O Trecheiro - setembro e outubro de 2014 #228

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IMPRESSO Notícias do Povo da Rua Rede Rua de Comunicação - Rua Sampaio Moreira, 110 – Casa 9 – Brás – 03008–010 São Paulo SP – Fone - 3227-8683 - 3311-6642 - [email protected] Ano XXII Setembro e Outubro de 2014 - Nº 228 Redação Em meio a disputa... Foto: Luciney Martins Aconteceu no domingo, dia 5 de outubro, mais uma etapa das eleições nacionais que escolheu os deputados federais e estaduais, senado- res e os aspirantes às vagas de governadores e Presidên- cia da República. No Estado de São Paulo, a direita saiu vitoriosa, fren- te aos partidos de esquer- da. A chamada “bancada da bala”, formada por policiais militares e simpatizantes de linha autoritária, elegeram 5 representantes. Os candi- datos ligados as causas po- pulares e Direitos Humanos somaram apenas 4 vagas. O número de deputados eleitos que apoiam o governador re- leito, Geraldo Alckmin e fa- zem coro com a tendência de criminalizar os pobres, são mais do que o dobro daque- les da chamada oposição. Já entre os deputados federais eleitos pelo Estado de São Paulo a maioria é filiada ao PSDB. Para a Câmara de De- putados a “bancada da bala” também garantiu espaço. Foi perceptível nos deba- tes e programas de gover- nos que as pautas e reivindica- ções da população em situação de rua ficou fora dos planos pré-eleitorais e o resultado do pleito foi ainda mais desanima- dor para os pobres do Estado. Significa mais quatro anos de militarismo e ausência de po- líticas públicas, como foi visto no último mandato. A população em situação de rua é também eleitora, mas, fi- cou a mercê da promessas elei- toreiras. Independente da linha polí- tica, os governantes eleitos têm obrigações frente às demandas sociais urgente, como é o núme- ro sempre crescente de pessoas em situação de rua no país. É preciso implemen- tar políticas públicas para diminuição das desigual- dades sociais. Cabe a sociedade sen- sível a esta realidade, co- brar a realização dessas demandas. Neste mo- mento, mais implacavel- mente. As eleições mostra- ram-se ineficazes em certa medida para fazer avançar a luta social, pois, estão entregues a uma competição desleal contra aqueles que detêm o poder e, principalmente, o capital. Mas, ainda há uma se- gunda chance para pensar bem no voto! No último domingo do outubro (26) acontecerá o segundo turno das eleições para presidente e, em alguns Estados para governador. É preciso ob- servar entre os candidatos quais apresentam propostas concretas de atendimento, atenção e mudanças a po- pulação mais vulneráveis, maioria neste pais. Desde meados dos anos de 1990, diversos Movimentos de Luta pela Moradia, a Po- pulação em Situação de Rua e os Trabalhadores Informais, vêm realizando uma luta sem tréguas contra a especulação imobiliária e a higienização no centro de São Paulo. Nesta guerra contra os pobres, no território do cen- tro da cidade, a especulação imobiliária se aliou ao poder judiciário, ao poder publico e a policia militar, com a fi- nalidade de criminalizar os movimentos populares, agre- dindo e tentando expulsar os Sem Teto, os Trabalhado- res Informais, a População de Rua e todos os excluídos/ as da região. As vítimas do modelo excludente de cidade passaram a ser tratadas como responsáveis pelo caos urba- no que tem origem na falta de democratização do acesso à cidade. As elites querem um centro higienizado e sem pobres, que satisfaça exclusivamente seus direitos individuais. Assim, vêm utilizando todas as formas de violência para atingir o seu ob- jetivo. O que ocorreu no dia 16 de setembro de 2014, no centro de São Paulo, no despejo violento do hotel Aquarius, se suceden- do aos ataques da GCM e da PM na região da “Cracolân- dia”, contra os usuários de dro- gas e a população em situação de rua, somados ao assassinato de um trabalhador ambulante por um PM na região da Lapa, é apenas mais alguns dos tris- tes e perversos capítulos desta agenda de higienização e mas- sacre da população pobre. Por- tanto, não são fatos isolados, fazem parte da mesma matriz higienista de violência. A REINTEGRAÇÃO DE POSSE DO HOTEL AQUA- RIUS retrata a violência insti- tucional e a supressão de todos os direitos constitucionais da população pobre. Uma proprie- dade abandonada há dez anos foi protegida pelo Poder Judiciário e pela Polícia Militar em detrimento ao direito das famílias, é o direito individual se sobrepondo ao direito coletivo, mesmo que a Constitui- ção Federal determine o contrário. Mas não foi apenas isso: a rein- tegração de posse foi executada MESMO SEM OS MEIOS NECES- SÁRIOS, com o uso abusivo da for- ça policial – muitas pessoas foram agredidas, crianças e mulheres fo- ram atingidas por bombas dentro do prédio, pelo menos dois jovens tiveram os seus braços quebrados pela PM, diversas pessoas foram alvejadas e atingidas por balas de borracha, bombas de efeito moral e gás lacrimogênio e, ao final, os despejados ainda foram submeti- dos a tratamento desumano, com detenção sem acusação formal, sem que pudessem ir ao banheiro, beber água ou se alimentar. A porta da ocupação, num ato de violência sem tamanho, foi ar- rombada pelo caminhão do choque. Homens, mulheres e crian- ças relataram que a PM, num “corredor polonês” os agrediu dentro da ocupa- ção. Crianças de colo - be- bês, inclusive uma criança cadeirante - foram detidas e conduzidas com seus pais e avós ao 3º Distrito Poli- cial, ficando expostos por horas, no chão do posto de gasolina na esquina da Rua Aurora com a Avenida Rio Branco. Assim, Manifesta- mos aqui toda nossa soli- dariedade à FLM – Frente de Luta Por Moradia – pela resistência. Repudiamos todos os atos de violência militar nesta desocupação, repu- diamos também, os atos violentos da GCM e da PM contra os usuários de drogas na Região da Cra- colândia, no dia 18/09/14, repudiamos a morte de um trabalhador informal assas- sinado por um PM, na re- gião da Lapa na mesma quin- ta feira, dia 18/09/14. Exigimos a apuração de todos os atos de violência da PM, com punição para os culpados. Pelo fim das ações violentas da GCM. Pelo fim da criminalização dos movi- mentos populares e dos defen- sores/as de direitos humanos. Abaixo a especulação imobi- liária. Exigimos um judiciá- rio que defenda a população e não a especulação. Pela desmilitarização da PM. LUTAREMOS PELA JUS- TIÇA SOCIAL COM TODAS AS NOSSAS FORÇAS E ELES NUNCA ATINGIRÃO SEUS OBJETIVOS. PODEM NOS AGREDIR, MAS CON- TINUAREMOS A RESISTIR! PELO DIREITO À CIDA- DE, LUTA CONTINUA! Frente de Luta Pela Moradia (FLM); Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos; Central de Movimentos Populares (CMP); União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (UMM); Movimento Sem Teto do Centro – MSTC; Movimento Moradia Para Todos; Fórum dos Trabalhadores Informais; Movimento de Moradia da Região Cen- tro; Unificação das Lutas de Cortiços; Ouvidoria da Defensoria Publica do Estado de São Paulo; Comitê Popular da Copa; Escritório Modelo da PUC; Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico; Núcleo Direito à Cidade da USP; Movimento Nacional da População de Rua; Pastoral do Povo da Rua; Movimento Nacional dos Direitos Hu- manos; Serviço Pastoral dos Migrantes; Consulta Popular; Nota de Repúdio

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jornal da Associação Rede Rua

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Notícias do Povo da Rua Rede Rua de Comunicação - Rua Sampaio Moreira, 110 – Casa 9 – Brás – 03008–010 São Paulo SP – Fone - 3227-8683 - 3311-6642 - [email protected]

Ano XXII Setembro e Outubro de 2014 - Nº 228

Redação

Em meio a disputa...Foto: Luciney Martins

Aconteceu no domingo, dia 5 de outubro, mais uma etapa das eleições nacionais que escolheu os deputados federais e estaduais, senado-res e os aspirantes às vagas de governadores e Presidên-cia da República.

No Estado de São Paulo, a direita saiu vitoriosa, fren-te aos partidos de esquer-da. A chamada “bancada da bala”, formada por policiais militares e simpatizantes de linha autoritária, elegeram 5 representantes. Os candi-

datos ligados as causas po-pulares e Direitos Humanos somaram apenas 4 vagas. O número de deputados eleitos que apoiam o governador re-leito, Geraldo Alckmin e fa-zem coro com a tendência de criminalizar os pobres, são mais do que o dobro daque-les da chamada oposição. Já entre os deputados federais eleitos pelo Estado de São Paulo a maioria é fi liada ao PSDB. Para a Câmara de De-putados a “bancada da bala” também garantiu espaço.

Foi perceptível nos deba-tes e programas de gover-

nos que as pautas e reivindica-ções da população em situação de rua ficou fora dos planos pré-eleitorais e o resultado do pleito foi ainda mais desanima-dor para os pobres do Estado. Significa mais quatro anos de militarismo e ausência de po-líticas públicas, como foi visto no último mandato.

A população em situação de rua é também eleitora, mas, fi -cou a mercê da promessas elei-toreiras.

Independente da linha polí-tica, os governantes eleitos têm obrigações frente às demandas sociais urgente, como é o núme-

ro sempre crescente de pessoas em situação de rua no país.

É preciso implemen-tar políticas públicas para diminuição das desigual-dades sociais.

Cabe a sociedade sen-sível a esta realidade, co-brar a realização dessas demandas. Neste mo-mento, mais implacavel-mente.

As eleições mostra-ram-se inefi cazes em certa medida para fazer avançar a luta social, pois, estão entregues a uma

competição desleal contra aqueles que detêm o poder e, principalmente, o capital.

Mas, ainda há uma se-gunda chance para pensar bem no voto! No último domingo do outubro (26) acontecerá o segundo turno das eleições para presidente e, em alguns Estados para governador. É preciso ob-servar entre os candidatos quais apresentam propostas concretas de atendimento, atenção e mudanças a po-pulação mais vulneráveis, maioria neste pais.

Desde meados dos anos de 1990, diversos Movimentos de Luta pela Moradia, a Po-pulação em Situação de Rua e os Trabalhadores Informais, vêm realizando uma luta sem tréguas contra a especulação imobiliária e a higienização no centro de São Paulo.

Nesta guerra contra os pobres, no território do cen-tro da cidade, a especulação imobiliária se aliou ao poder judiciário, ao poder publico e a policia militar, com a fi -nalidade de criminalizar os movimentos populares, agre-dindo e tentando expulsar os Sem Teto, os Trabalhado-res Informais, a População de Rua e todos os excluídos/as da região. As vítimas do modelo excludente de cidade passaram a ser tratadas como responsáveis pelo caos urba-no que tem origem na falta de democratização do acesso à cidade.

As elites querem um centro

higienizado e sem pobres, que satisfaça exclusivamente seus direitos individuais. Assim, vêm utilizando todas as formas de violência para atingir o seu ob-jetivo.

O que ocorreu no dia 16 de setembro de 2014, no centro de São Paulo, no despejo violento do hotel Aquarius, se suceden-do aos ataques da GCM e da PM na região da “Cracolân-dia”, contra os usuários de dro-gas e a população em situação de rua, somados ao assassinato de um trabalhador ambulante por um PM na região da Lapa, é apenas mais alguns dos tris-tes e perversos capítulos desta agenda de higienização e mas-sacre da população pobre. Por-tanto, não são fatos isolados, fazem parte da mesma matriz higienista de violência.

A REINTEGRAÇÃO DE POSSE DO HOTEL AQUA-RIUS retrata a violência insti-tucional e a supressão de todos os direitos constitucionais da

população pobre. Uma proprie-dade abandonada há dez anos foi protegida pelo Poder Judiciário e pela Polícia Militar em detrimento ao direito das famílias, é o direito individual se sobrepondo ao direito coletivo, mesmo que a Constitui-ção Federal determine o contrário. Mas não foi apenas isso: a rein-tegração de posse foi executada MESMO SEM OS MEIOS NECES-SÁRIOS, com o uso abusivo da for-ça policial – muitas pessoas foram agredidas, crianças e mulheres fo-ram atingidas por bombas dentro do prédio, pelo menos dois jovens tiveram os seus braços quebrados pela PM, diversas pessoas foram alvejadas e atingidas por balas de borracha, bombas de efeito moral e gás lacrimogênio e, ao fi nal, os despejados ainda foram submeti-dos a tratamento desumano, com detenção sem acusação formal, sem que pudessem ir ao banheiro, beber água ou se alimentar.

A porta da ocupação, num ato de violência sem tamanho, foi ar-rombada pelo caminhão do choque.

Homens, mulheres e crian-ças relataram que a PM, num “corredor polonês” os agrediu dentro da ocupa-ção. Crianças de colo - be-bês, inclusive uma criança cadeirante - foram detidas e conduzidas com seus pais e avós ao 3º Distrito Poli-cial, fi cando expostos por horas, no chão do posto de gasolina na esquina da Rua Aurora com a Avenida Rio Branco. Assim, Manifesta-mos aqui toda nossa soli-dariedade à FLM – Frente de Luta Por Moradia – pela resistência.

Repudiamos todos os atos de violência militar nesta desocupação, repu-diamos também, os atos violentos da GCM e da PM contra os usuários de drogas na Região da Cra-colândia, no dia 18/09/14, repudiamos a morte de um trabalhador informal assas-sinado por um PM, na re-

gião da Lapa na mesma quin-ta feira, dia 18/09/14.

Exigimos a apuração de todos os atos de violência da PM, com punição para os culpados. Pelo fi m das ações violentas da GCM. Pelo fi m da criminalização dos movi-mentos populares e dos defen-sores/as de direitos humanos. Abaixo a especulação imobi-liária. Exigimos um judiciá-rio que defenda a população e não a especulação. Pela desmilitarização da PM.

LUTAREMOS PELA JUS-TIÇA SOCIAL COM TODAS AS NOSSAS FORÇAS E ELES NUNCA ATINGIRÃO SEUS OBJETIVOS. PODEM NOS AGREDIR, MAS CON-TINUAREMOS A RESISTIR!

PELO DIREITO À CIDA-DE, LUTA CONTINUA!Frente de Luta Pela Moradia (FLM); Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos; Central de Movimentos Populares (CMP); União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (UMM); Movimento Sem Teto do Centro – MSTC; Movimento Moradia Para Todos; Fórum dos Trabalhadores Informais; Movimento de Moradia da Região Cen-tro; Unifi cação das Lutas de Cortiços; Ouvidoria da Defensoria Publica do Estado de São Paulo; Comitê Popular da Copa; Escritório Modelo da PUC; Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico; Núcleo Direito à Cidade da USP; Movimento Nacional da População de Rua; Pastoral do Povo da Rua; Movimento Nacional dos Direitos Hu-manos; Serviço Pastoral dos Migrantes; Consulta Popular;

Nota de Repúdio

Page 2: O Trecheiro - setembro e outubro de 2014 #228

O Trecheiro página 2 Setembro e outubro de 2014

Rua Sampaio Moreira,110 - Casa 9 - Brás - 03008-010 - São Paulo - SP - Fone: (11) 3227-8683 3311-6642 - Fax: 3313-5735 - www.rederua.org.br - E-mail: [email protected]

CONSELHO EDITORIAL:Arlindo DiasEDITORIAL Produção Coletiva

Jornalista ResponsávelDavi AmorimMTB: MTB 48.215/SP

EQUIPE DE REDAÇÃO: Davi AmorimFabiano VianaLéa TosoldRose Barboza

REVISÃO Coletiva

FOTOGRAFIA: Alderon CostaLuciney Martins DIAGRAMAÇÃO: Fabiano Viana

ApoioAndreza do CarmoFelipe MoraesJoão M. de Oliveira

IMPRESSÃO: Forma Certa5 mil exemplares

Vivemos um momento de intenso confl ito na cidade de São Paulo. Em setembro, a questão da moradia ga-nhou destaque na imprensa nacional após um confl ito durante uma reintegração de posse em uma ocupação da Frente de Luta por Moradia (FLM). Os despejos são constantes na cidade. Após descumprimento de acordos entre o Movimento que solicitava o número sufi ciente de caminhões para a retirada dos perten-ces dos sem-tetos e da abordagem violenta da Polícia Militar, nitidamente despreparada e desproporcional, a revolta tomou conta dos ocupantes que se viram em meio às bombas de gás lacrimogêneos despejadas dentro do prédio. Em meio a esta guerra encontra-vam-se desesperadas dezenas de criança, idosos e pessoas com defi ciência.

Estas cenas de horror não chegaram aos olhos do telespecta-dor. A TV mostrou apenas o caos que tomou conta por algumas horas das ruas do centro da capital paulistana resultado da revolta dos moradores diante da violência do Estado sem poder fazer nada.

A violência do Estado não se resumiu apenas com bombas de efeito moral, mas também de “efeito mortal” com o episódio da morte de um vendedor ambulante por um policial militar. Ele apenas tentava ajudar um companheiro humilhado e agre-dido. Foi uma cena de extrema covardia que chocou a todos. Dias depois o policial foi posto em liberdade.

Trabalhar e morar têm sido tratados como crime pelo Estado. Criminalizar a pobreza tem tornado-se prioridade das autori-dades e a complacência com quem comete desvios (a polícia) deixando-os impune só reforça esse tipo de política.

É possível observar essa guerra não declarada aos pobres no atendimento à população em situação de rua, seja por força da repressão policial, seja pelo sucateamento e marginalização do atendimento na rede pública. Disputa por espaço, falta de vagas e política de planejamento são armar para esmorecer nosso povo.

Também, é válido ressaltar uma tendência crescente na cidade, de resistência. Os movimentos organizados têm demonstrado cada qual a sua maneira, uma lição de como acumular forças fazendo-se ouvir, ganhando terreno para o estabelecimento de direitos. Assim como, estão aprendendo com as derrotas a não baixar a cabeça e continuar a luta.

A população em situação de rua é uma demanda social que continuamente cresce aos olhos nus da sociedade e mesmo as-sim não entram como pauta nos planos de governo dos candi-datos as eleições

VIDA NO TRECHOE

dito

rial

APOIO:

O Trecheiro Notícias do Povo da Rua

Pobreza é crime?João, o Trecheiro que alerta

para a prevenção

Davi Amorim e Fabiano Viana

Naquelas praias bonitas levava os

turistas na jangada. Morava na rua, de-

baixo dos coqueiros, das canoas, dos

bancos...

Esta é a história do Tre-cheiro, João Batista Alicí-lio, que corre o trecho des-de 1996 quando se separou da família, mulher e fi lhos, no Estado do Rio de Janei-ro. “Ai eu falei, vou correr o mundo, andar pelo mun-do igual barata tonta, sem paradeiro”, contou João. Ele é natural de Recife, PE, mas viveu com a família no Rio de Janeiro.

Depois da separação, ele foi para Salvador, Bahia, onde viveu muitos anos fazendo boas amiza-des e trabalhando como catador de materiais reci-cláveis e de ajudante de pedreiro. João sempre ba-talhou para conseguir um trocadinho para viver.

Mas, o trecho não ter-minou ali. Anos depois co-locou o pé na estrada e foi viver em Maceió, Alagoas e se enturmou com os pes-cadores de Pajucara, na Re-gião Central de Maceió.

“Naquelas praias boni-tas levava os turistas na jangada. Morava na rua, debaixo dos coqueiros, das canoas, dos bancos... Fi-quei um tempo lá em Ma-ceió, depois pensei 'agora não dá mais. Caí no mun-do e voltei para Recife. Fiquei um período muito grande lá. Eu reciclava pra vender e comprar cacha-ça, foi então que a meni-na enfermeira falou: 'você não quer fazer o exame de HIV?'”, lembrou João que através deste exame teve o diagnóstico, no ano 2000, de que era portador do ví-rus do HIV.

“Eu sabia que existia o preservativo, mas, as na-moradas que eu tive diziam 'vamos, vamos, vamos' e... ia sem”, lamentou. “Foi um choque e eu falei: “é rapaz, eu estou com o bicho da goiaba, vou morrer', já que vou morrer, vou matar mui-ta gente também', porém, parei e pensei: ' não! Não é assim que a banda toca, não! Comecei no Recife o tratamento do HIV e até hoje não parei de tomar”.

João Batista não parou de correr o mundo. De-pois de “enjoar de Recife”, como disse, foi conhecer

a cidade de Fortaleza, “Ô cidade bonita, ô cidade ma-ravilhosa, fi quei lá um pe-ríodo reciclando com a car-roça e me enturmei com os pescadores. Muita cachaça, muito peixe, muita rapariga, mas agora com preservativo! Isso foi fundamental!” Há 14 anos vivendo com HIV, João, mesmo de trecho em trecho, nunca deixou o tratamento e anda sempre com preservati-vos na bolsa.

Cheio de orgulho, relatou que ajudou a criar o Movi-mento Nacional da População de Rua quando ainda morava em Fortaleza. Nesta cidade, ele também fez bons amigos como o casal Pedro e Janaína, dos quais foi padrinho de ca-samento. “Foi um casamento de morador de rua de uma casa de apoio da Igreja Cató-lica que tem lá. O Padre Lino fez este casamento. A Igreja bonita que só fazia casamen-to de rico fez o casamento de rua. Fizeram aquela festa para os moradores em situação de rua de Fortaleza”, recordou João com alegria.

Depois de algum tempo, João Batista seguiu o trecho para o Rio Grande do Norte. Nesta época, ano 2012, fi cou mais fácil se deslocar, pois ele conseguiu o benefício social disponibilizado para o soropositivo, que garante transporte e um salário míni-mo. No entanto, João narrou a difi culdade de uma pessoa em situação de rua para con-seguir acesso aos remédios disponibilizados pela saúde pública. “Cheguei em Natal e tive uma barreira por que eu não tinha comprovante de re-sidência. Pensei: 'como vou pegar meu remédio?'. Fui para o Ministério Público e quando cheguei lá contei mi-nha situação para a assistente social e para a advogada. Ela fez uma declaração de mora-dor de rua. Abri fi rma e reco-nheci no cartório o documen-to. Quando voltei no posto de saúde, me deram até dinheiro pra tirar xerox da declara-ção” contou.

O Trecheiro seguiu se vi-rando entre diferentes Esta-dos. Há um ano veio viver em São Paulo, que já havia visi-tado em outras ocasiões. Atu-almente, participa do Movi-mento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) na cidade de São Paulo e mora em um albergue. Con-tinua batalhando para ganhar um trocado ajudando os sapa-teiros no Centro da cidade.

João sonha sair da situação de rua. “Penso nisso agora porque eu participo do Movi-mento que luta fazendo pas-seata na Secretaria de Habi-tação”, lembrou dizendo que foi um dos contemplados no programa:“Minha Casa, Mi-nha Vida”, destinado também para a população de rua por meio do MNPR.

Há 14 anos vivendo com HIV, nem imaginava que viveria tanto tempo, ainda mais em situação de rua. Ao lembrar-se do descuido que teve no passado, faz questão de deixar um alerta. “Eu digo para o jovens de hoje, não fa-çam isso não, que é loucura. Tem o remédio, mas, tem que se prevenir porque essa luta tá grande”, alertou.

RUAGENDA

Fotos: Fabiano Viana

Foto: Alderon Costa/Rede Rua

Page 3: O Trecheiro - setembro e outubro de 2014 #228

O Trecheiro página 3 Setembro e Outubro de 2014

Rafael Braga Vieira, negro em situação de rua, segue preso!

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no último dia 26, rejeitou o pedido de absol-vição de Rafael Braga Vieira, mantendo-o preso injustamente por porte de Pinho Sol e água sanitária em meio às jornadas de ju-nho de 2013. A defesa de Rafael havia feito apelação após laudo técnico da polícia civil comprovar que os produtos de limpeza não poderiam ser convertidos em coquetel molo-tov, conforme alega a acusação. Em vez de ser anulada, a pena passou de cinco anos para quatro anos e oito meses de prisão, ou seja, foi reduzida em apenas quatro meses. Enquanto isso, Rafael já se encontra há mais de um ano na prisão. Único preso e condenado durante as mani-festações de junho de 2013, o caso de Rafael mostra a forma arbitrária e violenta com que a suposta “Justiça” brasileira trata quem é negro, pobre e vive em situação de rua.

Catadores da cidade reanimandoCatadores de materiais recicláveis organi-zados no Comitê Regional de Catadores da Cidade de São Paulo se reuniram dia 01 de outubro para discutir proposta de Acordo Se-torial de Embalagens que irá regulamentar a responsabilização dos produtores e distribuidores da indústria sobre o destino das embalagens pós-consu-mo, previsto na lei 12.305/2010. Eles buscam que as cooperativas de catadores possam prestar serviço de coleta e receber da indústria pelo serviço de retorno das embalagens para a cadeia produtiva. Os catadores também estão em fase de rearticulação das atividades do Comitê da Cidade, instância ligada do Movimento Nacional de Catadores, e convidam ou-tros catadores à começar a participar das reuniões que acontecem periodicamente. Para saber a agenda ligue para o movimento: (11) 3341-0964

Tre

chei

rinh

as

Léa Tosold e Davi Amorim

DIRETO DA RUA

Andreza do Carmo/Rede Rua

Sebastião Nicomedes

10 anos do massacre do povo em situação de rua

Martin Islas

Campings de Rua

Depois de expulsos da Praça da Sé, da Cracolândia, até os que perderam barracos em incêndio nas favelas, involuntariamente e gradativamente foram surgindo.Surgiu um novo fenômeno, os Campings de Rua.

Os novos sem-teto de rua passaram a viver em barracas, acampados, solitários em pequenas malocas ou até em grandes assentamentos, a exemplo do que ocorreu na área do Parque Dom Pedro, região central de São Paulo.

O espaço onde era pra ser criado um CREAS deu lugar a uma grande lona de circo.Embaixo, passou a funcionar a chamada ten-da, dirigida por uma ONG conveniada.Claro, esse tipo de política paliativa baixa não podia dar certo.

A tenda virou a casa da mãe Joana! Ali, todo mundo e, ao mes-mo tempo, ninguém mandava nada.

A prefeitura puxou fora, as ONGs deram no pé, os funcionários picaram a mula e os moradores de rua foram chegando com os galos nas costas e criaram uma gigantesca maloca.

A ascensão social da pessoa em situação de rua, visivelmente, se deu quando ela conseguia uma dessas barracas de camping que passava a ser sua moradia provisória.

De posse da barraca, o novo sem-teto de rua passava a sonharcom moradia: um prédio, um apartamento, a casa própria.

É certo que a tenda Dom Pedro teve os dias contados.O poder público quiz de volta a lona de circo e removeu tudo e todos de lá.

E pra onde foram essas pessoas? Boa parte cadastrada foi para dois prédios de tal projeto “Au-

tonomia” em Foco menos os que vieram para tenda depois dos cadastros já terem sido feitos.

Ocorre que a demanda da rua aumenta a cada dia, todo dia têm expulsões.Só as secretarias não sabem disso ou fi ngem não saber.

Enfi m, e quem não foi pros prédios ou não quis albergueviu o trator passar por cima do seu barraco, da sua barraca?E fugir pra onde, se tudo vai estar cercado de polícia numa ver-dadeira operação de guerra?

O mundo mudou e tá na hora de repensar modos de vida, porque moradia tem que ter quintal, escritura, parede de alvena-ria, laje e telhados.

No futuro, haverá grandes áreas de camping, onde os mora-dores de rua e os sem-teto poderão montar suas barracas e viver em paz...

E nada mudou!O pessoal foi chegando devagar, trazendo as ten-

das, porém veio a polícia e o representante do Masp, dizendo aos coordenadores que não era para dormir no vão, pois o patrimônio do museu devia ser preser-vado e que não era permitido permanecer no local.

Repete-se o mesmo discurso e justifi cação da po-lícia e da administração do museu que é o mesmo discurso do sistema: importa assegurar e proteger os bens e protegê-los é mais importante que as pessoas.

É o mesmo discurso que resulta no massacre ou genocídio da juventude preta da periferia.

Esta é a nossa Gaza! Continuamos até agora querendo saber quem foi o mandante ou os man-dantes do massacre do povo da rua e da juventude pobre da periferia!

Manifesto sobre um Não

Paulo Fernandes Costa* São Paulo, 17h30, véspera de feriado. As horas vão passando, o povo continua chegando, as vagas... encolhendo. A matemá-tica vira minha aliada. Misturo gente com os números na tenta-tiva de acomodá-los, o resultado x vira y. Conto, reconto e des-conto para chegar num resulta-do, é muita gente e poucas vagas para o atendimento espontâneo. A matemática no começo é mi-nha aliada, mas logo se torna a rival mais feroz.

Olho o portão, apinhado de homens. Todos reclamam, que-rem jantar, dormir, ter atenção. Nesse momento penso: uma pessoa nessa situação tende cada vez mais a gritar por seus direitos e me pergunto onde es-tão as respostas?

Saio ao encontro deles, e com muito esforço, procuro um jeito mais convincente de dizer não para quem, ao mesmo tem-po, não me faça sofrer com as respostas que serão acionadas, tornando o entendimento mais

difícil nessa hora.Vou anunciando a deman-

da solicitada, mas minha fala é abafada pelas diversas formas implorativas que um cidadão em situação vulnerável pode ser capaz de verbalizar. Pertur-bado, escuto em um só grito: “Seu Paulo, seu Paulo! E ai seu Paulo, não vai atender a gente? O senhor já me conhece, sabe que eu não dou problema na ca-sinha (albergue)”. Sem esgotar a insistência, vão mudando de comportamento passam a gritar mais forte, Nazareth, Dona Lu-ana, Dona Cristina, Ana Paula, Leandro, Carlos, Alexandre, Neto, Cida e Fátima... E o clima vai esquentando.

Logo, os gritos dão lugar a batidas mais agressivas no por-tão. Lá vou eu de novo tentar repetir o mesmo discurso, no entanto, percebo que estão alte-rados e já não querem mais me escutar. Nessa hora, já não sou mais seu Paulo; para muitos, o dono da pousada, o carrasco de

Santo Amaro. Mas não posso deixar que as palavras me der-rubem, pois outros que foram acolhidos esperam por minhas ações.

Para quem está separado por um portão, o relógio vira o ini-migo número 1, sou eu dentro, e eles fora. Parecem presos em plena liberdade, mas uma liber-dade sem conforto. Para muitos, uma cama, um prato de comida, um sim de acolhida é, por um momento, uma grande fortuna conquistada num piscar de olhos.

A noite acabou. Parece que eu acabei de correr 1.000 quilô-metros sem parar. E ao chegar a casa e, por direito, escolhi o me-lhor lugar para relaxar a vontade e ter a chance de sonhar, que to-dos esses problemas fi caram no passado.

Mas agora são 17h30, e o que achei que era passado acaba de se tornar presente novamente.

* Paulo é educador do Pousada da Es-perança (São Paulo).

E ruas… cada vez mais militarizadas

Rose Barboza

Na contramão de todas as reivindicações pela desmilita-rização da polícia e da política, a presidenta da República, Dil-ma Rousseff, sancionou o Es-tatuto Geral das Guardas Mu-nicipais (Lei 13.022/2014). O novo “Estatuto”, publicado no Diário Ofi cial em 11 de agosto de 2014, garante aos guardas municipais o porte de arma de fogo e o poder de polícia. As funções, também se renovam, além da proteção ao patrimô-nio, a partir de agora guardas municipais terão funções se-melhantes às dos policiais mili-tares, atuando coordenadamen-te como órgão da segurança pública. Se toda a sociedade arcará com o preço elevado dos novos tentáculos do “Estado penal” brasileiro, que oferece mais polícia enquanto continua a reduzir e sucatear o arreme-do que temos de “Estado de bem-estar social” é a popula-ção em situação de rua quem, mais uma vez, pagará o preço desproporcional pela militari-zação de nossas cidades. Com a borracha do cassetete sendo substituída pelo cano do 38, e as políticas de emprego e ha-bitação sendo solenemente ig-noradas, não é difícil imaginar que continuaremos a falar em massacres por muito tempo.

É de se perguntar por que, justamente ao cumprir 10 anos do Massacre da Praça da Sé, ao invés de uma conclusão e/ou federalização da investigação desses crimes e de outros seme-lhantes ocorridos em Maceió (2010) e Goiânia (2012/2013), o Ministério da Justiça ofereça chumbo grosso como a única resposta às demandas sociais. Conhecedor das suspeitas de que policiais militares e até mesmo integrantes da GCM tenham participado dos crimes, através de grupos de extermínio e, da atuação ofi cial e extra-ofi -

cial dessas polícias como o bra-ço repressivo da higienização das cidades, o governo federal continua agindo como “biruta” de posto de gasolina, conforme sopra o vento: se de um lado no vento sul, a Secretaria de Direi-tos Humanos do Paraná atua na proteção dos direitos humanos de quem está em situação de rua, o Ministério da Justiça, no vento norte, continua se milita-rizando como se não houvesse amanhã e, fazendo valer, no braço e no cano, um estado de exceção permanente.

Chumbo grosso

Fotos: Alderon Costa/Rede Rua

Alderon Costa/Rede Rua

Page 4: O Trecheiro - setembro e outubro de 2014 #228

O Trecheiro página 4 Setembro e Outubro de 2014

Márcia Hirata e Higor Carvalho

Desigualdade globalizada: a situação da pop rua no Japão

Fotos: Higor Carvalho

Na mídia brasileira, o Ja-pão tem se destacado pela rá-pida reconstrução do país após o tsunami, em março de 2011, e pela recente imagem de tor-cedores japoneses, recolhendo o lixo espalhado no estádio ao fi m de um jogo durante a Copa no Brasil. Mas pouco se ouviu falar daquilo que, tal como aqui, expressa o avesso do que se es-peraria de uma sociedade tida como modelo de civilidade: a existência de pessoas vivendo nas ruas.

Talvez seja de pasmar, mas o fenômeno global do morar na rua também acontece no "país do sol nascente". Como parte da globalização, há pontos em comum com o que acontece no mundo, mas também situações específi cas locais. Ao mesmo tempo em que estabelecem políticas públicas locais que visam enfrentar um problema social grave, deparam-se com o limite de estratégias de negó-cios globais em que "o social" só é incorporado como estraté-gia de marketing.

Mudanças no tra-balho e políticas

sociais

O trabalho para os japoneses tem um signifi cado moral estru-turante. Para além de uma renda para manter a família, é motivo de orgulho pessoal e parte fun-damental da sociabilidade. Até os anos 1990, quando um jo-vem era admitido em uma em-presa signifi cava um emprego estável até a aposentadoria. Isso começou a mudar radicalmente com a crise econômica, no fi nal da década de 1980, e a entrada do neoliberalismo no país. A in-tensa atividade imobiliária que até então desenhou a paisagem de importantes cidades, como Tóquio e Osaka, com seus pré-dios modernos, passa então a conviver com acampamentos de plástico azul nos parques pú-blicos e às margens de rios ou em casas de papelão nas esta-ções de metrô. Seus ocupantes são, em geral, homens sozinhos em torno de 50 anos.

Entre os inúmeros pesquisa-dores sobre a situação dos mo-radores de rua no país, é con-senso que políticas sociais do governo federal promoveram, efetivamente, o decréscimo de sua presença nas ruas. Kiener é um dos que nos elucida a res-peito do que aconteceu, apon-tando um aumento considerável de pessoas morando nas ruas de 1992 a 2000, momento em

que o número passa a decres-cer continuamente. Em 2003, a contagem do governo japonês apontou um total de 25.296 mo-radores de rua no país, núme-ro que, em 2013, abaixou para 8.265 pessoas.

Promulgada em 2002, ga-nhou destaque a "Lei Especial de Medidas Temporárias de Su-porte e Autossufi ciência de Pes-soas Moradoras de Rua", que estabelece o que, no Brasil, se-ria básico para uma política pú-blica, a diversidade de medidas para a reconstrução das diversas esferas da vida, como trabalho, moradia e saúde. Kiener conta que isso se dá em torno de "Cen-tros de apoio à autossufi ciência do morador de rua”. Trata-se de equipamentos públicos com assistência para o trabalho e amplo suporte para uma estadia provisória, além de atendimento básico à saúde e acompanha-mento de profi ssional.

Kiener aponta a especifi cida-de local e o limite de tal política, que resultam de um histórico de políticas sociais defi nidas pelo governo japonês, desde o fi m da II Guerra Mundial, quando inúmeras pessoas fi caram sem suas casas. Com a crise mun-dial do petróleo, tal como no mundo todo, a visão de bem--estar social foi alterada de um direito que deve ser garantido pelo Estado para soluções me-nos onerosas, como ajuda mú-tua e atividades relacionadas a soluções de mercado. E mesmo assim essa política pública está focada no núcleo familiar e nos mais idosos, afi nal, como escla-rece Kiener, a situação de rua é vista como de responsabilidade do próprio indivíduo, uma espé-cie de punição para aquele que historicamente é considerado "vagabundo".

É aqui que o neoliberalis-mo globalizado entra em cho-que com a cultura nipônica da moral do trabalho. A fl exibili-zação das relações trabalhistas e a competitividade das em-presas que passa a desempre-gar – principalmente homens, em torno de 50 anos –, desinte-gram o papel social tradicional do homem japonês de prove-dor da família. Toda sua socia-bilidade é assim rompida, a do trabalho e a familiar, cuja soli-dão é marcada pelo sentimento de "vergonha".

Os pesquisadores relata-ram que, diante das crises e reestruturações econômicas do país, um tipo de trabalha-dor se mostrou, em especial, mais vulnerável, os trabalha-dores diaristas da construção civil. Eles que trabalharam durante o boom imobiliário, da década de 1980, mas com a crise dos anos 1990 pas-saram a compor cerca de 40 a 60% da população de rua, participação que decresceu, nas décadas seguintes, à me-dida que o neoliberalismo lançou às ruas desemprega-dos de outros setores produ-tivos. No entanto, nas áreas conhecidas como yosebas onde se concentrava esse tipo de trabalhador, hoje também há presença signifi cativa da população pobre. Isso prova-velmente relaciona-se à polí-tica social do governo, uma vez que, nessas áreas, a pró-pria dinâmica de mercado fez com que ali se concentrassem uma série de serviços volta-dos para o período em que o trabalhador fi ca sem tra-balhar, além de um mercado barato de hotéis e todas as facilidades cotidianas, como

restaurantes, lavanderias, su-permercados, e até armários para pequenos volumes. Com a crise, parte desses trabalhado-res passou a fazer uso da políti-ca de assistência social, que não só criou ali os centros de apoio para o desempregado, mas tam-bém incluiu auxílio para atendi-mento à saúde e subsídios para moradia. Com tais subsídios, muitos dos hotéis baratos adap-taram-se para receber esse tipo de moradia, afi nal, há garantia mensal de um recurso público. Assim, é nessas áreas que os demais benefi ciários da políti-ca social também encontraram moradia e condições de sobre-vivência cotidiana. Daí a con-centração da população de mais baixa renda do país.

Mas se há mérito no fato de que em certo momento as po-líticas sociais efetivamente di-minuíram o número de pessoas nas ruas, nota-se que elas vêm acompanhadas de difi culdades as quais parecem ter chegado ao limite. Muitos moradores de rua não se adéquam a tais polí-ticas sociais, porque já não têm a perspectiva de um trabalho es-tável e por terem já passado por uma série desses serviços. Pro-curar soluções próprias e fazer uso daqueles ligados às entida-des assistenciais e religiosas são alternativas mais estáveis, in-clusive para o restabelecimento de laços sociais, diferentemente do trabalho temporário em que não há possibilidade de apro-fundar relações pessoais e afeti-vas, segundo Kiener. O visitante atento verá que, também ali, há quem sobreviva da venda de la-tas de alumínio e encontrará, em alguns cantos de espaços públi-cos, malas junto a caixas de pa-pelão bem-dobrados, além dos tradicionais acampamentos de tendas azuis. E talvez nem tão difícil, perceberá ilegalidades e violência.

Esperar alguma reformula-ção da política social também parece distante, pois o governo sob o argumento econômico vem crescentemente reduzindo o papel do Estado quanto aos direitos sociais, especialmen-te para os idosos e na área da Saúde. Moradores de rua com capacidade de trabalho há mui-to convivem com isso devido ao preconceito. Pelo contrário, mesmo as poucas estratégias de sobrevivência cotidiana, nos últimos anos, estão em risco,

pois as áreas menos valoriza-das em que se encontram estão na mira dos rentáveis negócios imobiliários, como os projetos de renovação urbana que vi-sam inserir as cidades na com-petitividade econômica global.

Pontos comuns entre países

As difi culdades enfrentadas pela população em situação de rua, ao contrário do que se pode imaginar num primeiro momento, não são tão distintas em países chamados desenvol-vidos ou naqueles em desen-volvimento. A desigualdade torna-se global, e os processos aos quais a população está su-jeita ganham essa dimensão com o avanço das políticas neoliberais pelo mundo. No Japão, o estabelecimento de uma política diversifi cada para a população de rua parece ter contribuído para a melhoria do quadro ao longo da déca-da passada; contudo, por não abarcar a todos os moradores, apresenta limites. Aqueles não contemplados nos critérios de-limitados e os que optam por permanecer nas ruas são cons-tantemente submetidos a di-versos tipos de violência vin-das inclusive do poder público.

No Japão, a associação entre corporações privadas e agentes públicos para a gestão do espaço urbano, sem contar com instâncias de participação popular vem colocando os mo-radores de rua em situações de grande vulnerabilidade. Tal-vez por um traço da cultura nipônica, percebemos falta de articulação política entre mo-radores de rua para agir cole-tivamente e resistir às diversas formas de remoções às quais estão sujeitos, dentre as quais os projetos de renovação ur-bana. No entanto, aqueles que se mobilizam parecem possuir um horizonte de garantia de di-reitos e melhorias, mas, até lá, o processo é de luta cotidiana.

Por fi m, queremos deixar aqui registrados nossos agra-decimentos aos professores Mizuuchi e Yamaguchi e aos pesquisadores Kiener e Mu-rota, que nos apresentaram a questão social e urbana das ci-dades de Osaka e Tóquio, em julho de 2014.

Acampamento de moradores de rua em tendas de lona, que antes ocupavam o Parque Miyashita, em Tóquio

Neoliberalismo é um conjunto de ideias políticas e econômi-cas capitalistas que defende a diminuição do papel do Estado na economia, com o princípio de total liberdade de comércio que deve garantir crescimento econômico e desenvolvimento social de um país. A crítica fundamental é que a economia neolibe-ral só benefi cia as grandes potências econômicas e as empresas multinacionais. Os países pobres ou em processo de desenvol-vimento, como o Brasil, sofrem com os resultados dessa políti-ca neoliberal, como desemprego, baixos salários, aumento das diferenças sociais e dependência do capital internacional.

Moradia improvisada por pessoa em situação de rua em jardim que ladeia a avenida de acesso ao parque Yoyogi, em Tóquio.