O TRABALHO OS TORNOU LIVRES PARA SEMPRE · 2015-07-27 · 4 O conjunto da sociedade passou a pagar...

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C A P Í T U L O IV ====================== O TRABALHO OS TORNOU LIVRES PARA SEMPRE (Um estudo sobre as condições de trabalho encontradas nas fábricas do bairro do Brás, da Capital e do Estado de São Paulo, onde se fixaram os imigrantes de Schio, entre 1891-1895)

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C A P Í T U L O IV

======================

O TRABALHO OS TORNOU LIVRES

PARA SEMPRE

((UUmm eessttuuddoo ssoobbrree aass ccoonnddiiççõõeess ddee ttrraabbaallhhoo eennccoonnttrraaddaass nnaass ffáábbrriiccaass ddoo bbaaiirrrroo ddoo BBrrááss,, ddaa CCaappiittaall ee

ddoo EEssttaaddoo ddee SSããoo PPaauulloo,, oonnddee ssee ffiixxaarraamm ooss iimmiiggrraanntteess ddee SScchhiioo,,

eennttrree 11889911--11889955))

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Capítulo IV – O trabalho os tornou livres para sempre.

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Toda semana pertence ao trabalho, irmãos. Estamos resolvidos a

trabalhar com coragem e perseverança, cada qual de acordo com suas

forças, toda a semana, na segunda-feira como nos outros dias? Essa

resolução é digna de pessoas de coragem: vocês querem assumi-la, querem?

(Aclamações.) Sim, repetirei eu também, sim, mãos à obra! Então, a partir

de amanhã ao raiar do dia, e Deus queira que não falte trabalho para

ninguém. (A. Bertaut)1

_____________________________________________

11.. AA bbuussccaa ddee uumm lluuggaarr qquuee llhheess ddeessssee ttrraabbaallhhoo Produzimos o título deste capítulo parafraseando justamente a inscrição afixada pelos nazistas, em letras garrafais, na entrada do campo de extermínio de Auschwitz, interior da Polônia: “Arbeit macht frei”, livremente traduzida. Sentença tétrica porque associada às atrocidades inomináveis lá cometidas mas que, do ponto de vista semântico, continuamente presente na história da exploração do trabalho, permeou secularmente as relações e o cotidiano operário. Talvez, na história humana, nenhum poder constituído tinha – até então – conseguido resumir melhor o pensamento do capital a respeito do trabalho. Tanto que este, sob o Nazismo, foi, de modo despudorado, reduzido à sua condição mais ignóbil: a escravidão, mostrando que sob o domínio absoluto do capital não há limites. Os imigrantes operários de Schio, ao procurarem as paragens do Estado de São Paulo, da Capital e do bairro do Brás, como vimos, buscavam encontrar meios para reconstruir suas vidas. Malgrado os dissabores e contratempos sofridos na "Manchester d’Italia”, os trabalhadores ainda acreditavam que com sua labuta jornaleira, empregados numa fábrica ou mesmo numa fazenda, iriam poder atingir sua utopia. Por isso, acreditando ainda no trabalho se disseminaram pela vastidão do território paulista. Para termos uma idéia de onde se esparramou essa força de trabalho, construímos a próxima tabela que se destina a nos indicar o rumo tomado pelo conjunto dos imigrantes, após o período de relativa "quarentena" (de oito dias) vivido no interior da Hospedaria do Brás.

TABELA 19 IMIGRANTES DE SCHIO NO ESTADO DE SÃO PAULO (1891-1895)

DESTINO

MUNICÍPIOS

NÚMERO DE IMIGRANTES

%

Sem discriminação 161 62,6 62,6 Capital 51 19,8

Porto Ferreira 11 4,3 Pedreira 9 3,5 Itatiba 8 3,1

Itu 8 3,1 Ribeirão Preto 4 1,6

Botucatu 3 1,2 Serra Negra 1 0,4 São Pedro 1 0,4

37,4

T O T A L

257

100

100

Fontes: UACS - MI

Dos 257 imigrantes escledenses que entraram no Estado de São Paulo, conseguimos

identificar apenas o paradeiro de 96 (37,4%), por terem, de alguma forma, deixado registrado – quer nos arquivos municipais de Schio ou na Hospedaria do Brás, o nome da localidade ou

1 A. Bertaut, “Au Peuple”, La Ruche populaire, fev. 1841. Apud RANCIÈRE, Jacques A noite dos proletários; trad. Marilda Pedreira. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 63.

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município para onde se dirigiam. Alguns desses registros só puderam ser encontrados nos arquivos de Schio graças à correspondência que os imigrantes mantiveram com parentes e amigos remanescentes na Itália.2 Os que se fixaram na Capital constituíram o maior segmento. Esse conjunto de 51 (19,8%) trabalhadores revelou o caráter urbano dessa corrente migratória e transformou, no período compreendido entre 1891 e 1895, a cidade de São Paulo numa das mais importantes áreas receptoras de imigrantes escledenses, ao lado de Thalwil, na Suíça; e Nova Jersey, nos Estados Unidos.

11..22.. OO eennccoonnttrroo ccoomm oo ““sseerrttããoo””

Para os que se dirigiram ao interior do Estado, entretanto, ou seja, para os demais 45 (17,5) imigrantes, foi possível descrever duas hipóteses de percurso: - a busca de trabalho na zona rural, como ocorria com a grande maioria dos imigrantes vindos da Itália naquele período; ou, ainda, - a fixação nas cidades onde havia, principalmente, indústrias têxteis em funcionamento, já mencionadas no capítulo inicial. Ao todo foram oito os municípios escolhidos. Quanto a sua localização geográfica, podemos – grosso modo – distribuí-las em três grupos distintos: 1) os que se situavam na região onde a cafeicultura era mais antiga do Interior paulista, num raio não superior a 150 km. da Capital, que abrangia o quadrilátero formado pelos municípios de Itu, Itatiba, Serra Negra e Pedreira; 2) os que se situavam na franja cafeeira mais a oeste da região antiga, incluída num raio em torno de 200 km. de São Paulo, isto é, incluindo os municípios de Botucatu e São Pedro; e 3) os que se situavam na franja cafeeira pioneira mais ao norte, na Alta Mojiana, como Porto Ferreira e Ribeirão Preto. As famílias que se dirigiram para a primeira dessas áreas foram: a Ustorio, cujos membros eram trabalhadores já urbanos, para Pedreira; a Fuccenecco, de longa passagem pelo campo, para Itatiba; a Dalla Vecchia, com fortes liames com o mundo operário, para Itu; e o imigrante avulso Pietro Piazza, que servia café num quiosque de Schio, para Serra Negra. Formaram, juntas, o maior comboio de imigrantes: 26 pessoas [57,8% das 45] que foram para o Interior do Estado. Destas famílias, a maioria parece ter procurado mesmo fixar-se na zona rural, exceção feita apenas aos Dalla Vecchias que, a partir de fontes documentais e informações familiares seguras, mantiveram seus vínculos, ainda que de modo, às vezes, intermitente e de uma parte de seus membros, com o trabalho fabril em Salto, onde iriam fixar-se posteriormente. As demais, que se orientaram para a segunda área acima definida, foram, como os Rabbitos, de origem rural que se tornaram operários em Schio, rumaram para Botucatu; e como o imigrante avulso Giacinto Daniele, operário têxtil havia três anos, para o município de São Pedro. Em termos quantitativos, este representou o menor grupo que se dirigiu para o interior: composto apenas por 4 pessoas [0,9% dos 45]. Os que se dirigiram para a região da Alta Mojiana foram: os Crestanas e os Zaltrons (Giuseppe), duas famílias de longa tradição operária, que rumaram para o município de Porto Ferreira; e os Salins, cujo pai era carpinteiro, para Ribeirão Preto. Formavam o segundo maior grupo, integrado por 15 imigrantes [33,3% dos 45]. Cabe, porém, nos perguntarmos: em que contexto e quais teriam sido as condições de trabalho encontradas pelos imigrantes de Schio na zona rural paulista? A resposta a essas questões nos remete à apreciação das características próprias do modelo de contrato já imperante na época em que eles aqui chegaram: o “colonato”. 1.2.1. A exploração do trabalho e a utopia da pequena propriedade

O regime de trabalho nas fazendas chamado de “colonato” derivou da associação de quatro importantes fatores: 1) a política favorável à imigração engendrada pelos fazendeiros do

2 Sobre a grande maioria (62,6%) não se há notícias precisas quanto a seu paradeiro. É possível, em razão das características

peculiares desse contingente, que essa mesma maioria tenha se fixado mais nas cidades, e, em especial, na Capital paulista onde havia maiores e melhores oportunidades de se encontrar um lugar de trabalho industrial.

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Interior paulista, desde a década de 1870; 2) a interrupção do tráfico interprovincial de escravos3, em 1880; 3) as conseqüências da política fundiária restritiva (Lei de Terras, de 1850); e 4) a falência das experiências imigrantistas anteriores em fornecer grande quantidade de braços baratos para a agricultura cafeeira. Tal regime constituiu-se na fórmula final que os grandes fazendeiros descobriram para substituir os escravos por trabalhadores livres. O colono não era realmente uma pessoa envolvida em planos de colonização, mas a pessoa que trabalhava para o fazendeiro. Estes, ficariam liberados das despesas com a viagem dos imigrantes do país de origem até as fazendas. Com o “colonato” invertia-se o procedimento dos modelos anteriores de suprimento de força de trabalho. Eram trabalhadores - em número muito superior ao necessário - já proletarizados na Itália - e sem qualquer perspectiva imediata de se tornarem proprietários, que, necessitando vender seu trabalho para garantir sua sobrevivência e de sua família, iam à procura de uma colocação nas unidades produtivas rurais.

A Província de São Paulo, através de lei aprovada em 6 de março de 1884, franqueou o transporte às famílias imigrantes que quisessem instalar-se nas fazendas cafeeiras ou nos núcleos coloniais, que, ao menos neste caso, não alterava sua política anterior. O que havia de novo, agora, é que o Estado passava a assumir, sob a égide dos interesses da classe proprietária, o ônus do transporte de imigrantes, possibilitando, assim, a introdução de contingentes sempre maiores de trabalhadores nas grandes propriedades.4 O erário nacional e também estadual, com isso, financiariam a formação do mercado de trabalho livre, à disposição dos fazendeiros, a despeito de todos os demais setores da sociedade brasileira e paulista da época. Entre 1890 e 1892, os gastos do governo federal com os serviços de imigração, e também, em menor escala, de colonização, estiveram na ordem de 30 425:288$810 (trinta mil, quatrocentos e vinte e cinco contos, duzentos e oitenta e oito mil, oitocentos e dez réis), enquanto que o Estado de São Paulo, de longe o maior beneficiário da política imigrantista, despendeu, no mesmo período, 3.001:298$153 (três mil e um contos, duzentos e noventa e oito mil, cento e cinqüenta e três réis), isto é, apenas um décimo da primeira quantia.5

Com isso, caminhava-se, intencionalmente, para a formação de um excedente de força

de trabalho agrícola capaz de pressionar consideravelmente para baixo o preço do trabalho.6 Com a nova política migratória e o abandono progressivo dos núcleos oficiais, o sonho do acesso imediato à propriedade da terra parecia se esvair. Entretanto, para a maioria dos trabalhadores imigrantes ele não havia acabado. Essa aspiração, que tanto motivou a imigração precedente, orientada para os núcleos coloniais, de reeditar em São Paulo, a estrutura da sociedade camponesa de origem, não desapareceria. Ao contrário, foi ideologicamente estimulada pelos agentes e proprietários promotores da imigração mantendo-a como atrativo e transformando-a em força de adaptação às condições estabelecidas pela nova fase de capitalização. Tornar-se pequeno agricultor, nesse regime, deveria ser uma ambição para o imigrante, mas não uma realidade facilmente atingível. Cabia-lhe, primeiramente, submeter-se à condição de empregado da grande fazenda cafeeira para depois, com o pecúlio que dai conseguisse amealhar, adquirir seu definitivo pedaço de chão.7 3 FREITAS, Décio Escravos & senhores de escravos. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1983, pp. 150-151. 4 O conjunto da sociedade passou a pagar para que se produzisse um regime de trabalho livre adaptado às condições específicas

da economia colonial no Brasil. Foi somente assim que se tornou possível finalmente, efetivar e institucionalizar a separação entre o trabalhador e a força de trabalho. . MARTINS, José de Souza O Cativeiro ... op. cit., p. 126.

5 PETRONE, Maria Tereza Schorer Imigração. In FAUSTO, Boris (org.) História Geral da Civilização Brasileira – III – O Brasil Republicano – 2 Sociedade e Instituições (1889-1930). Rio de Janeiro – São Paulo, Difel, 2ª ed, 1978, p. 101.

6 Cf. TRENTO, Angelo Do outro lado ... op. cit., pp. 23-25. 7 MARTINS, José de Souza A imigração e a Crise do Brasil Agrário. São Paulo: Pioneira, 1973, p. 69. Cf. tb. MARTINS, José de

Souza O Cativeiro ... op. cit., p. 125. A propósito, assim escreve Maria Sylvia Franco: Proporcionar ao colono facilidades para a comercialização de gêneros, dar-lhe empreitada nos cafezal e participação nos lucros realizados foi, ao mesmo tempo, equipá-los para uma passagem transitória pela fazenda, por período que raras vezes ultrapassou a duração dos contratos iniciais. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo, Kairós, 3 ed., 1983, p. 186. Essa motivação que impregnava tanto as mentes dos trabalhadores italianos já proletarizados quanto dos camponeses endividados (vítimas da concorrência internacional), associada às condições expulsoras favoráveis (falta de subsídios, crises produtivas, etc.), que ocorreram principalmente no Vêneto, coadjuvadas pela ação, muitas vezes inescrupulosas, dos agentes de propaganda - fazendo o elo entre a oferta e a procura - trouxeram milhões de trabalhadores ao Estado de São Paulo. O grosso desse contingente de imigrantes se destinou diretamente à cafeicultura, inserindo-se nas grandes propriedades. Dos 4.100.000 imigrantes entrados

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O regime do colonato amalgamou diferentes modalidades de relações de trabalho, constituindo-se num regime singular. Combinou a produção da mercadoria de exportação, o café, e a produção direta dos meios de vida necessários à reprodução própria do trabalhador e sua família.8 Os imigrantes, entretanto, tratavam e colhiam o café, a mercadoria, relutantemente e apenas porque sob essas condições podiam conseguir terra para cultivar gêneros, produtos necessários para seu próprio sustento.9 1.2.2. Os relatos sobre a vida dos trabalhadores imigrantes

O jornalista italiano De Zettiry visitou esta região, em 1891, e ao descreve-la, o fez em

tons apologéticos, francamente favoráveis à empresa imigrantista. Numa visão que poderia dizer-se quase idílica procura explicar como era boa a vida e farta a mesa dos trabalhadores italianos nas fazendas de café. Segundo ele, aos imigrantes: (...) non mancanza di lavoro, non isolamento da’loro compaesani, io pensava; ma occupazione facile, sicura, rimunerativa, uma casetta comoda ove godere tranquillo i meritati riposi in seno alla famiglia, un orticello annesso, breve sacca di fagiuoli o di granturco, per un anno intero e più, accatastati nella stanza del focolare, una vera decorazione di lardo, di salsicce e di salami, nel soffitto, cose per loro di maggior valore (...) la scrofa che grugnisce al fi fuori rincorsa dai porcastri destinati a farsi belli per il venturo incanto al paesello o pel prossimo sacrifizio (...) che manca qui, pensava io, ad un Italiano?10 Entretanto, esse relato – que poderia revelar apenas a realidade de algumas situações - contrasta nitidamente com os anteriores, descritos nas cartas que os imigrantes que chegaram logo nos primeiros anos da “Grande Imigração”, a partir de 1886, enviavam a suas famílias na Itália ou, ainda, de outros testemunhos oculares. Entre as primeiras grandes decepções descritas pelos trabalhadores estavam: a morte súbita das crianças menores e o encontro com o local onde iriam habitar. Nos casebres de madeira, cujo chão ficava sempre enlameado, não havia praticamente nada. O colono, como era chamado o imigrante que morava numa das casas da fazenda:

(...) deveria sentir-se satisfeito se pudesse dormir sobre palha de milho, com a qual recobria o chão de terra batida.11 Na medida em que iam conhecendo melhor os procedimentos do contrato de trabalho, as dificuldades aumentavam. Os fazendeiros de café, até há pouco senhores de escravos, não abdicaram da noite para o dia de sua mentalidade e porque não de suas prerrogativas sociais (e políticas). A essas características não escaparam sequer os fazendeiros do Interior paulista que, segundo Hall, constituíam-se: [(...) in] un gruppo che univa in modo peculliare modelli di comportamento assai avanzati, di tipo capitalistico e volti alla massimizzazione dei profitti, con atteggiamenti di tipo decisamente feudale (...) Essere alla completa e assoluta mercè di uomini del genere non costituiva la più felice delle sorti, specialmente se si considera che la struttura della vita nelle campagne dello Stato di São Paulo imponeva poche restrizioni (per non dire nessuna) al potere,

no Brasil, entre 1886 e 1934, 56% se fixaram no Estado de São Paulo. A grande maioria era constituída por italianos. No Estado, entraram 44% da emigração italiana para o Brasil, entre 1820 e 1888 (quando a maioria dos imigrantes ainda se destinava às regiões de fronteira agrícola no Sul do país). Entre 1889 e 1919, durante o período da chamada Grande Imigração, entraram no Estado de São Paulo 79% dos italianos ingressos no país. Cf. tb. HALL, Michael M. Emigrazione Italiana a San Paolo tra 1880 e 1920. In QUADERNI STORICI, n. 25, gennaio-aprile, 1974, pp. 141.

8 Cf. MARTINS, José de Souza O Cativeiro ... op. cit., p. 127. 9 Cf. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho op. cit., p. 186. 10 DE ZETTIRY, Arrogo I coloni italiani dello Stato di San Paolo. In La Rassegna Nazionale. Firenze, Presso l'Ufficio del

Periodico, 1893, vol. LXX, anno XV, marzo-aprile, pp. 64; e 84. 11 HUTTER, Luci Maffei. Imigração Italiana em São Paulo (1880-1889). São Paulo, USP, 1972, p. 98. Apud TRENTO, Angelo Do

outro lado ... op. cit., p. 46.

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a volte in tutto e per tutto di vita e di morte, che il piantatore esercitava sui suoi lavoratori. ‘Trovare un ’fazendeiro’ umano e ragionevole’ concludeva Adolfo Rossi nel 1902, era ‘un caso assai raro, più o meno come vincere un premio ad una loteria’.12

Continuaram sendo, malgrado as mudanças ocorridas no regime de trabalho, os senhores do lugar, os mais ricos e os mais influentes. Somente depois de muitos anos é que começaram a fazer algumas concessões no plano da disciplina e dos métodos para mantê-la. Antes, porém, muitos incidentes tiveram que acontecer, inclusive com a intervenção das autoridades consulares que, in extremis, se via na obrigação de prestar alguma forma de ajuda aos imigrantes. Regulado à moda escravista, o tempo de trabalho era marcado pelo toque do sino no início e no fim da jornada. Ninguém podia afastar-se da fazenda, nem mesmo no domingo, ou receber parentes e amigos sem a autorização expressa do fazendeiro ou do administrador. Houve casos também em que os filhos dos colonos foram mantidos como reféns, até que estes saldassem suas dívidas para com os fazendeiros. Mas os abusos verificavam-se sobretudo no plano da violência física generalizada, que previa o emprego descarado do chicote, como nos tempos do cativeiro. Os proprietários sentiam-se amplamente respaldados para praticar uma série de abusos físicos e econômicos contra seus trabalhadores, pois os imigrantes não tinham, pelo menos até o início do século atual, condições de obter contra eles qualquer proteção legal.13 Entre os expedientes utilizados: a fixação arbitrária de multas e dos preços dos produtos nos armazéns das fazendas; o confisco de produtos, a adulteração de pesos e medidas e a retenção dos pagamentos.14

Essas arbitrariedades, entretanto, não estavam confinadas apenas ao espaço territorial paulista. Domenico Marchioro, o pequeno operário de Schio, quando passou pela efêmera experiência como imigrante no interior de Minas Gerais, faz relato semelhante. Ao se deparar, em Juiz de Fora, com outros imigrantes, empregados também na cafeicultura, por volta de 1897, ouviu deles o que se passava nas fazendas do interior de Minas Gerais. Suas impressões foram bastante distintas das de De Zettiry, quando afirma que: (...) le notizie che riuscivamo ad avere da qualche connazionale fuggito alle fazenda dell'interno erano raccapriccianti. Molti erano coloro che si ammalavano e morivano di privazioni e di stenti, quelli che sopravvivevano non potevano più dirsi esseri umani, ridotti come erano allo stato animale. Chi tentava di fuggire lo faceva sempre a suo rischio e pericolo e le fatiche erano tali e tante che difficilmente si poteva mettersi in salvo.15 Se houve, contudo, algum ganho na imigração, este parece ter tido visibilidade apenas na mesa da cozinha dos trabalhadores. Permeia uma certa unanimidade entre os diversos autores – da época e contemporâneos - em se considerar que os imigrantes conseguiram, nas condições do “colonato”, alterar substancialmente para melhor a dieta alimentar, se comparada à que ingeriam na Itália. A inclusão abundante de carnes, mas também de verduras, possibilitou transformar os alimentos baseados quase que exclusivamente compostos de carboidratos (pão e polenta), na terra natal, em comidas mais complexas, com muito mais proteínas e lipídios. Este fator – até enquanto predominou na economia doméstica dos imigrantes - certamente exerceu um papel importante em garantir sua retenção na cafeicultura, inclusive entre os de Schio que seguiram para a zona rural paulista, ainda que mudando continuamente de propriedade. Sorte igual, entretanto, parece não ter acompanhado a grande maioria dos que se fixaram nas zonas urbanas, principalmente na cidade de São Paulo e no bairro do Brás.

12 HALL, Michael M. op. cit., pp. 142-143. 13 Un funzionario italiano (...) giunse al punto di affermare, nel 1908, di non ritenere ‘che gli annali legali dello stato di San Paolo ricordino un caso, un único caso, di un ‘fazendeiro’ che, avendo picchiato un colono, sai stato legalmente perseguitato per questo’. Idem, p. 145. 14 Cf. TRENTO, Angelo Do outro lado ... op. cit., pp. 4849. 15 MARCHIORO, Domenico op. cit., p. 11.

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22.. AA ssuuppeerreexxpplloorraaççããoo ddoo ttrraabbaallhhoo iinndduussttrriiaall:: ccoonnttrraappoonnttoo ddaa mmeettrróóppoollee qquuee ssee ccoonnssttrruuííaa

Se para os que se dirigiram à zona rural paulista o destino parece ter sido mais condescendente, aos que escolheram (ou não tinham como fazê-lo) a via urbana mostraria seu lado mais perverso. O hiato que os primeiros sentiram – ou voltaram a sentir para aqueles que já tinham experiência agrícola anterior – ao deixarem Schio, os que continuam operários parece não terem percebido. A condição operária e todo o ambiente circunstante – existentes na Itália - se reproduziram com tanta fidelidade que o Brás foi identificado como uma sua extensão. Como pudemos observar, o crescimento célere e desordenado da cidade de São Paulo, mas principalmente desse Bairro, nas três últimas décadas do século XIX, construiu um único espaço para a indústria e habitação operária. Esmeralda Blanco define muito bem essa promiscuidade suburbana, quando afirma que:

Atraídos pelas ferrovias, com as quais é comum estarem em comunicação direta através de desvios especiais, e fator de atração da população operária, os estabelecimentos industriais, dentre os quais predominam os de porte médio e pequeno – fabriquetas, pequenas oficinas e ‘ateliers’ muitas vezes de caráter doméstico – criam em bairros como o Brás, Bom Retiro, Moóca, Água Branca, Ipiranga, uma paisagem nova, na qual já se define a função industrial da cidade. Nesses bairros, casebres e cortiços – a habitação por excelência do operariado – concentram-se próximo a indústrias mais expressivas e coexistem com ‘tendas de sapatarias, marcenarias, fábricas de massas, graxas, óleos, de tintas de escrever, fundições, tinturarias, fábricas de calçados, manufaturas de roupas e chapéus, que funcionam em estalagens, em fundos de armazéns, em resumo: em lugares que o público não vê’.16

Além dessa insólita convivência espacial, o Brás, apresentava, como se observa no texto, também um outro aspecto muito peculiar: a existência de habitações operárias precárias. Casebres e cortiços erguiam-se em ruas infectas e sem calçamento. Essa paisagem suburbana era, contemporaneamente, efeito e causa.17

O ambiente do Bairro revelava, primeiramente, a extrema precariedade das condições sócio-econômicas vividas pelos trabalhadores que por sua vez, eram também os construtores desse mesmo espaço suburbano em que habitavam. Explorados como força de trabalho, não dispunham de recursos para embelezá-lo - como acontecia com famosa chácara do francês Joly, ainda citada no início do século como uma ilha de maravilhas em meio a um mar de cimento e pedra. A partir de que modelo estético e com o que tornar apreciável e agradável sua moradia se recebiam minguados salários que, além de estarem muito aquém de suas necessidades, os mantinham apenas no limiar da sobrevivência? A deficiência salarial, entretanto, agravava-se ainda mais quando o trabalho era executado por crianças ou mulheres. Acumulavam-se as prolongadas jornadas de trabalho e, muitas vezes, o número de horas extraordinárias ininterruptas. De lambujem, eram submetidos à violência cotidiana, às precárias e insalubres condições de trabalho que, não raramente, redundavam em incontáveis acidentes. Em segundo lugar, essas mesmas condições tornavam-se causas, em especial, da fragilização acelerada da saúde dos trabalhadores, limitando-o na capacidade produtiva que lhe era socialmente exigido.

16 DE MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro Mulheres e menores ... op. cit., p. 16. 17 Cf. TORRES, Maria Celestina Teixeira Mendes op. cit., p. 167.

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22..11.. AA ffoorrççaa ddee ttrraabbaallhhoo jjuuvveenniill,, iinnffaannttiill ee ffeemmiinniinnaa nnaa iinnddúússttrriiaa ttêêxxttiill ppaauulliissttaa

1188

Logo no início do século, um inquérito realizado pelo Poder Público nos estabelecimentos industriais do Estado, constatou que:

(...) desde as mais diminutas e insignificantes máquinas, até aos mais importantes

motores se acham em movimento’ absorvendo ‘milhares de operários, de ambos os sexos’ e considerável ‘número de menores, a contar de 5 anos’ constata esse predomínio do estrangeiro, principalmente do italiano, na população operária de São Paulo, da qual o elemento nacional não constitui ‘nem ao menos dez por cento!19 Numa de suas passagens, um antigo cronista e morador de São Paulo, lembrando-se das condições de trabalho impostas à infância operária no Brás assevera que:

(...) a lembrança de alguns dos antigos ambientes de trabalho (nos faz recordar que), quando meninos ou jovens, tiveram que iniciar, enfrentando muitas vezes, lugares inóspitos e insalubres, na labuta diária para a sobrevivência e em busca de dias melhores. Foram aquelas fases, boas e más, passadas no interior de fábricas e indústrias (...)20 O Brás, simplesmente, reproduzia um padrão que era então conhecido nos países de primeira e segunda industrialização. Nesse processo violento de acumulação industrial, havia uma predileção pelo trabalho infantil. Não é por menos que outro relato elucidativo, duro e realista como seu cotidiano, foi-nos descrito por Domenico Marchioro, lembrando seu ingresso, juntamente com o de seu irmão, ambos havendo entre 8 e 10 anos, no interior de uma das fábricas mineiras, nos meados da última década do século passado: In un sobborgo della città, chiamata ‘Mariano Procopio’ a due chilometri di cammino dalla nostra catapecchia, trovammo lavoro presso un cotonificio che assumeva esclusivamente mano d’opera femminile e infantile.21 Filho de operário têxtil e imigrante de Schio, Marchioro conheceria no Brasil, nessa tecelagem, de capital inglês, localizada na periferia de Juiz de Fora (MG), o que já vira anteriormente na Itália. As experiências de como explorar melhor a força de trabalho haviam-se transformado em patrimônio universal dos detentores do capital, onde quer que se instalassem os procedimentos se pareceriam. Dados colhidos no relatório Condições do trabalho na indústria têxtil no Estado de São Paulo, elaborado pelo Chefe da Seção de Informações do Departamento Estadual do Trabalho, em 1912, onde o autor sintetiza as anotações que fez durante as visitas de averiguação a diversas fábricas do Estado, revelam que a força de trabalho no interior das fábricas do setor têxtil constituía-se, basicamente, de crianças e mulheres.22

18 Concordamos com a distinção etária utilizada por Esmeralda Blanco, quando define mão-de-obra feminina as mulheres de idade

superior a 18 anos; mão-de-obra menor, os trabalhadores de ambos os sexos insertos na faixa etária de 12 a 18 anos; e mão-de-obra infantil (as crianças) de idade inferior a 12 anos. DE MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro Mulheres e menores ... op. cit., 10. A propósito do tema abordado por este capítulo, assim escreve a mesma autora: Nas fábricas e oficinas da Capital o emprego de mulheres, de menores e mesmo de crianças, como trabalhadores diretamente ligados à produção, economicamente necessário à família operária e recurso dos mais interessantes para o empresário industrial, torna-se característico ao findar o século XIX. À medida em que o crescimento industrial da cidade adquire maior expressão, os interesses do empresário e o nível de vida sempre baixo da população operária simultaneamente impulsionam para o trabalho industrial, a mulher, o menor e a criança, cuja atividade constatamos, inclusive, em momentos menos expressivos da industrialização paulista Idem, p. 30.

19 BANDEIRA JÚNIOR, Antônio Francisco op. cit., p. XIII. 20 SESSO, Geraldo Jr. op. cit., p. 101. 21 MARCHIORO, Domenico op. cit., p. 6. 22 Apesar desse importante documento situar-se há duas décadas da chegada dos operários de Schio no Estado de São Paulo,

entendemos que não houve alterações substanciais na realidade a que estavam submetidos os trabalhadores no interior das fábricas paulistas das duas datas. Achamos por bem utilizá-lo como fonte ressalvando as peculiaridades de cada período. O relator visitou 31 fábricas de tecidos em São Paulo, Capital; em Santos, (uma); e em São Bernardo (uma). No relatório, o autor analisa: a) as condições de trabalho, b) a segurança e higiene, c) a assistência e beneficência dos industriais aos respectivos operários, d) os salários; e e) os horários de produção. Outros autores também já se utilizaram dessa fonte para refletir sobre as condições de trabalho nas indústrias têxteis paulistas. A tendência que se observa na década de 1890, irá aprofundar-se nos primeiros anos do

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Capítulo IV – O trabalho os tornou livres para sempre.

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Fazendo um apanhado geral de seu relato, o autor apresenta o perfil dos trabalhadores

têxteis. Quanto ao número de operários, de empresas fiscalizadas, a diferenciação sexual e de idade, assim se expressou:

Dos 10.204 operários recenseados, em 23 das fábricas visitadas (...) 2.648 são do sexo

masculino e 6.801 do feminino. Dentre as 6.801 operarias, 1706 são maiores de 22 annos, 2.966 teem de 16 a 22 annos, 1.885 teem de 12 a 16 annos e 244 teem edade inferior a 12 annos. Entre os operários, 1.825 são de edade superior a 16 annos, 696 teem edades comprehendidas entre 12 e 16 annos e 127 são menores de 12 annos.23 Nota-se que as fábricas do setor têxtil possuíam um operariado tipificado: em sua maioria constituía-se de mulheres, de pouca idade, com expressiva quantidade de menores e de crianças, geralmente estrangeiros. Dos 10.204 operários relacionados, 755 (7,39%) não foram identificados ou porque não estavam inscritos nos registros das fábricas ou porque estavam ausentes no momento da verificação.24

Dos 9449 operários que tiveram suas idades identificadas, 6.801 (71,97%) eram do sexo feminino e 2648 (28,02%) eram do sexo masculino. As mulheres, portanto, representavam quase ¾ (três quartos) de todo o contingente de força de trabalho empregado. Havia, dentro das fábricas uma proporção de 2,56 mulheres para cada homem trabalhador. Quanto à força de trabalho menor e infantil, uma observação do relator oficial chama-nos a atenção quando ele afirma que:

O numero de menores de 12 annos (...) acha-se diminuido de uma pequena

porcentagem, occulta entre os classificados como tendo de 12 e 16 annos.25 A gritante presença de menores e, sobretudo, de crianças, cria constrangimentos até para o dono do capital que se via na obrigação, como sugere o texto, de utilizar-se de expedientes sem escrúpulos como esse: elevar artificialmente idade dos pequenos operários empregados em sua empresas. O emprego de trabalhadores em tenra idade, entretanto, estava disseminado em todas as áreas profissionais da sociedade paulistana da época, como revela este anúncio publicado em “O Estado de São Paulo”, no dia 14 de abril de 1891:

Precisa-se de um menino de 13 ou 14 annos de edade para pouco serviço. R. Florencio de Abreu, 53.26 Mais adiante, entretanto, uma outra constatação similar seria presenciada, in loco, pelo relator oficial de 1912, chocando-o de tal modo que assim se manifestou:

Impressão desagradavel causa ao visitante o excessivo numero de menores em trabalho.27

século XX. Nas palavras da historiadora Esmeralda Blanco: Adquirindo maior expressão industrial somente a partir da última década do século XIX, o Estado de São Paulo, baseado na produção de artigos de consumo imediato, ‘bens destinados a satisfazer as necessidades mais diretas da população (...) nos setores da alimentação do vestuário e dos utensílios domésticos’, já se define, em 1910, como o primeiro produtor do país, ocupando mais de 30.000 operários, entre homens, mulheres, menores e crianças, a maioria dos quais de origem européia, sobretudo italiana. DE MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro Mulheres e menores ... op. cit., p. 17. Cf. tb. CENNI, Franco Italianos no Brasil. São Paulo, Livraria Martins Editora, s. d., pp. 211-212).

23 Quanto a nacionalidade, o autor descreve como havendo entre os 10.204 operários: (...) 1.843 nacionaes, 7.499 estrangeiros e 862 de nacionalidade ignorada. Dos estrangeiros, 6.044 são italianos, 824 portuguezes, 338 hespanhoes, 210 syrios e 83 de diversas nacionalidades (...) SECRETARIA DA AGRICULTURA ... (1912) op. cit., p. 38.

24 Essa omissão da idade reforça a idéia de que poderia haver muito mais menores e crianças trabalhando nessas fábricas. O expediente de avisar previamente as empresas antes da inspeção poderia ter provocado a dispensa do dia para aqueles trabalhadores ou, ainda, sua ocultação para que se tornassem imperceptíveis àquela fiscalização estadual.

25 SECRETARIA DA AGRICULTURA ... (1912) op. cit., p. 38. 26 OESP - no. 4837, de 14 de abril de 1891, p. 3. 27 Idem, p. 43.

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Os números nos revelam exatamente o peso da força de trabalho de adultos jovens, menores e crianças no processo produtivo. No grupo majoritário, isto é, entre as 6801 mulheres operárias têxteis, 43,61% das mulheres tinham entre 16 e 22 anos; 27,71% tinham entre 12 e 16 anos e 3,58% tinham menos de 12 anos. Portanto, 74,90% delas, ou ¾ (três quartos), de todas as trabalhadoras possuíam menos de 22 anos e 31,29% delas, ou 1/3 (um terço) eram menores de idade. O que vale dizer é que todas essas trabalhadoras passavam não somente a maior parte do tempo de suas jornadas, mas também a maior parte dos ciclos de suas vidas no interior das fábricas. Eram as horas, os dias, os anos e a vida toda que se esvaia ao redor dos teares mecânicos. Entre os trabalhadores homens, a situação não era melhor. Dos 2648 homens registrados, 696 (26,28%) tinham entre 12 e 16 anos e 127 (4,79%) tinham menos de 12 anos. Somando todos os trabalhadores com menos de 16 anos, alcançamos o número de 823 pessoas, isto é, 31,08% do total empregado. Se, entretanto, juntarmos as mulheres com idade abaixo de 22 anos e os homens com menos de 16 anos - visto que não há informações sobre a quantidade de homens com idade entre 16 e 22 anos - alcançaremos a cifra de 62,63% do mesmo total. A exploração do trabalho de crianças, entretanto, em algumas situações tornava-se ainda mais dramática, como aponta o próprio relatório oficial quando descrevia a situação de uma determinada fábrica:

(...) são menores de 16 annos cerca de 60% e, destes, são de menos de 12 annos 32, dos quaes 9 do sexo masculino. Na sessão de carreteis trabalham 44 operários, 41 dos quaes são menores de 16 annos, e, destes, 12 são de menos de 12 annos, sendo todos do sexo feminino.28 Contudo, o relator percebeu ao longo de suas visitas que a situação de uma determinada fábrica não se constituía numa exceção, pois outras situações semelhantes iriam, posteriormente, aflorar, como mais adiante constatou que:

É enorme o numero de menores em serviço: 731 ao todo, dos quaes 77 de menos de 12

annos. são do sexo masculino 290 e do feminino 441. Os menores são occupados principalmente nas seções de fiação, canetilhas e carreteis.29 Essas atividades - segundo a lógica produtiva do capital - só poderiam ser executadas com perfeição pelas mãos finas das crianças, capazes de reatar os tênues fios das matérias primas e, sobretudo, penetrar em qualquer parte no interior das máquinas para alcançar algo que as mãos adultas estavam impossibilitadas. Uma palavra competente nesses termos fora proferida pelo senador Alessandro Rossi, sócio-proprietário do “Lanificio Rossi”, quando justificava o emprego de mãos infantis e femininas nos serviços de fiação:

(...) nell’industria tessile (...) occorrono le mani agili e delicate delle donne e dei fanciulli, per l’adempimento delle operazioni di filatura.30 E complementa Marchioro mostrando como se dava, na época, o recrutamento capilar dessa força de trabalho na zona rural escledense:

Infatti, per avere a più buon mercato la innocente merce umana, all’uopo necessaria, si

ricorreva persino alla raccolta dei fanciulli nelle campagne i quali venivano collocati in Convitti vicino agli stabelimenti per avere le vittime più a portata di mano.31

Assim, em Schio, adultos jovens, adolescentes e crianças entre 9 e 10 anos e até mais novos que estes, constituíram-se numa verdadeira categoria de trabalhadores têxteis.32 Eram os

28 Ibidem, p. 44. 29 Ib., p. 46. 30 MARCHIORO, Domenico op. cit., p. 7. 31 Idem.

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attaccafili. Domenico Marchioro chegou a ser um deles. No início do atual século, há algumas semanas do retorno do Brasil, tendo pouco mais de 12 anos, foi assumido, com o irmão, como operário na unidade local do “Lanificio Rossi SpA.”. Foi uma experiência difícil, como bem relatou:

(...) mio fratello ed io fummo assunti in qualità di attaccafili al Lanificio Rossi.

Passarono alcuni mesi prima che si riuscisse ad ambientarsi. La vita comune di sfruttati e le comuni condizioni di miseria, facilitarono i legami con i compagni di lavoro (...)33 Voltando às condições paulistas, o relator oficial, ainda mais uma vez, voltaria a constatar, em outra fábrica, que:

Numerosos menores encontrámos em serviço, entre os quaes muitos com menos de 12

annos.34 Relatos dessa natureza multiplicavam-se. O amálgama produzido pela junção do ambiente malcheiroso, da obscuridade e muitas vezes da umidade do ar onde se desenrolava o trabalho industrial daquele período, somados, ainda, às precárias e insalubres condições de produção e à fragilidade física dos pequenos operários criavam um quadro nada receptivo aos olhos de um estranho. Nota-se, daí, que o relator - ainda que não discordasse explicitamente – mostrou constrangimento ao abordar esse tema. Antes dele, ainda na Europa, outros representantes do Estado haviam constatado as horripilantes condições de trabalho encontradas nas indústrias têxteis, conforme versaram seus extensos e periódicos relatórios. Marchioro faz menção a esse procedimento quando afirmava que: Le condizioni di lavoro erano quelle esistenti in Inghilterra nella prima metà dell’Ottocento, descritte così crudamente nelle nefaste inchieste degli Ispettori di Fabbrica del governo inglese di quel periodo (...)35

A crítica mordaz de Marchioro ao trabalho infantil parece ter sido acompanhada, mutatis mutandis, pelo relator oficial paulista. Este aparenta, por seus registros, ter sido sensível ao problema social causado por esse modelo de industrialização. Entretanto, outros conterrâneos, porém, não tiveram a mesma percepção. Numa abordagem bem mais otimista, Bandeira Júnior considerou positiva a incorporação de crianças à produção fabril, quando afirmava que:

(...) têm esses menores a vantagem de adquirir hábitos de trabalho, apprendendo um

offício que lhes garante o futuro, ao passo que não augmentam a phalange dos menores vagabundos que infestam esta Cidade.36 Entre os empresários era consenso o emprego do trabalho de menores e crianças. Um de seus maiores expoentes, Jorge Street, no início do século, no âmago da discussão sobre o projeto de lei que pretendia reduzir as horas trabalhadas por esses operários infantis - sobre o qual posicionava-se contrariamente – ao fazer referência às atividade dos menores em sua fiação de juta, assim se expressa: Tenho, na fiação de juta, cerca de cento e oitenta crianças, empregadas unicamente no conjunto da movimentação dos pequenos carretéis destinados a receber o fio, na carga e descarga desses carretéis nas máquinas de fiar. São crianças, algumas de onze anos e, o maior

32 Pela Repartição de Estatística e Arquivo do Estado de São Paulo, a presença de trabalhadores menores e crianças em quatro

estabelecimentos têxteis arrolados em 1894, neste Estado, alcançava os índices de 25% do total de força de trabalho aí empregada. Cf. DE MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro Mulheres e menores ... op. cit., p. 32.

33 MARCHIORO, Domenico op. cit., p. 6. Em língua vêneta esses trabalhadores infantis eram chamados de petacai. 34 SECRETARIA DA AGRICULTURA ... (1912) op. cit., p. 57. 35 MARCHIORO, Domenico op. cit., p. 6. 36 BANDEIRA Júnior, Antonio Francisco op. cit., p. XIII.

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número, entre doze e treze. Trabalham por turmas de oito crianças e ganham 1$200 cada uma, tendo a seu cargo um determinado número de fusos. O serviço feito por uma dessas turmas custa-nos, portanto, 9$600 por dia de 10 horas. O serviço é leve, muito fácil e não demanda a menor aprendizagem, podendo ser realizado, segundo experiências já feitas, por uma turma de quatro, ou mesmo de três moças adultas, que ganhariam 3$000 por dia e disputariam esse trabalho, que não exige aprendizagem alguma. Com uma turma de adultos, esse trabalho nos custaria, portanto, de 9$ a 12$000, no máximo. Se a futura lei só permitir o trabalho das crianças, pela metade do tempo que elas hoje trabalham, nós industriais, poderemos, naturalmente, nos adaptar a essa exigência legal, formando duas turmas, uma para a manhã e outra para a tarde. Mas seremos nesse caso, forçados a pagar também a metade do salário, para a metade do trabalho executado (...) se assim não fizéssemos esse trabalho viria custar-nos muito mais caro do que se fosse realizado por adultos que trabalham o dia cheio.37 Fica claro, portanto, ao finalizar seu discurso que as razões para o emprego da força de trabalho de menores e crianças estavam diretamente associadas à taxa de lucro que se extraía desse trabalho. Entretanto, se, por um lado - obedecendo à dinâmica do capital – o aproveitamento dessa força de trabalho tão jovem constituiu-se numa mola de alavancagem para a rápida acumulação do setor têxtil, por outro, foi necessário construir um discurso que fosse ampla e socialmente aceito para legitimar sua exploração. O relator oficial sabia que tais procedimentos – aberrantes do ponto de vista ético - tinham respaldo no interior até das próprias famílias trabalhadoras, e o torna visível quando afirmava que:

Esses menores são acceitos em algumas fábricas, por empenho de seus paes, que desejam dessa maneira evitar que fiquem em abandono pelas ruas e sujeitos aos perigos da vagabundagem.38

A grande ameaça para a vida dos jovens e crianças, segundo o discurso de legitimação do trabalho infantil, era a “vagabundagem”. Fenômeno presente em todas as metrópoles produzidas pelo desenvolvimento da sociedade industrial capitalista. A gênese do “problema” estava justamente nas condições construídas pelas relações dominantes. Os “meninos de rua” eram seus produtos. O tratamento parece ter seguido a mesma receita adotada contemporaneamente. O final do século XIX, fase áurea da "internação", via a reclusão disciplinar como remédio para todos os males sociais. A fábrica integrava-se perfeitamente nesse paradigma. Para os “improdutivos” construíam-se cadeias, escolas, manicômios, asilos, albergues e hospedarias. As classes dominantes - movidas pelo espírito de profilaxia própria da "belle époque" desejavam "limpar" a cidade dos andrajos produzidos pela urbanização e pela indústria. A justificativa, socialmente aceita, era de que a fábrica, além de ensinar a trabalhar (formação profissional), era o lugar onde se aprendia a disciplina (formação do caráter), afastando os jovens e as crianças dos vícios. Ideologia à parte, o trabalho, naquelas condições, em nada melhoraria o padrão de vida daqueles jovens e crianças. Ao contrário, as explorava ainda mais. Essa lógica foi capaz de ir muito além do alcance pretendido pelo discurso de legitimação e designou ao trabalho infantil (assim como ao feminino), não somente uma atividade subsidiária e paralela ao trabalho principal, mas de relevância e destaque no interior das fábricas. Tanto que, o industrial italiano Francesco Matarazzo chegou a importar máquinas especiais para a tecelagem “Mariangela”, apropriadas para o trabalho infantil. Nota-se, como já mencionamos, que a maioria dos pequenos operários desse período era de italianos. Portanto, essas máquinas foram trazidas da Europa para que nelas muitos italianinhos pudessem atravessar seus intermináveis dias – desfigurando-se aos poucos - mas longe dos perigos da ruas e “amparados do vício”. A respeito, assim relatou o emissário do Governo do Estado:

37 OESP, 19 de Setembro de 1917, p. 9-10. Transcrito do “Jornal do Comércio” do Rio de Janeiro, de 10 do mesmo mês. Apud DE

MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro Trabalho feminino e condição social do menor em São Paulo (1890-1920). In ESTUDOS CEDHAL. Publicação do Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina, no. 3, São Paulo, 1988, p. 14-15.

38 Das 23 fábricas investigadas, 12 abrigavam trabalhadores com menos de 12 anos e 19 fábricas abrigavam os que tinham entre 12 e 16 anos. SECRETARIA DA AGRICULTURA ... (1912) op. cit., p. 38.

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Para o trabalho de menores, as machinas são de tamanho reduzido.39

A revolução tecnológica, associada à melhoria da produção têxtil, fez com que o ritmo do trabalho industrial aumentasse com muita intensidade. Dos teares manuais dos meados do século aos mecânicos dos anos 90, deu-se um salto quantitativo impressionante, a tal ponto que os próprios industriais – tanto na Itália quanto no Brasil – concederam ou emprestaram a seus operários as primitivas máquinas. A questão estava exatamente no aumento do ritmo de produção e as novas máquinas o permitiam. A aceleração do processo produtivo incidia diretamente sobre o estado de saúde dos pequenos trabalhadores que – nas fábricas paulistas - já era muito ruim, principalmente entre os nacionais, graças à sua precariedade física. Por serem os operários infantis brasileiros minoria, sua condição de miséria ressaltava-se no conjunto. Assim, o relator, com base no que constatou em uma das fábricas, informava que:

(...) dos brasileiros 44 são menores de 12 anos. Esqueleticos, rachiticos, alguns!40

Domenico Marchioro, então com apenas oito anos de idade, ao ser admitido no cotonifício de Mariano Procópio, por volta de 1897, teve também que se submeter às condições desumanas impostas pela lógica da acumulação do capital aos novos trabalhadores. Seu testemunho, que expressa a experiência de fábrica de tantas crianças de sua idade, dá-nos uma idéia da dimensão da exploração quando afirma que: [percepivo un (...)] salario mensile miserevole, 13 lire italiane di quel tempo (...) I bisogni (però) erano tanti e i guadagni assai miseri.41

Vale dizer que sua categoria ganhava unicamente 5$200 (cinco mil e duzentos réis) para ajudar a completar a receita familiar. O descaso com essa força de trabalho, entretanto, não parava por aí, passados alguns meses, de forma totalmente arbitrária, a direção da fábrica, segundo ainda Marchioro:

(...) decise improvvisamente di ridurre i salari del 35%.42

A arrogância dos empresários industriais, quer nacionais ou estrangeiros, no trato com a força de trabalho perpetuava as condições próprias da escravidão. Ao Deus dará, sem uma eficiente intervenção estatal, essas relações parece não terem sofrido nenhuma solução de continuidade entre os procedimentos adotados pelo escravismo e as inauguradas com o advento do “trabalho livre”. Antigos senhores e fazendeiros, tornando-se, então, também donos do capital industrial reeditavam dentro do ambiente fabril as mesmas regras aparentemente preteridas. 22..22.. JJoovveennss,, mmeennoorreess ee ccrriiaannççaass ccaassttiiggaaddooss ee hhuummiillhhaaddooss nnoo iinntteerriioorr ddaass ffáábbrriiccaass Longe da visão lírica, mas socialmente aceita, de que os jovens e menores, aprendendo cedo a trabalhar, estariam imunes ao contágio dos “agentes perniciosos” e expostos ao vício, a realidade – longe do palco e da ideologia - era de extrema crueldade e violência para com eles. O castigo físico, como fator disciplinador do caráter das crianças trabalhadoras, era generalizado.43

39 Idem, p. 45. 40 Ibidem, p. 44. 41 MARCHIORO, Domenico op. cit., p. 6 e 10. 42 Ibidem. 43 CUT ESTADUAL DE SÃO PAULO Italianos e movimento operário no Brasil. São Paulo, CEDI, s.d., p. 16. Os operários que

participavam de manifestações contra os patrões – agindo de forma articulada - eram imediatamente punidos com o desemprego. Nenhuma fábrica os admitia, conforme nos informa, pela própria experiência, o ex-operário escledense de Petrópolis, Domenico Marchioro: La fabbrica si riaprì qualche giorno dopo, riassumendo soltanto coloro che dichiararono di accettare le condizioni imposte dal padrone. Spinto dal bisogno mi presentai io stesso, ma venni rifiutato, perché individuato come uno dei sobillatori della sommossa. L’amico anarchico Romeo era sparito forse per sottrarsi alle ricerche della polizia. Cercai invano lavoro nelle altre fabbriche della città le quali respinsero concordemente. MARCHIORO, Domenico op. cit., p. 13

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Marchioro, quando viveu como operário, foi testemunha dos maltratos sofridos por seus

coetâneos companheiros operários. As chicotadas recebidas do feitor, quando cochilavam sobre as máquinas, eram procedimentos usuais e faziam parte da rotina do trabalho de fábrica. Segundo ele:

(...) lo staffile piombava spesso sul tenero corpo dei fanciulli appena si distraevano assonnoliti.44 Longe dos apregoados pressupostos pedagógicos que se atribuía ao trabalho dos menores e crianças, estes estavam, de fato, expostos a uma particular exploração, pois, como já discorremos tinham que se sujeitar a toda sorte de agressões e intimidações por parte dos capatazes.45 O papel repressivo assumido dentro das fábricas pelo corpo de funcionários intermediários – mestres, contramestres, chefes-de-seção, etc. fora amplamente denunciado, tanto na Europa quanto no Brasil. Em suas memórias sobre a velha São Paulo, Sesso lembra-se da violência sistemática a que estava submetida a força de trabalho infantil quando diz que:

[(...) os menores e crianças deviam] aturar, com resignação, os maus tratos e impertinências por parte de algum mestre ou contramestre, que tudo fazia para agradar, aos olhos do patrão. 46 Em outros casos, a degradação das relações entre adultos jovens, menores e crianças submetidos às condições já descritas eclodia em formas de abuso e perversão sexual aos neófitos, sob a complacência do chefe ou encarregado da seção, como nos testemunha Marchioro, lembrando sua passagem pela tecelagem de Mariano Procópio, em Juiz de Fora (MG):

(...) ciò che differenziava la vita di fabbrica nel Brasile d’allora, era il regime pressoché di schiavitù esistente nei rapporti di lavoro. La corruzione e la degradazione imperversavano nell’ambiente delle fabbriche. Diffusi erano fra i fanciulli, l’onanismo e la pederastia. C’era l’abitudine, quando entrava in fabbrica un nuovo assunto, di sottoporlo ad una ripugnante operazione. Si conduceva la piccola “matricola” in un angolo sottratto alla vista del caposala, il quale tuttavia doveva sapere e non si opponeva, costringendolo a masturbarsi, o a farsi masturbare. Nella mia ingenua ignoranza ne fui terrorizzato, tanto più che queste sconcezze si svolgevano fra le risa e il divertimento dei presenti. Nel reparto carderia confinante con la filatura dove uomini e donne lavoravano insieme, avvenivano a questo riguardo cose non meno sconce e clamorose.47 O relato oficial de 1912 dá-nos apenas alguns indícios do que de fato poderia ter ocorrido no final do século passado. Neste período, a situação certamente foi ainda mais grave se comparada à que presenciou o agente governamental. A incidência do trabalho de menores e crianças na indústria têxtil e em outros setores produtivos levou as diferentes correntes políticas ligadas às classes trabalhadoras a se manifestarem a respeito. É exemplar, nesse sentido, o artigo intitulado Relatório da situação no Brasil, resultado da intervenção dos delegados brasileiros, membros do Partido Operário, junto ao Congresso da Internacional Socialista, realizado em Zurique, de 6 a 12 de agosto de 1893. O artigo mostrava que entre os itens do programa - apresentado durante uma das sessões do encontro - havia um que, em relação às condições de trabalho no Brasil, dizia explicitamente:

(...) proibição de trabalho para as crianças menores de doze anos.48

44 Idem, p. 6. 45 Ibidem. 46 SESSO, Geraldo Jr. op. cit., p. 101. 47 MARCHIORO, Domenico op. cit., p. 8. 48 Citação do seu Art. 22. Cf. PAULISTANER ECHO - Organ für die Interessen der deutsch-brasilianischen Kolonie -

Situationsbericht aus Brasilien (An den internationalen Sozialisten-Kongress in Zürich). São Paulo, II, no. 72, julho 1893, pp. 1-2. Apud PINHEIRO, Paulo Sérgio & HALL, Michael M. A classe operária no Brasil: Documentos (1889 - 1930) - O movimento operário. São Paulo, Alfa-Omega, 1979, vol. I, p. 29.

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Esse libelo tornar-se-ia uma bandeira de luta imprescindível para os anos sucessivos, que viria a colocar em causa uma das formas mais selvagens de extração de mais-valia: a exploração do trabalho infanto-juvenil e feminino. 22..33.. SSaalláárriiooss ppaaggooss aaooss ooppeerráárriiooss:: mmiiggaallhhaass qquuee ccaaiiaamm ddaa mmeessaa ddoo ppaattrrããoo O relato contido na carta de Nicola Viero, já em contato com os operários do Brás, durante o mês de junho de 1891, é significativo para termos uma idéia do quanto ganhavam e o que representava esse salário para garantir sua sobrevivência. São suas palavras:

Qui abbiamo dei (lavoratori); che sono costretti a fare i manovali, perchè non sono capaci a trovar di meglio. In quanto alla paga e questa: 75.00049 (?) al mese per adesso, che equivalgono a 187 lire, cioè 75 fiorini (...)50

Pelas informações contidas nesse trecho da carta do imigrante de Schio, o salário mensal de um operário não especializado, um braçal, chegaria a 75$000 (setenta e cinco mil-réis). Se o transformássemos em salário diário, ficaria em 2$500 (dois mil e quinhentos réis), contando o mês com 26 dias, sem o descanso remunerado. Quanto valia em dinheiro italiano? O próprio Viero tentou fazer essa conversão ao escrever que o salário mensal pago em dinheiro brasileiro corresponderia, naquele momento, a Lit. 187. O intento do autor, com isso, era comparar os salários pagos aqui aos recebidos na Itália. Assim, a paridade estimada por ele fixou o valor de uma lira italiana eqüivalendo $401 (quatrocentos e um réis). Corroborando nesse sentido, Cenni nos informa, quando apresenta os resultados financeiros das trocas no comércio entre Brasil e Itália, relativos aos anos de 1907 a 1910, que a cotação média da moeda italiana, naquele período, foi na base de $594 (quinhentos e noventa e quatro réis), alteração perfeitamente compreensível devido às oscilações da moeda nacional frente à libra esterlina e, conseqüentemente, às demais moedas européias.51 Alguns anos depois, numa fábrica de Petrópolis (RJ), Domenico Marchioro nos daria os parâmetros salariais ganhos por uma criança operária quando disse que:

(...) in un sobborgo denominato Alto da Serra poco discosto, una delle solite compagnie inglesi aveva impiantato una fabbrica di ‘cucirini’ e cercavano filatori capaci di lavorare al ringh. Mi presentai come provetto attaccafili, potevo ben dirmi tale dopo l’esperienza fatta nella filatura di cotone a Mariano Procopio, e venni assunto con salario di 56 mila réis al mese, circa venti delle nostre lire di allora.52

Segundo o que nos descreve o imigrante de Schio, por volta de 1898, então, um pequeno operário ganharia, numa fábrica inglesa do planalto fluminense, um salário mensal equivalente a 56$000 (cinqüenta e seis mil-réis) ou a um salário diário de 1$866 (mil, oitocentos e sessenta e seis réis). Anos mais tarde, exatamente em 15 de setembro de 1902, o imigrante vêneto Dante Dall’Ara, empregado numa relojoaria de São Paulo, escrevendo uma carta a sua mãe, que permanecera na Itália, deixou-nos gravada também uma idéia - malgrado não expresse cifras - de quão baixo era o salário dos trabalhadores urbanos: Prima di tutto tu farai sapere a mia madre che qui in America i guadagni sono più miseri che in Italia (...) qui (...) non si guadagna solo che per le spese.53

49 75$000 (setenta e cinco mil-réis). 50 BCS: Lettera di Nicola Viero ... op. cit., p. 2. 51 CENNI, Franco op. cit., p. 189. 52 MARCHIORO, Domenico op. cit., p. 12. 53 FRANZINA, Emilio op. cit., pp. 226-227 (Lettera di Dante Dall’Ara, São Paulo, 15 settembre 1902) Dante Dall’Ara – orologiajo

– Rua Julio Conceição, no. 74 – São Paulo.

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Capítulo IV – O trabalho os tornou livres para sempre.

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Temos também presente as referências salariais de 1912: os salários diários dos operários - homens adultos - numa tecelagem, naquele ano, variavam, pela média menor se trabalhassem na Seção de Aproveitamento, cujo valor ficava entre 3$500 (três mil e quinhentos réis) e 4$000 (quatro mil-réis) diários [ou: 91$000 e 104$000 brutos mensais]; e, pela média maior se trabalhassem na supervisão, como os Contramestres, ou aqueles que tinham um ofício especializado, como o mecânico, ou o maquinista, ou, ainda, o eletricista, em sua maioria estrangeiros54, cujos salários variavam entre 4$000 (quatro mil-réis) e 8$000 (oito mil-réis) [ou: 104$000 e 208$000 brutos mensais].55 Já os salários pagos pela Intendência Municipal aos trabalhadores contratados, em setembro de 1892, para o calçamento da rua Major Diogo foram estabelecidos em 6$000 (seis mil-réis) diários, para um único trabalhador (talvez, o “encarregado”); 5$000 (cinco mil-réis) para outros oito (talvez, os “oficiais”); e 3$000 (três mil-réis) para os onze demais (talvez, os “serventes”). Se estimarmos os salários mensais, estes alcançariam, respectivamente, as cifras de: 156$000 (cento e cinqüenta e seis mil-réis); 130$000 (cento e trinta mil-réis) e 78$000 (setenta e oito mil-réis). Esta última, por sinal, superior ao que Nicola Viero dizia receber os operários nas fábricas do Brás.56 Visto que estamos falando de emprego público, um engenheiro municipal recebia, ainda em 1892, salários que iam de 650$000 [(seiscentos e cinqüenta mil-réis) com cargo de chefia] a 500$000 [(quinhentos mil-réis) para os responsáveis pelos distritos da Capital]. A diferença entre os mais altos salários da burocracia estatal e os mais baixos pagos os operários homens e adultos – se tomarmos como parâmetro os dados fornecidos pelo imigrante de Schio - era de 8,6 vezes.57

As diferenças mais significativas surgiam, entretanto, quando se tratava de discriminar os trabalhadores por gênero e idade. Comparando o preço do salário pago, em 1912, aos homens com os das mulheres, nota-se que o quadro era bem diferente e em acentuada desvantagem para o sexo feminino. A média mais baixa ficava para os salários pagos às costureiras de sacos, que recebiam entre 1$400 (mil e quatrocentos réis) e 2$000 (dois mil-réis) diários [ou: 36$400 e 52$000 mensais brutos], enquanto a média maior ficava para os salários das operárias que manuseavam os teares, cujos valores giravam entre 3$400 (três mil e quatrocentos réis) e 4$500 (quatro mil e quinhentos réis) [ou: 88$400 e 117$000 mensais brutos].58 Não encontramos referenciais de preços de salários pagos às operárias no início da década de 1890. Entretanto, um anúncio que requisitava o trabalho de uma cozinheira doméstica, publicado no jornal O Estado de São Paulo em 13 de janeiro de 1891, dá-nos uma idéia quando se lê que: Rs. 45$000 – Paga-se 45$000 mensaes por uma boa cozinheira, branca e que faça outros serviços em casa de pequena familia. Rua 24 de Maio, n. 15 A.59

O contratante oferecia, para um trabalho que, como se vê ia além da cozinha, um salário um pouco acima da média inferior paga a uma costureira – referida no parágrafo anterior – e um

54 Ainda, o relatório oficial, a esse respeito, assim se manifesta: A ultima gréve, occorida entre o pessoal desta fabrica, foi motivada

pelos excessos de toda a sorte, commettidos por um contra-mestre de origem russa, demitido pela administração da fabrica, que assim attendeu aos operarios. SECRETARIA DA AGRICULTURA ... (1912) op. cit., p. 44.

55 Essa diferenciação nos valores resultava da variação salarial recebida pelos operários da época, segundo a fábrica em que trabalhavam.

56 AHMSP: Papeis Avulsos (1892) vol. 32 (P. AV. 664), s/p. 57 AHMSP: Carta de Luiz C. do Amaral Gama, engenheiro da Intendência, datada em 24 de março de 1892, endereçada ao

Presidente do Conselho da Intendência, Dr. Carlos ª Garcia Ferreira. AHMSP: Papeis Avulsos (1892) vol. 34 (P. AV. 666), s/p. 58 SECRETARIA DA AGRICULTURA ... (1912) op. cit., pp. 76-77. 59 OESP, No. 4763, Anno XVII, São Paulo, 13 de janeiro de 1891, p. 2.

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Capítulo IV – O trabalho os tornou livres para sempre.

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pouco abaixo da respectiva média superior ou seja: 36$400 (trinta e seis mil e quatrocentos réis) e 52$000 (cinqüenta e dois mil-réis) mensais brutos.60 O mesmo acontecia em relação aos salários pagos aos menores. Nesse caso, a queda salarial era, ainda, mais acentuada. A média inferior ficava para a Seção de Aproveitamento, como já se observou quando nos referimos ao salário dos operários adultos, onde os menores percebiam ganhos que variavam de $800 (oitocentos réis) a 2$000 (dois mil-réis) [ou: 20$800 e 52$000 brutos mensais]. A média superior ficava para os engajados nos teares, como para as mulheres adultas. Aí, os salários infantis giravam entre 2$000 (dois mil-réis) e 3$000 (três mil-réis) [ou seja: 52$000 e 78$000 brutos mensais]. Nota-se que esses números não foram tão diferentes do apresentado por Marchioro, quando diz que ganhava 56$000 por mês na tecelagem de Alto da Serra.61 Porém, não chegamos ao fim do poço. Para os aprendizes, as condições salariais eram ainda mais precárias. Afirma Bandeira Júnior, no começo do século, ao abordar as condições de trabalho nas fábricas do Estado que nelas havia:

(...) menores a contar de 5 anos, que se occupam em serviços fabris, percebendo salários que começam por duzentos réis diários.62 Se multiplicarmos os $200 (duzentos réis) ganhos diariamente para as referência mensais, o salário chegaria aos patamares ínfimos de 5$200 (cinco mil e duzentos réis). Na nota explicativa do Quadro IV, o autor do relatório da Secretaria da Agricultura escreve, a propósito, que:

Os menores de 12 annos, cujos salarios não entraram no calculo dos salarios de menores, ganham de 40 a 80 réis por hora de trabalho.63 Pela média mais baixa, as crianças que ganhavam $040 (quarenta réis) por hora teriam que trabalhar 10 horas diárias para atingir $400 (quatrocentos réis) e alcançar um salário mensal de 10$400 (dez mil e quatrocentos réis). Como fica nítido, havia uma divisão salarial entre os trabalhadores, classificados por gênero e idade. As mulheres, os menores e as crianças ganhavam - como vimos - sempre menos que os homens, mesmo que em funções semelhantes. As crianças, polivalentes, eram trancadas durante uma longa jornada de trabalho - de 10 a 13 horas - no interior das indústrias, sob a tutela de encarregados nem sempre escrupulosos e, além de ganharem muito menos, como os dois primeiros segmentos mencionados, ainda, executavam serviços que os adultos tinham dificuldades em fazer.64 Essa força de trabalho - oferecida à profusão com a chegada em massa de novos imigrantes - longe de constituir-se em mão de obra paralela, ou marginal ao processo produtivo principal, tornou-se o mecanismo por excelência da acumulação na indústria têxtil paulista, desde os seus primórdios.65 Contudo, deve-se reconhecer que a pressão para que esses trabalhadores se integrassem ao mercado de trabalho vinha da própria exigência de manutenção da família, a outra vertente sobre a qual se sustentava 60 Idem, p. 3. A trabalhadora deveria se enquadrar nas qualificações exigidas: branca, em outra nota estabelecia-se que fosse de bom

comportamento. Não faltava, inclusive o apelo para que fosse uma boa criada. Numa nota, publicada no mesmo dia, solicitava o serviço de um cozinheiro mesmo (que seja) de côr. Outro anúncio no mesmo jornal, dois meses depois, dizia: Ama de leite: Precisa-se de uma italiana ou portugueza que tenha leite novo e bom, paga-se bem e garante-se bom tratamento. A tratar na rua José Bonifácio, no. 39. OESP - No. 4809, de 10 de março de 1891.

61 SECRETARIA DA AGRICULTURA ... (1912) op. cit., pp. 76-77. 62 BANDEIRA Júnior, Antonio Francisco op. cit., p. XIII. 63 SECRETARIA DA AGRICULTURA ... (1912) op. cit., pp. 76-77. 64 Uma outra atividade descrita no relatório de 1912, a dos carreteis, atraía o maior contingente de trabalho infantil. Num total de

335 operários, 217 eram menores, atingindo, com isso, um percentual de 64,7 do total de empregados engajados naquele setor. Assim se expressava o autor: Esses menores de 12 annos, que ganham de 40 a 80 réis por hora de serviço, trabalham na fiação, nas massarocas, nas espulas e carreteis, exactamente nas secções onde se desprende maior quantidade de residuos. Idem, pp. 38,76 e 77.

65 Lê-se no jornal “A Província de São Paulo”: Fábrica de tecidos em São Paulo – aceita-se mais mulheres e meninas, para trabalharem neste estabelecimento. Paga-se bem. Dirija-se ao escritório da Fábrica de 10 a 12 horas da manhã. Diogo Antonio de Barros. In A Província de São Paulo, 22 de março de 1876, p. 4. Apud DE MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro Mulheres e menores ... op. cit., p. 30.

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o discurso de sua legitimação. Tanto o trabalho dos menores e das crianças – ainda que em tenra idade, como já se viu – quanto o das mulheres, ainda que pago com salários aviltantes, podia fazer aumentar ligeiramente os rendimentos domésticos, por isso contava com o freqüente incentivo dos pais. A razão principal que levava, portanto, mulheres, menores e crianças a internarem-se nas fábricas, por longas jornadas de trabalho, situava-se no baixo padrão salarial a que estavam submetidos os trabalhadores industriais: respectivamente, seus pais, maridos e irmãos. Foi justamente a depreciação e a insuficiência do salário de determinadas categorias que obrigou as mulheres e crianças proletárias a entrarem nas fábricas:

Os salários eram muito baixos, o que obrigava mulheres e crianças a trabalhar para complementar a renda familiar.66 E os empresários sabiam muito bem disso. Tanto que Jorge Street o afirmou de alto e bom tom quando – referindo-se ainda à questão da redução do horário de trabalho dos menores - disse que:

(...) as famílias dessas crianças ver-se-iam obrigadas ou a aceitar a diminuição sensível do ganho diário dos seus filhos, com séria perturbação de sua economia doméstica, ou a ver esses pequenos dispensados, completamente das fábricas em que trabalham.67 Mesmo na conjuntura favorável de pleno crescimento da indústria paulistana, como foram os anos de 1890-1894, os operários que conseguiam obter algum emprego regular nas fábricas estavam sujeitos aos “salários de fome”. Apesar da atmosfera de prosperidade das empresas fabris da Capital, os trabalhadores não puderam usufruir dos seus benefícios. A remuneração da força de trabalho era estipulada dentro da conjuntura do mercado de trabalho, segundo os cálculos de cada empresário ou do grupo de empregadores de cada setor econômico, sem que em todo o período fosse estabelecido um salário mínimo padronizado por lei.68

Além de pagar irrisoriamente, as empresas forçavam, ainda, os trabalhadores a estenderem suas jornadas de trabalho. A produção não parava, os turnos se revezavam e os trabalhadores atingiam de 10 a 13 horas trabalhadas diariamente. O relatório oficial, a propósito, assim se expressa:

Funccionando dia e noite à 10 horas seguidas em um trabalho sem hygiene e cheio de

perigos. Na escolha de residuos que é feita a mão, ganham os operários de 2$200 a 2$400 por dez horas de serviço. Quasi todos fazem à mais tres horas de serviço por dia.69

Esses ganhos, entretanto, nem sempre estavam assegurados, pois os trabalhadores, sem qualquer legislação trabalhista que lhes garantisse o mínimo de estabilidade, a qualquer momento poderiam ser dispensados de seu trabalho. Os trabalhadores eram constantemente

66 CUT op. cit., p. 16. A única reserva que existe, por parte do empresário, quanto ao trabalho industrial da criança, do menor e da

mulher é, portanto, com relação a atividades que exigem maior qualificação de mão-de-obra. No mais, a presença de mulheres, de menores e de crianças constitui, sobretudo nas indústrias em que é mínima a especialização requerida, verdadeiro lugar comum (...) Perspectiva de maiores lucros para o empresariado, o trabalho industrial da mulher, do menor e da criança não deixa de ter para a família operária significado igualmente importante: é, sem dúvida, a alternativa para ‘mais fome, mais miséria em casa. DE MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro Mulheres e menores ... op. cit., pp. 36 e 45.

67 OESP, 19 de Setembro de 1917, p. 9-10. Transcrito do “Jornal do Comércio” do Rio de Janeiro, de 10 do mesmo mês. Apud DE MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro Trabalho feminino ... op. cit., p. 15.

68 PINTO, Maria Inez Machado Borges op. cit., p. 74. Quanto ganhava um operário médio na Itália, naquele período? Chilese nos responde que: Gli alti salari nel settore (tessile) erano appannaggio di una ristretttissima élite di sesso marchile. I salari medi giornalieri nel Lanifico Rossi di Schio, andavano, per il decennio 1891-1900, da un massimo di L. 4,50, per i filatori ‘abili’, ad un minimo di 1,30 per le spolatrici e le ritortitrici. Se consideriamo gli ‘abili’ una esigua minoranza si nota che la media della manodopera femminile a Schio non supera un salario giornaliero di 1,30 e quella maschile si aggira sulle tre lire, mentre nel Lanificio Sella di Biella le medie rispettive erano 1,93 per le donne, 2,82 per gli uomini. Alcuni raffronti tuttavia fanno supporre che i salari in realtà fossero in media notevolmente più bassi. Le ragioni di una scelta della manodopera femminile a preferenza di quella maschile sono evidente. CHILESE, Luciano Aspetti e problemi dell’economia industriale nel Vicentino di fine ‘800: occupazione, scioperi e salari. In FRANZINA, Emilio La classe ... op. cit., p. 266.

69 SECRETARIA DA AGRICULTURA ... (1912) op. cit., p. 55.

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ameaçados pelas demissões, pelos novos equipamentos e pelos imigrantes recém-chegados da Europa.70 .

A partir dos diferentes preços pagos pelo trabalho jornaleiro ou mensal, apresentados por fontes diversas, desde a chegada dos imigrantes de Schio, de 1891, até o relatório do Governo do Estado de 1912, fomos verificar o que significava a avaliação feita pelos próprios contemporâneos de que os salários percebidos, em geral, não cobriam minimamente as necessidades de reprodução da força de trabalho. É notável que, malgrado tenha havido variações expressivas nos preços pagos pelos diferentes tipos de trabalho no interior das fábricas, não houve, ao longo das três décadas – se comparada à história recente do país - uma substancial alteração nominal das cifras salariais. Entretanto, só é possível entender a capacidade de compra daqueles números se conhecermos a inflação sofrida pelos preços dos produtos de consumo dos trabalhadores e o custo de vida daquela época capaz de nos apresentar a relação entre o peso dos diferentes preços pagos pelos trabalhadores e a capacidade de compra de seus respectivos salários, naqueles mesmos anos. Afinal, é necessário respondermos a esta questão: essas importâncias monetárias, pagas como salário, podiam comprar o quê? Quanto custavam os bens indispensáveis para atender às necessidades dos operários e de suas famílias? Alguns preços foram possíveis de serem levantados. 2.3.1. Os preços governamentais: taxas e tarifas públicas

Os cobrados pela Municipalidade para a prestação de serviços públicos, para se ter uma

idéia, como o da taxa de inumação exigida no Cemitério do Brás que, em 1891, custava 10$000 (dez mil-réis).71 Em seus registros obituários, encontra-se uma percentagem expressiva (66,7%) da população residente nas adjacências que estava impedida financeiramente falando de cumprir com essa exigência. Se dependesse dela, não conseguia enterrar seus mortos. Outro dado interessante, é o preço que era cobrado para se medir o alinhamento de um terreno. Num dos casos, o lote possuía a medida padrão, isto é: 10,80 m. de frente. O custo foi fixado, naquele mesmo ano, em 22$000 (vinte e dois mil-réis). Mesmo para os trabalhadores cujos níveis salariais eram mais elevados, esses preços constituíam-se num verdadeiro assalto. Eles, como contribuintes e usuários dos serviços públicos que eram, tinham que desembolsar, respectivamente, 13,3% e 29,3% do salário, se fossem operários cuja categoria se encontrava na descrição de Viero. E, ainda, somente um selo colado ao requerimento dirigido à Intendência custava, ainda em 1891, $200 (duzentos réis), isto significava, então, a inteira jornada de trabalho de uma das crianças operárias aludidas anteriormente por Bandeira Júnior.72

Na avaliação dos empresários interessados em modernizar o transporte urbano da cidade de São Paulo apresentado à respectiva Intendência, em 1891, o preço calculado para se cobrar uma passagem de ônibus (carros sem trilhos), transporte que seria voltado para atender à demanda dos trabalhadores que moravam nos bairros mais periféricos, deveria ser de $100 (cem réis – denominado “um tostão”). Se o multiplicarmos pelas duas viagens diárias necessárias, veremos que, para pagar o transporte de sua casa à fábrica, os trabalhadores dispensariam exatos $200 (duzentos réis), o correspondente a 5,7% do salário de um operário que recebia 3$500 (três mil e quinhentos réis) diários.73 Um ano depois, em 31 de dezembro de 1892, o jornal O Estado

70 PINTO, Maria Inez Machado Borges op. cit., p. 73. 71 Se por um lado, essa quantia era excessiva para determinados segmentos da população (os trabalhadores), por outro, servia para

subsidiar as instituições beneficentes que supriam as deficiências do serviço público e aliviar a miséria desse mesmo segmento social, através de óbolos, com o testemunham as notas publicadas no jornal “O Estado de São Paulo”: Para os lazaros – de um cavalheiro, que não quis declarar o nome, recebemos para os lazaros mais a quantia de 10 mil-réis. Agradecemos ao caridoso anonymo (...) 10$000 – um distincto cavalheiro entregou-nos hontem a quantia de 10$000 para ser distribuida a 10 pobres. Fazemos a distribuição hoje de meio dia em diante em nosso escriptorio. OESP, No. 4756, Anno XVI, São Paulo, 3 de janeiro de 1891, p. 1.

72 AHMSP: Obras Particulares – papeis avulsos (1891) vol. 7 (O. PA 45), pp. 32 e 162. 73 Falando sobre as vantagens desse tipo de transporte, afirmava, então, o requerente da concessão, Eugênio Lefèvre, em missiva

endereçada à Intendência da Capital, com data de 20 de janeiro de 1891: Seria ocioso discutir e salientar as vantagens que prestará á capital a realização deste importante melhoramento já em pratica em muitas cidades da Europa e America do Norte.

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Capítulo IV – O trabalho os tornou livres para sempre.

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de São Paulo iria noticiar em sua página de rosto que os preços dos bondes fora elevado para $200 (duzentos réis), quantia duas vezes superiores aos prognosticados pelos fautores dos carros sem trilhos. Vale dizer que os trabalhadores que usassem tal transporte teriam que despender mensalmente – a partir de 1893 - algo como 10$400 (dez mil e quatrocentos réis) para ir e ao trabalho e dele voltar. 2.3.2 O preço dos aluguéis Quanto aos preços dos produtos mais próximos da vida cotidiana dos trabalhadores, é importante relevarmos os preços dos alimentos e dos aluguéis, cujos valores eram decisivos na manutenção e reprodução física dos trabalhadores.

Uma casa poderia ter seu aluguel cobrado em 50$000 (cinqüenta mil-réis) na Rua Santa Ifigênia, no. 86, em janeiro de 1891. Um sobrado, situado na Rua Alegre, no. 25, era alugado, naquele mesmo período, por 200$000 (duzentos mil-réis). O preço de um saco de cal virgem (60 kg) era, em abril daquele mesmo ano, 2$200 (dois mil e duzentos réis); o milheiro de telhas francesas (imitações), era de 110$000 (cento e dez mil réis) e o de tijolos feitos à máquina, 65$000 (sessenta e cinco mil réis).74

Sobre os preços dos aluguéis cobrados nos cortiços, então, amplamente disseminados pela cidade de São Paulo, oferece-nos uma idéia o Relatório da Commissão de exame e inspecção das habitações operárias e cortiços no districto de Sta. Ephigenia, assinado por uma douta equipe em 19 de outubro de 1893. Em três situações, os aluguéis aparecem com preços distintos: no primeiro caso tratava-se de uma casinha, nos fundos de um hotel-cortiço, moravam 12 pessoas e o aluguel cobrado era de 70$000 (setenta mil-réis), [praticamente um salário mensal inteiro]; no segundo, moravam 10 pessoas que pagavam 40$000 (quarenta mil-réis); e no terceiro, uma única pessoa que morava sozinha, pagava 15$000 (quinze mil-réis).75 Por outro lado, o metro quadrado de terreno construído no Bom Retiro chegava, em 1891, a 16$000 (dezesseis mil-réis), como vê-se nesta nota publicada no jornal “O Estado de São Paulo”: Vende-se um terreno, situado no Bom Retiro, rua Norte Segunda, com 5 metros de frente por 50 de fundos, contendo uma casa em ponto pequeno por 4.000$000. Para informações, porteira da Estação da Luz, kioske do Pedro.76 2.3.3. O preço da comida

Os gêneros de primeira necessidade - que compunham a cesta básica dos trabalhadores

e suas famílias - tinham um peso importante no orçamento mensal. Através de anúncios publicados pelos então diretores do Mercado Municipal da cidade de São Paulo em várias

As classes menos abastadas, que com o crescimento e desenvolvimento da cidade, procuram os arrabaldes mais afastados em virtude dos preços relativamente baixos das casas nesses pontos, terão um meio de transporte facil e barato, tanto mais que os omnibus percorrerão, de preferencia, as ruas ainda não servidas por bondes. AHMSP: Papeis Avulsos (1891) vol. 1 (P. AV. 607), pp. 98-99.

74 CEDAP, respectivamente: OESP, No. 4760, São Paulo, 9 de janeiro de 1891, p. 1; No. 4758, São Paulo, 6 de janeiro de 1891, p. 3; e No. 4843, de 21 de abril de 1891, p. 3.

75 GAMA, Luiz C. do Amaral et alii (Dr. Candido Espinheira, Theodoro Sampaio, Dr. Cunha Vasconcellos e Dr. Marcondes Machado) Relatório da Commissão de exame e inspecção das habitações operárias e cortiços no districto de Sta. Ephigenia – apresentado ao cidadão Dr. Cezario Motta Jor. – M.D. Secretario dos Negocios do Interior do Estado de São Paulo. São Paulo, 19 de outubro de 1893, manuscrito, pp. 46, 48 e 60. Havia uma política adotada por alguns industriais de construir casas que eram locadas a seus operários, cobrando destes um aluguel. Eram as chamadas "vilas operárias". Geralmente, eram construídas nas proximidades da fábrica e por ela circundado. O capital invadia assim o universo exterior do operário e buscava ordenar o seu mundo. Como diz o relator oficial de 1912, a respeito de uma determinada empresa: A companhia tem uma villa operaria com 16 casas, que são alugadas por 35$000 ou 40$000. Em terrenos já adquiridos, pretende construir, dentro de pouco tempo, cerca de 50 casas. Em principios do proximo anno, fornecer escola aos operarios e seus filhos. Ou ainda, em outra passagem anterior, quando afirma que: Poucos são os industriaes que se preocupam com o problema das habitações operarias. Desses mesmos nenhum o faz com intuito humanitario ou altruista. SECRETARIA DA AGRICULDURA op. cit., pp. 40 e 49.

76 OESP, No. 4764, São Paulo, 14 de janeiro de 1891, p. 3.

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Capítulo IV – O trabalho os tornou livres para sempre.

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edições de “O Estado de São Paulo”, entre maio de 1891 e julho de 1892, pudemos estabelecer uma lista de preços disponíveis dos produtos alimentares de maior consumo na Capital.

TABELA 20 MERCADO DA CAPITAL (1891-1892)

PREÇOS DE GÊNEROS ALIMENTÍCIOS VENDIDOS NO VAREJO

PREÇOS APROXIMATIVOS 05-06/1891 12/1891 07/1892

PESO

E MEDIDA

GÊNEROS

MENOR

MAIOR

MENOR

MAIOR

MENOR

MAIOR

ÏNDICE DE VARIAÇÃO DOS

PREÇOS (%)

Quilo 77 Toucinho $720 $800 $600 $800 $600 $800 + 20 “ Arroz $588 $823 $882 $941 1$176 1$235 + 110 “ Batatinha $352 $705 $529 $588 $941 1$058 + 200 “ Batata Doce $176 $235 $264 $294 - - - “ Farinha (mand.) $059 - - - - - - “ Farinha (trigo) $294 - $294 $323 - - + 9,8 “ Feijão $235 $705 $882 1$176 $705 $882 + 275 “ Fubá $529 $588 - - $470 $588 + 11,1 “ Milho branco $088 $147 - - - - - “ Polvilho $588 $705 $529 $588 $588 $705 + 20

Unidade Gallinhas 1$000 1$200 1$100 1$600 2$000 2$540 + 154 Unidade Leitões 8$000 10$000 - - - - - Unidade Queijos 1$000 1$400 - - 1$500 $176 + 200

Dúzia Ovos $800 1$200 1$000 1$200 1$200 1$500 + 87,5 FONTE: OESP78

Por ela, poderemos ter uma avaliação do peso da “cesta básica” e as oscilações que

sofreram os respectivos preços naquele período. Na coluna “Índice de Variação dos Preços” colocamos os percentuais de elevação, tomando por base os preços menores cobrados entre maio e junho de 1891 - quando não apresentaram grandes alterações - e os maiores preços de julho de 1892. Cabe aqui uma primeira observação: os efeitos inflacionários do “Encilhamento” que se fizeram sentir de forma aguda nos preços dos gêneros alimentícios. Enquanto o arroz subia 110% naquele período, o feijão alcançava a alta de 275%. Outros gêneros importantes na mesa dos trabalhadores como a batatinha, elevou-se em 200%; o preço unitário da galinha em 154% e o dos ovos em 87,5% cada dúzia. Menor elevação teve a farinha de mandioca, amplamente utilizada pelas classes populares, naquela época, que subiu “apenas” 9,8% em um ano. Outro produto importante, o café - como bebida diariamente presente na mesa dos trabalhadores - também teve sua alta considerável. Justamente no mês de maio de 1891, esse produto sofreria uma majoração, conforme se observa nesta nota informativa:

AC. Nacional 13 de maio: Previne aos seus numerosos amigos e fregueses que, devido

á extraordinária alta do café, os preços do mesmo em pó, serão elevados de hoje em diante a saber: Café em pó de 1a. – 15 kilos = 17$000; Café em pó de 1a. – 10 kilos = 12$000; Café em pó de 1a. – 7,50 kilos = 8$500; Café de 1a. – 1 kilo = 1$400; Café de 2a. – 15 kilos = 14$000; Café de 2a. – 7,50 kilos = 7$000; e Café de 2a. – 1 kilo = 1$200.79

Fomo-nos informar, também, a respeito do preço do leite, propalado como

indispensável para a boa formação óssea e muscular das crianças principalmente para aqueles que vão passar o resto de suas vidas usando seus braços para ganhar o que comer. Cabe, porém, perguntar: os filhos de trabalhadores poderiam ingeri-lo? Vimos no primeiro capítulo que na própria Hospedaria o leite não era gratuito, mas vendido àqueles pais que podiam compra-lo. Quanto custava tê-lo à disposição das crianças em casa? O jornal “O Estado de São Paulo”, edição de 6 de janeiro de 1891, publicava o seguinte anúncio:

77 Litro, unidade de medida usada naquela época, que eqüivalia a 12 ‘onças’ (inglesas) [1 ‘onça’ = 28,349 gramas]. Ou seja, 1 litro

era igual a 340,18 gramas de peso [50 litros = 17.009,4 gramas, ou seja 17 quilos]. 78 OESP, - No. 4852, de 02 de maio de 1891, p. 2; - No. 4856, de 07 de maio de 1891, p. 2; - No. 4864, de 19 de maio de 1891, p. 2; -

No. 4879, de 05 de junho de 1891, p. 2; - No. 5044, de 27 de dezembro de 1891, p. 2; - No. 5210, de 31 de julho de 1892, p. 2. 79 OESP - No. 4857, de 9 de maio de 1891.

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Capítulo IV – O trabalho os tornou livres para sempre.

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Leite fresco superior - Emquanto não se inaugura o deposito da leiteria as pessoas que

quizerem tomar assignaturas poderão dirigir seus pedidos á rua da Boa Vista, 68. Preço provisorio: - Leite superior entregue nas casas pela manhã e á tarde: Rs. litro 500. Comprado na chacara do Dr. Jaguaribe, litro 400 rs.80

Sabe-se que os italianos tomavam diariamente pelo menos um copo de vinho por refeição. Tal ingrediente alimentar consumia uma garrafa desse produto por dia, no mínimo. O preço de uma garrafa era, em 1891, era algo em torno de $400 (quatrocentos réis)81 ou um sexto dos ganhos diários de um operário. Entende-se por que, progressivamente, esse produto acabou desaparecendo por completo das refeições familiares das classes trabalhadoras de origem italiana. A cerveja vendida na fábrica, entretanto, custava $625 (seiscentos e vinte e cinco réis) a garrafa. Se o interessado comprasse uma dúzia e devolvesse os vasilhames, o preço caía para $542 (quinhentos e quarenta e dois réis).82

Por não conseguirmos os preços da carne bovina e do pão, cobrados no início da década de 1890, tomamos por base os dados de 1913. A carne custava entre $800 (oitocentos réis) e 1$000 (um mil-réis) o quilo; e o pão $400 (quatrocentos réis) o mesmo peso.83

TABELA 21 CESTA BÁSICA MENSAL ALIMENTAR DE UMA FAMÍLIA OPERÁRIA (1891)

QUANTIDADE E PREÇOS DOS GÊNEROS

GÊNERO

QUANTIDADE

PREÇO POR UNIDADE/PESO

(média de maio e junho)

CUSTO MENSAL (mil-réis)

Arroz 15 kg. $705 10$575 Feijão 8 kg. $705 5$640 Fubá 5 kg. $558 2$790

Carne bovina 6 kg. $900 5$400 Frango 10 kg. $733 7$330

Batatinha 10 kg. $528 5$280 Farinha de mandioca 3 kg. $059 $177

Farinha de trigo 3 kg. $294 $882 Pão francês 7 kg. $400 2$800

Toucinho 5 kg. $760 3$800 Café 2 kg. 1$200 2$400 Leite 30 l. $400 12$000 Ovos 3 dz. 1$000 3$000

TOTAL

62$074

FONTE: OESP

Com essas informações, simulamos (vide tabela acima) os gastos alimentares mensais necessários para uma família com 5 pessoas – pai, mãe e três filhos pequenos (necessitando ingerir no mínimo um litro de leite, diariamente) com os preços dos gêneros comercializados em maio e junho de 1891, período em que estava chegando a maioria dos imigrantes de Schio na cidade de São Paulo.

Para a correta leitura da presente tabela é importante relevar algumas considerações: 1)

quando discriminamos na primeira coluna os nomes dos gêneros indispensáveis para alimentar

80 OESP - No. 4758, de 06 de janeiro de 1891, p. 3. 81 Não foi possível saber se o produto era importado ou não visto que nas cercanias da cidade de São Paulo havia pequenas vinícolas

– cujos proprietários eram tanto portugueses quanto italianos - e o comércio de vinho nesse ano já era intenso. 82 OESP - No. 4841, de 18 de abril de 1891, p. 4. No depoimento de Seu Amadeu a Ecléa Bosi, este afirma – a propósito do que

acontecia no Brás quando era menino (no início do século) - que: (...) naquele tempo bebiam muito: o vinho italiano custava duzentos réis o litro. BOSI, Ecléa op. cit., p. 125. Constata-se que houve, portanto, um rebaixamento no preço do vinho consumido na cidade de São Paulo, entre 1891 e a primeira década do século em curso.

83 Cf. PINTO, Maria Inez Machado Borges op. cit., p. 76.

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minimamente a família cujas especificações foram definidas, não incluímos as “verduras” devido à dificuldade de se estabelecer a relação: variedade/peso/preço. Entretanto, se nos basearmos nas previsões de gastos da Hospedaria para atender às refeições diárias para os imigrantes ali internados, no final de 1891, poderemos inclui-las no conjunto com base num preço mínimo/médio de $040 (quarenta réis) per capita, para os adultos e $020 para cada criança. Nesse caso, a família paradigmática deveria gastar algo em torno de 4$200 (quatro mil e duzentos réis) com o consumo de verdura. Tal inclusão subiria os gastos alimentares totais para 66$274 (sessenta e seis mil, duzentos e setenta e quatro réis); 2) uma família trabalhadora - com hábitos alimentares tradicionais - tenderia a consumir uma quantidade maior de farinha de mandioca do que a estipulada; e 3) o toucinho e a banha também eram bastante utilizados para o preparo, cozimento e a fritura dos alimentos, visto a dificuldade de se adquirir óleos vegetais. Se, a partir desses elementos, fizermos a relação entre os custos básicos (aluguel, alimentação, transporte) e os salários percebidos pelos operários, veremos que numa família de cinco pessoas onde somente um adulto trabalhasse, todos, literalmente, morreriam de fome. O salário dos operários sem qualquer qualificação, citado por Viero, seria suficiente apenas para cobrir as despesas com a alimentação. Seriam necessários, ainda, mais 40$000 (quarenta mil-réis) a 50$000 (cinqüenta mil-réis) para cobrir o aluguel. Se tivesse que tomar o bonde para o trabalho, as despesas gerais mensais deveriam ser acrescidas de mais 10$400 (dez mil e quatrocentos réis). E os demais gastos? Para suprir minimamente seus gastos, a maioria dos membros de uma família operária não poderia dar-se ao luxo de permanecer em casa. O imperativo foi, portanto: todos à fábrica. Somente uma renda familiar composta por vários famélicos salários poderia garantir a sobrevivência de todos.

O descompasso entre preços e salários é evidente. Quanto aos salários, a inflação galopante se encarregava de diminuí-los ainda mais. Com isso, a demanda por um reajuste mínimo estava na ordem do dia. O jornal “O Estado de São Paulo”, em sua edição de 16 de maio de 1891, publicou uma matéria sobre uma manifestação, ocorrida em Santos, onde os trabalhadores reivindicavam aumento de salário. Evidentemente, a notícia não dizia que as empresas haviam decidido, espontaneamente, compensar os trabalhadores por eventuais perdas inflacionárias (altas, como vimos, durante aquele período), mas para informar clamorosamente que os trabalhadores “de prancha” do cais do porto haviam entrado em greve no dia 11 anterior (que se estendeu ainda até o dia 22 seguinte), sem qualquer solução à vista. O movimento, segundo o articulista, exigia nada mais que:

(...) o augmento de 500 réis nos seus salários.84 Se fizermos a relação com os preços apresentados acima, iremos observar quanto era modesta essa demanda operária. O episódio só nos ajuda a entender o que os dados não nos deveriam deixar qualquer dúvida: desde os primórdios da industrialização paulista, ocorreu um acentuado desnível entre os salários e os preços dos bens necessários à reprodução da força de trabalho, hiato que se acentuava com o encarecimento progressivo dos bens de consumo básicos, de tal modo que, apesar de contar com o trabalho intensivo, inclusive de mulheres, menores e crianças, a família proletária, em geral, não conseguia o provimento mínimo para uma subsistência decente. Os salários sempre estiveram, portanto, muito aquém dos aumentos agudos e crescentes do custo de vida.85

A corrosão do valor do “mil-réis”, evidentemente, preocupou as chamadas “classes médias”, mas também setores da classe dominante. O jornal “O Estado de São Paulo” reflete

84 OESP, No. 4862, de 16 de maio de 1891, página de rosto. Cf. tb. BEIGUELMAN, Paula Os companheiros de São Paulo. São

Paulo, Ed. Símbolo, 1977, p. 18. 85 PINTO, Maria Inez Machado Borges op. cit., p. 75. Segundo Esmeralda Blanco: Mal domiciliado, ganhando apenas o suficiente

‘para pagar um quarto estreito, sem luz nem ventilação, numa forçosa promiscuidade com seres racionais e irracionais’, a população operária é ainda mal alimentada. Abastecendo-se ‘em pequenos negócios’ e de pequenas quantidades, os operários ‘pagam sempre mais caro tudo quanto necessitam’, inclusive os gêneros alimentícios. DE MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro Mulheres e menores ... op. cit., p. 25.

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bem essa ansiedade. Em sua edição de 18 de fevereiro de 1892, tentando explicar as causas da carestia afirma que:

O problema da carestia, que se aguça progressivamente, deverá ainda ser vinculado a dois fatores principais: o emissionismo, que acarretara a diminuição do valor do meio circulante; e a escassez dos alimentos gerada pelo aumento brusco do consumo de gêneros de primeira necessidade, em decorrência da sucessiva introdução de uma massa de novos consumidores, promovida pela lavoura imigrantista.86

Observando como esse descompasso atingiu também setores com certos privilegiados, Morse apresenta-nos o trecho de um artigo publicado pelo “Diário Popular”, em sua edição de 12 de março de 1892, que se referia exatamente à queda dos padrões de classe média paulista ao afirmar que:

(...) uma família pequena não podia viver com 500$000 por mês, pois era vítima de: (...)

excessivo preço dos generos de primeira necessidade, a carestia do vestuario, a quasi impossibilidade de pagar-se o serviço domestico, o collegio de educação, o medico, a botica, o combustivel escasso e sobretudo, o conjuncto enorme de necessidades que creamos e que não mais se póde deixar de satisfazer, tudo isso unido á falta de previdência, á ausencia de sociedades cooperativas de consumo, aos desastres do jogo da bolsa no período vertiginoso da expansão de credito. (...) A classe inferior, porém estava ainda mais desprevenida diante do problema da simples sobrevivência.87 Se uma família pequena de classe média não se poderia reproduzir senão com um salário de quinhentos mil-réis, o que se poderia esperar de uma família proletária comum que, conforme as cifras levantadas em épocas distintas, dificilmente alcançava os cem mil-réis?88

Além de manter baixo os salários, em alguns casos as fábricas dispensavam operárias e contratavam outras mulheres, sem qualquer vínculo empregatício, para prestar-lhes serviços fora do espaço fabril, em suas próprias casas, pagando-lhes não pelas horas trabalhadas mas apenas por trabalho executado, como aparece no relato oficial, quando diz que:

Quando os saccos não são costurados na propria fabrica, esse serviço é feito em casa das operarias que os costuram diariamente em numero de 100.89 A ocupação dessas operárias sem qualquer vínculo, até a pouco pertencendo única e exclusivamente ao exército industrial de reservas, alheias a qualquer entrosamento e solidariedade com os demais companheiros de categoria e sujeitas a pagamentos ainda mais ínfimos, depreciava os salários e aviltava ainda mais o trabalho dos que se encontravam inseridos no processo produtivo convencional. 22..44.. OO hhoorráárriioo ddee ttrraabbaallhhoo:: ccaattiivvooss nnaa ffáábbrriiccaa ddee ssooll aa ssooll Marchioro, lembrando-se de sua passagem pela fábrica de Mariano Procópio, expressou muito bem o que significava para aqueles trabalhadores a jornada de trabalho:

(...) orario di dodici ore giornaliero (...)90 86 O Estado de São Paulo, 18 de fevereiro de 1892, p. 15. Apud PINTO, Maria Inez Machado Borges op. cit., p. 75. 87 MORSE, Richard M. op. cit., p. 263. Um conjunto de escrivaninha com cadeira, construídas com madeira maciça, custavam por

volta de 90$000 (noventa mil-réis), em 1893, o que significava um valor bem acima da grande maioria dos salários operários. Cf. AHMSP: Obras Particulares – papeis avulsos (1891) vol. 1 (P. AV. 667), s/p.

88 Os preços dos produtos consumidos especificamente pela classe média eram elevados pois, na grande maioria tratava-se de produtos importados. O próprio jornal “O Estado de São Paulo” era proibitivo ao consumo popular. Seus exemplares diários custavam $060 (sessenta réis), os números atrasados: $100 (um tostão) cada. Já as assinaturas ficavam em 14$000 (quatorze mil-réis) para os moradores da Capital; 18$000 (dezoito mil-réis) para os habitantes do interior do Estado; e 36$000 (trinta e seis mil-réis) para os que residiam no estrangeiro. Cf. OESP – No. 4809, de 10 de março de 1891, página de rosto.

89 MORSE, Richard M. op. cit., p. 263.

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O procedimento de retirar dos trabalhadores todas as horas produtivas de uma jornada,

não lhes deixando nenhum momento para o lazer e a convivência familiar, entretanto, não se restringia à longínqua fábrica de Juiz de Fora (MG). Era um procedimento que se universalizara com a expansão das relações capitalistas modernas. Na cidade de São Paulo, assim como no Estado todo, a situação também já não era diferente. A duração da jornada de trabalho poderia atingir, aqui, até 14 horas diárias.91

Como é possível deduzir, o prolongamento das já extensas jornadas de trabalho tornara-se mais um ingrediente na constituição das péssimas condições de trabalho e que se tornou parte integrante do mecanismo de acumulação nas tecelagens da década de 1890. Como já dissemos, os trabalhadores permaneciam sob o teto da empresa até 11 horas e, com as horas extraordinárias, esse patamar subia para 13 ou 14 horas com interrupção de uma hora, ou hora e meia, para o almoço. A pressão para que houvesse uma permanente extensão dessa jornada era muito grande. Certamente, os pais de família sucumbiam, malgrado a fadiga, às investidas e continuavam a extenuante e repetitiva atividade iniciada de madrugada. No relatório de 1912, o investigador oficial - apesar de objetivo - não deixa de revelar a dimensão da exploração do trabalho, quando diz que:

A duração do trabalho nas fabricas de tecidos varia entre 8 e meia e 11 horas: começa,

geralmente, as 5 e meia ou 6 horas da manhã e termina as 5 ou 6 horas da tarde. O trabalho interrompe-se para o descanso destinado a refeição, em que gastam os operários de 1 a 1 hora e meia. Pelo geral esse descanso começa as 11 horas da manhã. Em algumas fábricas, as duas horas da tarde, por espaço de 1 quarto de hora, é ainda o trabalho interrompido para o descanso do pessoal. Em boa parte do anno, a duração do trabalho é augmentada com serviços extraordinários, acontecendo isto principalmente, nas seções de fiação.92 É o próprio relato oficial quem reconhece a existência de uma jornada de trabalho “normal” em que os trabalhadores, de todos os gêneros e idades, entravam na fábrica, dependendo da estação do ano, com ou antes do nascer do sol e, sucessivamente, a deixavam um pouco antes ou após o pôr do sol. Referindo-se a outro caso, volta a afirmar que:

O trabalho começa as 6 e meia da manhã e termina as 5 horas da tarde, interrompido apenas pelo descanso destinado a refeição, para a qual os operários dispõem de uma hora. 93 Em permanente atividade, muitos estabelecimentos empregavam, no trabalho noturno, mulheres, menores e inclusive crianças que juntamente com os demais operários, revezavam-se por períodos prolongados e extenuantes de 8 a 12 horas. Era como se tivessem em volta de seus pescoços o torniquete restringente do garrote vil que, apertado lenta e progressivamente, encurtava-lhe o tempo vital. Imagem gritante que foi, assim, traduzida nas palavras da imprensa operária:

90 MARCHIORO, Domenico op. cit., p. 6. 91 Cf. DE MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro Mulheres e menores ... op. cit., p. 38. 92 SECRETARIA DA AGRICULTURA ... (1912) op. cit., p. 37. 93 Idem, p. 67. Se compararmos ao horário de trabalho em algumas áreas da Itália, tomando-se como base as indústrias têxteis,

podemos notar: Per quanto riguarda l’orario degli addetti al settore, una tabella comparativa riguardante alcune città d’Italia, ci dava questi raffronti:

CITTÀ

PRINCIPIO DI LAVORO

COLAZIONE

MEZZODÌ

FINE

TOTALE

Milano 6 ½ Dalla 8 ½ alle 9 Dalle 12 alle 2 7 10 Torino 6 ½ Dalle 8 alle 8 ½ Dalle 12 alle 2 6 l/2 9 ½ Brescia 7 Dalle 12 alle 2 6 9 Vicenza 6 Dalle 8 alle 9 Dalle 12 alle 2 7 10

La tabella non è riportata integralmente, vi sono i dati delle città i cui orari di lavor erano comprensivi di tutti gli altri. (Da “Il Fascio Operaio”, Alessandria 13 aprile 1890, n. 260).” CHILESE, Luciano Aspetti e problemi dell’economia industriale nel Vicentino di fine ‘800: occupazione, scioperi e salari. In FRANZINA, Emilio La classe ... op. cit., p. 265.

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(...) os trabalhadores são forçados a renunciar às necessidades absolutas da vida, condenando-se a si próprios a uma morte lenta (...) trabalhando mais que a sua força permite e alimentando-se menos que seus corpos necessitam para funcionar normalmente.94 22..55.. OO eessppaaççoo iinntteerrnnoo ee vviioollêênncciiaa ssiisstteemmááttiiccaa As primeiras fábricas eram espaços lúgubres, similares às congêneres dos países de industrialização precoce - com pouca ventilação e mal repartidas. O relatório oficial de 1912, descreve muito bem essa realidade. Tomando como exemplo uma fábrica determinada, afirma que esta:

Funcciona à em um vasto edificio de dois pavimentos, hoje insufficiente para o numero de machinas assentadas e para a quantidade de operários em serviço. Com esse acumulo de machinas e trabalhadores e com a falta de separação das differentes seções, não são raros os desastres e muito difícil se torna a administração (...)95 Como se observa, o processo de acumulação instaurado no Estado de São Paulo, baseado na extração de mais-valia absoluta, através da exploração do trabalho infantil e feminino, pagando baixíssimos salários, terceirizando parte da produção e exigindo uma extensa jornada de trabalho era acompanhado de um reduzidíssimo reinvestimento na melhoria das condições de trabalho.96 E, tomando-se cada uma das particularidades do espaço produtivos descobre-se um caleidoscópio de irregularidades. Como o que segue, encontrado numa série de fábricas inspecionadas, onde havia falta de claridade em seu interior:

Nota-se a falta de luz por toda a parte, excepto no compartimento onde funccionam as cardas, massarocas e a fiação.97 Ou noutra, onde havia poeira pairando no ar o que provocava irritações e até doenças no aparelho respiratório, causa de muitas mortes entre os operários:

Na sala de fiação, nota-se a falta de um aspirador de poeira de algodão, machinismo já adaptado em estabelecimentos recém-fundados.98 Ou nesta, onde havia falta de ventilação para expulsar do ambiente a poeira que se desprendia das fibras de juta que, como no caso do algodão, era altamente insalubre e causadora de inúmeras irritações brônquio-pulmonares:

Na tinturaria notámos a falta de ventilação, assim como, na fiação, a falta de aspiradores para a poeira que se desprende da juta.99 E nesta outra, ainda, onde não havia sequer um lugar apartado onde os trabalhadores pudessem fumar sem poluir o ambiente e tomar suas refeições sossegados:

94 “Relatório do Sindicato dos Trabalhadores em Fábricas de Tecidos”, pp. 10-11; O Correio da Manhã, 8 de junho de 1909, p. 2. In

MARAN, Sheldon L. Anarquistas, Imigrantes e o Movimento Operário Brasileiro 1890-1920. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p. 120. Apud PINTO, Maria Inez Machado Borges op. cit., p. 75.

95 SECRETARIA DA AGRICULTURA ... (1912) op. cit., p. 42. O modelo, inclusive do ponto de vista arquitetônico, assemelhava-se em muito ao utilizado nos países europeus e na América do Norte. Eram muito duras as condições de trabalho nas fábricas. Em geral, locais sem iluminação e ventilação adequadas, o que os tornava extremamente insalubres. CUT op. cit., p. 15.

96 Além do não investimento na melhoria da qualidade das instalações, a superexploração em curso exigia também que as relações de trabalho não tivessem a regulamentação de nenhum tipo de legislação. As demissões e punições ocorriam segundo a conveniência dos industriais. Não existiam indenizações, sistema previdenciário ou pensionístico. Cf. CUT op. cit., p. 16.

97 SECRETARIA DA AGRICULTURA ... (1912) op. cit., p. 62. 98 Idem, p. 42. 99 Ibidem., p. 46.

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Os operários fumam no interior da fabrica e fazem suas refeições junto às machinas.100 As carências apresentadas tinham, como já aludimos, um objetivo estratégico: poupar – ou garantir os próprios “pró-labore”, não investindo na melhoria das condições de trabalho. Assim, era fundamental para a acumulação reduzir os custos de produção aos limites do insuportável, como o próprio relator oficial de 1912 frisa neste parágrafo:

Esses defeitos e outros - como a deficiencia de ventilação e iluminação, a falta de

aspiradores de pó, a ausência de vestiários, principalmente para as operarias seriam facilmente corrigidos desde que houvesse, por parte dos industriaes, um pouco de boa vontade.101 Evidentemente, não se tratava de falta de “boa vontade” por parte dos industriais. Havia entre eles, sim, uma corrida irrefreável para conseguir com menores custos e maiores lucros, acumular mais. Por trás dessas deficiências ambientais jazia uma intenção deliberada de extrair o máximo de aproveitamento do trabalho operário (lucratividade) com um mínimo e necessário de investimento. O contato de qualquer visitante desacostumado àquela escuridão, ao mau-cheiro que subia pelas narinas a dentro, ao barulho ensurdecedor e à umidade desprendida do teto para não deixar secar os filamentos, inevitavelmente lhe provocariam alguma forma de torpor e repugnância. O relator oficial não pode ignorar que se deparou com as insalubres condições na qual se encontravam submetidos os trabalhadores em inúmeras empresas e fez questão de destacá-las no documento:

[(...) dentro das fábricas, ouvia-se] o fragor incessante de centenas de máquinas de tear;

noutras, fazendo frente, por entre a poeira negra do carvão, o calor dos cadinhos e das fornalhas de fundição, ou o forno de alguma fábrica de vidro por entre o fétido insuportável de drogas moídas (...)102

Porém, além da insalubridade - certamente o maior dos problemas encontrados nas indústrias têxteis, de preferência - os trabalhadores eram também expostos à ausência de privacidade, como acontecia em outra fábrica. Além disso, os operários nem sequer tinham privacidade suficiente para trocar de roupa, obrigados a fazê-lo ao lado da própria máquina:

Os operários, ao entrarem para o serviço, por falta de lugar apropriado, são obrigados a mudarem as suas vestes no próprio lugar em que trabalham em commum. (...) Junto as machinas vimos as roupas dos operários, que as trocam pelas de trabalho no local do serviço.103 O capital comprava o tempo de produção da força de trabalho por um período que devia se desenrolar dentro do espaço fabril. Retirar a privacidade do operário significava conseguir dominar tempo vendido, fator primordial para que a produção fluísse sem interrupção. O que estava em vigor era um elaborado sistema de vigilância que já fazia carreira nos países centrais, urdido pela “reengenharia produtiva” da época. As fábricas européias e norte-americanas já adotavam esse sistema para controlar os movimentos dos operários no interior da fábrica e racionalizar a produção. O controle sobre o tempo de permanência do operário deveria, portanto, ser rigoroso. Para tanto, até os momentos dedicados às suas necessidades fisiológicas deveriam ser cronometrados, como estava relatado em uma das fábrica. A toalete, nesse sentido, sempre foi o lugar privilegiado para as escapadas e, por isso, o lugar de maior vigilância, conforme o relator nos assevera:

100 Ib., p. 56. 101 Ib., p. 36. 102 SESSO, Geraldo Jr. op. cit., p. 101. 103 SECRETARIA DA AGRICULTURA ... (1912) op. cit., pp. 44 e 46.

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Capítulo IV – O trabalho os tornou livres para sempre.

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Possue W.C. em numero sufficiente, devidamente separados em dois grupos, um para cada sexo. Em cada um desses dois grupos ha guardas.104 Essas péssimas condições de trabalho, associadas à fragilidade física da força de trabalho, exposta diariamente a atividades produtivas ininterruptas e em ambientes insalubres, redundavam, necessariamente, numa queda da qualidade da produção e numa quantidade enorme de acidentes de trabalho, levando os trabalhadores muitas vezes à completa invalidez. 22..66.. OOss aacciiddeenntteess ddee ttrraabbaallhhoo Além de tomar-lhes o tempo, a fábrica, muitas vezes, tomava-lhes parte do corpo e, não raramente, a própria vida. Mais uma vez, apelamos ao testemunho incontestável de Domenico Marchioro quando diz em sua autobiografia que:

(...) gli infortuni soprattutto nelle sue fabbriche erano gravi e frequenti105

Marchioro legou-nos um testemunho do sofrimento vivido pelos operários, no interior

do Lanifício Rossi, em Schio, onde se empregou no início do século, depois da célere temporada no Brasil. A paisagem era propícia para que algo de trágico estivesse sempre na iminência de acontecer: as máquinas, enfileiradas lado a lado, deixando pouco espaço para a passagem dos trabalhadores. Correias e cintas girando a alta velocidade impulsionadas por roldanas e rodas dentadas espalhadas por todo canto, construíam um ambiente surrealista. Os trabalhadores sempre amedrontados e atentos vez ou outra eram vitimados e, muitas vezes, por fatais acidentes. Trazidos da Europa ou dos Estados Unidos, esses equipamentos importados nem sempre eram fácil e convenientemente manuseados pelos operários locais. Os trabalhadores fragilizados e abatidos pelas péssimas condições de vida, cansados pelas extensas jornadas, muitas vezes não conseguiam manter a vigilância necessária e negligenciavam as normas de segurança que os preservavam dos acidentes. Entre os inúmeros casos de morte provocadas por acidentes no interior das fábricas, as maiores causadoras eram as imensas correias aludidas. Estas moviam os maquinismos e, por sua vez, cortavam ininterruptamente o céu da fábrica de alto a baixo. É, ainda, o relator de 1912, afirmando que:

Apenas em um reduzido numero de fábricas - e é isto facto que salta aos olhos do

visitante - a defeituosa disposição das transmissões e o pequeno espaço existente entre as machinas favorecem a occurrencia de accidentes. Ao menor discuido, são ali os operários ora colhidos pelas correias, ora, quando caminham por entre as machinas, colhidos, não só pelas correias, como tambem pelas engrenagens.106

As máquinas, por sua vez, construídas para produzir, não apresentavam nenhum sistema

de proteção. Movidas sem interregno, tornavam-se demasiadamente sobrecarregadas e, de conseqüência, muito perigosas.107

Para tanto, é elucidativo o que o relatório de 1912 dá-nos como exemplo. Tratava-se, no caso, de uma fábrica dentro dos padrões da “modernidade”, onde:

3 machinas Diabo, 2 Willof (...) são de manejo perigosissimo: funccionam com grande

velocidade e difficilmente podem parar em caso de necessidade; possuem grande numero de correias, correntes e engrenagens, que, ao menor descuido do operario, o transformam em um aleijado.108 104 Idem, p. 42. 105 MARCHIORO, Domenico op. cit., p. 24. 106 SECRETARIA DA AGRICULTURA ... (1912) op. cit., p. 36. 107 Os accidentes (...) motivam-nos tambem, e em maior numero, a inexperiencia e falta de habilitações do pessoal a que incumbe o

manejo das machinas e a execução de trabalhos para elle desconhecido. Idem, p. 36. 108 Ibidem, p. 55.

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Chama-nos a atenção a designação de “Diabo” a determinadas máquinas e o acento dado ao ritmo desses equipamentos: funcionavam com grande velocidade. Na lógica da produção e da “revolução tecnológica” do final do século XIX e do início do século XX, os operários deveriam adaptar-se a seu passo e não o inverso. Daí que somente os mais “aptos” conseguiriam sobreviver. Aos demais: a invalidez ou a morte. Mas as indústrias paulistanas e paulistas não eram inéditas na matéria. A história da indústria confunde-se com a dos acidentes fatais de trabalho. Havia, portanto, algo em comum com o que acontecia na Europa e Estados Unidos, de anterior industrialização. Marchioro relatou-nos em sua autobiografia um trágico acidente ocorrido, em 1894, com operário muito jovem do “Lanificio Rossi SpA.” de Pievebelvicino, município ao lado de Schio, que, pelo realismo como foi descrito, vale a pena ser aqui reportado. O acontecido, transformado em notícia por vários dias, comoveu profundamente seus companheiros de fábrica e os trabalhadores da região:

Fra i tanto mortali ne ricordo uno che impressionò in quegli anni profondamente la popolazione locale. Un giovane attaccafili dello stabilimento di Pievebelvicino che stava montando una grossa cinghia di trasmissione, vi rimase impigliato e ne uscì in frantumi. Io avevo allora appena sei anni, ma rammento benissimo il racconto che se ne faceva e il senso di raccapriccio dei suoi compagni di lavoro presenti, i quali narravano che raccogliendo da terra la testa del disgraziato completamente staccata dal busto, era sembrato loro di esservi negli occhi spalancati dall’orrore, un’accusa tremenda contra l’inumanità dello sfruttamento capitalista, il quale nulla faceva per rendere impossibili tali gravi incidenti.109 A maioria das fábricas não pagava seguros contra acidentes. Para se ter uma idéia da dimensão do descaso em ressarcir a força de trabalho pelos danos causados por esses acidentes - às vezes retirando-a definitivamente do mercado de trabalho - no ano de 1912, em São Paulo havia apenas duas companhias de seguros, enquanto que em Buenos Aires, no mesmo período, havia sete.110

109 MARCHIORO, Domenico op. cit., p. 24. 110 SECRETARIA DA AGRICULTURA ... (1912) op. cit., p. 37.