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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
“O TRÁFICO DO GÊNERO” E A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL:
UMA ANÁLISE SOBRE A REATUALIZAÇÃO DOS PAPEIS TRADICIONAIS
FEMININOS NA CENA CONTEMPORÂNEA
Eliana Teixeira dos Santos1
Resumo: A análise da Política Nacional de Assistência (PNAS) é um assunto de grande
importância dada a profunda desigualdade socioeconômica que historicamente se estabeleceu no
Brasil, demarcando espaços de poder. A implantação da PNAS, no ano de 2004, embasada
legalmente por meio da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS-1993), previu em seus termos, a
criação de um Sistema Único de Assistência Social, o SUAS, um sistema público de prestação de
serviços sócio assistenciais. No entanto, os avanços não nos impedem de apontar que a PNAS ainda
necessita expandir seu escopo, em especial, no que diz respeito à perspectiva de gênero, ainda não
condizente com os ideais da IV Conferência de Beijing (1995), que destacou a necessidade de se
criar políticas públicas comprometidas com o “empoderamento e avanço das mulheres”.
Sendo assim, o objetivo deste trabalho, fruto da minha pesquisa de mestrado, é observar a maneira
pela qual a perspectiva de gênero vem sendo trabalhada na PNAS, analisando o histórico caráter
familista da política social no Brasil e sua relação com a reatualização dos papeis tradicionais
femininos na contemporaneidade, o que aponta para a perda de um referencial de proteção social
universal, num contexto de política neoliberal.
Palavras-chave: Política de Assistência, Família, Gênero.
O trabalho que por ora se apresenta faz parte das questões por mim problematizadas na minha
dissertação de mestrado, a qual é fruto dos trabalhos desenvolvidos junto ao Grupo de Pesquisa
Desigualdades Sociais, Políticas Públicas e Serviço Social(CNPq-UFBA). De maneira especifica,
as questões aqui apresentadas são um esboço das discussões travadas no segundo capitulo da
referida dissertação, a qual tem por titulo , Gênero, Assistência e Serviço Social: um análise sobre o
trabalho com famílias desenvolvido por assistentes sociais nos CRAS da cidade de Salvador-Ba, a
qual tinha como principal objetivo analisar como tem sido pensada e trabalhada, pelas assistentes
sociais, a perspectiva de gênero nas ações por elas realizadas com as famílias atendidas nos CRAS.
Saliento que, para resguardar a identidade das profissionais entrevistadas, garantindo assim os
pressupostos éticos da pesquisa, foram atribuídos codinomes as mesmas, sendo que a os nomes
escolhidos fazem menção a algumas autoras do campo do Serviço Social, que tem feito a discussão
sobre a política de assistência na contemporaneidade.
Antes de adentrar de modo mais especifico na discussão proposta, é necessário informar que o
CRAS( Centro de Referência de Assistência Social), nosso campo de pesquisa, se enquadra na
1 Assistente Social, Mestre em Estudos Interdisciplinares sobre Mulher, Gênero e Feminismo – NEIM/Universidade
Federal da Bahia. Especialista em Gestão em Saúde-Universidade do Estado da Bahia.
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proteção social básica, sendo assim, figura como a porta de entrada da assistência, de modo que no
contexto mais amplo que envolve a proteção social, ele representa o espaço no qual boa parte da
política de assistência será efetivada de modo prático, destacando-se na atualidade por ser uma das
áreas na qual o trabalho das assistentes sociais com famílias tem sua maior expressão, isso porque a
PNAS ao eleger a família como principal alvo de sua intervenção, recoloca em debate o histórico
familismo da política social brasileira, o que não é um fenômeno casuístico, mas atende a um
propósito bem definido em tempos de política social precarizada, por conta da forte pressão do setor
financeiro sobre este segmento. Feita as devidas considerações, é hora de traçar um breve esboço
sobre a relação entre a política de assistência e a família no contexto atual , no intuito de traçar
algumas linhas gerais que possibilitem a compreensão deste cenário e de modo mais especifico
sobre a maneira pela qual a perspectiva de gênero vem sendo materializada no campo da
assistência.
O ressurgimento da família como importante instância de proteção, no contexto atual das
políticas sociais, indicam a necessidade de desnaturalizar a visão idílica de família, a qual tem
contribuído para uma compreensão deturpada, a - histórica e romanceada dessa instituição,
ignorando que para além de um espaço de trocas afetivas, de solidariedade e companheirismo, a
família também pode ser o lugar de abusos e de conflitos, o que coloca em questão o seu suposto
caráter protetor, de modo que “a família é uma instituição contraditória e conflituosa, é heterogênea
e não necessariamente harmoniosa” (TEIXEIRA, 2013, p. 27). Embora o termo família pareça
remeter a algo dado, que todos sabem o que significa, visto que, como afirma Magdalena Léon
(1995), todos “ trazem consigo sua própria história familiar”, os estudos sobre esta instituição dão
conta de que “não há uma família definida em termos absolutos, mas tipos históricos específicos de
associações familiares, influenciadas por variáveis ambientais, sociais, econômicas, culturais,
políticas e religiosas” (MELLO, 2005, p. 27).
É necessário situar que o renascimento da função protetiva da família, é fruto das mudanças
decorrentes da crise do capital na década de 1970, da qual emerge o ideário neoliberal, o qual
estabelece um padrão para a política social, especialmente nos países latino-americanos,
caracterizada pela focalização e residualidade. A desresponsabilização do Estado no que diz
respeito à proteção social, tem reflexo na refilantropização da política com apelos à solidariedade
primária e ao papel mais tradicional da mulher na família, como cuidadora , mantenedora dos filhos
e da ordem doméstica, a compreensão destes elementos facilitam a análise quanto ao modo pelo
qual a família vem sendo interpelada no interior da política de assistência .
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Neste processo, exerce grande influência as “recomendações” dos organismos internacionais
(Banco Mundial, FMI, etc.), que ao apontarem como saída para o desenvolvimento velhas receitas,
dentre elas, a elaboração de políticas voltadas para os extremamente pobres, fortalecem a
despolitização e desmobilização, o que, no caso das políticas com foco na família, tem significado a
responsabilização das mesmas na superação das suas fragilidades.O estabelecimento desta
“parceria” com a família expressa a mudança no padrão de proteção social orientada pela
perspectiva do neoliberalismo, que se ampara na idéia de Estado mínimo. Esta perspectiva
familista, que aponta para uma intervenção estatal apenas quando se esgotam as vias “naturais” de
proteção, o que em parte indica que a apropriação da família na Política Nacional de Assistência
Social, deve-se ao caráter funcional da mesma aos ditames do capital, especialmente em tempos de
política social fragmentada, residual e focalizada. Sendo questionável a capacidade protetiva da
família no atual contexto de crise do sistema capitalista, materializada dentre outras coisas no
aumento do desemprego e flexibilização do trabalho, e de suas formas contratuais, as quais são
responsáveis pela instabilidade e incerteza vivenciadas por muitas famílias na atualidade.
A centralidade da família na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), está relacionada
a matricialidade sociofamiliar, eixo da PNAS e da organização do Sistema Único de Assistência
Social (SUAS), de modo que esta é entendida como “parceira” do Estado no que diz respeito à
proteção social. O que segundo Teixeira (2009),é uma das principais contradições da Política
Nacional de Assistência, tendo em vista que a mesma reconhece as fragilidades bem como a
condição de vulnerabilidade vivenciada por estas famílias. Além disso, embora o texto da PNAS
aponte uma perspectiva progressista de família, na cotidianidade da execução dos serviços, observa-
se que a perspectiva hegemônica ainda é a da família nuclear, na qual sobre a mulher recai a
responsabilidade pelo cuidado. Sendo assim, o constante dilema que permeia a assistência social no
Brasil, é estar “no meio do caminho”, transitando entre a política pública, a filantropia e a
privatização – especialmente não mercantil –, a qual enfatiza a família enquanto principal instância
de proteção, responsabilizando-a pelo bem-estar de seus membros; o reforço das funções familiares,
em especial por não haver um estabelecimento de mecanismos que estejam voltados para o
fortalecimento e qualificação dos serviços públicos, gera uma sobrecarga da família, a qual atinge
de forma mais intensa as mulheres, as quais são convocadas a preencher esta lacuna por meio de
serviços não pagos, e que são por elas efetuados no âmbito doméstico (TEIXEIRA, 2013).
É necessário salientar que para além de uma concepção deturpada e descontextualizada de
família, a apropriação da perspectiva de gênero e de outras categorias tais como empoderamento
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dentro do campo da política social, especialmente no campo da assistência, têm sido feitos a revelia
de uma compreensão critica das mesmas o que tem em última instância tem contribuído para o seu
esvaziamento político.
Na história da política social no Brasil , a família sempre atuou como importante instância de
proteção e provisão de bens e serviços, principalmente com os serviços não pagos realizados pelas
mulheres, no âmbito doméstico, de modo o nível de “desfamiliarização”2 nunca foi alcançado.
Além disso, o projeto neoliberal que se instaura no Brasil no início de 1990, com o governo de
Fernando Collor de Melo, e que tem continuidade de forma expansiva no governo de Fernando
Henrique Cardoso, sob forte influência das idéias apresentadas no Consenso de Washington
(1989), são elementos que apontam para a implantação, no território brasileiro, de uma política de
assistência social focalizada na extrema pobreza e pouco comprometida com a redistribuição de
renda. Sendo assim, a “opção” para tratar da questão da miséria via programas de transferência de
renda, embora seja significativa, não altera o quadro de modo geral, posto que serviços como saúde
e educação não são priorizados na agenda pública dos governos, resultando numa precarização dos
serviços, mesmo quando estes estão previstos na própria Política Nacional de Assistência (2004), a
qual estabelece uma articulação da assistência com as demais políticas públicas, quando diz que:
Os serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social básica deverão se articular
com as demais políticas públicas locais, de forma a garantir a sustentabilidade das ações
desenvolvidas e o protagonismo das famílias e indivíduos atendidos, de forma a superar as
condições de vulnerabilidade e a prevenir as situações que indicam risco potencial
(BRASIL, 2004, p. 34-35).
A falta de uma efetiva integração da assistência com as demais políticas, sobretudo de saúde e
educação, dado o fator que as aproxima: as condicionalidades dos programas de transferência, tem
contribuído não apenas para a construção de uma sobrecarga da família, que se traduz numa maior
responsabilização da mulher, haja vista que as mediações entre a família e estes serviços são, via de
regra, realizadas por elas (MIOTO; DAL PRÀ, 2015). Contudo, conforme destacam Silvana
Mariano e Cássia Carloto (2012), o acesso à renda é o que confere às mulheres certa possibilidade
2 Termo cunhado pelo próprio Gosta Esping-Andersen(1991) que indica como o acesso a bens e serviços por parte do
Estado pode contribuir para uma diminuição da carga imposta à família.
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de ter voz e vez nas negociações intrafamiliares, o que pode ser um indicativo da razão pela qual
boa parte da demanda das mulheres que vão ao CRAS está relacionada ao trabalho, como me
informou Aldaíza, ao ser questionada sobre quais eram as principais demandas das mulheres que
vão ao CRAS:
Trabalho né, escolaridade e habitação [...] a questão que mais pega aí é o trabalho, a falta
dele e a questão da habitação (Aldaíza).
Este fato indica o quanto o trabalho é valorizado, em especial por conta do que a ele está
associado: poder, autonomia, independência, etc., conferindo-lhe o lugar de importante elemento
de inserção social. No entanto, é válido destacar que a colocação no mercado de trabalho será
diferente para cada mulher, tendo em vista que o aspecto racial exerce grande influência, como já
destacado por Sueli Carneiro( 2003 ) , assim, embora seja possível dizer que o empoderamento em
certo sentido possa estar relacionado ao acesso à renda, que permite a existência de condições
materiais de fazer escolhas, não pode ser considerada a única dimensão, isso porque traduzindo de
forma livre Batliwala (1997) “o fortalecimento do status econômico das mulheres, conquanto
positivo de várias formas, nem sempre reduz outras cargas ou elimina outras formas de opressão”
(BATLIWALA, 1997, p. 194).
A reatualização dos papeis tradicionais femininos e o “empoderamento” na política de
assistência: tecendo algumas considerações.
Após compreender a relação entre política de assistência e família, está construído o terreno
necessário para tratar daquele que é o objetivo deste trabalho: analisar como a perspectiva familista
da política social no Brasil está associada com a reatualização dos papeis tradicionais femininos na
contemporaneidade.
O questionamento acerca da família “padrão” ou família nuclear, face ao aumento das famílias
monoparentais femininas e aquelas constituídas por pessoas do mesmo sexo, dentre outros arranjos
que coexistem, ocupa lugar de destaque nas discussões atuais sobre o tema. A pesquisadora Márcia
Macedo (2007) nos chama atenção para o fato de que, embora a existência de famílias chefiadas por
mulheres não seja “uma nova realidade”, sua novidade reside na forma como esta se expandiu às
“camadas médias brasileiras”, colocando em cena a necessidade de se pensar a família nos termos já
acima apresentados, a saber, como produto da relação dinâmica e histórica entre fatores de ordem
econômica, política e cultural, pois:
A determinação histórico-estrutural nos leva a observar a existência de uma variedade de
modelos de família – de acordo com o tipo de formação socioeconômica ou modos de
produção – que institui modelos hegemônicos, como a família nuclear, na sociedade
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burguesa, difundindo-se para outras classes sociais, mas comporta também uma variedade
de padrões internos que diferenciam as famílias entre as classes, e mesmo com variações
no interior da classe (TEIXEIRA, 2013, p. 23).
Diante destes fatos, fica evidente que a mais simples análise sobre a questão da família deve
considerá-la dentro da trama social na qual ela esta imersa, o que começa pelo reconhecimento da
existência de famílias, dada a sua pluralidade, que é histórica e empiricamente comprovada, nas
pesquisas realizadas. Contudo, acredito que romper com o “horizonte simbólico” de família nuclear
não é algo tão simples, pois este permanece enraizado no imaginário social, de modo mais amplo, o
modelo de família nuclear do funcionalismo parsoniano, no qual o pai, a mãe e os filhos,
desempenham o seu papel “naturalmente” designado, qual seja o homem para prover e a mulher
para cuidar. Embora teoricamente no campo das políticas públicas já seja possível identificar uma
definição mais progressista em torno do conceito de família, ou mesmo o reconhecimento de que a
família “já não é mais a mesma”, como descreve a própria PNAS (2004):
O novo cenário tem remetido à discussão do que seja a família, uma vez que as três
dimensões clássicas de sua definição (sexualidade, procriação e convivência) já não têm o
mesmo grau de imbricamento que se acreditava outrora. Nesta perspectiva, podemos dizer
que estamos diante de uma família quando encontramos um conjunto de pessoas que se
acham unidas por laços consanguíneos, afetivos e, ou, de solidariedade (BRASIL, 2004, p.
41).
Apesar dessa nova percepção, a ideia de funções familiares que permanece, mesmo em face do
reconhecimento da existência dos novos arranjos, acaba contradizendo a afirmação, porque ao fazer
menção às funções das famílias, acaba retomando elementos que apontam para um velho paradigma
familiar, como pode ser observado no texto da própria política:
[...] o trabalho com famílias deve considerar novas referências para compreensão dos
diferentes arranjos familiares, superando o reconhecimento de um modelo único baseado
na família nuclear, e partindo do suposto que são funções básicas das famílias: prover a
proteção e a socialização dos seus membros; constituir-se como referências morais, de
vínculos afetivos e sociais; de identidade grupal, além de ser mediadora das relações dos
seus membros com outras instituições sociais e com o Estado (BRASIL, 2004, p. 35).
De modo prático, tal percepção tem fortalecido a permanência de um ideário de família
“padrão”, o que ignora a grande incidência das famílias monoparentais femininas, que representam,
na prática, a maioria das famílias da assistência. A invisibilidade destas famílias e de suas
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especificidades enquanto usuárias da assistência tem desdobramentos práticos nas ações
desenvolvidas pela própria política. É necessário destacar ainda que a proposta da política de
assistência é explorar as potencialidades das famílias, a fim de que as mesmas sejam capazes de
promover a sua “auto-organização”, o que fica aparente quando é dito que:
A população tem necessidades, mas também possibilidades ou capacidades que devem e
podem ser desenvolvidas. Assim, uma análise da situação não pode ser só de ausências,
mas também das presenças até mesmo como desejo de superar a situação atual (BRASIL,
2004, p. 15).
Logo, percebe-se a contradição que fica evidente na promoção desta autonomia familiar, visto
que de fato ela não promove uma autonomia do indivíduo no tocante às “tradicionais” fontes de
proteção, que têm na família seu principal destaque, mas na verdade visa diminuir as
responsabilidades do Estado, realocando-as para as famílias, fato que no caso dos núcleos
monoparentais femininos, constituídos por negros e negras, tem um peso muito significativo,
sobretudo pelo fato de que são estas famílias que historicamente não tiveram cobertas suas
necessidades básicas. Nos três CRAS visitados, as profissionais descrevem as famílias como tendo
de modo expressivo a mulher como pessoa de referência, de forma que “o aumento das famílias
monoparentais chefiadas por mulheres indica uma crescente matrifocalidade, que deixa com a
mulher as maiores responsabilidades para sustentar e educar os filhos, devendo administrar a casa e
ter, de fato, dupla jornada de trabalho” (PETRINI, 2007, p. 2011), o que se verifica na fala das
assistentes sociais entrevistadas, quando questionadas sobre o perfil das famílias atendidas:
Muito raro ter a presença masculina, dá pra contar de dedo as famílias que são
acompanhadas aqui que têm o genitor, quando não é o genitor é o padrasto, mas, que
também não assume literalmente porque diz que o filho não é meu (Aldaíza).
[...] são mulheres chefes de família na maioria das vezes, são beneficiárias do programa do
Governo Federal, Bolsa Família, agora tem o programa daqui do município, Primeiro
Passo... (Cássia).
Porém, elucidar de modo mais conciso a problemática que envolve estas famílias, passa
primeiro pela necessidade de considerar quem são estas mulheres, qual a realidade por elas
vivenciada, já que, como destacam Carloto e Mariano (2013), existem aspectos que diferenciam as
mulheres negras no campo da assistência, os quais devem ser considerados, o que se torna
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importante quanto mais empiricamente se evidencia a incidência destas famílias no campo da
assistência. Sendo assim, acredito que para falar sobre as famílias e, por conseguinte, sobre quem
são as mulheres usuárias dos serviços do CRAS, é necessário conhecê-las, observar suas
especificidades, suas demandas, a fim de serem traçadas estratégias de enfrentamento que
permitam uma cidadania efetiva via políticas públicas, que não sejam orientadas por uma concepção
liberal,a qual desconsidera condição das usuárias dos serviços socioassistenciais, as quais
apresentam traços de um grupo social historicamente excluído, fato que possui sérios
desdobramentos sobre o modo como estas acessam os bens e serviços da assistência, como se pode
inferir no modo no qual as profissionais entrevistadas descrevem o público dominante que busca os
serviços oferecidos pelo CRAS:
A maioria é negra, mulher, baixa escolaridade, beneficiária do Bolsa Família ou BPC, tanto
deficiente como idoso, que mais que eu posso falar... Não tem a perspectiva de estudo, aqui
a gente faz vestibular social, os cursos do PRONATEC, elas não, não têm aquela
motivação, sabe, pelo contexto da vida sofrida, aí não quer mais estudar, já tô de idade, mas
você pode, né, tentar fazer isso, mas aí elas não querem, aí a gente ainda tenta resgatar
assim... (Aldaíza).
Carmelita ainda traz informações mais precisas quanto a esta situação, o que também é
confirmada por Cássia:
A maioria é mulheres, mulheres negras, mulheres que não têm estudo, não concluiu o
segundo grau por alguma questão pessoal, parou de estudar, estudou até a quarta série,
quinta série, oitava série, a maioria aqui não chegou ao segundo grau, estudou até a oitava
série e parou. E a maioria é negras, de baixa renda mesmo, não tem renda fixa, nunca
trabalhou de carteira assinada, realiza trabalhos autônomos, geralmente em período de
festa, lavagem, carnaval, a maioria delas é assim e o perfil é esse da família (Carmelita).
São mais mulheres, é... Negras, de baixa escolaridade, situação financeira precária...
(Cássia).
Esta “sobre-representação” das mulheres negras entre os pobres não é casual, mas é fruto de um
processo histórico no qual nós mulheres “racializadas”, estivemos excluídas das instâncias de
decisão e poder por uma questão de gênero e também de raça, uma vez que como destacado no
primeiro capítulo, a mulher negra no Brasil sempre experimentou na pele a força destes marcadores
enquanto elementos que (re)produzem sua opressão, o que se exprime com nitidez na organização
do mercado de trabalho e nas funções a nós reservadas.
Para finalizar , indico que a privatização da proteção social, que em síntese nada mais é do que
a transposição de responsabilidades estatais para a sociedade civil, e de modo especial, para o seio
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da família, tem sido realizada sob o pretexto de ser ela uma fonte primária de inserção social e de
proteção, sendo necessário apenas “habilitá-la” de modo a potencializar esta capacidade “natural”.
Em outras palavras, “as famílias são reconhecidas no discurso político como uma entidade
privilegiada para quebrar o ciclo da pobreza” (MARTINO, 2015, p. 96). No entanto, ironicamente
alguns dos mecanismos acionados para “ajudá-la consistem numa relativa culpabilização das
mesmas, pois as estratégias se voltam para o incentivo ao empreendedorismo e ações de cunho
psicologizante, orientados pela busca de um pseudo-empoderamento, o que transfere a
responsabilidade de enfrentamento à pobreza, do âmbito político, para o campo das
individualidades, assumindo o Estado uma posição passiva frente a esta questão, constituindo-se,
na prática, como responsável por prover o subsídio necessário para que as famílias, e de forma
específica, as mulheres, encontrem dentro de suas potencialidades as saídas para o seu caso.
Embora não haja uma definição unívoca sobre empoderamento, acredito que partir de uma
ideia que faça a distinção entre condição e posição, tal qual é apresentado por Batliwala (1997),
Costa (2000) e Sardenberg (2006), é necessário para entender por quais vias passa o processo de
empoderamento feminino, pois apesar de a condição feminina ser marcada pela pobreza,
subemprego, baixos salários, dentre outras coisas, é sua posição ou mesmo seu status que interfere
na forma como estas poderão se apropriar dos recursos materiais e imateriais. Retomando a origem
do termo, Costa (2012) destaca que ele remete ao processo de luta da população negra pelos direitos
civis nos EUA, sendo considerado como “mecanismo pelo qual as pessoas, as organizações, as
comunidades tomam controle de seus próprios assuntos, de sua própria vida, de seu destino, tomam
consciência da sua habilidade e competência para produzir e criar e gerir.” (COSTA, 2012, p. 7).
Nesta perspectiva, Batliwala (1997), buscando dar uma compreensão mais ampliada do termo,
diz que:
El rasgo más sobre saliente del término empoderamiento es que contiene la palabra poder,
la cual, para evadir debates filosóficos, puede ser ampliamente definida como el control
sobre los bienes materiales, los recursos i ntelectua1es y la ideología. Los bie nes materiales
sobre los cuales puede ejercerse el control p ueden ser físicos, humanos o financieros, tales
co mo la tierra, el agua, los bosq ues, los cuerpos de las personas, el trabajo, el dinero y el
acceso a éste. Los rec ursos intelectuales incluy en los conocimientos, la informació n y las
ideas. EI control sobre la ideología significa la habilidad para generar, propagar, sostener e i
nstituci nalizar conjuntos específicos de creencias, valores, actitudes y co mportamientos,
determinando virtualmente la forma en que las personas perciben y funcionan en un entorno
sócio económico y político dado (BATLIWALA, 1997, p. 192).
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Sharma apud Batliwala (1997, p. 193) sintetiza que: “O termo empoderamento se refere a uma
gama de atividades que vão desde a autoafirmação individual até a resistência coletiva, protesto e
mobilização para desafiar as relações de poder”3, o que indica que empoderamento não se restringe
a uma dimensão individual. Além disso, quaisquer umas destas perspectivas indicam que a
compreensão de empoderamento presente no campo da assistência social, não corresponde de fato à
ideia que o termo contém, uma vez que este não se resume a uma ação esporádica, mas consiste
num processo no qual a tomada de consciência de si mesmo e do lugar em que se ocupa é
fundamental, o que também não se restringe a ações voltadas para o desenvolvimento da
autoestima, pois estas por si só não desnudam a realidade que envolve a condição e a posição das
mulheres e, de modo singular, a realidade das famílias por elas chefiadas, de modo que, ao invés de
transformar as estruturas geradoras da discriminação de gênero, estas são reforçadas.
Por fim, concluo que o empoderamento presente na assistência não produz uma real
emancipação porque de fato com ela não está comprometido, levando em consideração que se ergue
sob uma perspectiva neoliberal. Este tipo de empoderamento também chamado de light, uma vez
que muito superficial, acaba sendo uma ferramenta do capital a fim de produzir consumidores
potenciais, por meio de uma instrumentalização destas famílias pobres, utilizando-se para isso dos
estereótipos de gênero o que não assegura a conquista de cidadania real para as mulheres, já que
esta lhes é garantida sob a reafirmação de sua “função de cuidadora”.
Conclusão
Como resultado da análise da pesquisa que foi feita, é importante lembrar que a relação entre
trabalho, gênero, família e política de assistência aponta para uma perspectiva de proteção social
fragmentada e pouco comprometida com a emancipação dos sujeitos, expressa na múltipla
precarização da mesma. Esta manifesta nos espaços, no trabalho e nos serviços, o que tem impacto
direto no acesso da população aos direitos, sendo um dos agravos que lhe acometem o
subfinanciamento. Sendo assim, é necessário destacar que este modelo não é estanque, mas reflete
bem a continuidade dos parâmetros neoliberais expresso nas “recomendações” do FMI, do Banco
Mundial e nas deliberações do Consenso de Washington (1989). Dentro deste modelo, o Estado
atua de modo a subsidiar as famílias na proteção social, contando de modo singular com o trabalho
3 Tradução livre.
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não pago das mulheres na esfera do cuidado, o que aponta a necessidade de se ampliar as discussões
sobre gênero e políticas públicas
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"Gender trafficking" and the Social Assistance Policy in Brazil: an analysis of the re-updating
of women's traditional roles in the contemporary scene.
Astract: The analysis of the National Assistance Policy (PNAS) is a subject of great importance
given the deep socioeconomic inequality that historically has been established in Brazil,
demarcating spaces of power. The implantation of PNAS, in the year 2004, legally based through
the Organic Law of Social Assistance (LOAS-1993), predicted in its terms, the creation of a Unique
System of Social Assistance, SUAS, a public social assistance services.
However, advances do not prevent us to point that PNAS still needs to expand its scope, especially
with regard to the gender perspective, still not consistent with the ideals of the Fourth Beijing
Conference (1995), which highlighted the need to create public policies committed to the
"empowerment and progress of women".
Therefore, the aim of this work, as a result of my master's research, is to observe the way which the
gender perspective has been worked in the PNAS, evaluating the historical familistic character of
social policy in Brazil and its relation with the re-updating of traditional female roles in the
contemporaneity, which points to the loss of worldwide social protection reference under a
neoliberal politics context.
Keywords: Assistance Policy, Family, Gender.