— Se não se importar,

escreva, James Brooke — Disse-lhe, apresentando-lhe uma folha de papel e um lápis.

Page 830: O Tigre da Malásia

— O que devo escrever? — Perguntou o rajá que parecia bastante calmo.— Que é prisioneiro do

Tigre da Malásia e que para se salvar é preciso pôr de imediato em liberdade Eanes, ou melhor Lord Welker.O rajá pegou no papel,

pô-lo sobre os joelhos e preparou-se para escrever.— Um momento — Disse

Sandokan.

Page 831: O Tigre da Malásia

— Há mais alguma coisa? — Perguntou o inglês levantando o sobrolho.— Acrescente que se

dentro de quatro horas Eanes não estiver aqui, enforco-o na maior árvore da floresta.— Está bem.— Acrescente mais uma

coisa — Disse Sandokan.— E é?— Que não tentem

libertá-lo pela força, já

Page 832: O Tigre da Malásia

que à primeira companhia armada que eu avistar enforco-o na mesma.— Pareceis muito

interessado em ver-me enforcado — Disse o rajá com ironia.— Não o nego, James

Brooke — Respondeu Sandokan. — Escreva.O rajá pegou no lápis e

escreveu a carta que depois passou a Sandokan.

Page 833: O Tigre da Malásia

— Está bem — Respondeu este, depois de a ler.— Sambigliong!O pirata acorreu.— Vais levar esta carta

a Sarawak — Disse o Tigre. — Entrega-a a Lord James Guillonk.— Devo levar as minhas

armas?— Nem o teu kriss. Vai e

volta depressa.— Correrei como um

cavalo, capitão.

Page 834: O Tigre da Malásia

O pirata escondeu a carta debaixo do cinto, atirou ao chão a cimitarra, o machado e o kriss e partiu a correr.— Aier-Duk — Disse

Sandokan, virando-se para o pirata que estava perto dele. — Vais vigiar este inglês. Atenção porque se ele foge, mando que te enforquem.

Page 835: O Tigre da Malásia

— Confie em mim, capitão — Respondeu o tigre.Sandokan armou a sua

carabina, chamou Kammamuri que se tinha acocorado perto do patrão que continuava adormecido e deixou a aldeia dirigindo-se para uma elevação de onde, ao longe, se avistava a cidade de Sarawak.— Vamos salvar o

capitão Eanes? —

Page 836: O Tigre da Malásia

Perguntou o marata que o seguia.— Sim — Respondeu

Sandokan. — Dentro de duas horas estará aqui.— Tem a certeza?— Tenho. O rajá vale o

mesmo que Eanes.— Mas tenha cuidado,

capitão — Disse o marata. — Os indianos, e em Sarawak há muitos, são capazes de atravessar um bosque

Page 837: O Tigre da Malásia

sem fazer o mais pequeno ruído.— Não temas,

Kammamuri. Os meus piratas são mais astutos do que os indianos e nenhum inimigo se aproximará da nossa aldeia sem ser descoberto.— O rajá vai perseguir-

nos depois?— Certamente,

Kammamuri. Assim que regressar a Sarawak

Page 838: O Tigre da Malásia

reunirá os seus guardas e os daiaques e lançar-se-á na nossa peugada.— Quer dizer que vamos

ter uma segunda batalha.— Não, porque

partiremos de imediato.— Para onde?— Para a baía onde se

encontra Ada Corishant.— E depois?— Compraremos um

parau e abandonaremos

Page 839: O Tigre da Malásia

para sempre estas costas, já te disse.— E para onde levará o

meu patrão?— Para onde ele quiser

ir.Tinham então chegado

ao topo da elevação, que se erguia vários metros acima das árvores mais altas do mato. Sandokan encostou as mãos aos olhos para os proteger dos raios solares e olhou

Page 840: O Tigre da Malásia

atentamente o território circundante.A dez milhas ficava

Sarawak. O rio que passava perto sobressaía claramente entre o verde das plantações e dos bosques, e parecia uma grande fita de prata.— Olha lá em baixo —

Disse Sandokan, apontando ao marata um homem que corria como um veado na direcção da cidade.

Page 841: O Tigre da Malásia

— Sambigliong! — Exclamou Kammamuri. — Se mantiver aquele trote, estará de volta daqui a duas horas.— Assim espero.Sentou-se debaixo de

uma árvore, acendeu um cigarro e pôs se a fumar, olhando atentamente a cidade. Kammamuri imitou-o.Decorreu uma hora que

pareceu ter um século sem que nada

Page 842: O Tigre da Malásia

acontecesse. Depois passou uma segunda, mais comprida do que a primeira para os dois piratas. Finalmente, cerca das 10, um grupo de pessoas surgiu próximo de um pequeno bosque de castanheiros-da-índia.Sandokan pôs-se de pé

num salto. No seu rosto, geralmente tão impassível, estava estampada uma viva

Page 843: O Tigre da Malásia

ansiedade. Aquele homem, aquele pirata sanguinário, percebia-se, amava o seu fiel companheiro, o corajoso Eanes.— Onde está? Onde

está? — Ouviu-o murmurar Kammamuri, com voz vacilante.— Vejo uma veste

branca no meio da companhia. Olhe!— Sim, sim estou a vê-

la! — Exclamou

Page 844: O Tigre da Malásia

Sandokan com uma alegria indescritível. — É ele, o meu bom Eanes. Depressa, meu irmão, depressa!Ficou ali imóvel, com os

olhos fixos naquele trajo branco, depois ao ver a companhia desaparecer sob a grande floresta lançou-se precipitadamente da ele-vação, correndo na direcção do campo.

Page 845: O Tigre da Malásia

Dois piratas que guardavam o bosque chegavam nesse mesmo instante.— Capitão! — Gritaram.

— Eles vêm com o senhor Eanes.— Quantos são? —

Perguntou Sandokan, que a custo se dominava.— Doze com

Sambigliong.— Armados?— Sem armas.

Page 846: O Tigre da Malásia

Sandokan encostou o assobio aos lábios e tirou três notas agudas. Em poucos instantes todos os piratas o rodearam.— Preparem as armas —

Disse o Tigre.— Senhor! — Gritou

James Brooke, que estava sentado aos pés de uma árvore, atentamente guardado por Aier-Duk. — Quer assassinar os meus homens?

Page 847: O Tigre da Malásia

O Tigre virou-se para o inglês.— James Brooke — Disse

com voz grave. — O Tigre da Malásia mantém a sua palavra. Dentro de cinco minutos será livre.— Quem vive? — Gritou

nesse instante uma sentinela colocada a duzentos metros das trincheiras.— Amigos — Respondeu

a voz bem conhecida de

Page 848: O Tigre da Malásia

Sambigliong. — Baixem a espingarda.

XIIA RESSURREIÇÃO DE

TREMAL-NAIKA companhia saía do

denso bosque. Era composta por Sambigliong, por um oficial da guarda do rajá, por dez indianos desarmados e por Eanes que não tinha nem mãos nem pernas amarradas.

Page 849: O Tigre da Malásia

Sandokan, ao avistar o amigo, não foi capaz de se dominar. Correu de encontro a ele e afastando os indianos, apertou-o contra o peito e aquele homem era o Tigre da Malásia, era o feroz chefe dos piratas de Mompracem que desde há tantos anos ensanguentavam as vagas do mar malaio.

Page 850: O Tigre da Malásia

— Eanes! Meu irmão! — Exclamou ele com a voz sufocada pela alegria.— Sandokan, meu

amigo, finalmente revejo-te! — Gritou o bom português que não estava menos comovido. — Por Júpiter! Pensei que não voltaria a abraçar-te!— Nunca mais te

deixaremos, meu amigo, juro.— Acredito em ti, meu

irmão. Foi uma bela ideia

Page 851: O Tigre da Malásia

prender o rajá. Sempre disse que tu eras um grande homem. E Tremal-Naik? Onde está aquele pobre indiano?— A poucos passos de

nós.— Vivo?— Vivo, mas ainda

adormecido.— E a noiva?— Ainda está louca, mas

voltará a si.— Senhor — Disse nesse

instante uma voz.

Page 852: O Tigre da Malásia

Sandokan e Eanes viraram-se. James Brooke estava na sua frente, calmo mas um pouco pálido e com os braços cruzados sobre o peito.— Sois livre, James

Brooke — Disse Sandokan. — O Tigre da Malásia mantém a sua palavra.O rajá fez uma ligeira

vénia e afastou-se alguns passos, voltando depois para trás bruscamente:

Page 853: O Tigre da Malásia

— Tigre da Malásia. — Disse. — Quando voltaremos a ver-nos?— Queres uma desforra?

— Perguntou Sandokan com ironia.— James Brooke não

perdoa!Sandokan olhou-o

durante alguns instantes em silêncio, como se estivesse surpreendido por aquele homem ousar desafiá-lo, depois estendendo o braço na

Page 854: O Tigre da Malásia

direcção do mar, disse num tom que fazia tremer:— Lá em baixo existe

uma ilha: Mompracem. O mar que a circunda ainda está vermelho de sangue e ainda está cheio de navios destroçados. Quando se aproximar daquelas costas ouvirá o rugido do Tigre e os seus tigres irão ao seu encontro. Mas não se esqueça, James Brooke,

Page 855: O Tigre da Malásia

que o Tigre e os seus tigres têm sede de sangue.— Irei visitá-lo.— Quando?— No ano que vem.Um sorriso aflorou aos

lábios do pirata.— Será demasiado tarde

— Disse.— Porquê? — Perguntou

o rajá com surpresa.— Porque já não será

rajá de Sarawak. Porque a revolução terá

Page 856: O Tigre da Malásia

rebentado no seu Estado e o sobrinho do sultão Muda-Hassin estará sentado no seu lugar.O rajá ao ouvir aquelas

palavras empalideceu e recuou.— Porquê inventar estas

coisas? — Perguntou com um tom de voz tudo menos calmo.— Não invento nada,

milord — Disse Sandokan.

Page 857: O Tigre da Malásia

— Sabe de alguma coisa?— É provável.— Se lhe pedisse que se

explicasse...— Não explico mais

nada — Interrompeu Sandokan.— Não, me resta mais

do que agradecer-lhe pelo aviso.Fez novamente uma

ligeira vénia, alcançou os seus guardas e afastou-

Page 858: O Tigre da Malásia

se na direcção de Sarawak.Sandokan de braços

cruzados, com o olhar taciturno, seguia-o com os olhos. Quando deixou de o ver, saiu-lhe do peito um suspiro.«Aquele homem vai-me

trazer má sorte», murmurou.— O que tens,

Sandokan? — Perguntou-lhe Eanes, aproximando-

Page 859: O Tigre da Malásia

se dele. — Pareces-me inquieto.— Tenho um triste

pressentimento, irmão — Disse o pirata.— E qual é?— Entre nós e o rajá não

está tudo acabado.— Temes que nos

ataque?— É o coração que mo

diz.— Não acredites nos

pressentimentos, meu irmão. Dentro de dois ou

Page 860: O Tigre da Malásia

três dias teremos abandonado estas costas e nada mais teremos a temer da parte do rajá. Onde vamos agora?— Para a baía e já. Aqui

não me sinto seguro.— Então, partamos.

Mas... E Tremal-Naik?— Não acorda antes do

meio-dia.Sandokan deu o sinal da

partida e o grupo com os feridos e com Tremal-Naik, apesar da

Page 861: O Tigre da Malásia

rapidíssima marcha da manhã, pôs-se novamente a caminho, seguindo um pequeno trilho aberto, não se sabe quantos anos antes, pelos habitantes da floresta.Sandokan e Eanes com

dez dos mais corajosos tigres abriam o caminho com as carabinas na mão e atrás seguiam as macas e todos os outros, dois a dois, com os olhos

Page 862: O Tigre da Malásia

postos nos lados do trilho.Tinham percorrido cerca

de meia milha, quando Aier-Duk, que ia um pouco mais à frente para explorar o caminho, parava de repente empunhando a espin-garda. Eanes e Sandokan apressaram-se a alcançá-lo.— Não se movam —

Disse o daiaque.

Page 863: O Tigre da Malásia

— O que viste? — Perguntou Sandokan.— Uma sombra

atravessar rapidamente aqueles arbustos lá ao fundo.— Um homem ou um

animal?— Pareceu-me um

homem.— Podia ser um pobre

daiaque — Disse Eanes.— E também um espião

do rajá — Disse Sandokan.

Page 864: O Tigre da Malásia

— Achas?— Tenho quase a

certeza.— Aier-Duk, leva quatro

homens contigo e bate o bosque. Entretanto, nós vamos prosseguir.O daiaque chamou

quatro homens e enfiou-se pela folhagem densa rastejando por entre as raízes, os ramos de árvore e os arbustos.— E nós, em frente —

Disse Sandokan.

Page 865: O Tigre da Malásia

A marcha foi retomada através de duas cerradas fileiras de sontar, espécie de palmeiras que dão, fazendo uma incisão no tronco, um sumo açucarado bastante agradável e de cujas folhas se serviam antigamente os povos da Malásia para escrever.Pouco depois o grupo

era alcançado por Aier-Duk e pelos seus companheiros. Tinham

Page 866: O Tigre da Malásia

inspeccionando a floresta, mas nada encontraram, a não ser pegadas recentes de humanos.— Eram numerosas? —

Perguntou Sandokan que ainda estava bastante inquieto.— Quatro — Respondeu

o daiaque.— Eram pegadas de pés

descalços ou calçados?— De pés descalços.

Page 867: O Tigre da Malásia

— Talvez esses dois homens fossem daiaques. Depressa, tigres, aqui não estamos muito seguros.Pela terceira vez o

grupo voltou a pôr-se a caminho e depois de três quartos de hora chegava às margens de um respeitável curso de água que desaguava numa ampla baía semicircular.

Page 868: O Tigre da Malásia

Sandokan mostrou ao português um ilhéu que não tinha mais de trezentos e cinquenta metros de comprimento, sombreado por belíssimos grupos de árvores sagu, de durion, de mangostões e de arengas sacaríferas; defendido, na direcção da ponta meridional, por um velho mas ainda sólido fortim daiaque, construído com grandes

Page 869: O Tigre da Malásia

traves e paus de teca, madeira dura como o ferro e que resiste às balas de um canhão.— É ali que repousa a

Virgem do Pagode? — Perguntou Eanes.— Sim, dentro daquele

fortim — Respondeu Sandokan.— Não podias ter

encontrado melhor sítio para ela. A baía é muito bonita e o ilhéu está bem defendido. Se James

Page 870: O Tigre da Malásia

Brooke nos vier atacar, terá um osso duro de roer.— O mar está a

quinhentos passos do ilhéu, Eanes — Disse Sandokan.— E o que é que isso

quer dizer?— Que um navio pode

bombardear o fortim.— Nós defendemo-nos.— Não temos canhões.— Mas o nossos homens

são corajosos.

Page 871: O Tigre da Malásia

— É verdade, mas são poucos e...— O que tens?— Calado! Ouviste?— Eu? Nada, Sandokan.— Pareceu-me que um

ramo se tinha partido.— Onde?— No meio daqueles

arbustos.— Será que há mesmo

espiões? Começo a ficar inquieto, Sandokan.— E eu também.

Depressa: suspiro pelo

Page 872: O Tigre da Malásia

momento de chegar ao ilhéu, Aier-Duk!O daiaque aproximou-se

do Tigre.— Escolhe oito homens

e acampa neste lugar — disse Sandokan. — Se vires homens rondar estas paragens avisa-me.— Contai comigo,

capitão — Respondeu o daiaque. — Ninguém se aproximará da baía sem a minha autorização.

Page 873: O Tigre da Malásia

Sandokan, Eanes e os outros desceram para a baía, cujas margens estavam cobertas por densas folhagens e chegaram a uma pequena enseada perto da qual estava escondida, debaixo de um monte de canas e de ramos de louro, uma chalupa.O Tigre deitou em redor

um rápido olhar, mas não viu ninguém. Uma viva

Page 874: O Tigre da Malásia

inquietude espelhou-se-lhe no rosto.— Um dos meus dois

homens deveria estar de guarda à chalupa — Disse.— Devem estar os dois

no fortim — Disse Eanes.— E deixaram aqui a

chalupa! Eanes... O meu coração bate depressa... Temo uma desgraça.— Qual?— Que tenham raptado

Ada.

Page 875: O Tigre da Malásia

— Que golpe terrível se fosse verdade!— Cala-te!— Outro ruído?— Sim, capitão Eanes —

Confirmaram os piratas empunhando as armas.Viam agitar-se os ramos

de um grande arbusto a cem passos da praia.— Quem está aí? —

Gritou Sandokan.— Mompracem —

Respondeu uma voz.

Page 876: O Tigre da Malásia

Pouco depois um pirata emergia dos arbustos. Estava ofegante e suado como se tivesse feito uma grande corrida e segurava uma espingarda.— Viva o Tigre! —

Exclamou ele, ao avistar o chefe.— De onde vens? —

Perguntou Sandokan.— Da floresta, capitão.— Onde está a Virgem'?— No fortim.

Page 877: O Tigre da Malásia

— Tens a certeza?— Deixei-a há duas

horas à guarda de Koty.Sandokan respirou

livremente.— Começava a temer —

Disse. — Como está ela?— Muito bem.— O que fazia?— Quando a deixei

estava a dormir.— De onde vens?— Dos bosques.— Viste alguém?

Page 878: O Tigre da Malásia

— Eu não, mas Koty esta manhã viu um homem passar ao longo da margem e olhar o fortim com curiosidade. Ao ver que estava a ser observado apressou-se a desaparecer.— E viste esse homem?— Procurei-o, mas não

consegui descobri-lo.— Será que era um

espião do rajá? — Perguntou Eanes.

Page 879: O Tigre da Malásia

— É provável — Respondeu Sandokan, que parecia preocupado.— Será que vêm atacar-

nos aqui?— Quem pode dizê-lo?— O que é que contas

fazer?— Deixar este lugar o

mais depressa possível. Vamos embarcar.Os dois chefes e os seus

homens subiram para a chalupa, atravessaram o braço de mar que tinha

Page 880: O Tigre da Malásia

duzentos ou trezentos metros de largura e desembarcaram junto da fortaleza onde os esperava Koty.— A Virgem ainda está a

dormir? — Perguntou-lhe Sandokan.— Sim, capitão.— Aconteceu alguma

coisa?— Não.— Vamos vê-la — Disse

Eanes.

Page 881: O Tigre da Malásia

Sandokan apontou-lhe Tremal-Naik que tinha sido deposto sobre uma cama de ervas e de folhas verdes.— Faltam poucos

minutos para o meio-dia — Disse. — Espera que ele acorde.

Ordenou aos seus homens que entrassem no fortim e sentou-se ao lado do indiano que não dava sinal de vida. Eanes

Page 882: O Tigre da Malásia

acendeu um cigarro e deitou-se ao pé dele.— Ainda falta muito

para ele abrir os olhos? — Perguntou, depois de fumar um pouco, a Sandokan que olhava com atenção o rosto do indiano.— Não, Eanes. Veja que

a pele dele recupera pouco a pouco a cor. É sinal de que o sangue volta a circular.

Page 883: O Tigre da Malásia

— Vais deixá-lo ver Ada de imediato?— De imediato não, mas

antes desta noite sim.— A pobre louca irá

reconhecê-lo?— Talvez.— E se não o

reconhecer? Se ela não recuperar a razão?— Vai recuperar.— Duvido, meu irmão.— Pois bem, faremos

uma experiência.— E qual será?

Page 884: O Tigre da Malásia

— A seu tempo to direi.— E porquê...— Cala-te...Uma débil respiração

tinha repentinamente levantado o amplo peito de Tremal-Naik.— Está a acordar —

Murmurou Eanes.Sandokan curvou-se

sobre o indiano e pousou-lhe uma mão na testa.— Está a acordar —

Disse.

Page 885: O Tigre da Malásia

— Já?— Já.— Sem nenhuma

injecção?— Não é preciso, Eanes.Uma segunda

respiração, mais forte do que a primeira, levantou o peito de Tremal-Naik e os seus lábios mexeram-se. Depois as mãos, que estavam abertas, fecharam-se lentamente, as pernas também se dobraram lentamente e,

Page 886: O Tigre da Malásia

por fim, os olhos abriram-se dilatando-se muito, parando em Sandokan.Ficou assim alguns

instantes, como se estivesse surpreendido por ainda estar vivo; depois com um esforço violento sentou-se, exclamando:— Vivo! Ainda vivo!— E livre — Disse Eanes.

Page 887: O Tigre da Malásia

O indiano olhou para o português. Reconheceu-o de imediato.— O senhor! O senhor!

— Exclamou. — Mas o que é que aconteceu? Como é que me encontro aqui? Dormi?— Por Deus! —

Exclamou Eanes, rindo. — Não se lembra daquela pílula que lhe dei no fortim?— Ah! Sim, sim... Agora

lembro-me... Tinha vindo

Page 888: O Tigre da Malásia

ao meu encontro... Senhor, senhor, como agradeço-lhe ter-me libertado!Assim falando, Tremal-

Naik tinha-se precipitado aos pés de Eanes. Este levantou-o e apertou-o.— Como sois bom,

senhor! — Exclamou o indiano que parecia ter de imediato recuperado as forças e estava fora dele pela alegria. — Livre! Por fim estou livre!

Page 889: O Tigre da Malásia

Agradeço-vos, senhor, agradeço-vos!— Agradecei a este

homem, Tremal-Naik — Disse Eanes, apontando-lhe Sandokan que com os braços cruzados sobre o peito, olhava o indiano comovidamente. — É a este homem, ao Tigre da Malásia, que deveis a vossa liberdade.Tremal-Naik precipitou-

se para Sandokan que o

Page 890: O Tigre da Malásia

acolheu nos seus braços, dizendo:— És meu amigo!Nesse instante um grito

de alegria soou atrás deles. Kammamuri, que tinha acabado de sair do forte, corria com a rapidez de um veado, gritando:— Meu bom patrão! Meu

patrão!Tremal-Naik correu para

o fiel marata que parecia ter ficado louco. Os dois

Page 891: O Tigre da Malásia

indianos abraçaram-se várias vezes sem serem capazes de trocar uma única palavra.— Kammamuri, meu

bom Kammamuri! — Exclamou finalmente Tremal-Naik. — Pensava que não voltaria a ver-te nesta terra. Mas como é que estás aqui? Então, os tugues não te mataram?— Não, patrão, não. Eu

fugi para te procurar.

Page 892: O Tigre da Malásia

— Para me procurar! Mas tu sabias que eu estava neste lugar?— Sim, patrão, tinha

ficado a saber. Ah! Patrão! Quanto chorei por ti depois daquela noite fatal. Aperto-te nos meus braços, sinto-te, mas não consigo acreditar que tu sejas ainda vivo e em liberdade. Não nos vamos deixar mais, pois não?

Page 893: O Tigre da Malásia

— Não, Kammamuri, nunca mais.— Vamos viver com o

senhor Eanes e o Tigre da Malásia. Que homens, patrão, que homens! Se soubesses tudo que fizeram por ti, se soubesses quantas lutas...— Alto aí, Kammamuri

— Disse Eanes. — Outros homens teriam feito aquilo que nós fizemos.

Page 894: O Tigre da Malásia

— Não é verdade, patrão. Nenhum homem poderá fazer o que fizeram o Tigre da Malásia e o senhor Eanes.— Mas porquê todo esse

interesse por mim? — Perguntou Tremal-Naik. — Mas eu nunca os vi, senhores.— Porque um dia foste

noivo de Ada Corishant — Disse Sandokan — E Ada Corishant era prima

Page 895: O Tigre da Malásia

da minha defunta mulher.Ao ouvir esse nome, o

indiano tinha dado um passo atrás vacilando à direita e à esquerda, como se tivesse recebido uma punhalada em pleno peito. Depois cobriu o rosto com as mãos, murmurando com voz atormentada:— Ada! Oh minha

adorada Ada!

Page 896: O Tigre da Malásia

Um soluço levantou o seu peito e duas lágrimas rolaram pelas faces bronzeadas.Sandokan aproximou-se

dele e baixando-lhe as mãos disse-lhe com doçura:— Porque chorais, meu

pobre Tremal-Naik? Este é um dia de alegria.— Ah! Senhor! —

Murmurou o indiano. — Se soubesse quanto amei

Page 897: O Tigre da Malásia

aquela mulher! Ada! Oh! Minha Ada!Um segundo soluço

dilacerou o peito do indiano e novas lágrimas surgiram-lhe nos olhos.— Acalme-se, Tremal-

Naik — Disse Sandokan. — A senhora Ada não está perdida.O indiano levantou a

cabeça que tinha curvado sobre o peito. Uma luz de esperança

Page 898: O Tigre da Malásia

brilhava nos seus olhos negros.— Ela está salva?— Salva! — Disse

Sandokan — E está aqui neste ilhéu.Um grito irrompeu dos

lábios de Tremal-Naik.— Ela está aqui... Aqui!

— Gritou, deitando em volta olhares perdidos. — Onde está? Eu quero vê-la, eu quero vê-la! Ada! Ada! Oh minha adorada Ada!

Page 899: O Tigre da Malásia

Fez um gesto para se lançar para o fortim, mas Sandokan agarrou-o pelos pulsos e com tal força que lhe fez estalar os ossos.— Acalme-se — Disse-

lhe. — Ela está louca!— Louca! A minha Ada

louca! — Gritou o indiano. — Ah!.. Mas eu quero vê-la, senhor, quero vê-la nem que seja por um instante...— Vê-la-á, prometo-lhe.

Page 900: O Tigre da Malásia

— Quando?— Dentro de instantes.— Obrigado, senhor!

Obrigado!— Sambigliong! —

Gritou Eanes.O daiaque, que rondava

em redor do fortim, examinando atentamente as paliçadas para se cer-tificar de que eram bastante sólidas para se defenderem de um

Page 901: O Tigre da Malásia

assalto, acorreu à chamada do português.— A Virgem do Pagode

está a dormir? — PerguntouSandokan.— Não, capitão —

Respondeu o pirata. — Saiu há alguns minutos com os seus guardas.— Para onde se dirigia?— Em direcção à costa.— Venha Tremal-Naik —

Disse Sandokan agarrando-Ihe uma mão.

Page 902: O Tigre da Malásia

— Mas recomendo-lhe que estejais calmo porque ela é louca.

XIIIAS DUAS PROVAS

Eram duas da tarde.Um sol esplêndido

flamejava no firmamento espelhando-se nas águas azuladas da baía, e um ligeiro vento, fresco, soprava do mar, sussurrando misteriosamente entre as

Page 903: O Tigre da Malásia

folhas das árvores. Não se ouvia nem no ilhéu, nem na baía, qualquer grito, além do monótono gorgolar das ondas que se desfaziam contra a costa e o esvoaçar incessante e o chilrear dos argus giganteus, esplêndidos pássaros da família dos faisões.Tremal-Naik, colhido por

uma vivíssima excitação que procurava dominar em vão, Sandokan,

Page 904: O Tigre da Malásia

Eanes e Kammamuri caminhavam a passos rápidos na direcção da ponta setentrional do ilhéu, escondida por uma densa cortina de árvores-da-borracha e de trepadeiras.A quarenta passos da

costa, um dos guardas da louca, que estava deitado atrás de um arbusto, levantou-se.

Page 905: O Tigre da Malásia

— A minha Ada? — Perguntou Tremal-Naik, precipitando-se para ele.— Está na margem —

Respondeu o pirata.— O que é que está

fazer? — Perguntou Sandokan.— Olha o mar.— Onde está o teu outro

companheiro?— A poucos passos

daqui.

Page 906: O Tigre da Malásia

— Vai buscá-lo e retirem-se os dois para o fortim.Tremal-Naik, Sandokan,

Eanes e o marata atra-vessaram rapidamente a densa cortina de árvores e pararam do outro lado. Um grito sufocado saiu dos lábios do indiano.— Ada! — Exclamou.Preparou-se para saltar

na direcção da praia, mas Sandokan foi rápido a agarrá-lo pelos pulsos.

Page 907: O Tigre da Malásia

— Acalme-se — Disse. — Não se esqueça de que aquela mulher está louca.— Estarei calmo.— Prometeis?— Prometo.— Vá então. Nós esperá-

lo-emos aqui.Sandokan, Eanes e

Kammamuri sentaram-se num tronco de uma árvore e Tremal-Naik, aparentemente calmo, mas na realidade

Page 908: O Tigre da Malásia

profundamente agitado, dirigiu-se para a praia.Ali, a poucos passos,

sentada à sombra de uma belíssima árvore cujas flores exalavam um perfume inebriante, estava a Virgem do Pagode, com as mãos cruzadas, os cabelos negros soltos sobre os ombros e os olhos fixos na superfície azul da água que se abria diante dela e se vinha partir

Page 909: O Tigre da Malásia

com um doce murmúrio aos seus pés. Não falava, não se mexia. Poderia tomar-se por uma soberba estátua ali colocada para embelezar a praia.Tremal-Naik, com o

rosto alterado, os olhos brilhantes, ofegante, aproximava-se da noiva em passo rápido e silencioso. Parou a dois passos da jovem que parecia não tê-lo ouvido.

Page 910: O Tigre da Malásia

— Ada! Ada! — Exclamou de repente o indiano com voz sufocada.A louca não se mexeu.

Talvez não tivesse ainda ouvido.— Ada! Oh minha

querida Ada! — Repetiu Tremal-Naik.A Virgem do Pagode ao

ver na sua frente aquele homem que lhe estendia as mãos com gesto suplicante, levantou-se

Page 911: O Tigre da Malásia

num repente. Olhou fixamente o indiano, depois deu dois passos para trás murmurando:— Os tugues!A louca não tinha

reconhecido o noivo de outrora.— Ada! Minha querida

Ada! — Gritou Tremal-Naik colhido por um terrível desespero. — Já não me reconheces?

Page 912: O Tigre da Malásia

— Os tugues! — Repetiu ela, mas sem manifestar terror.Tremal-Naik lançou um

grito de dor e de raiva.— Mas já não me

reconheces, Ada? — Exclamou o infeliz, cravando as unhas na própria carne. — Já não te lembras do desgraçado Tremal-Naik, do Caçador de Tigres da Selva Negra?

Page 913: O Tigre da Malásia

«Volta a ti, Ada, volta a ti. Já não te lembras daquelas noites em que me vias na selva? Já não te lembras daquela noite em que te vi no pagode sagrado? Já não te lembras daquela noite fatal em que os tugues nos fizeram prisioneiros? Ada, oh minha Ada, reconhece o teu Tremal-Naik, reconhece-o!»A louca tinha-o escutado

sem pestanejar, sem

Page 914: O Tigre da Malásia

fazer o mais pequeno gesto. Evidentemente, já não se lembrava de nada. A loucura tinha apagado tudo do coração da pobre mulher.— Ada — Retomou

Tremal-Naik que não continha as lágrimas — Olha para mim, olha, oh minha Ada. Não é possível que não reconheças o teu Tremal-Naik.

Page 915: O Tigre da Malásia

«Mas por que é que te calas? Por que é que não olhas para mim? Por que é que não cais nos meus braços? Por que eu matei o teu pai? Sim, matei... matei...»O desgraçado indiano

rebentou em soluços a essa terrível recordação, escondendo o rosto entre as mãos.De repente a louca, que

tinha assistido impassível ao desespero daquele

Page 916: O Tigre da Malásia

homem, que em tempos havia idolatrado, deu um passo em frente curvando-se para o chão. O rosto tinha-se alterado rapidamente: ficara mais pálida e um brilho passava pelos seus grandes olhos negros.— Soluços — Murmurou.

— Por que chora?Tremal-Naik ao ouvir

aquelas palavras tinha levantado a cabeça.

Page 917: O Tigre da Malásia

— Ada! — Gritou, estendendo os braços para ela. — Reconheces-me?A louca olhou-o durante

alguns instantes em silêncio franzindo várias vezes as sobrancelhas. Parecia procurar lembrar-se de onde tinha visto o rosto do indiano e onde tinha ouvido a sua voz.— Soluços — Repetiu. —

Por que chora?

Page 918: O Tigre da Malásia

— Porque tu já não me reconheces, Ada — Disse Tremal-Naik. — Olha-me no rosto, olha.Ela dobrou-se para ele,

depois deu um passo para trás e rebentou numa gargalhada.— Os tugues! Os

tugues! — Exclamou.Depois virou as costas e

afastou-se rapidamente, dirigindo-se para o fortim.

Page 919: O Tigre da Malásia

Tremal-Naik emitiu um grito de desespero.— Que horror! —

Exclamou tornando a soluçar. — Está tudo perdido! Ela já não me reconhece!Caiu novamente de

joelhos, mas depois levantou-se de repente correndo para a louca que estava prestes a desaparecer numa mata.Mas não tinha ainda

dado cinco passos

Page 920: O Tigre da Malásia

quando dois braços de ferro o pararam.— Acalme-se, Tremal-

Naik — Disse uma voz.Era Sandokan que tinha

deixado o seu posto seguido por Eanes e Kammamuri.— Ah! Senhor —

Balbuciou o indiano.— Acalme-se — Repetiu

Sandokan. — Nem tudo está perdido.— Já não me reconhece.

E eu que pensava apertá-

Page 921: O Tigre da Malásia

la novamente nos meus braços, depois de tanto tempo, tantas angústias, tantas torturas! Tudo acabou, tudo — Murmurou o pobre indiano.— Ainda há uma

esperança, Tremal-Naik.— Para quê iludir-me,

senhor? Ela está louca, nunca mais se curará.— Há-de curar-se e

ainda esta noite, quem to diz é o Tigre da Malásia.

Page 922: O Tigre da Malásia

Tremal-Naik olhou para Sandokan com os olhos cheios de lágrimas.— Então não é uma

esperança momentânea? — Perguntou ele. — O que me diz é mesmo verdade? O senhor mostrou-se tão generoso comigo, fez-me tanto bem, fazei também este milagre e a minha vida será sua.— Hei-de fazer este

milagre, prometo,

Page 923: O Tigre da Malásia

Tremal-Naik — Disse Sandokan com voz grave.— E quando?— Esta noite, já lhe

disse.— De que maneira?— Sabê-lo-á em breve.

Kammamuri?O marata avançou. O

bom jovem, como o seu patrão, tinha lágrimas nos olhos.— Fale, capitão — Disse.

Page 924: O Tigre da Malásia

— Na noite em que o teu patrão se apresentou na caverna de Suyodhana, tu estavas no templo?— Sim, capitão.— Sabes repetir-me o

que disse o chefe dos tugues e o que disse o teu patrão?— Sim, palavra por

palavra.— Pois bem, vem

comigo até ao forte.

Page 925: O Tigre da Malásia

— E nós o que devemos fazer? — Perguntou Eanes.— Por agora não preciso

nem de ti, nem de Tremal-Naik — Disse Sandokan. — Vão dar um passeio e não regressem ao forte antes do anoitecer. Vou preparar-vos uma surpresa.Sandokan e o marata

afastaram-se em direcção ao forte. Eanes deu o braço ao pobre

Page 926: O Tigre da Malásia

Tremal-Naik e puseram-se a passear ao longo da costa, conversando.— O que é que ele vai

preparar? — Perguntou Tremal-Naik ao português.— Não sei, Tremal-Naik,

mas sem dúvida prepara qualquer coisa extraordinária.— Para a minha Ada?— Certamente.— Conseguirá ele fazê-la

recuperar a razão?

Page 927: O Tigre da Malásia

— Acredito que sim. O Tigre da Malásia sabe mil coisas que nós ignoramos.— Ah! Se ele

conseguisse!— Vai conseguir,

Tremal-Naik. Diz-me, esse Suyodhana ainda está vivo?— Acho que sim.— É poderoso?— Muito poderoso,

senhor Eanes. Comanda

Page 928: O Tigre da Malásia

milhares e milhares de estranguladores.— Vai ser difícil atingi-lo.— Diz antes impossível.— Para todos, mas não

para o Tigre da Malásia. Quem sabe, talvez um dia o Tigre da Malásia e o Tigre da Indira possam encontrar-se em frente um do outro.— Achais que sim?— Tenho um

pressentimento. Diz-me, Tremal-Naik, acreditas

Page 929: O Tigre da Malásia

que os tugues ainda têm a sede na ilha de Raimangal?— Não creio. Revelei aos

ingleses o local onde os tugues habitavam e alguns navios foram enviados a Raimangal, mas regressaram sem ter encontrado um único estrangulador.— Tinham fugido?— Sem dúvida.— Mas para onde?— Não sei.

Page 930: O Tigre da Malásia

— São ricos os tugues?— Riquíssimos, senhor

Eanes, porque não se contentam em estrangular. Saqueiam caravanas e aldeias inteiras.— Que belo inimigo para

combater! O Tigre da Malásia havia de se divertir. Quem sabe se um dia, cansados de Mompracem, não iremos à Indira medir forças com

Page 931: O Tigre da Malásia

Suyodhana e as suas gentes.— Pensa regressar a

Mompracem?— Sim, Tremal-Naik —

Disse Eanes. — Amanhã mandaremos alguns homens a Sarawak para adquirir paraus e depois regressaremos à nossa ilha.— E eu posso ir

convosco?— Se viesse connosco

exporia a Virgem do

Page 932: O Tigre da Malásia

Pagode a um perigo contínuo. Sabe que nós somos piratas e todos os dias temos de combater.— Para onde irei então?— Dar-vos-emos uma

escolta de valorosos piratas que o conduzirão a Batávia. Temos lá um palacete e poderão viver aí com Ada.— Isso é de mais,

senhor Eanes — Disse Tremal-Naik com voz comovida. — Não vos

Page 933: O Tigre da Malásia

chega terem exposto as vossas vidas para me salvar, querem também dar-me uma casa?— E um punhado de

diamantes que deve valer alguns milhões, meu caro Tremal-Naik.— Mas eu não os

aceitarei.— Ao Tigre da Malásia

nada se deve recusar, Tremal-Naik. Uma recusa irritá-lo-ia.— Mas...

Page 934: O Tigre da Malásia

— Cale-se, Tremal-Naik. Um milhão para nós não é nada.— São então

imensamente ricos?— Talvez até mais do

que os tugues indianos.Enquanto conversavam,

o Sol tinha-se posto rapidamente e as trevas tinham caído. Eanes olhou para o relógio sob a claridade incerta das estrelas.

Page 935: O Tigre da Malásia

— São nove horas — Disse — Podemos voltar para o forte.Lançou um último olhar

sobre a ampla superfície de água que parecia deserta até aos limites extremos do horizonte, depois deixou a costa entrando no bosque. Tremal-Naik, triste e pensativo, com a cabeça baixa sobre o peito, seguia-o.

Page 936: O Tigre da Malásia

Poucos minutos depois os dois companheiros estavam diante do fortim, à entrada do qual estava Sandokan, fumando fleumaticamente o seu cachimbo.— Esperava-o — Disse

ele, deslocando-se na direcção deles. — Tudo está pronto.— O que é que está

pronto? — Perguntou Tremal-Naik.

Page 937: O Tigre da Malásia

— Aquilo que deverá fazer a Virgem do Pagode recuperar a razão.Segurou pela mão os

dois amigos e conduziu-os ao interior de uma vastíssima cabana que ocupava quase todo o recinto do forte.Tremal-Naik e Eanes

soltaram um grito de surpresa.A ampla sala, em

poucas horas, tinha sido

Page 938: O Tigre da Malásia

convertida, por obra de Sandokan, de Kammamuri e dos piratas, numa horrível caverna que em parte recordava a Tremal-Naik o tempo dos tugues indianos onde o sinistro Suyodhana tinha executado a sua pavorosa vingança.Uma enorme quantidade

de ramos resinosos acesos difundiam a toda a volta uma luz azulada,

Page 939: O Tigre da Malásia

lívida, cadavérica. Aqui e ali haviam sido acumuladas enormes pedras, erguidos troncos de árvore que podiam passar por colunas, adornos de monstros de argila rudemente modelados, alguns representando Vishnu, o deus conservador dos indianos que tem residência no Vaicondu ou mar de leite da serpente Adissescien, e

Page 940: O Tigre da Malásia

outros deuses, gigantescos génios malvados que, divididos em cinco tribos, vão errando pelo mundo do qual não podem sair.No meio erguia-se uma

estátua, também de argila, horrível à vista. Tinha quatro braços, uma língua desmesurada e os seus pés assentavam sobre um cadáver. Diante daquele monstro estava colocada uma

Page 941: O Tigre da Malásia

bacia na qual nadava um peixe.— Onde estamos nós? —

Perguntou Eanes, olhando com espanto aqueles monstros e aquelas tochas.— Num pagode dos

tugues indianos — Disse Sandokan.— Quem fez todos estes

monstros feios?— Nós, irmão.— Em tão poucas horas?

Page 942: O Tigre da Malásia

— Tudo se faz, quando se quer.— Quem é aquela figura

com quatro braços?— Kali, a deusa dos

tugues — Disse Tremal-Naik que a tinha reconhecido.— Parece-lhe, Tremal-

Naik, que este pagode improvisado se assemelha ao dos tugues?— Sim, Tigre da Malásia.

Mas o que quer fazer?

Page 943: O Tigre da Malásia

— Ouve-me.— Estamos a ouvir.— Eu digo e acredito

que só uma impressão extraordinária pode fazer Ada recuperar a razão.— Eu sou da tua opinião,

Sandokan — Disse Eanes — E já compreendo o teu plano.— De verdade?— Tu queres reconstituir

a cena que aconteceu no pagode dos tugues indianos quando Tremal-

Page 944: O Tigre da Malásia

Naik se apresentou a Suyodhana.— Sim, Eanes, é mesmo

isso. Eu serei o chefe dos tugues e repetirei as palavras pronunciadas pelo terrível homem naquela noite fatal.— Quando começamos?— De imediato.— E os tugues? —

Perguntou Tremal-Naik.— Os tugues serão os

meus homens — Disse Sandokan. — Foram

Page 945: O Tigre da Malásia

instruídos por Kammamuri.— Então, em frente.Sandokan encostou aos

lábios o assobio de prata e emitiu um som agudo. De imediato trinta daiaques seminus com as cinturas atadas com um laço de fibras de rotang e com uma serpente com cabeça de mulher pintada no meio do peito, entraram na grande cabana

Page 946: O Tigre da Malásia

colocando-se ao lado da monstruosa divindade dos tugues.— Por que é que têm uma serpente no peito? — Perguntou Eanes.— Todos os tugues têm uma tatuagem semelhante — Respondeu Tremal-Naik.— Ao que parece Kammamuri não se esqueceu de nada.— Estão prontos? — Perguntou Sandokan.

Page 947: O Tigre da Malásia

— Todos — Responderam os daiaques.— Eanes — Disse então Sandokan — Encarrego-te de um papel importante.— O que devo fazer?— Tu, que és branco, deverás representar o pai de Ada. Guiarás os outros piratas que fingirão ser os sipaios indianos e farás o que Kammamuri te disser.— Está bem.

Page 948: O Tigre da Malásia

— Quando eu fingir que te ataco fora do forte, cairás como morto diante de Ada.— Confia em mim, irmão. Cada um para o seu lugar.Tremal-Naik, Eanes e Kammamuri saíram, enquanto Sandokan se sentava em frente da estátua da deusa Kali e os daiaques, que faziam de tugues, se perfilavam aos seus lados.

Page 949: O Tigre da Malásia

A um sinal do Tigre um pirata bateu doze vezes numa espécie de gong que tinha sido encontrado num canto do fortim.Ao último toque a porta da tenda abriu-se, e a Virgem do Pagode entrou, apoiada em dois daiaques.— Aproxima-te, Virgem do Pagode — Disse Sandokan com voz

Page 950: O Tigre da Malásia

grave. — É Suyodhana quem to ordena.Ao ouvir o nome de Suyodhana, a louca tinha parado libertando-se dos braços dos dois piratas. O seu olhar, que se tinha repentinamente acendido e dilatado, fixou-se em Sandokan que estava em pé no meio do pagode, depois nos daiaques, que conservavam uma

Page 951: O Tigre da Malásia

absoluta imobilidade e por último na deusa Kali.Um tremor agitou o seu corpo e algumas rugas desenharam-se no seu rosto.— Kali — Murmurou com

um tom no qual se sentia uma vibração de terror. — Os tugues...Deu alguns passos em

frente continuando a olhar ora para Sandokan, ora para os piratas, ora para a monstruosa

Page 952: O Tigre da Malásia

divindade dos tugues, depois passou duas ou três vezes a mão pelo rosto e pareceu fazer um esforço supremo para recordar uma cena horrível.De repente, Tremal-Naik

irrompeu no pagode e correu para ela, gritando:— Ada!A jovem tinha parado de

repente: o seu rosto tinha ficado pálido e manifestava uma

Page 953: O Tigre da Malásia

inexprimível ansiedade. Os seus olhos, que pareciam perder pouco a pouco aquela luz estranha própria dos loucos, estavam fixos em Tremal-Naik.— Ada! — Repetiu este,

com voz dilacerada. — Volta a ti!Naquele instante ouviu-

se uma voz gritar:— Fogo!Alguns disparos

ribombaram à entrada do

Page 954: O Tigre da Malásia

pagode e alguns homens, guiados por Eanes, irromperam no interior enquanto os daiaques, como os tugues naquela noite fatal, fugiam em todas as direcções.Ada ficara imóvel.

Subitamente estremeceu, depois curvou-se para a frente como se procurasse ouvir um novo disparo.

Page 955: O Tigre da Malásia

Sandokan tinha parado na extremidade do pagode e não a perdia de vista. Teria compreendido o que esperava ainda aquela desgraçada? Talvez, pois pôs-se a gritar, como havia gritado o feroz Suyodhana:— Ide! Havemos de nos

rever na selva!Tinha acabado de

pronunciar estas palavras quando um

Page 956: O Tigre da Malásia

grito agudíssimo irrompeu dos lábios da louca.Deu um passo em frente

com o rosto alterado, os braços levantados, cambaleou, rodou sobre si mesma e caiu nos braços de Eanes.— Morta! Morta! —

Gritou Tremal-Naik, com tom desesperado.— Não — Disse

Sandokan. — Ela está salva!

Page 957: O Tigre da Malásia

Apoiou uma mão sobre o peito da Virgem. O coração batia, debilmente sim, mas batia.— Desmaiou — Disse

ele.— Então está salva —

Disse Eanes.— Se ao menos fosse

verdade! — Exclamou Tremal-Naik, que ria e chorava ao mesmo tempo.

Page 958: O Tigre da Malásia

Kammamuri estava de volta com água. Sandokan borrifou várias vezes o rosto da jovem e esperou que ela voltasse a si.Passaram alguns

minutos, depois um profundo suspiro saiu dos lábios da jovem.— Está a acordar —

Disse Sandokan.— Tenho de ficar aqui?

— Perguntou Tremal-Naik.

Page 959: O Tigre da Malásia

— Não — Respondeu Sandokan. — Quando lhe tivermos narrado tudo, mandaremos buscar-te.O indiano deitou um

longo olhar sobre a Virgem do Pagode e saiu sufocando um soluço.— Tens esperança,

Sandokan? — Perguntou Eanes.— Muita — Respondeu o

pirata. — Amanhã estes dois infelizes poderão unir-se para sempre.

Page 960: O Tigre da Malásia

— E nós...— Calado, Eanes: está a

abrir os olhos.A jovem tinha de facto

voltado a si. Soltou um segundo suspiro mais longo do que o primeiro, depois abriu os olhos fixando-os em Sandokan e Eanes. Aquele olhar já não era o de antes; era límpido, era o olhar de uma mulher que já não estava louca.

Page 961: O Tigre da Malásia

— Onde estou eu? — Perguntou ela com voz fraca, tentando levantar-se.— Entre amigos,

senhora — Disse Sandokan.— Mas o que é que

aconteceu? — Murmurou. — Sonhei? Onde estou? Quem são vocês?— Senhora — Disse

Sandokan — Repito está entre amigos. O que aconteceu, pergunta-me?

Page 962: O Tigre da Malásia

Digo-lhe que já não está louca.— Louca! Louca? —

Exclamou a Virgem com surpresa. — Eu estava louca? Não sonhei? Ah... lembro-me... É horrível...Um ataque de choro

sufocou a sua voz.— Acalme-se, senhora

— Disse Sandokan. — Aqui não corre qualquer perigo. Suyodhana já não existe e aqui não há

Page 963: O Tigre da Malásia

tugues. Não estamos na Indira, mas no Bornéu.Com um esforço

violento, Ada levantou-se e apertando as mãos de Sandokan, disse-lhe chorando:— Em nome de Deus

diga-me o que aconteceu e quem é. Acho que não compreendo mais nada.Eram as perguntas que

Sandokan esperava. Então com voz grave narrou-lhe sucintamente

Page 964: O Tigre da Malásia

tudo o que tinha acontecido primeiro na Indira, depois em Mompracem e por último no Bornéu.— Agora — Concluiu

Sandokan — Se ainda ama Tremal-Naik, aquele corajoso indiano que por si fez milagres, ele estará aos seus pés com um sinal seu.— Se o amo! —

Exclamou Ada. — Onde está ele? Deixe que o

Page 965: O Tigre da Malásia

veja novamente depois de uma tão longa separação.— Tremal-Naik! —

Gritou Eanes.O indiano precipitou-se

para dentro do pagode e caiu aos pés de Ada, exclamando:— Minha! Ainda minha!

Diz-me outra vez, Ada, que serás minha mulher!A jovem pousou as

mãos sobre a cabeça do noivo:

Page 966: O Tigre da Malásia

— Sim, serei tua mulher — Disse ela. — O meu pai tinha-me prometido a ti e ainda te amo.Nesse mesmo instante

uma descarga de tiros de espingarda ribombava nas margens da baía seguida por uma voz sonante que gritava:— Alerta! Piratas de

Mompracem! Aí está o inimigo!

XIV

Page 967: O Tigre da Malásia

A DESFORRA DO RAJÁ BROOKE

Ao ouvir aqueles tiros de espingarda e aqueles gritos, o Tigre da Malásia tinha dado um salto na direcção da porta da cabana, lançando um verdadeiro rugido.— O inimigo aqui! —

Exclamou com os dentes cerrados. — Aqui, neste momento! James Brooke, cuidado!

Page 968: O Tigre da Malásia

Tirou a cimitarra, arma terrível nas mãos daquele homem formidável, e lançou-se para fora do forte, gritando:— A mim, Tigres de

Mompracem!Eanes, os piratas,

Kammamuri e até os dois noivos lançaram-se atrás dele empunhando armas. A Virgem do Pagode tinha também ela empunhado uma

Page 969: O Tigre da Malásia

cimitarra pronta a combater ao lado dos seus benfeitores.Aier-Duk e os seus oito

homens desciam, a correr, a encosta que levava à baía.Atrás deles,

semiescondidos entre as árvores da floresta, Sandokan viu um grande agrupamento de tropas de homens armados, alguns brancos, outros indianos e daiaques.

Page 970: O Tigre da Malásia

— Alerta, piratas de Mompracem! O inimigo — Gritou Aier-Duk, precipitando-se na direcção do barco que estava encalhado na margem.Seis ou sete tiros de

espingarda ressoaram na floresta e algumas balas caíram na água.— As tropas do rajá

Brooke! — Exclamou Sandokan. — E logo neste momento, quando

Page 971: O Tigre da Malásia

eu pensava que a minha missão tivesse terminado! Pois bem, James Brooke, vem-me desafiar! O Tigre da Malásia não te teme!— O que é que fazemos,

Sandokan? — Perguntou Eanes.— Vamos combater,

irmão — Respondeu o pirata.— Vão-nos bloquear.— O que é que isso

importa?

Page 972: O Tigre da Malásia

— Estamos numa ilha, meu irmão.— Mas dentro de um

forte.Aier-Duk e os seus

homens, depois de atravessarem rapidamente o braço de mar, tinham desembarcado na ilha. Sandokan e Eanes lançaram-se na direcção do bravo daiaque que tinha um braço ensanguentado.

Page 973: O Tigre da Malásia

— Foste surpreendido? — Perguntou-lhe Sandokan.— Sim, capitão, mas

reconduzo todos os meus homens.— Quantos são os

inimigos?— Pelo menos trezentos.— Quem é que os

comanda?— Um branco, capitão.— O rajá?— Não, não é o rajá; é

um tenente da marinha.

Page 974: O Tigre da Malásia

— Um homem de estatura alta com bigode ruivo? — Perguntou Eanes.— Sim — Respondeu o

daiaque. — E traz com ele uns quarenta marinheiros europeus.— É o tenente Churchill.— Quem é esse tal

Churchill? — Perguntou Sandokan.— O comandante do

fortim que domina a cidade de Brooke.

Page 975: O Tigre da Malásia

— E não viste o rajá? — Perguntou o Tigre a Aier-Duk.— Não, capitão.Sandokan rangeu os

dentes.— O que tens? —

Perguntou Eanes.— Temo que o maldito

nos ataque por mar — Disse o pirata. — Talvez a esta hora o Realista navegue na direcção da baía.

Page 976: O Tigre da Malásia

— Por Júpiter! — Exclamou Eanes, franzindo a testa.— Vamos ser apanhados

entre dois fogos!— É certo.— Diachos!— Mas havemos de nos

bater, e quando já não tivermos nem pólvora nem balas, avançaremos com a cimitarra e com o kriss.O inimigo, que tinha

parado a seiscentos

Page 977: O Tigre da Malásia

metros das margens da baía, começava então a avançar mantendo-se escondido atrás das árvores e dos densos arbustos. A artilharia, interrompida durante um instante, recomeçou a estalar.— Por Júpiter! —

Exclamou Eanes. — Granizo!— Retiremo-nos para o

forte — Disse Sandokan.

Page 978: O Tigre da Malásia

— É sólido e resistirá às balas de espingarda.Os piratas, Tremal-Naik,

Ada e Kammamuri voltaram a entrar no recinto, depois de ter afundado o barco para que o inimigo não o aproveitasse na travessia do braço de mar.A porta da entrada foi

barricada com enormes pedras, numerosas aberturas foram feitas na paliçada, depois todos os

Page 979: O Tigre da Malásia

combatentes, excepto a Virgem do Pagode, que foi conduzida à grande cabana, tomaram os lugares que mais lhes convinham.— Fogo, Tigres de

Mompracem! — Trovejou Sandokan que tinha subido, com Eanes e sete ou oito dos piratas mais audazes, ao telhado da grande cabana.Ao comando respondeu

o grito de guerra dos

Page 980: O Tigre da Malásia

piratas, seguido de vários tiros de espingarda.— Viva o Tigre da

Malásia! Viva Mompracem!O inimigo, continuando

a disparar, tinha chegado perto da praia. Alguns homens procuravam abater árvores, talvez com a intenção de fazer uma jangada e desembarcar na ilha.

Page 981: O Tigre da Malásia

Muito cedo se aperceberam, contudo, que não era assim tão fácil aproximar-se de um fortim defendido pelos terríveis piratas de Mompracem.Descargas mortíferas

partiam do recinto e com tal rapidez e precisão que em poucos minutos quinze ou dezasseis homens jaziam por terra sem vida.

Page 982: O Tigre da Malásia

— Fogo, Tigres de Mompracem! — Ouvia-se gritar o Tigre da Malásia, a cada instante.— Viva o Tigre! Viva

Mompracem! — Respondiam os piratas.Os soldados do rajá

depressa se viram obrigados a retroceder até ao bosque e a esconder-se atrás dos troncos das árvores.Tinham acabado de

efectuar aquela retirada,

Page 983: O Tigre da Malásia

quando da margem oposta da baía surgiu, no incerto brilho das estrelas, outro grande grupo de homens.Uma terrível saraivada

de balas caiu de imediato sobre o forte e sobre o telhado da grande cabana, no cimo da qual estava Sandokan.— Por Júpiter! —

Exclamou Eanes. — Mais inimigos!

Page 984: O Tigre da Malásia

— E barcos também — Disse Sambigliong que estava junto a ele.— Onde?— Olhe ali ao fundo, no

extremo da baía. São dois, quatro, sete, uma verdadeira frota!— Diabos! — Exclamou

o português — Ei! Meu irmão!— O que queres? —

Disse Sandokan que carregava a sua carabina.

Page 985: O Tigre da Malásia

— Estamos para ser capturados.— Não tens uma

espingarda?— Sim.— E uma cimitarra e um

kriss?— Certamente.— Pois então, irmão, nós

vamo-nos bater.Subiu para o telhado,

sem se preocupar com as balas que lhe assobiavam à volta, e bradou:

Page 986: O Tigre da Malásia

— Tigres de Mompracem, vingança! O exterminador dos piratas aproxima-se! Todos para as paliçadas e fogo sobre esses cães que nos desafiam!Os piratas abandonaram

precipitadamente as aberturas e subiram, como gatos, para cima do recinto.Tremal-Naik,

Sambigliong, Tanauduriam e Aier-Duk

Page 987: O Tigre da Malásia

dirigiam-nos encorajando-os com a voz e com o exemplo.Depressa recomeçaram

os tiros de mosquete, mas com uma fúria incrível. Debaixo de cada árvore da costa faiscava um relâmpago seguido de uma detonação. Centenas e centenas de balas cruzavam-se no ar com assobios.De vez em quando, por

entre aquela confusão

Page 988: O Tigre da Malásia

que continuava a aumentar, ouvia-se a voz ribombante do Tigre da Malásia, os gritos dos tigres, os comandos dos oficiais do rajá e os gritos selvagens dos indianos e dos daiaques. Por vezes não eram gritos de triunfo, nem gritos de entusiasmo: eram gritos lancinantes, gritos de feridos, gritos de moribundos.

Page 989: O Tigre da Malásia

De repente, na direcção do mar ouviu-se uma fortíssima detonação, que cobriu o estalar dos mosquetes. Era a possante voz do canhão.— Ah! — Exclamou

Sandokan. — A frota do rajá!Olhou para o oceano.

Uma grande sombra entrava na baía aproximando-se da ilha; duas lanternas, uma

Page 990: O Tigre da Malásia

verde, a outra vermelha, brilhavam dos lados.— Ei! Sandokan! —

Gritou uma voz. — Corpo de uma espingarda!— Coragem, Eanes! —

Respondeu Sandokan.— Por Júpiter! Temos um

navio às costas.— Se for preciso

abordamo-lo e...Não acabou.— O Realista! —

Exclamou subitamente Sandokan.

Page 991: O Tigre da Malásia

Com efeito, aquele navio que acorria em auxílio dos atacantes era o schooner do rajá James Brooke, o mesmo que na foz do Sarawak tinha atacado e afundado o Helgoland.— Maldito — Rugiu

Sandokan, mirando-o com dois olhos que lançavam chamas. — Ah! Por que é que não tenho um parau também eu? Havia de te mostrar

Page 992: O Tigre da Malásia

como é que os Tigres de Mompracem se sabem bater com a arma branca!Um novo tiro de canhão

ribombou na coberta do barco inimigo e uma nova bala veio abrir um novo furo.O Tigre da Malásia

lançou um grito de dor e de raiva.— Tudo acabou! —

Exclamou.

Page 993: O Tigre da Malásia

Precipitou-se do telhado da cabana seguido por todos os seus companheiros, enquanto uma chuva de metralha varria o topo do forte, e subiu à barricada que fechava a entrada do fortim gritando:— Fogo, Tigres de

Mompracem, fogo! Vamos mostrar ao rajá como sabem bater-se os piratas da Malásia!

Page 994: O Tigre da Malásia

A batalha ganhava proporções gigantescas. As tropas do rajá que até então se haviam mantido escondidas nos bosques, tinham avançado na direcção da praia fazendo daí um fogo infernal; a frota que até então se mantinha a uma distância respeitável, vendo-se apoiada pelos canhões do barco, havia-se movimentado para a

Page 995: O Tigre da Malásia

frente, decidida, ao que parecia, a arribar à ilha.A posição dos piratas

depressa se tornou desesperada. Combatiam com extrema raiva entusiasmados pela voz do Tigre da Malásia; mas eram poucos para defrontar tantos inimigos.As balas caíam de

maneira cerrada, entrando pelas aberturas e pelas fissuras dos

Page 996: O Tigre da Malásia

muros, fazendo cair dois ou três piratas de cada vez que disparavam do cimo da paliçada. E muitas vezes não eram simples balas, mas granadas que os canhões do Realista lançavam e que abriam brechas assustadoras, através das quais o inimigo, depois de desembarcar, podia penetrar no fortim.Às três da manhã um

novo auxílio chegava aos

Page 997: O Tigre da Malásia

atacantes. Era um veloz iate armado de um único, mas grande, canhão que abriu de imediato fogo contra as paliçadas do forte, que já começavam a desabar.— Acabou! — Disse

Sandokan do cimo da barricada, enquanto com os dedos queimados, o rosto alterado, atirava contra a frota que continuava a avançar. —

Page 998: O Tigre da Malásia

Dentro de dez minutos teremos de nos render.Às 4 da manhã apenas

sete homens continuavam no fortim: Sandokan, Eanes, Tremal-Naik, Ada, Sambigliong, Kammamuri e Tanauduriam. Tinham deixado a muralha, que já não oferecia qualquer protecção, e retirado para a grande cabana, de que uma parte havia

Page 999: O Tigre da Malásia

sido destruída pelos tiros de canhão do Realista e do iate.— Sandokan — Disse

Eanes a certa altura — Já não podemos resistir.— Enquanto tivermos

pólvora e balas não nos renderemos — Respondeu o Tigre da Malásia olhando a flotilha inimiga que apesar de repelida seis vezes seguidas, voltava à carga

Page 1000: O Tigre da Malásia

para desembarcar os seus homens.— Não estamos sós,

Sandokan. Temos connosco uma mulher, a Virgem do Pagode.— Ainda podemos

vencer, Eanes. Deixamos o inimigo desembarcar e lançamo-nos sobre eles. Sinto-me suficientemente forte para lutar contra todos estes malditos que o rajá empurra contra mim.

Page 1001: O Tigre da Malásia

— E se uma bala colhesse a Virgem? Olha, Sandokan, olha!Uma granada lançada

do Realista tinha rebentado naquele momento, furando um grande bocado da parede. Alguns fragmentos de ferro entraram na grande sala, assobiando sobre o grupo dos piratas.— Vão matar a minha

noiva! — Exclamou

Page 1002: O Tigre da Malásia

Tremal-Naik, que se havia prontamente posto em frente da Virgem do Pagode.— Temos de nos render

ou preparar-nos para morrer — Disse Kammamuri.— Rendamo-nos,

Sandokan — Gritou Eanes. — Trata-se de salvar a prima da defunta Mariana Guillonk.

Page 1003: O Tigre da Malásia

Sandokan não respondeu. Frente a uma das janelas, com a espingarda nas mãos, os olhos em brasa, os lábios semiabertos, as feições alteradas por uma raiva violenta, olhava o inimigo que se aproxi-mava rapidamente da ilha.— Rendamo-nos,

Sandokan — Repetiu Eanes.

Page 1004: O Tigre da Malásia

O Tigre da Malásia respondeu com um suspiro rouco.Uma segunda granada

entrou por um buraco caindo próximo da parede oposta onde rebentou, atirando em seu redor fragmentos em chamas.— Sandokan! — Gritou

pela terceira vez Eanes.— Irmão — Murmurou o

Tigre.— Temos de nos render.

Page 1005: O Tigre da Malásia

— Rendermo-nos! — Gritou Sandokan com um tom que já nada tinha de humano.— O Tigre da Malásia,

render-se a James Brooke! Oh! Porque não tenho eu comigo os tigres que deixei na minha Mompracem? Render-me! Render-se o Tigre da Malásia!— Tens uma mulher

para salvar, Sandokan!— Eu sei...

Page 1006: O Tigre da Malásia

— E esta mulher é a prima da tua defunta mulher.— É verdade! É

verdade!— Rendamo-nos,

Sandokan.Uma terceira granada

rebentou na sala, enquanto duas balas de grande calibre, atingindo o topo da cabana, faziam desabar boa parte do telhado. O Tigre da Malásia virou-se e olhou

Page 1007: O Tigre da Malásia

os seus companheiros. Todos empunhavam armas e estavam prontos a continuar a luta; no meio deles estava a Virgem do Pagode. Parecia tranquila, mas nos seus olhos lia-se a mais viva ansiedade.— Já não há qualquer

esperança — Murmurou com voz lúgubre o pirata. — Dentro de dez minutos nenhum destes valentes

Page 1008: O Tigre da Malásia

estará de pé. Temos de nos render.Segurou a cabeça entre

as mãos, e pareceu querer esmagar a própria testa.— Sandokan! — Disse

Eanes.Um hurra fragoroso

cobriu a sua voz. Os soldados do rajá tinham atravessado o braço de mar e dirigiam-se para o forte.

Page 1009: O Tigre da Malásia

Sandokan sacudiu-se. Empunhou a sua terrível cimitarra e fez como se quisesse lançar-se para fora da cabana, mas conteve-se.— Soou a última hora

para os Tigres de Mompracem! — Exclamou com dor. — Sambigliong, iça a ban-deira branca.Tremal-Naik com um

gesto parou o pirata que prendia um pano branco

Page 1010: O Tigre da Malásia

ao cano de uma espingarda, e aproximou-se de Sandokan segurando pela mão a noiva.— Senhor — Disse-lhe —

Se se render, eu, Kammamuri e a minha noiva estaremos a salvo, mas os senhores, que são mortalmente odiados pelo rajá, são sem dúvida enforcados. Acabou de nos salvar: nós colocamos nas suas

Page 1011: O Tigre da Malásia

mãos as nossas vidas. Se ainda tiver a esperança de vencer, comande o assalto e nós gritaremos: Viva o Tigre da Malásia! Viva Mompracem!— Obrigado, meus

nobres amigos — Disse Sandokan com a voz comovida, apertando vigorosamente as mãos da jovem e do indiano. — O inimigo já desem-barcou e nós somos só sete. Rendamo-nos.

Page 1012: O Tigre da Malásia

— Mas e vocês? — Perguntou Ada.— James Brooke não me

enforcará, senhora — Disse o pirata. — O Tigre tem ainda mil recursos.— A bandeira branca,

Sambigliong — Disse Eanes que tinha acendido um cigarro.O pirata subiu ao

telhado da cabana e agitou o pano branco. Logo se ouviu o som de uma trompa ecoar na

Page 1013: O Tigre da Malásia

coberta do Realista, seguido de hurras ruidosos.Sandokan com a

cimitarra em punho saiu da cabana, atravessou a praça do forte cheio de destroços e de cadáveres, de armas e de balas de canhão e parou perto da barricada demolida.Duzentos soldados do

rajá tinham desembarcado e

Page 1014: O Tigre da Malásia

estavam alinhados na praia com as armas na mão, prontos a lançar-se ao ataque. Uma chalupa em que vinham o rajá Brooke, Lord Guillonk e doze marinheiros tinha-se destacado dos flancos do Realista e aproximava-se rapidamente da ilha.— Ele e o meu tio —

Murmurou Sandokan com voz triste.

Page 1015: O Tigre da Malásia

Cruzou os braços sobre o peito, depois de ter embainhado a cimitarra e esperou tranquilamente os seus dois mais acérrimos inimigos.A embarcação, que

avançava vigorosamente, em poucos minutos chegou perto do fortim. James Brooke e Lord Guillonk desembarcaram e, seguidos a breve

Page 1016: O Tigre da Malásia

distância por um forte grupo de soldados, aproximaram-se de Sandokan.— Pede uma trégua ou é

uma rendição? — Perguntou o rajá saudando com o sabre.— Rendo-me, senhor —

Disse o pirata restituindo a saudação. — Os vossos canhões e os vossos homens domaram os Tigres de Mompracem.

Page 1017: O Tigre da Malásia

Um sorriso de triunfo aflorou aos lábios do rajá.— Eu sabia que acabaria

por vencer o indomável Tigre da Malásia — Disse. — Senhor, estais preso!Sandokan, que até

então não se tinha mexido, ao ouvir aquelas palavras levantou orgulhosamente a cabeça, lançando sobre o rajá um daqueles olhares que fazem tremer até os

Page 1018: O Tigre da Malásia

homens mais corajosos da terra.— Rajá Brooke — Disse

com voz sibilante. — Tenho atrás de mim cinco tigres da Mompracem, apenas cinco, mas capazes de sustentar ainda uma luta contra todas as vossas tropas. Tenho atrás de mim cinco homens capazes de se atirarem contra vós a um sinal meu e de vos estender

Page 1019: O Tigre da Malásia

no chão sem vida, apesar das tropas que vos rodeiam. Prender-me-á só quando eu fizer sinal àqueles homens para deporem as armas.— Não vos rendeis

então?— Rendo, mas com uma

condição.— Senhor, as minhas

tropas já desembarcaram; faço-vos notar que sois seis e nós duzentos e

Page 1020: O Tigre da Malásia

cinquenta; que basta um sinal meu para mandar que vos fuzilem. Parece-me estranho que o Tigre da Malásia vencido queira ainda ditar condições.— O Tigre da Malásia

ainda não está vencido, rajá Brooke — Disse Sandokan com orgulho. — Ainda tenho a minha cimitarra e o meu kriss.— Devo ordenar o

ataque?

Page 1021: O Tigre da Malásia

— Quando vos disser o que peço.— Falai.— Rajá Brooke, eu, o

capitão Eanes de Gomera e os daiaques Tanauduriam e Sambigliong, todos pertencentes ao bando de Mompracem, rendemo-nos sob as seguintes condições:«Que sejamos julgados

pelo Supremo Tribunal de Calcutá, e que seja

Page 1022: O Tigre da Malásia

concedida a maior liberdade de irem para onde entenderem a Tremal-Naik, ao seu servo Kammamuri e a miss Ada Corishant!»— Ada Corishant! Ada

Corishant! — Exclamou Lord Guillonk, lançando-se na direcção de Sandokan.— Sim, Ada Corishant —

Disse Sandokan.— É impossível que ela

esteja aqui!

Page 1023: O Tigre da Malásia

— E porquê, milord?— Porque ela foi raptada

pelos tugues indianos e nunca mais se ouviu falar dela.— E, contudo, ela está

neste forte, milord.— Lord James — Disse o

rajá. — Conheceu Miss Ada Corishant?— Sim, Alteza —

Respondeu o velho lorde. — Conheci-a poucos meses antes de ter sido

Page 1024: O Tigre da Malásia

raptada pelos sectários de Kali.— Se a visse,

reconhecê-la-ia?— Sim, e tenho a

certeza que também ela me reconheceria apesar de terem passado já cinco anos desde essa época funesta.— Pois bem, senhores,

sigam-me — Disse Sandokan.Fê-los atravessar a

paliçada e conduziu-os

Page 1025: O Tigre da Malásia

até à grande cabana, no meio da qual estavam, reunidos em torno da Virgem do Pagode, com as espingardas na mão e o kriss nos lábios, Eanes, Tremal-Naik, Kammamuri, Tanauduriam e Sambigliong.Sandokan segurou a

mão de Ada e apresentando-a ao lorde, disse-lhe:— Reconhece-a?

Page 1026: O Tigre da Malásia

Dois gritos foram a resposta.— Ada!— Lord James!Depois o velho e a

jovem abraçaram-se efusivamente, beijando-se. Ambos se tinham reconhecido.— Senhor — Disse o

rajá, dirigindo-se a Sandokan. — Como é que Miss Ada se encontra nas suas mãos?

Page 1027: O Tigre da Malásia

— Ela própria vo-lo dirá — Respondeu Sandokan.— Sim, sim, quero sabê-

lo! — Exclamou Lord James que continuava a abraçar e a beijar a jovem, chorando de alegria. — Quero saber tudo.— Narre-lhe tudo, então,

Miss Ada — Disse San-dokan.A jovem não deixou que

lho pedissem duas vezes e narrou brevemente ao

Page 1028: O Tigre da Malásia

lorde e ao rajá a sua história que os leitores já conhecem.— Lord James — Disse

ela, quando acabou — A minha salvação devo-a a Tremal-Naik e a Kammamuri; a minha felicidade ao Tigre da Malásia. Abrace estes homens, milord.Lord James aproximou-

se de Sandokan com os braços cruzados sobre o

Page 1029: O Tigre da Malásia

peito e o rosto levemente alterado.— Sandokan — Disse o

velho com voz comovida. — Raptou-me a minha sobrinha, mas devolveu-me outra mulher que eu amava tanto como à outra. Perdoo-vos, abrace-me, sobrinho, abrace-me!O Tigre da Malásia

precipitou-se para os braços do velho e aqueles inimigos, ao fim

Page 1030: O Tigre da Malásia

de tantos anos, beijaram-se na face.Quando se separam, as

lágrimas escorriam dos olhos do velho lorde.— É verdade que a tua

mulher morreu? — Perguntou ele com a voz quebrada.A essa pergunta o rosto

do Tigre da Malásia alterou-se assustadoramente. Fechou os olhos, cobriu-os com os dedos

Page 1031: O Tigre da Malásia

crispados e lançou um gemido rouco.— Responde, Sandokan,

responde — Disse o velho.— Sim, morreu — Disse

o Tigre com uma voz dilacerante.— Pobre Mariana! Pobre

sobrinha!— Cale-se, cale-se —

Murmurou Sandokan.Um soluço sufocou a sua

voz. O Tigre da Malásia chorava!

Page 1032: O Tigre da Malásia

Eanes aproximou-se do amigo e pousando-lhe uma mão no ombro:— Coragem, meu irmão

— Disse-lhe. — Diante do exterminador dos piratas, o Tigre da Malásia não se deve mostrar fraco.Sandokan enxugou as

lágrimas quase com raiva e levantou de novo a cabeça com um gesto orgulhoso.

Page 1033: O Tigre da Malásia

— Rajá Brooke, estou à sua disposição. Eu e os meus companheiros rendemo-nos.— Que companheiros?

— Perguntou o rajá com o rosto ensombrado.— Eanes, Tanauduriam

e Sambigliong.— E Tremal-Naik?— Como! Ousa...— Eu não ouso nada —

Disse James Brooke. — Obedeço e nada mais.— O que quer dizer?

Page 1034: O Tigre da Malásia

— Que Tremal-Naik ficará prisioneiro tal como vós.— Alteza! — Exclamou

Lord Guillonk. — Alteza!— Lamento, milord, mas

não me compete a mim conceder liberdade a Tremal-Naik. Foi-me entregue e tenho de devolvê-lo às autoridades inglesas que não deixarão de o reclamar.

Page 1035: O Tigre da Malásia

— Mas ouviu toda a história deste meu novo sobrinho.— É verdade, mas não

posso transgredir as ordens recebidas das autoridades anglo-indianas. Dentro de dias um barco de deportados aportará a Sarawak e eu terei de o entregar a esse comandante.— Senhor! — Exclamou

Tremal-Naik, com a voz quebrada. — Não

Page 1036: O Tigre da Malásia

permita que me separem da minha Ada e me conduzam até Norfolk.— Rajá Brooke — Disse

Sandokan. — Vós cometereis uma infâmia.— Não, obedeço —

Respondeu o rajá. — Lord Guillonk poderá ir a Calcutá, explicar as cobardias dos tugues e fazer com que lhe perdoem a pena e eu, da minha parte, prometo apoiá-lo.

Page 1037: O Tigre da Malásia

Ada, que até então tinha ficado muda, oprimida por uma angústia mortal, avançou:— Rajá — Disse ela com

a voz embargada. — Quer então que volte a ficar louca?— Recuperou o seu

noivo, miss. As autoridades anglo-indianas vão rever o processo e não demorarão a pôr Tremal-

Page 1038: O Tigre da Malásia

Naik novamente em liberdade.— Deixe então que eu

embarque com ele.— Está a brincar, miss?— Quero segui-lo.— Num barco de

forçados? Num tal inferno!— Quero segui-lo —

Disse ela com exaltação.James Brooke olhou-a

com uma certa surpresa.

Page 1039: O Tigre da Malásia

Parecia impressionado pela suprema energia daquela jovem.— Responda-me —

Disse Ada, vendo que ele se mantinha mudo.— É impossível, miss —

Disse depois. — O comandante do navio não a aceitaria. Siga o seu tio até à Indira para obter o perdão para o seu noivo. O seu testemunho bastará para lhe devolver a liberdade.

Page 1040: O Tigre da Malásia

— É verdade, Ada — Disse Lord Guillonk. — Se seguisses Tremal-Naik eu ficaria só e faltar-me-ia o principal testemunho para salvar o teu noivo.— Mas quer que eu volte

a abandoná-lo! — Exclamou ela rebentando em soluços.— Ada! — Disse Tremal-

Naik.— Alteza — Disse

Sandokan, avançando para o rajá. — Concede-

Page 1041: O Tigre da Malásia

me cinco minutos de liberdade?— O que quer fazer? —

Perguntou James Brooke.— Quero convencer Ada

a seguir Lord James.— À vontade.— Mas a vossa presença

não é necessária: quero falar sem que outros me oiçam.— Concedo-vos o que

pede. Contudo, se pensa fugir aviso-o de que toda a baía está cercada.

Page 1042: O Tigre da Malásia

— Eu sei. Sigam-me, amigos.Saiu da cabana

semidestruída e conduziu os seus amigos para o interior do forte.— Escutem-me, amigos

— Disse ele. — Eu possuo ainda meios de fazer empalidecer o rajá se pudesse conhecê-los. Miss Ada, Lord James...— Lord James não,

chame-me tio, Sandokan

Page 1043: O Tigre da Malásia

— Disse o inglês. — Também é meu sobrinho.— É verdade, meu tio —

Disse o Tigre com voz comovida. — Miss Ada, não insista mais e renuncie à ideia de seguir o noivo até à ilha de Norfolk. Procuremos, em vez disso, obter do rajá que mantenha Tremal-Naik em Sarawak até as autoridades de Calcutá terem revisto o

Page 1044: O Tigre da Malásia

processo e decidido a sua sorte.— Mas será uma longa

separação — Disse Ada.— Não, miss, será

breve, garanto-lhe. Procuro obter isto do rajá para ganhar tempo.— O que quer dizer? —

Perguntaram Tremal-Naik e Lord Guillonk.Um sorriso aflorou aos

lábios de Sandokan.— Ah! — Disse ele. —

Pensam que eu ignoro a

Page 1045: O Tigre da Malásia

sorte que me espera também em Calcutá? Os ingleses odeiam-me demasiado e eu fiz-lhes uma guerra demasiado dura e feroz para esperar que me deixem com vida. Quero voltar a ser livre, percorrer ainda o mar e rever a minha selvagem Mompracem.— Mas o que quereis

fazer? Quem espera? — Perguntou Lord James.

Page 1046: O Tigre da Malásia

— O neto de Muda-Hassin.— Do sultão deposto por

Brooke? — Perguntou Lord James.— Sim, tio. Eu sei que

ele prepara uma conjura para recuperar o trono e que mina, lentamente mas incessantemente, o poder de Brooke— O que podemos

fazer? — Perguntou Ada. — A si devo a minha salvação e hei-de dever a

Page 1047: O Tigre da Malásia

liberdade de Tremal-Naik.— Procura esse homem,

e diz-lhe que os Tigres de Mompracem estão prontos a ajudá-lo. Os meus piratas desembarcarão aqui, colocar-se-ão à cabeça dos insurrectos e virão atacar, antes de mais, a nossa prisão.— Mas eu sou inglês,

sobrinho — Disse o lorde.

Page 1048: O Tigre da Malásia

— E nada exijo de si, meu tio. Não pode conspirar contra um compatriota.— Mas quem agirá?— Miss Ada e

Kammamuri.— Oh sim, senhor —

Disse a jovem. — Falai: o que devo fazer?Sandokan desapertou o

casaco e tirou uma bolsa da faixa que tinha sobre a camisa de seda.

Page 1049: O Tigre da Malásia

— Irá ter com o neto de Muda-Hassin e dir-lhe-eis que Sandokan, o Tigre da Malásia, lhe oferece estes diamantes, que valem dois milhões, para apressar a revolta.— E eu, o que devo

fazer? — Perguntou Kammamuri.Sandokan tirou um anel,

de uma forma especial, adornado com uma grande esmeralda e estendeu-lho dizendo:

Page 1050: O Tigre da Malásia

— Tu irás a Mompracem, e mostrarás aos meus piratas este anel, dir-lhes-ás que estou preso e que embarquem para ajudar a insurreição do neto de Muda-Hassin. Vamos regressar: o rajá está desconfiado.Regressaram à cabana

arruinada onde Brooke os esperava, rodeado pelos seus oficiais que já tinham desembarcado.

Page 1051: O Tigre da Malásia

— Então? — Perguntou ele brevemente.— Ada renuncia à ideia

de seguir o noivo sob condição que vós, Alteza, mantenhais Tremal-Naik preso em Sarawak até o tribunal de Calcutá ter revisto o processo — Disse o lorde.— Seja — Disse Brooke,

após alguns instantes de reflexão.Nessa altura Sandokan

avançou e atirando ao

Page 1052: O Tigre da Malásia

chão a cimitarra e o kriss, disse:— Sou vosso prisioneiro.Eanes, Tanauduriam e

Sambigliong atiraram também eles as armas.Lord James, de olhos

húmidos, lançou-se entre o rajá e Sandokan.— Alteza — Disse — O

que fareis do meu sobrinho?— Concedo-lhe o que

me havia pedido.— Ou seja?

Page 1053: O Tigre da Malásia

— Vou mandá-lo para a Indira. O supremo tribunal de Calcutá encarregar-se-á de o julgar.— E quando é que ele

parte?— Dentro de quarenta

dias com o postal proveniente de Labuan.— Alteza... É meu

sobrinho e eu colaborei na sua captura.— Eu sei, milord.

Page 1054: O Tigre da Malásia

— Salvou Ada Corishant, Alteza.— Eu sei, mas nada

pode fazer aquele que se chama O Exterminador dos Piratas.— E se o meu sobrinho

vos prometesse deixar para sempre estes mares? E se o meu sobrinho vos jurasse nunca mais voltar a ver Mompracem?— Pare, tio — Disse

Sandokan. — Nem eu

Page 1055: O Tigre da Malásia

nem os meus companheiros temos medo da justiça humana. Quando soar a última hora, os Tigres de Mompracem saberão morrer como valentes.Aproximou-se do velho

lorde que chorava em silêncio e abraçou-o, enquanto Tremal-Naik abraçava Ada.— Adeus, senhora —

Disse depois, apertando a mão da jovem que

Page 1056: O Tigre da Malásia

soluçava. — Tenha esperança!Virou-se para o rajá que

o esperava perto da porta e levantando orgulhosamente a cabeça disse-lhe:— Estou às vossas

ordens, Alteza.Os quatro piratas e

Tremal-Naik saíram do fortim e tomaram lugar nas embarcações. Quando estas ganharam o largo dirigindo-se para

Page 1057: O Tigre da Malásia

o Realista, viraram os olhares para o ilhéu.Na porta do recinto

estava o lorde com Ada à sua direita e Kammamuri à esquerda. Os três choravam.— Pobre tio, pobre miss

— Disse Sandokan, suspi-rando. — Fatalidade! Fatalidade! Mas a separação será breve e tu, James Brooke, perderás o trono!

XV

Page 1058: O Tigre da Malásia

O IATE DE LORD JAMESA baía depois daquele

furioso bombardeamento e daquela tremenda luta que tinha destruído os indomáveis Tigres de Mompracem e vencidos os últimos sobreviventes do imbatível bando, estava novamente silenciosa.O Realista tinha-se

afastado com a pequena flotilha e as tropas do rajá tinham retomado o

Page 1059: O Tigre da Malásia

caminho dos bosques para regressar a Sarawak. Apenas o iate permanecia ancorado próximo do ilhéu, à espera de Lord James que era o seu proprietário.Ada diante do fortim,

sentada num pedaço da muralha que as balas dos canhões tinham poupado, soluçava e perto dela estavam o

Page 1060: O Tigre da Malásia

velho lorde e Kammamuri.— Vamos embarcar,

minha sobrinha — Dizia o lorde. — Não é com lágrimas que podemos salvá-los.— É verdade, patroa —

Dizia o marata. — É preciso agir e depressa. Lembrai-vos de que dentro de quarenta dias Sandokan será levado para a Indira e que se aquele homem não

Page 1061: O Tigre da Malásia

estiver aqui, talvez nem o meu patrão possa ser libertado.— Tenho a alma partida,

tio. Eu não sei, mas dir-se-ia que sobre mim pesa a maldição da horrível divindade dos tugues.— Deixa-te de

semelhantes superstições, Ada, e partamos.— Mas para onde?

Page 1062: O Tigre da Malásia

— Para Mompracem — Disse uma voz atrás deles.Todos se viraram e

deram com um pirata com o rosto desfigurado e sujo de sangue.— Quem sois? —

Perguntou o lorde, recuando.— Aier-Duk, um dos

chefes de bando do Tigre da Malásia.

Page 1063: O Tigre da Malásia

— Ainda vivo! — Exclamaram Ada e Kammamuri.— Pensei que um

homem livre poderia ser mais útil ao capitão do que um morto, e quando vi que a batalha estava perdida deixei-me cair entre os cadáveres.— Mas, desgraçado, tu

estás ferido! — Exclamou Ada.— Bah! — Fez o pirata

encolhendo os ombros.

Page 1064: O Tigre da Malásia

— A bala que me atingiu só passou de raspão no meu crânio.— É uma sorte estares

vivo — Disse o lorde. — Irás tu a Mompracem buscar os bandos de Sandokan.— Estou pronto para

partir, milord. Ouvi tudo o que me disse o capitão e basta-me um barco a remos para ir já para o largo. Embarcarei todos os Tigres de Mompracem

Page 1065: O Tigre da Malásia

e conduzi-los-ei até ao neto de Muda-Hassin.— Vou arranjar-te um

barco a vapor — Disse o lorde. — Eu possuo um.— Quando poderei

partir?— Assim que chegarmos

a Sarawak. A bordo, meus amigos, e regressemos à cidade.— Vamos, tio — Disse

Ada. — Não serei menos que Tremal-Naik e os seus valorosos amigos.

Page 1066: O Tigre da Malásia

— Uma palavra, milord— Disse Kammamuri.— Fala.— O rajá não ficará

desconfiado com o nosso regresso a Sarawak? Talvez fosse melhor deixá-lo acreditar que partimos para a Indira.— É verdade — Disse

Lord James, impressionado por aquela reflexão. — Poderia pensar numa tentativa para

Page 1067: O Tigre da Malásia

libertarmos Sandokan e Tremal-Naik. És muito perspicaz, Kammamuri.— Sou marata —

Respondeu o indiano, com orgulho.— Milord — Disse Aier-

Duk — Sabeis onde se encontra o neto de Muda-Hassin?— Em Sedang.— Livre?— Vigiado.

Page 1068: O Tigre da Malásia

— Sedang fica no rio homónimo, se não me engano.— Sim.— Lançai âncora na foz

desse curso de água, milord, e eu virei ter convosco com a frota de Mompracem dentro de quatro semanas. Enquanto isso procure aproximar-se do neto de Muda-Hassin e pô-lo ao corrente dos

Page 1069: O Tigre da Malásia

acontecimentos que se preparam.— Acho que é o melhor

projecto — Disse o lorde. — Desse modo, evitaremos a desconfiança do rajá. Vamos embarcar, amigos: já nada temos a fazer aqui.Uma chalupa do iate,

com seis marinheiros, esperava-os na extremidade do ilhéu. O lorde, Ada, Kammamuri e

Page 1070: O Tigre da Malásia

o pirata milagrosamente escapado à morte embarcaram e chegaram ao pequeno navio.Aquele iate era um dos

mais belos e mais elegantes alguma vez vistos naqueles mares. Tinha, no máximo, cento e cinquenta toneladas a querena estreita, a proa cortada em ângulo recto mas construída à prova de recife e estava

Page 1071: O Tigre da Malásia

equipado em goleta, com velas enormes.Lord James, como um

verdadeiro senhor, tinha mandado mobilá-lo com requinte. A cabina e o salão não podiam ser mais elegantes, nem mais cómodos, e a cave e a despensa não podiam estar melhor abastecidas.A tripulação era de vinte

homens, escolhidos na sua maioria entre os

Page 1072: O Tigre da Malásia

buguises, valentes marinheiros que não cedem aos malaios, que são considerados os mais intrépidos lobos-do-mar de todo o vasto arquipélago da Sonda.Apenas o mestre e o 2º

capitão eram de outra raça, mestiços anglo-indianos, certamente alunos da escola marítima de Calcutá ou de Bombaim.

Page 1073: O Tigre da Malásia

Assim que o lorde pisou o iate, o 2º capitão, que era um belo homem de estatura alta, com a pele ligeiramente bronzeada, traindo o cruzamento do sangue indiano com o europeu, olhos muito pretos e bastante inteligentes e feições enérgicas, mas que ainda tinham qualquer coisa de orgulho selvagem, avançou dizendo:

Page 1074: O Tigre da Malásia

— Devo apontar a proa na direcção da baía, milord?— Sim — Respondeu o

velho capitão — Mas vamos para Sedang e não para Sarawak.— Está bem, milord.

Tendes outras ordens para me dar?— Dêem dois quartos a

estes homens — Continuou o lorde, indicando Kammamuri e

Page 1075: O Tigre da Malásia

Aier-Duk — E mandem tratar o ferido.Depois deu o braço a

Ada e conduziu-a até à popa, e, em seguida, a uma cabina elegantíssima, dizendo-lhe:— Estás em tua casa,

minha sobrinha.— Obrigada, tio —

Respondeu ela. — Vamos partir já?— Neste instante.

Page 1076: O Tigre da Malásia

— E quando chegaremos a Sedang?— Dentro de três dias,

se o vento se mantiver favorável.— Estou impaciente por

ver o neto do sultão.— Acredito.— Acha que vamos

conseguir, tio?— Apoiados pelos Tigres

de Mompracem, sim, minha sobrinha.— Então eles são

homens terríveis?

Page 1077: O Tigre da Malásia

— Viste agora mesmo como se batiam. Quando souberem que o seu chefe está preso, acorrerão todos e morrerão para o salvar.— Adoram aquele

homem valoroso?— Loucamente. Eu

conheço aqueles homens, que em tempos foram meus inimigos. Quando lutam, são mais ferozes do que os tigres,

Page 1078: O Tigre da Malásia

e os canhões não chegam para os parar.— Mas será que o neto

de Muda-Hassin tem partidários?— Sim, e muitos. Brooke

é temido pelos seus soldados, mas odiado pelas atrocidades que cometeu contra os piratas malaios.— Mas é um homem

enérgico e vai defender-se de maneira terrível.

Page 1079: O Tigre da Malásia

— É verdade, mas não poderá resistir à onda devastadora que o irá arrastar.— Se isso pudesse

acontecer depressa, tio — Disse Ada, suspirando. — Pobre Tremal-Naik! Ver-se outra vez separado de mim, quando a felicidade lhe sorria! Ah! Meu tio, nascemos ambos sob uma má estrela.

Page 1080: O Tigre da Malásia

— Será a última prova, Ada. Quando o tivermos libertado conduzir-vos-ei à Indira, mas longe de Calcutá para vos proteger das vinganças do impiedoso Suyodhana.— E Sandokan também

virá?— Ele! É um homem que

não foi feito para a vida tranquila, mas quem sabe... Talvez até nos seguisse até à Indira,

Page 1081: O Tigre da Malásia

mas para levar a cabo uma luta tremenda contra os tugues e o seu chefe. Chega: descansa tranquilamente na tua cabina, estás a precisar, Ada. Eu vou voltar para a coberta.O lorde abandonou a

cabina e subiu para a coberta.O iate velejava na ampla

baía de Sarawak com a proa virada a leste.

Page 1082: O Tigre da Malásia

O mar estava deserto. O Realista e a pequena frota, que haviam partido uma hora antes, já deviam ter chegado à foz do rio e talvez estivessem para aportar à cidade, levando com eles os prisioneiros.Ainda na costa, que se

desenhava para sul, formando um arco imenso, parecia estar desabitada. Viam-se somente florestas

Page 1083: O Tigre da Malásia

escuras que se estendiam até ao mar e mais além agigantava-se o alto cone do Matang.O vento, que se

mantinha muito favorável, empurrava o rápido iate com uma velocidade de seis ou sete nós por hora. Se aquele ritmo não diminuísse, dentro de dois dias, e não de três, aquele rápido veleiro

Page 1084: O Tigre da Malásia

poderia chegar à foz do Sedang.Três horas depois,

quando o iate se encontrava quase em frente do Sarawak, a chalupa a vapor que estava amarrada à popa, era puxada até debaixo da escada de estibordo. A máquina já estava sob pressão e a hélice pronta a funcionar.Aier-Duk, a quem

tinham tratado o

Page 1085: O Tigre da Malásia

ferimento, apareceu na coberta, pronto a tomar o largo na direcção de Mompracem.— As vossas instruções,

milord-disse.— Já as conheces: armar

a frota e vir até à foz do rio. Quantos homens ficaram em Mompracem?— Duzentos, mas valem

por mil.— Tendes paraus

suficientes?

Page 1086: O Tigre da Malásia

— Temos trinta armados com quarenta canhões e sessenta espingardões.— No regresso não se

deixe surpreender pela frota do rajá.— Se a encontrarmos,

destrui-la-emos, milord.— E dão o alarme.— Sim. Agiremos com

prudência.— Parte: os minutos são

preciosos. A chalupa percorre dez nós por hora e em dois dias

Page 1087: O Tigre da Malásia

podes estar em Mompracem.— Até breve, milord.Aier-Duk desceu até à

chalupa onde o esperavam dois artilheiros e deu o comando para tomar o largo. Um quarto de hora depois, a rápida embarcação já só era um ponto negro visível na superfície azul do mar.O iate tinha retomado o

rumo para leste,

Page 1088: O Tigre da Malásia

mantendo-se ao largo da foz do Sarawak, para não ser avistado pelos pequenos barcos da guarda costeira do rajá, já que o lorde queria chegar a Sedang sem ser observado.Durante a noite o rápido

veleiro ultrapassava a pequena baía e, na manhã seguinte, mareava rumo à costa.Às sete da tarde, uma

vez que o vento se havia

Page 1089: O Tigre da Malásia

mantido bastante fresco, chegava à foz do rio, em cujas margens se eleva a pequena cidade de Sedang.A âncora foi lançada a

pique numa pequena enseada meio escondida por altíssimos durion e por esplêndidas árvores sacaríferas cujas folhas plumosas projectavam uma sombra escura sobre as margens.

Page 1090: O Tigre da Malásia

— Vê-se alguém, tio? — Perguntou Ada que tinha subido para a coberta.— A foz está deserta —

Respondeu o lorde. — Sedang é uma cidade pouco frequentada.— Quando iremos ter

com o neto de Muda-Hassin?— Amanhã, mas é

preciso mudar de pele.— Que quer dizer?— Homens brancos

seriam logo notados e

Page 1091: O Tigre da Malásia

não tardariam a informar o rajá.— O que devemos

fazer?— Vestirmo-nos de

indianos e deixar que nos pintem a cara.— Desde que possa

salvar Tremal-Naik e os seus valorosos amigos, estou disposta a tudo, tio.— Até amanhã, Ada.

XVI

Page 1092: O Tigre da Malásia

O GOVERNADOR DE SEDANG

Doze horas depois uma chalupa tripulada com seis buguises da tripulação do iate, por lorde, por Ada e Kammamuri subia o rio para chegar a Sedang.Os marinheiros tinham

vestido os seus trajos nacionais que consistiam em saias de muitas cores e um pequeno turbante, e o lorde e Ada, pintados

Page 1093: O Tigre da Malásia

com uma bela cor de bronze, tinham-se coberto de ricas vestes de cores vivas, apertadas na cintura por largas faixas de seda vermelha para passarem por príncipes indianos em viagem de passeio. Apenas Kammamuri tinha conservado o seu trajo de marata, que não podia despertar qualquer suspeita. O rio pouco largo e de águas

Page 1094: O Tigre da Malásia

bastante turvas, estava quase deserto. Só de vez em quando aparecia nas margens uma das grandes cabanas colocadas sobre densas filas de postes, a uma altura de quinze ou vinte pés, de construção daiaque.Por outro lado, havia

grandes matas de árvores-da-borracha, de giunta wan, de piper nigrum já cobertos de

Page 1095: O Tigre da Malásia

bagas avermelhadas que dão um grão bastante aromático, de gluga de cuja casca macerada se extrai uma espécie de papel; de imensas árvores de cânfora, que exalavam um perfume forte, e de bananeiras, de arecas e de rotang, plantas sarmentosas estas que naquelas regiões ocupam o lugar das lianas.

Page 1096: O Tigre da Malásia

No meio daquela rica vegetação vêem-se, por vezes, macacos narigudos balançar-se nos topos das árvores ou esvoaçar os calaos gigantes, extravagantes aves com bicos enormes. Também apareciam bandos de esplêndidos argus, de catatuas negras e daqueles morcegos enormes a que os indígenas chamam kulang.

Page 1097: O Tigre da Malásia

Ao meio-dia, a chalupa, que subia o rio com o favor da maré, chegava a Sedang, ancorando no extremo da povoação.Embora goze do nome

de cidade, Sedang mais não é do que uma aldeia semelhante a Kutsching, a segunda cidadela do reino de Sarawak. Naquela época, era composta por um aquartelamento de centena e meia de

Page 1098: O Tigre da Malásia

cabanas colocadas sobre postes, quase todas habitadas por daiaques da costa, por algumas casinhas de telhados arqueados pertencentes a poucos chineses e por dois edifícios de madeira, um habitado pelo neto de Muda-Hassin que era vigiado como um prisioneiro, uma vez que não se ignorava a sua aspiração de reconquistar o trono, e o

Page 1099: O Tigre da Malásia

outro pelo governador, criatura muito devota ao rajá e que tinha à mão cerca de vinte indianos armados.Uma vez que em

Sedang não existia sequer uma modesta taberna, o lorde adquiriu uma das mais belas casinhas chinesas, situada perto do rio, no extremo setentrional da cidadela, para aí conduziu Ada e

Page 1100: O Tigre da Malásia

Kammamuri, dizendo em seguida à sobrinha:— A minha missão

acaba aqui. Tudo que podia fazer por ti sem comprometer a minha honra de marinheiro inglês e de compatriota de James Brooke, já fiz.«Na guerra que tu e os

teus piratas estão para fazer rebentar, eu não posso participar, apesar de o estado de Sarawak ser completamente

Page 1101: O Tigre da Malásia

independente, não tenha elos com a Inglaterra e apesar de ter tido de lamentar ultimamente o rigor excessivo de Brooke para com Tremal-Naik. Eu continuo a ser teu tio e teu protector, mas como inglês devo manter-me neutro.»— Deixais-nos já, então?

— Disse Ada com pena.— É necessário. Volto

para o meu iate, mas não deixarei a foz do rio

Page 1102: O Tigre da Malásia

antes de serem abertas as hostilidades para poder proteger-te, se for caso disso. Tu não esqueceste que és uma mulher bastante enérgica para agir até sozinha.— Oh, sim, tio! Estou

disposta a tudo.— Deixo-te quatro dos

meus marinheiros, encar-regados de te defender e de te ajudar. Obedecer-te-ão como se fosse a

Page 1103: O Tigre da Malásia

mim e são homens de uma coragem comprovada e de uma fidelidade absoluta.«Adeus, e se algum

perigo te ameaçar, manda-me um dos meus marinheiros. O meu iate está armado e a qualquer pedido teu subirá prontamente o rio.»Abraçaram-se, depois o

lorde voltou a embarcar e desceu novamente o

Page 1104: O Tigre da Malásia

rio. A jovem tinha ficado na margem e via-o afastar-se sem prestar atenção a um guarda do rajá que se tinha aproximado dela, observando-a com uma viva curiosidade, não sem alguma desconfiança.Apenas se apercebeu

dele quando o viu a seu lado.— Quem é a senhora? —

Perguntou o guarda.

Page 1105: O Tigre da Malásia

A jovem deitou sobre aquele indiano um olhar penetrante...— O que queres tu? —

Perguntou-lhe.— Saber quem sois —

Respondeu o indiano.— Não te diz respeito.— É a ordem, uma vez

que é estrangeira.— Ordem de quem?— Do governador.— Não o conheço.

Page 1106: O Tigre da Malásia

— Mas ele tem de saber quem desembarca em Sedang.— E qual é o motivo?— Está cá o neto de

Muda-Hassin.— Não sei quem seja.— O neto do sultão que

antes reinava em Sedang.— Não conheço sultões.— Não importa: eu

tenho de saber quem é.— Sou uma princesa

indiana.

Page 1107: O Tigre da Malásia

— De que região?— Da grande tribo dos

maratas — Disse Kammamuri que se tinha aproximado deles silenciosamente.— Uma princesa

marata! — Exclamou o indiano, estremecendo. — Mas eu também sou marata.— Não, tu és um

renegado — Disse Kammamuri. — Se tu fosses um verdadeiro

Page 1108: O Tigre da Malásia

marata serias livre como eu e não um escravo de um homem que pertence à raça dos nossos opressores, de um inglês.Os olhos do soldado do

rajá brilharam de ira, mas logo esse brilho se apagou e baixou a cabeça, murmurando:— É verdade.— Vai-te — Disse

Kammamuri. — Os maratas livres desprezam os traidores.

Page 1109: O Tigre da Malásia

O indiano estremeceu, depois, levantando os olhos que estavam húmidos, disse com voz triste:— Não, não esqueci a

minha pátria, não esqueci a minha tribo, não se apagou no meu coração o ódio para com os opressores da Indira e ainda um marata.— Tu! — Disse

Kammamuri, com maior

Page 1110: O Tigre da Malásia

desprezo. — Dá-me uma prova!— Manda.— Esta é a minha

patroa, uma princesa de uma das nossas melhores tribos. Jura-lhe obediência como o fizeram todos os filhos livres das nossas montanhas, se ousares!O indiano lançou um

rápido olhar em volta para se certificar que não o observavam, depois

Page 1111: O Tigre da Malásia

caiu aos pés de Ada, dizendo:— Manda: por Siva, Vishnu e Brama, divindades protectoras da Indira, juro obedecer-te.— Agora reconheço-te como um compatriota — Disse Kammamuri. — Segue-nos!Entraram na habitação

do chinês que os quatro marinheiros do iate vigiavam, tendo

Page 1112: O Tigre da Malásia

pendurados nos cintos revólveres para proteger a sobrinha do patrão contra qualquer atentado da parte dos guardas do rajá, e pararam num quartinho com as paredes cobertas de papei às flores de Tung, mobilada com ligeiríssimas cadeiras de bambu e com mesas cheias de bules e de xícaras de porcelana.

Page 1113: O Tigre da Malásia

— Manda — Repetiu o indiano, prostrando-se novamente diante de Ada.Então a jovem, fixando

sobre ele um demorado olhar, como se quisesse ler-lhe na alma, disse-lhe:— Sabes que odeio o

rajá?— Tu! — Exclamou o

indiano, levantando novamente a cabeça e olhando-a com espanto.

Page 1114: O Tigre da Malásia

— Sim — Disse a jovem com energia.— Tens algum motivo

para te queixares dele?— Não, mas odeio-o

porque é inglês, odeio-o porque sou marata e ele pertence à raça dos opressores da Indira e porque em tempos pertenceu à companhia que destruiu a independência dos nossos rajás.

Page 1115: O Tigre da Malásia

«Nós, povos livres, jurámos ódio eterno a esses homens da longínqua Europa e, não podendo atingi-los na Indira, procuramos destruí-los noutras paragens.»— Mas então tu és

poderosa?.. — Perguntou o indiano, com ainda maior espanto.— Tenho homens

valorosos, tenho navios e canhões.

Page 1116: O Tigre da Malásia

— E vens trazer a guerra até aqui?— Sim, já que aqui

encontro um opressor da nossa pátria que agora tenta oprimir outros homens de cor como nós.— Mas quem te ajudará

na tua tarefa?— Quem? O neto de

Muda-Hassin.— Ele!— Ele.— Mas ele está preso!

Page 1117: O Tigre da Malásia

— Nós vamos libertá-lo.— E ele sabe que tu te

estás a preparar para lutar a seu favor?— Não, mas hei-de vê-

lo.— Já te disse que está

preso.— Havemos de enganar

a vigilância dos guardas.— De que maneira?— Vais ser tu a descobri-

la.— Eu!

Page 1118: O Tigre da Malásia

— Esta é a prova que espero de ti, se fores um verdadeiro marata.— Jurei obedecer-vos, e

Bangawadi não faltará à palavra dada — Disse o indiano com voz solene.— Ouçamos — Disse

Kammamuri, que até então tinha estado silencioso. — Quantos guardas vigiam Hassin?— Quatro.— Dia e noite?— Sempre.

Page 1119: O Tigre da Malásia

— Sem nunca o deixarem?— Nunca o abandonam.— Há algum marata

entre esses indianos?— Não, são todos de

Gujerate.— Fiéis ao governador?— Incorruptíveis.O marata fez um gesto

agastado e pareceu mergulhar em pensamentos profundos.

Page 1120: O Tigre da Malásia

— Existem — Disse, após alguns instantes. — Quem é o governador?— Um mestiço anglo-

bengalês.— Então não trairá o

rajá.— Não! — Exclamou o

indiano.— Está bem.Procurou no cinto amplo

que lhe apertava os flancos e tirou um diamante do tamanho de uma avelã.

Page 1121: O Tigre da Malásia

— Vai ter com o governador — Disse, dirigindo-se ao indiano — E diz-lhe que a princesa Raibh lhe oferece este presente e que pede para o visitar.— Mas o que pretendes

fazer, Kammamuri? — Perguntou Ada.— Depois digo-vos,

patroa. Vai, Bangawadi: contamos com o teu juramento.

Page 1122: O Tigre da Malásia

O indiano pegou no diamante, prostrou-se uma última vez diante da jovem e saiu em passos rápidos.Kammamuri seguiu-o

com olhar enquanto pôde, depois, dirigindo-se a Ada, disse-lhe:— Creio, patroa, que

vamos conseguir.— O quê?— Raptar Muda-Hassin.— Mas de que maneira?

Page 1123: O Tigre da Malásia

Kammamuri, em vez de responder, tirou do cinto uma caixinha e mostrou algumas pequeníssimas pílulas que exalavam um estranho odor.— Deu-mas o senhor

Eanes — Disse ele — E sei por experiência o quanto são potentes. Basta deixar cair uma num copo de água ou de vinho ou de café para adormecer

Page 1124: O Tigre da Malásia

instantaneamente a pessoa mais robusta.— E para que é que

servem? — Perguntou a jovem com maior surpresa.— Para adormecer o

governador e os guardas que vigiam a casa de Hassin.— Não consigo

compreender-te.— Com o presente que

lhe mandámos, o gover-nador há-de convidar-nos

Page 1125: O Tigre da Malásia

para jantar ou nós a ele. Eu encarrego-me de lhe dar o narcótico e quando o virmos adormecido iremos ter com Hassin, e aí repetiremos o jogo com os guardas.— Mas achas que esses

indianos nos vão deixar ver o prisioneiro?— Bangawadi

encarregar-se-á de nos abrir o caminho, fingindo ter recebido a ordem do

Page 1126: O Tigre da Malásia

governador para nos deixar visitar Hassin.— Mas para onde

levaremos o prisioneiro?— Para onde ele quiser,

onde quer que estejam os seus partidários. Eu encarrego-me de mandar os nossos procurar cavalos.Preparava-se para sair,

quando viu regressar Bangawadi. O indiano parecia contente, porque

Page 1127: O Tigre da Malásia

tinha um sorriso nos lábios.— O governador está à

vossa espera — Disse ele, entrando.— Gostou do presente?

— Perguntou Kammamuri.— Nunca o vi de tão

bom humor como hoje.— Vamos, patroa —

Disse o marata.Saíram precedidos pelo

guarda e seguidos pelos quatro marinheiros do

Page 1128: O Tigre da Malásia

iate que tinham recebido ordem do lorde para não a deixar sozinha um só instante. Poucos minutos depois chegavam ao palácio do governador de Sedang.Aquele edifício, que os

habitantes pomposamente chamavam palácio, era uma modesta casa de madeira, de dois andares, com o telhado coberto de telhas azuis

Page 1129: O Tigre da Malásia

como as habitações do bairro chinês de Sarawak, rodeada por uma paliçada e defendida por dois canhões enferrujados, que ali estavam mais para meter medo do que para serem utilizados, já que não poderiam disparar dois tiros seguidos sem rebentar. Uma dúzia de indianos, vestidos como os sipaios de Bengala, de casaco

Page 1130: O Tigre da Malásia

vermelho, calças brancas, turbante na cabeça, mas descalços, perfilavam-se em frente do muro e apresentaram as armas, com garbo, à princesa dos maratas. O governador esperava a jovem ao fundo da escada, sinal evidente de que aquele presente de grande valor tinha surtido algum efeito.Sir Hunton, comandante

de Sedang, era um

Page 1131: O Tigre da Malásia

anglo-indiano que tinha tomado parte no cruzeiro sangrento do Realista contra os piratas de Bornéu, na qualidade de mestre de tripulação.Não tinha mais de

quarenta anos, mas aparentava ter mais. Era alto como todos os da raça indiana; tinha a pele ligeiramente bronzeada com um tom dourado, os olhos eram muito negros, a barba mais espessa do

Page 1132: O Tigre da Malásia

que a dos indostanos puros e já grisalha.Tendo dado provas de

grande coragem e de fidelidade, tinha sido destinado ao comando de Sedang, encarregue de exercitar uma vigilância activa sobre o neto de Muda-Hassin, já que James Brooke não ignorava que no parente do defunto sultão havia um poderoso e perigoso rival.

Page 1133: O Tigre da Malásia

Sir Hunton, vendo a princesa indiana, foi ao seu encontro estendendo-lhe a mão e descobrindo a cabeça, depois ofereceu-lhe galantemente o braço e conduziu-a a uma saleta decorada com uma certa elegância e com móveis europeus.— A que é que devo a

honra da vossa visita, Alteza? — Perguntou ele, sentando-se em frente

Page 1134: O Tigre da Malásia

da jovem. — É um caso raro ver chegar a esta cidadela, perdida nas fronteiras do reino, uma pessoa distinta como vós.— Estou a fazer uma

viagem pelas ilhas da Sonda, sir, e não quis esquecer-me de ver também Sedang, uma vez que só aqui tenho a possibilidade de admirar esses formidáveis

Page 1135: O Tigre da Malásia

cortadores de cabeças chamados daiaques.— Veio aqui por pura

curiosidade? Pensava que fosse com outro objectivo.— E que motivo poderia

ser?— Para ver o neto de

Muda-Hassin.— Não sei quem seja.— Um rival do rajá

Brooke, que passa o seu tempo a sonhar com contínuas conspirações.

Page 1136: O Tigre da Malásia

— É então um homem interessante?— Pode ser.— Com a vossa licença

não deixarei de o visitar.— Não o permitiria a

mais ninguém, mas a vós, Alteza, que vindes da Indira e que portanto não podeis ter qualquer interesse além da curiosidade, não negarei este favor.— Obrigada, sir.

Page 1137: O Tigre da Malásia

— Pensais permanecer aqui por muito tempo?— Alguns dias, até o meu iate ser reparado de algumas avarias.— Chegou num iate?— Sim, sir.— E depois vai para

Sarawak?— Certamente: quero

ver o famoso exterminador dos piratas; sou uma das suas mais fervorosas admiradoras.

Page 1138: O Tigre da Malásia

— É um homem com valor, o rajá!— Acredito.— Regressa ao iate esta

noite?— Não, aluguei aqui

uma pequena casa.— Então espero que me

dê a honra de aceitar a hospitalidade da minha residência.— Ah! Senhor!— É a melhor de

Sedang.

Page 1139: O Tigre da Malásia

— Obrigada, sir, mas prefiro estar livre.— Então espero que me

faça companhia hoje.— Não poderia recusar

uma tal cortesia.— Farei o possível para

que não se aborreça, Alteza.— Entretanto, deixai-me

ver o vosso prisioneiro real — Disse Ada, rindo.— Depois do jantar,

Alteza. Beberemos o chá em casa de Hassin.

Page 1140: O Tigre da Malásia

— É um homem gentil ou um selvagem?— Um homem astuto e

educado, que nos há-de acolher bem.— Conto convosco,

senhor. Esta noite serei vossa comensal.Tinha-se levantado a um

sinal de Kammamuri, que a seguira, ficando num canto da saleta. O governador imitou-a e conduziu-a até à porta, onde a companhia de

Page 1141: O Tigre da Malásia

indianos lhe prestou as honras devidas ao seu estatuto de princesa. De regresso à sua habitação, sempre seguida por Kammamuri e pelos quatro marinheiros ingleses do iate, encontrou o indiano Bangawadi que a esperava à porta, com um ar impaciente.— Ainda tu? —

Perguntou a jovem.

Page 1142: O Tigre da Malásia

— Sim, patroa, — Respondeu ele.— Tens novidades?— Falei com Hassin.— Quando?— Há poucos minutos.— E o que é que lhe

disseste?— Que algumas pessoas

se interessam pela sua sorte e que procuram ajudá-lo a evadir-se.— E o que é que te

respondeu?

Page 1143: O Tigre da Malásia

— Que está pronto a tudo.— És um bom homem,

Bangawadi.— E sê-lo-ás ainda mais

se voltares para junto dele — Acrescentou Kammamuri.— Estou à vossa

disposição.— Vai então e diz-lhe

que esta noite a princesa Raibh irá visitá-lo na companhia do governador e que tente

Page 1144: O Tigre da Malásia

ficar sozinho, pelo menos nos seus aposentos. Diz-lhe também que deixe comigo a preparação do chá para o governador.Depois, tirou do cinto

um pequeno diamante e estendeu-lho, acrescentando:— Isto é para ti e

pagarás a bebida às sentinelas que vigiam a casa de Hassin. Logo à noite pago eu!

XVII

Page 1145: O Tigre da Malásia

A FUGA DO PRÍNCIPE HASSIN

Sir Hunton, que estava certo de ter convidado uma autêntica princesa indiana e que não tinha a mínima suspeita da trama tão habilmente urdida pelo astuto marata, fez as honras da casa com a mais requintada cortesia e sem poupanças, tendo ganho um diamante que

Page 1146: O Tigre da Malásia

não valia menos de trinta mil liras.A refeição oferecida à

princesa convidada não podia ser melhor. O cozinheiro tinha saqueado a despensa, as capoeiras dos daiaques e os viveiros de peixe. Não faltavam sequer garrafas autênticas de vinho de Espanha que o governador tinha recebido de presente de um amigo das Filipinas e

Page 1147: O Tigre da Malásia

que tinha reservado, com grande cuidado, para as grandes ocasiões.Ada honrou a refeição e

competiu com o go-vernador na amabilidade. Procurou, sobretudo, fazê-lo beber muito, com infinitos brindes: à Indira, à prosperidade de Sarawak, de Sedang, do rajá e da velha Inglaterra.Começava a anoitecer

quando estavam para

Page 1148: O Tigre da Malásia

dar a primeira dentada no tradicional pudding.— O príncipe Hassin vai

inquietar-se por não nos ver — Disse Ada, depois de ter lançado um olhar para fora. — A escuridão cai rapidamente, senhor governador.— Já foi avisado de que

iremos tomar chá a casa dele, Alteza — Respondeu Sir Hunton.— Não o façamos

esperar demasiado.

Page 1149: O Tigre da Malásia

— Se pensa assim, levantemo-nos.— Um passeio à beira do

rio far-nos-á bem.Tinha-se levantado,

colocando sobre a cabeça uma rica mantilha de seda para se defender da humidade da noite, que é bastante perigosa naquelas regiões. Kammamuri, que tinha participado na refeição, na sua qualidade de secretário

Page 1150: O Tigre da Malásia

da amável princesa, já havia saído.Dois marinheiros do iate

esperavam-no à beira-rio.— Está tudo pronto? —

Perguntou-lhes.— Sim — Responderam.— Quantos cavalos

compraram?— Oito.— Onde é que nos

esperam?— Na entrada do

bosque.

Page 1151: O Tigre da Malásia

— Está bem: voltem para junto dos vossos companheiros.Ada saía nesse

momento pelo braço do governador. Kammamuri juntou-se a ela e, com um rápido gesto, fez-lhe compreender que tudo estava em ordem.A noite estava

esplêndida. A oriente uma nuvem ligeiramente rosada, mas que rapidamente se ia

Page 1152: O Tigre da Malásia

tornando cinzenta, indicava o lugar onde o sol se tinha posto. O céu cobria-se rapidamente de estrelas, que se espelhavam nas plácidas águas do rio.No rio, um ou outro

bateleiro cantava ainda uma monótona canção, enquanto os juncos chineses, os únicos barcos que sobem até Sedang, acendiam as monumentais lanternas

Page 1153: O Tigre da Malásia

de papel oleado ou de talco.Mil perfumes vinham

das florestas vizinhas: as árvores de cânfora, a noz-moscada, as árvores de cravos e os mangostões exalavam os seus acentuados aromas.Ada não falava, mas

procurava apressar o passo; o governador, que tinha bebido demasiado, seguia-a fazendo

Page 1154: O Tigre da Malásia

esforços para se manter direito.Felizmente o caminho

era breve. Poucos minutos depois encontravam-se diante do palácio real do herdeiro do sultão, um palácio muito modesto, já que mais não era do que uma casa pequena de dois andares, rodeada por uma varanda e guardada por quatro indianos armados,

Page 1155: O Tigre da Malásia

encarregados de vigiarem atentamente o prisioneiro.O governador, após ter-

se feito anunciar, conduziu a princesa a uma saleta decorada com divãs e tapetes em grande parte já gastos, com alguns espelhos e com uma mesa sobre a qual estavam amontoados, na maior desordem, bugigangas chinesas, xícaras, bules,

Page 1156: O Tigre da Malásia

bolas de marfim furadas e outras ninharias semelhantes.O neto de Muda-Hassin

esperava-os sentado numa velha poltrona meia partida, encimada por um pequeno crocodilo dourado, com o emblema dos sultões de Sarawak.O rival de James Brooke

tinha, naquela época, trinta anos. Era de estatura alta, porte

Page 1157: O Tigre da Malásia

majestoso, com uma bonita cabeça coberta de longos e negros cabelos, com um rosto ligeiramente bronzeado, adornado com uma barba cor de fuligem, mas rala, e dois olhos ardentes e inteligentíssimos.Na cabeça usava o

turbante verde dos sultões de Bornéu e vestia um longo sobretudo de seda

Page 1158: O Tigre da Malásia

branca, preso à cintura por uma larga faixa de seda vermelha, de cujas pregas saíam os punhos de dois kriss, distintivo dos grandes chefes, enquanto ao lado pendia um golok, pesado sabre malaio, comprido, afiadíssimo, de ferro batido.Ao ver entrar o

governador, levantou-se fazendo uma pequena vénia, depois fixou os

Page 1159: O Tigre da Malásia

olhos na jovem com viva curiosidade, dizendo:— Bem-vindos a minha

casa.— A princesa Raibh

mostrou o desejo de vos vir visitar e eu conduzi-a, na esperança de vos fazer uma surpresa agradável — Respondeu o governador.— Agradeço-vos pela

vossa cortesia, senhor. São tão raras as distracções nesta cidade

Page 1160: O Tigre da Malásia

e ainda mais raras as visitas! O rajá Brooke faz mal em deixar-me num completo isolamento.— Sabeis que o rajá

desconfia de vós?— Sem razão, uma vez

que eu já não tenho partidários. A sábia administração do rajá Brooke afastou-os de mim.— Os daiaques sim, mas

os malaios...

Page 1161: O Tigre da Malásia

— Até esses, Sir Hunton... Mas deixemos a política e permiti que vos ofereça um bom chá.— Diz-se que tem um

excelente — Disse o governador, rindo.— Verdadeiro chá

florido, pode estar certo. O meu amigo Tai-Sin oferece-me sempre, quando aporta em Sedang.— Eis uma bela ocasião

para procurar partidários

Page 1162: O Tigre da Malásia

entre os chineses de Cantão. Eu apostaria em como o vosso fornecedor de chá não ficaria embaraçado por vo-lo procurar.Um brilho sinistro

passou pelos olhos profundos do futuro sultão, mas não fez nenhum outro gesto que traísse a cólera interior.— Sirvam o chá —

Disse.

Page 1163: O Tigre da Malásia

Kammamuri foi rápido a passar para uma sala contígua onde ouvia um ruído de xícaras, e pouco depois entrava seguido de um pequeno malaio que trazia um serviço completo numa bandeja de prata.O esperto marata deitou

a deliciosa bebida na xícara destinada ao governador e deixou cair uma pequena pílula que se dissolveu de imediato.

Page 1164: O Tigre da Malásia

Ofereceu a primeira chávena à sua patroa, a segunda a Sir Hunton e a terceira ao sobrinho do sultão, depois regressou à sala contígua.Encheu rapidamente

quatro chávenas, dissolveu nelas outras tantas pílulas, depois disse ao pequeno malaio:— Segue-me com a

bandeja.

Page 1165: O Tigre da Malásia

— Entraram mais convidados, senhor? — Perguntou o criado.— Sim — Respondeu o

marata com um sorriso misterioso. — Há outra saída sem passar pela sala?— Sim.— Vai à minha frente.O malaio fê-lo passar a

um terceiro quarto cuja porta dava para a rua. A poucos passos estavam

Page 1166: O Tigre da Malásia

de vigia os quatro guardas.— Rapazes — Disse o

marata, avançando para eles. — A minha patroa, a princesa Raibh, oferece-vos o chá de Hassin. Bebam tudo à saúde dela e aqui está um punhado de rupias que vos pede que aceitem.Os quatro indianos não

se fizeram rogados. Embolsaram

Page 1167: O Tigre da Malásia

solicitamente as rupias e emborcaram o chá de um só fôlego, à saúde da munificente princesa.— Boa vigia, rapazes —

Disse Kammamuri, ironi-camente.Regressou à sala do

neto do sultão. Nesse mesmo instante o governador, vencido pelo poderoso narcótico, rolava da cadeira abaixo, tombando pesadamente sobre os tapetes.

Page 1168: O Tigre da Malásia

— Bom repouso — Disse o marata.Ada e Hassin tinham-se

levantado.— Morto? — Perguntou

este último, com um tom selvagem.— Não, adormecido —

Respondeu Ada.— E não acordará?— Sim, mas dentro de

vinte e quatro horas e nessa altura nós já estaremos muito longe.

Page 1169: O Tigre da Malásia

— Então é verdade que a princesa veio aqui para me devolver a liberdade?— Sim.— E para me ajudar a

recuperar o trono dos meus antepassados?— É verdade.— Mas por que motivo?

O que poderei eu fazer por vós, senhora?— Sabê-lo-á mais tarde:

agora temos de fugir.— Estamos prontos a

segui-la: ordenai.

Page 1170: O Tigre da Malásia

— Tem partidários?— Todos os malaios

estão comigo.— E os daiaques?— Combaterão sob as

bandeiras de Brooke.— Conhece um lugar

seguro onde podereis esperar que os seus partidários estejam reunidos?— Sim, o kampong do

meu amigo Orango-Tuah.— É longe?— Perto da foz do rio.

Page 1171: O Tigre da Malásia

— Vamos: os cavalos estão prontos.— Mas os guardas?— Dormem como o

governador — Disse Kammamuri.— Vamos — Disse Ada.O jovem príncipe

recolheu as jóias contidas num pequeno cofre-forte, tirou de uma parede uma espingarda e seguiu Ada e Kammamuri, depois de lançar um último olhar

Page 1172: O Tigre da Malásia

sobre o governador, que ressonava.Diante da porta jaziam

os quatro indianos, uns por cima dos outros, profundamente adormecidos. Kammamuri tirou-lhes as carabinas e as cartucheiras, depois assobiou.Do bosque vizinho

saíram os quatro marinheiros do iate e

Page 1173: O Tigre da Malásia

Bangawadi, conduzindo oito cavalos.Kammamuri ajudou a

patroa a subir para um dos melhores, depois saltou agilmente para o arção de outro, dizendo:— A galope!O grupo, guiado pelo

príncipe que conhecia o caminho melhor que Bangawadi, pôs-se ao galope seguindo a orla da grande floresta que se

Page 1174: O Tigre da Malásia

estendia pela margem direita do rio.Os cavaleiros já

estavam em frente da cidade, quando na margem oposta se ouviu uma voz gritar:— Quem passa?— Ninguém responda —

Disse o príncipe.— Quem passa? —

Repetiu a voz com tom ameaçador.Não recebendo qualquer

resposta, a sentinela que

Page 1175: O Tigre da Malásia

devia ter avistado aquele grupo de cavaleiros apesar da escuridão da noite fez fogo, gritando:— Às armas!A bala passou

assobiando por cima do grupo e perdeu-se na floresta vizinha.— Depressa! — Gritou

Kammamuri.Os cavalos partiram,

enquanto se ouviam, vindos da cidade, os

Page 1176: O Tigre da Malásia

guardas do palácio do governador gritar:— Às armas!O grupo percorreu um

bom troço de caminho da margem direita, depois, a uma milha da cidade, atravessou o rio para a margem esquerda para aproveitar a estrada que conduz até à costa.— Achais que nos vão

seguir? — Perguntou Ada ao príncipe.

Page 1177: O Tigre da Malásia

— Temo que sim, senhora — Respondeu este. — A esta hora já devem ter encontrado o governador e apercebendo-se da minha fuga vão lançar-se na nossa peugada.— Mas são só vinte.— Dezasseis, senhora,

porque quatro estão a dormir.— Tanto melhor.

Poderemos repeli-los facilmente.

Page 1178: O Tigre da Malásia

— Mas eles irão procurar socorro nas aldeias dos daiaques e antes de passarem doze horas teremos atrás de nós duzentos ou trezentos homens armados.— Acha que chegaremos

antes ao kampong?— Dentro de duas horas

estaremos lá e se vierem atacar-nos encontrarão um osso duro de roer. Dentro de dois dias espero juntar cinco ou

Page 1179: O Tigre da Malásia

seis mil malaios e uma centena de paraus.— Os paraus estarão

armados com canhões?— Só alguns e esses

serão insuficientes para atacar a frota de Brooke.— Felizmente dentro de

quatro ou cinco dias chegará mais artilharia.— Artilharia? —

Exclamou o príncipe, estupefacto.

Page 1180: O Tigre da Malásia

— Sim e servida pelos mais formidáveis piratas do Bornéu.— Quais?— Os de Mompracem.— De Mompracem?

Sandokan, o invencível Tigre da Malásia vem em meu auxílio?— Ele não, mas o seu

bando talvez já navegue a esta hora rumo à baía de Sarawak.— Mas onde está

Sandokan?

Page 1181: O Tigre da Malásia

— Nas mãos do rajá.— Ele, prisioneiro? É

impossível!— Foi vencido por forças

vinte vezes superiores às dele, depois de um terrível combate e feito prisioneiro com o seu braço direito e o meu noivo. É para os salvar que vos fiz fugir.— Mas onde estão eles

agora?— Em Sarawak.

Page 1182: O Tigre da Malásia

— Vamos libertá-los, senhora, juro. Quando os malaios souberem que os bandos de Mompracem tomarão lugar na luta, revoltar-se-ão todos. A James Brooke restam apenas alguns dias no poder.— Alto! — Gritou nesse

instante uma voz.O príncipe conteve

violentamente o seu cavalo e pôs-se em

Page 1183: O Tigre da Malásia

frente da jovem desnudando o golok.— Quem é? — Gritou.— Guerreiros de

Orango-Tuah.— Vai dizer ao teu chefe

que o neto de Muda-Hassin vem visitá-lo.Depois dirigindo-se à

jovem e indicando-lhe uma massa escura que se erguia no limiar de uma grande floresta, disse-lhe:

Page 1184: O Tigre da Malásia

— Eis o kampong! Agora podemos desafiar os guardas do governador.

XVIIIA DERROTA DE JAMES

BROOKEO kampongde Orango-

Tuah era uma grande aldeia malaia fortificada, como o são em geral todas as de Bornéu para se defenderem das incursões dos povos do interior e especialmente

Page 1185: O Tigre da Malásia

dos daiaques, com os quais estão sempre em guerra.Era composta por

trezentas cabanas de madeira com os telhados cobertos de folhas de nipa, defendidas por altas e sólidas paliçadas e por densos arbustos com espinhos, obstáculos quase insuperáveis para os pés e os membros nus dos indígenas.

Page 1186: O Tigre da Malásia

Os habitantes podiam também contar com uma meia dúzia de paraus armados com espingardas, ancorados num pequeno lago que comunicava com o mar através de um canal.Orango-Tuah, um malaio

robustíssimo, de tez escura, de olhos oblíquos e os malares bastante pronunciados, que antigamente percorria o mar antes da sangrenta

Page 1187: O Tigre da Malásia

repressão de James Brooke, prontamente avisado, apressou-se a ir ao encontro do seu príncipe seguido por um grande número de súbditos que traziam ramos resinosos acesos.O acolhimento foi

festivo. Toda a população, acordada pelos tam-tam, acorreu em massa para felicitar o futuro senhor de Sarawak.

Page 1188: O Tigre da Malásia

Orango-Tuah conduziu os hóspedes à melhor ca-bana da aldeia; depois, tendo tomado conhecimento que os guardas do governador os seguiam, mandou colocar cerca de cinquenta homens armados de espingardas nos bosques vizinhos, para os repelir.Tomadas estas medidas,

mandou reunir em conselho os seus

Page 1189: O Tigre da Malásia

subalternos, para promover rapidamente a insurreição nas aldeias malaias e recolher um corpo considerável, antes que a notícia da fuga do príncipe chegasse a Sarawak.Na mesma noite,

quarenta emissários partiam para o interior e três paraus saíam para o mar para avisar os malaios da costa da grande luta que se

Page 1190: O Tigre da Malásia

estava a preparar, enquanto outros dois eram enviados para navegar no cabo Sirik a fim de obrigar os bandos de Mompracem rumar até ao kampong.Ada, por seu lado,

enviou um dos marinheiros do iate até à foz do rio para avisar Lord James do que se estava a preparar.No dia seguinte, os

primeiros reforços

Page 1191: O Tigre da Malásia

começaram a afluir ao kampong. Eram bandos de malaios, na maioria armados de espingardas, que acorriam de todo o lado para combater sob as bandeiras do seu príncipe.Do mar também

chegavam a cada momento paraus com numerosas tripulações e armados de algumas peças de artilharia.

Page 1192: O Tigre da Malásia

Três dias depois sete mil malaios acampavam em torno do kampong. Esperavam apenas os bandos de Mompracem para se porem em marcha na direcção de Sarawak e cair, de repente, sobre a cidade.Todas as estradas do

interior tinham já sido bloqueadas para impedir os daiaques de levar notícias sobre o alastrar da insurreição ao rajá,

Page 1193: O Tigre da Malásia

que ainda devia ignorar a fuga do seu formidável adversário.No quinto dia, a frota de

Mompracem lançava âncora na praia do kampong. Era composta por vinte e quatro grandes paraus, armados com quarenta canhões e sessenta espingardas e contando com duzentos combatentes que, pela coragem e pela

Page 1194: O Tigre da Malásia

habilidade guerreira, valiam por mil malaios.Assim que

desembarcou, Aier-Duk foi ter com Ada que estava alojada na mesma habitação que Orango-Tuah.— Senhora — Disse-lhe.

— Os Tigres de Mompracem estão prontos para cair sobre Sarawak. Juraram que libertarão Sandokan e os

Page 1195: O Tigre da Malásia

seus amigos, ou morrerão todos.— Os malaios já só

estavam à vossa espera — Respondeu a jovem. — Jurai-me, contudo, antes de mais, que não farão mal algum a James Brooke e que, se o vencerem, deixarão partir em liberdade.— Protegeremos a sua

fuga, já que assim o deseja. A senhora fala em nome do nosso

Page 1196: O Tigre da Malásia

capitão e nós obedeceremos.Duas horas depois, o

exército malaio, comandado pelo futuro sultão, abandonava o kampong tomando o caminho da costa, enquanto a rota de Mompracem, na qual tinham embarcado Ada e Kammamuri, tomava o largo seguida por outros cem paraus que haviam acorrido de todas as

Page 1197: O Tigre da Malásia

aldeias da vasta baía de Sarawak.Tinham sido tomadas

todas as medidas para surpreender a capital do rajá e fixado o dia para a atacar a partir de terra e a partir do rio.A rota que navegava

lentamente para deixar tempo às tropas para avançar, reunia-se todas as noites na costa para esperar os mensageiros de Hassin. Aier-Duk,

Page 1198: O Tigre da Malásia

contudo, tinha algumas dificuldades em acalmar os Tigres de Mompracem, que ardiam de desejo de vingar a derrota do seu chefe.Para se manterem

ocupados, davam caça aos veleiros que se dirigiam para Sarawak, para impedir que o rajá recebesse notícias do avanço dessa esquadra suspeita.

Page 1199: O Tigre da Malásia

Quatro dias depois, perto do pôr-do-sol, a frota alcançava a foz do rio. Nessa mesma noite, as tropas de Hassin cairiam sobre a capital.Aier-Duk ordenou ao

parau onde seguia Ada que se mantivesse escondido numa pequena enseada na foz, para não expor a jovem aos horrores da batalha, mas Kammamuri passou para o barco do chefe

Page 1200: O Tigre da Malásia

uma vez que não queria ficar fora da acção naquele momento supremo.— Traz-me de volta

Tremal-Naik — Disse Ada, antes que se separassem.— Posso até ficar

aleijado, mas o patrão será salvo — Respondeu o bravo marata. — Assim que desembarcarmos irei cercar o palácio do rajá, porque estou certo de

Page 1201: O Tigre da Malásia

que é lá que estão os prisioneiros.— Vai, meu valoroso

companheiro, e que Deus te proteja!Aier-Duk já havia dado

as ordens finais para o combate. Tinha colocado à cabeça da esquadra os paraus maiores, armados com canhões e onde seguiam os mais intrépidos piratas de Mompracem.

Page 1202: O Tigre da Malásia

Estes deviam apoiar o primeiro embate e os outros fazer número contra a frota para a abordagem.Às 10 da noite a rota

pôs-se em movimento, subindo rapidamente o rio. Todas as velas tinham sido amainadas para manter as cobertas desimpedidas e os barcos pequenos subiam a remos.

Page 1203: O Tigre da Malásia

O rio parecia deserto: nenhum navio inimigo, surgia nem perto da margem direita, nem da margem esquerda e até as florestas, fáceis de defender, não tinham soldados.Contudo, aquele silêncio

não tranquilizava Aier-Duk. Parecia-lhe impossível que não tivesse havido nenhuma informação sobre a insurreição que há cinco

Page 1204: O Tigre da Malásia

dias rebentava pelo reino e que o rajá, homem astuto, audaz, bem servido pelos daiaques e pela guarda indiana, se deixasse surpreender. Temia, pelo contrário, uma emboscada perto da cidade e mantinha-se de olhos abertos e ouvidos atentos.À meia-noite a frota já

só estava a meia milha de Sarawak. Começavam a ser distintas na linha

Page 1205: O Tigre da Malásia

do horizonte as primeiras casas.— Ouves alguma coisa?

— Perguntou Aier-Duk a Kammamuri, que estava ao seu lado.— Nada — Respondeu o

marata.— Este silêncio inquieta-

me. Hassin deveria já ter chegado e começado o ataque.— Talvez esteja à

espera de ouvir os nossos canhões.

Page 1206: O Tigre da Malásia

— Ah!— O que foi?— A frota!Numa curva do rio tinha

aparecido uma massa imponente que parecia fechar a passagem. Eram os navios do rajá em formação de batalha, prontos a repelir o ataque. De repente, quinze ou vinte relâmpagos romperam a escuridão seguidos por um horrível estrondo. A

Page 1207: O Tigre da Malásia

frota de Brooke tinha começado um fogo infernal contra a esquadra dos atacantes.Um imenso grito ecoou

pelo rio:— Viva Mompracem!— Viva Hassin!Quase no mesmo

instante, para norte da cidade, ouviam-se furiosas descargas de mosquete. As tropas de Hassin abatiam-se sobre a capital.

Page 1208: O Tigre da Malásia

— À abordagem, Tigres de Mompracem! — Trovejou Aier-Duk. — Viva o Tigre da Malásia!Os paraus lançam-se

contra os navios do rajá. Ninguém resiste à fúria daquele ataque.Num instante, os navios

são cercados de todos os lados por aqueles barcos com os mais intrépidos navegadores do mar da Malásia a bordo.

Page 1209: O Tigre da Malásia

Tigres e malaios sobem pelos flancos dos navios, passam as amuradas, invadem as cobertas, cercam as tripulações impotentes face a tanta fúria, desarmam-nas e encerram-nas nos porões e nas baterias. As bandeiras do rajá são amainadas e em seu lugar hasteadas as bandeiras vermelhas de Mompracem decoradas com a cabeça de tigre.

Page 1210: O Tigre da Malásia

— A Sarawak! — Trovejam Kammamuri e Aier-Duk.Os paraus retomam o

largo para se abaterem sobre a cidade. A batalha, levada a cabo pelas tropas malaias, aquece e é sangrenta nas ruas da cidade.Em todos os bairros

estalam os mosquetes e até nos canais. Ouvem-se os gritos dos malaios que avançam para a

Page 1211: O Tigre da Malásia

praça onde se ergue o palácio do rajá.Algumas casas ardem

em vários locais deitando em volta uma luz avermelhada, enquanto no ar esvoaçam fagulhas que o vento leva para longe pelos campos.Aier-Duk e Kammamuri

atracam no declive e, encabeçando quatrocentos homens, irrompem no bairro

Page 1212: O Tigre da Malásia

chinês cujos habitantes também se insurgiram.Duas companhias de

indianos da guarda, destacados à saída do bairro, procuram repeli-los com duas descargas, mas os Tigres de Mompracem atacam-nos com as cimitarras em punho e põem-nos em fuga desordenada.— Para o palácio! —

Grita Kammamuri.

Page 1213: O Tigre da Malásia

E, arrastando atrás deles aqueles bandos formidáveis, chega à grande praça. O palácio do rajá é defendido apenas por um punhado de guardas que, após uma breve resistência, dispersam.— Viva o Tigre da

Malásia! — Bradam os piratas de Mompracem.Uma voz, sonora como

uma trompa, ecoa no interior do palácio:

Page 1214: O Tigre da Malásia

— Viva Mompracem!É a voz de Sandokan. Os

tigres reconheceram-na.Irrompem pelas escadas

acima, deitam abaixo as portas que tinham sido barricadas, percorrem freneticamente os quartos e finalmente, numa cela defendida por sólidas grades, encontram Sandokan, Eanes, Tremal-Naik, Tanauduriam e Sambigliong.

Page 1215: O Tigre da Malásia

Não lhes deixam tempo para falar. Pegam neles em ombros e levam-nos em triunfo para a praça, por entre gritos ensurdecedores.Nesse preciso instante,

uma onda de indianos fugitivos, repelidos pelas tropas de Hassin, abate-se sobre a praça.Sandokan tira a

cimitarra a um dos seus fiéis e lança-se no meio dos fugitivos seguido por

Page 1216: O Tigre da Malásia

Eanes, por Tremal-Naik e por vinte dos seus homens.Os indianos

dispersaram, mas um homem ficou: James Brooke, com as roupas rasgadas, ainda empunhando o sabre ensanguentado, com o olhar turvo.— Sois meu! — Gritou

Sandokan, arrancando-lhe o sabre.

Page 1217: O Tigre da Malásia

— O senhor! — Exclamou o rajá com voz grave. — Outra vez!— Devias-me uma

desforra, Alteza.— É por ironia que me

chama Alteza! O meu reinado acabou e eu mais não sou do que um prisioneiro largado às vinganças do neto daquele que eu defendi com a minha espada e que, como recompensa,

Page 1218: O Tigre da Malásia

me deu um trono tão instável.— Não um prisioneiro,

James Brooke: o senhor é um homem livre — Disse Sandokan, abrindo-lhe alas entre os piratas. — Aier-Duk! Conduz S. A. à foz do rio e protege-o.O ex-rajá olhou

Sandokan com espanto, vendo depois irromper na praça os malaios de Hassin que emitiam gritos de morte contra

Page 1219: O Tigre da Malásia

ele; seguiu rapidamente Aier-Duk que reunira em seu redor cerca de trinta homens.— Eis um homem que

jamais regressará a estas praias — Disse Sandokan. — O poder do rajá James Brooke desapareceu!

CONCLUSÃONo dia seguinte, o neto

de Muda-Hassin

Page 1220: O Tigre da Malásia

instalava-se, com grande pompa, no palácio de James Brooke, antiga sede dos sultões de Sarawak.A população da cidade

inteira, que nunca havia perdoado ao rajá fugitivo a sua origem europeia, apesar da civilização e dos grandes melhoramentos introduzidos por aquele homem enérgico, corajoso e sábio, tinha

Page 1221: O Tigre da Malásia

confraternizado com as tropas insurrectas.O novo sultão não foi

ingrato para com os seus aliados: ofereceu a Sandokan, a Eanes e a Tremal-Naik honras e riquezas, pedindo-lhes que ficassem no reino, mas todos recusaram.Dois dias depois,

Tremal-Naik e Ada, noivos e felizes, embarcavam com Kammamuri no iate de

Page 1222: O Tigre da Malásia

Lord James rumo à Indira, levando com eles inúmeros presentes; e Sandokan e Eanes embarcavam com as suas tropas de regresso à ilha de Mompracem.— Rever-nos-emos um

dia? — Perguntaram Ada, Tremal-Naik e Lord James ao Tigre da Malásia, antes de se separarem.— Quem sabe? —

Respondeu Sandokan. — A Indira tenta-me e pode

Page 1223: O Tigre da Malásia

ser que um dia o Tigre da Malásia e o Tigre das Sunderbunds se encontrem nas ilhas desertas do Ganges. Suyodhana! Eis um nome que me faz bater o coração; um homem que eu gostaria de conhecer. Adeus, tio; adeus, amigos; até à próxima!