O Touro e o Escriba

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O Touro e o Escriba – Não! ... Quero os fatos como se apresentaram. Faça isso, seu merdinha com mãos sujas de tinta, ou eu acho alguém que o faça! O Touro de Guerra falava essas palavras para mim como se fossem elogios bem colocados a uma cortesã qualquer, da Guilda dos Prazeres. Não que uma profissional deles precisasse de elogios para qualquer coisa. Todos sabem que se alguém tem dinheiro suficiente para contratar uma das profissionais da Guilda, então entende que as regras envolvem respeito absoluto a elas e ao seu trabalho difícil. De qualquer forma, o Velho Touro de Guerra não parecia se abalar com a minha opinião a respeito da forma como me tratava ou trataria as cortesãs... ou qualquer outra coisa. Para ele, havia a sua vontade e apenas isso. Pessoalmente eu o achava assustador. Mais ainda quando tentava ser doce... – Mas meu senhor... apenas estou colocando certos floreios ao texto narrativo para que possa ser entendido da melhor forma possível pelos que vierem a lê-lo. Minha arte é justamente... – Eu sei o que sua arte quer, Bor... Diabos... eu o contratei! – Sua interrupção, como um chicote, estalou em minhas desculpas, acabando com quaisquer lógicas que eu tenha cogitado. Realmente assustador... e muito mal educado! – Leia do começo... e siga minhas instruções. Pode fazer isso, Bor? – Sim meu senhor... – respondi, com um suspiro ligeiramente aborrecido de quem não é entendido, em seu ofício, por aqueles que o deveriam entender. – Posso iniciar? – Prossiga – Recostou-se na cadeira de espaldar alto que usava, a molde de cadeira senhorial, no salão principal do Presidiun, o castelo-sede da Província de Little Burnned e da Quarta Sul de Sant'Anna. Diferente de outros senhores, que preferiam a ostentação de salões ricamente adornados com fortunas em decoração, o Touro de Guerra preferia uma decoração quase espartana em seus domínios. Tapeçarias haviam, mas todas com o intuito de deixar um pouco menos árido, aqueles corredores e aquelas salas. Das janelas, podia observar os domínios de sua família. Podia sentir, das sacadas, o quanto o peso do nome de seus ancestrais era imposto aos seus territórios. Era claro o quanto o antigo Mão do Rei Nathos se sentia incomodado em não estar em campanha. Como Senador e General, mal acabara de chegar de uma embaixada e já

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Conto do Reino de Sant'Anna

Transcript of O Touro e o Escriba

O Touro e o Escriba

No! ... Quero os fatos como se apresentaram. Faa isso, seu merdinha com mos sujas de tinta, ou eu acho algum que o faa!

O Touro de Guerra falava essas palavras para mim como se fossem elogios bem colocados a uma cortes qualquer, da Guilda dos Prazeres. No que uma profissional deles precisasse de elogios para qualquer coisa. Todos sabem que se algum tem dinheiro suficiente para contratar uma das profissionais da Guilda, ento entende que as regras envolvem respeito absoluto a elas e ao seu trabalho difcil.

De qualquer forma, o Velho Touro de Guerra no parecia se abalar com a minha opinio a respeito da forma como me tratava ou trataria as cortess... ou qualquer outra coisa. Para ele, havia a sua vontade e apenas isso.

Pessoalmente eu o achava assustador. Mais ainda quando tentava ser doce... Mas meu senhor... apenas estou colocando certos floreios ao texto narrativo para que possa ser entendido da melhor forma possvel pelos que vierem a l-lo. Minha arte justamente... Eu sei o que sua arte quer, Bor... Diabos... eu o contratei! Sua interrupo, como um chicote, estalou em minhas desculpas, acabando com quaisquer lgicas que eu tenha cogitado.

Realmente assustador... e muito mal educado! Leia do comeo... e siga minhas instrues. Pode fazer isso, Bor? Sim meu senhor... respondi, com um suspiro ligeiramente aborrecido de quem no entendido, em seu ofcio, por aqueles que o deveriam entender. Posso iniciar? Prossiga Recostou-se na cadeira de espaldar alto que usava, a molde de cadeira senhorial, no salo principal do Presidiun, o castelo-sede da Provncia de Little Burnned e da Quarta Sul de Sant'Anna. Diferente de outros senhores, que preferiam a ostentao de sales ricamente adornados com fortunas em decorao, o Touro de Guerra preferia uma decorao quase espartana em seus domnios. Tapearias haviam, mas todas com o intuito de deixar um pouco menos rido, aqueles corredores e aquelas salas.

Das janelas, podia observar os domnios de sua famlia. Podia sentir, das sacadas, o quanto o peso do nome de seus ancestrais era imposto aos seus territrios. Era claro o quanto o antigo Mo do Rei Nathos se sentia incomodado em no estar em campanha. Como Senador e General, mal acabara de chegar de uma embaixada e j sentia falta do p da estrada sob seus ps enormes.

Pigarreei. Aprontei a voz e, em meu melhor tom declamatrio, iniciei a leitura do texto que havia escrito durante a noite de viagem, mas que o Marqus de Little Burnned achava por bem achar que poderia ser melhorado...

Amadores... Argh!

Nathos, ao menos, sabia apreciar a minha arte. Peo Sant'Anna que ele volte logo, de onde quer que esteja. Sinto falta de seu bom gosto!

Escrevia o relatrio sobre a Embaixada ao Reino de So Salvador, para comemorao do aniversrio de sua independncia ao Reino do Recncavo. Uma vez que o rei Nathos (o Primeiro de seu nome), novamente errante, no havia voltado, cabia ao conselho dos Lordes gerir o reino. Mais do que isso, cabia ao Mo cuidar de Sant'Anna enquanto o rei no retornasse. Havia sido, contudo, a sua ltima misso como Mo e regente. Poucas semanas aps o fato, havia alegremente passado o fardo de Mo Iukina Kubo.

No se pode dizer que John de Little Burnned gostou realmente de seu trabalho como Mo. Muito pelo contrrio, seu desgosto dos assuntos do reino era aparente, ainda que o fizesse com o mesmo amor que devotava aos Touros de Sant'Anna. Mas, para John, era difcil conciliar as obrigaes diversas, presentes na gesto de todo um reino, com a simplicidade de gerenciar um exercito.

Na frente da I Legio, a coisa era simples: tinha-se objetivos bem traados que deveriam ser conseguidos. As responsabilidades eram delegadas quelas que podiam arcar com elas, sendo os mesmos recompensados por suas conquistas e punidos por suas faltas.

Mas na vida civil, a coisa era mais complicada. O reino era como uma lula gigante, gosmenta e molhada, que escorregava pelas mos sempre que se tentava lidar com ela. E nada parecia dar certo, quando se pensava na melhor forma de cozinhar essa lula.

No havia objetivos consensuais. Tudo tinha mais de trs lados e nenhum desses lados era, nem de longe a verdade. John se sentia enganado, a maior parte do tempo, tendo que desconfiar de tudo e de todos para poder, quando Nathos I voltar, poder entregar o reino, tendo, na conscincia, a certeza de que fez o melhor para todos.

Ningum parecia concordar com isso.

A todo dia, dezenas de requisitantes se deslocavam at a sala de audincias do rei, em seu palcio, o Muralha Branca, para pedir a ateno do Mo em seus assuntos. Ou simplesmente para se mostrar aos outros... ou simplesmente para dar sugestes de como gerir o reino... ou apenas para tentar conseguir favores.

A manh inteira era gasta com isso...

Durante a tarde, o conselho se reunia, aps o almoo (sempre frio e sempre depois que o sol descia do centro do cu), para discutir os caminhos do reino. Era sempre uma hora perdida, uma vez que tudo poderia ser feito com apenas 30 minutos, a cada semana...

Mais algumas horas de trabalho na gesto do reino, aps isso. Ao final da tarde, sua fuga para as casernas, onde os homens retornavam de suas atividades de treinamento e guarda. Sua hora de folga, por assim dizer, onde sempre encontrava algum oficial disposto a treinar com ele. Chamava isso de trabalho de homem. Noite, a interminvel sequencia de festas, bailes, jantares, bebidas ao redor de mesas de nobres, reforo de alianas...

Dormir prximo da meia noite, todos os dias.. acordar prximo das seis, todos os dias... e reiniciar a sua rotina. A vontade de se jogar de cima das muralhas aumentava como se fosse o peso de um escudo durante uma marcha pelo Mar de Areia.

Apenas uma vez, por quinzena, John de Little Burnned conseguia fugir para suas terras, onde podia ser mais ele mesmo e menos Mo. Por um ou dois dias, conseguia deixar o reino por si mesmo, tornando-se o chefe de seu cl. Um homem de famlia, apenas, tendo o interesse dos seus em mente.

Mas isso logo terminava. Trs dias depois, John estava de volta. Sempre.

Hoje, ele est ansioso. A Embaixada aos Reino de So Salvador o tirou da rotina. Levou um pequeno contingente. Um de seus capites, Ao Madara (o semi-louco), Jeferson (o ndio), Tsunaeo (o Ronin), Sir Luxor ibn Sahrif (o Observador de Estrelas), Sir Gilbert (O Estrangeiro), Theo Lukkios Garrabranca (o malabarista). Todos convidados como pompa e elegncia s festividades do Rei Merlino I da Rainha Renata.

Eu, na condio de escriba, estava presente tambm. Mas sempre me fazendo de inexistente, para que no atrapalhasse s pessoas cujas aes, eu descreveria depois. Pois o trabalho de um bom escriba observar sem ser observado. Estar presente sem ser notado. Ver ser ser visto jamais.

Posso dizer que, em muito tempo, no via o velho Touro de Guerra to despreocupado e to ele mesmo...

Sorria e brincava com todos. Chegou mesmo a ajudar nas cozinhas, por puro capricho, apenas por que alguns dos cozinheiros e mestres culinrios presentes eram seus conhecidos de longa data... V, Bor me disse ele, enquanto ria, apontado para um nbio tatuado com as marcas de sua tribo e nao esse homem, mesmo sendo do tamanho de meu ombro, chegou a me imobilizar, de uma feita, e me salvou de um veneno dos mais perigosos, que ingeri, por orgulho, em quantidades cavalares. Pergunte ao Sir Luxor... ambos aprenderam muito, naquela ocasio, sobre a gravidade e sobre o contedo de estmagos de homens grandes.

E gargalhava, abraado ao nbio de mos mgicas!

Durante o jantar, claro que fez o melhor para esconder seu gnio arredio e pssima ndole... Mas o fez por prazer.

Conhecemos novos parceiros nas Hostes Baianas. Uma embaixada do territrio conhecido como MIDGARD, estava l, tambm. Interessante como o nome e os modos me lembram vanires e aesires com quem encontrei em outras datas e em outras paragens, muito longnquas... Mas eram cavalheiros e damas da mais alta estirpe e do mais alto grau de gentileza.

Mas foi nos brides dos jantar que percebi uma faceta surpreendentemente singela, naquele General bruto e exigente.

Durante as festividades, foram elevados alguns dos oficias do Exercito do Reino de So Salvador, devido seus trabalhos prestados e servios ao reino e ao rei. Folgo em dizer que todos os homens e mulheres que eu vi serem elevados entre seus pares, mostraram ser homens e mulheres de bem, que orgulhariam qualquer reino em que estivessem.

Vi novos cavaleiros e cavaleiras... Vi um mestre erguer-se sobre seus irmos e, em humildade, agradecer ao seu discpulo. Vi uma cavaleira (que j fez frente a Ignnes, a Cavaleira M, em mais de uma feita) ser aclamada pela sua bravura. Vi um soldado receber o respeito, no por vencer, mas por no desistir jamais.

A tudo isso eu vi... mas vi tambm o velho cavaleiro ser calado e surpreendido.

Por que, em determinada altura, o silncio se fez presente no salo. A Rainha, a um gesto de concordncia do rei tomou de sua espada, e chamou, frente, Sir John, ainda Mo do Rei de Sant'Anna, e o Lder da Embaixada de Midgard.

John estacou, no lugar. Em uma mo, uma taa de vinho. Na outra, uma flor, que estava a oferecer a uma linda senhora. O que falava, parou, em sua boca. Sir John, o Touro de Guerra. Mo do rei de Sant'Anna e General dos Touros. Pela amizade demonstrada em suas aes e pelo carinho que vejo em seu corao, eu peo que se ajoelhe Disse a rainha, inatingvel em suas intenes e inescrutvel em seus pensamentos.

O Touro de Guerra se ajoelhou da melhor forma que pode, mesmo atrasado por sua velha armadura. Mesmo deslocado em seu Tabardo gasto, mas que usava com fervor. Mesmo enrolado em sua capa que exibia o Touro Rampante. Mesmo em sua brutalidade marcada pelo combate... atrapalhado pelos anos... ainda assim, o Touro de Guerra se ajoelhou, ao lado do Rei de Midgard, chamado tambm, e que fazia um par impressionante com o Touro de Guerra. A vs, dois guerreiros que so, lderes de homens e terras que se tornaram, eu, Rainha Renata, em meu nome e em nome do meu Rei e Reino, sagro Cavaleiros do Reino de So Salvador e deu os trs golpes rituais nos ombros de ambos Ergam-se, Cavaleiros. E sejam recebidos por seus irmos e irms.

Quando os dois guerreiros se levantaram, um grito tomou o salo. Um berro de gargantas com sotaques diferentes, de terras diferentes. De sonhos diferentes...

Mas um grito de irmos e irms.

Abraos foram trocados. Desafios feitos e sorrisos oferecidos.

Quando me aproximei de Sir John, pude notar um brilho diferente em seus olhos. Mesmo o olho cego parecia querer abarcar todo o mundo que via. O brilho era conhecido de qualquer um com sentimentos... mas eu estava olhando para o Touro de Guerra. O nico sentimento presente nele era a raiva fria do combate e a alegria desmedida da conquista... todo o resto era desconhecido. Isso era de conhecimento de todo o povo e de cada um de seus homens e mulheres.

Claro que no pude evitar. Senhor disse eu, com o mximo de sarcasmo que pude tentar esconder est chorando?

John de Little Burnned, surpreso por me ver em sua frente, sorriu e esfregou um leno gasto, que j havia sido branco, bordado com um M e um J que deveriam ter sido verdes, algum dia, nos olhos. Me sorriu e disse, docemente, como um filhote faminto de tigre deve soar: Qualquer palavra sobre isso, Bor, e eu juro que vai passar o resto de sua vida descrevendo como o interior das latrinas do campo de treino da I Legio... e usando a mesma pena que usar para escrever, para limpar os resduos. Estamos entendidos?

Me deu um suave tapa nos ombros (que poderia ter derrubado um beb elefante), sorriu mais uma vez e saiu, para a noite, com o leno em uma mo e uma caneca de vinho na outra. Mas posso jurar que, ao sair, ainda o ouvi sussurrar... Ah, Marina... se pudesse ver isso...

Mas claro que no posso por isso num papel... e, agora, ele me obriga a ler o que escrevi par aos registros. Mal posso acreditar que o mesmo homem...

No importa. Claro... afinal, sou um escriba. A mim cabe apenas registrar o que me pedem.

Dessa forma, iniciei a minha leitura. Ia ser um longo dia:

Registros do Reinado.

No ano de nosso senhor de ...