O treinamento dos doze A B Bruce.pdf

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  • Um dos maiores desafios dos nossos dias o treinamento de novos lderes, quepossam continuar, com integridade e seriedade, o trabalho -de evangelizar e levar ao mundo a mensagem do Evangelho.

    D atado do sculo XIX, O Treinamento dos Doze

    Vi r\ c i

    clssica. Desenvolvido pelo D r. A lexan d er B alm ain Bruce, esta obra fala, nossa gerao, acerca da im portncia do preparo de novos obreiros para o Rei- r o .principal escopo a forma com que o Senhor Jesus treinou seus discpulos para que estes dessem continuidade obra que Ele iniciara.

  • REIS BOOKS DIGITAL

  • A. B. B R U C EPrefcio de D. Stuart Briscoe

    E nos Para n....... :seDvivimeni:o da Lirteraria

    I a Edio

    Traduzido por Degmar Ribas

    CPADR io de Jan e iro

  • Todos os direitos reservados. Copyright 2007 para a lngua portuguesa da Casa Publicadora das Assemblias de Deus. Aprovado pelo Conselho de Doutrina.

    T tu lo do original em ingls: The Training o f the Twelve Kregel Publications, Grand Rapids, M I 49501 , EUA Primeira edio em ingles: 1971 Traduo: Degmar Ribas

    Reviso: Elaine Arsenio e Daniele Pereira Capa e projeto grfico: Leonardo Marinho Editorao: Leonardo Marinho

    CDD: 248-V ida Crist ISBN: 978-85-263-0855-8

    As citaes bblicas foram extradas da verso Almeida Revista e Corrigida, edio de 1995, da Sociedade Bblica do Brasil, salvo indicao em contrrio.

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    I a ed io/2007

  • Prefciode D. Stuart Briscoe

    A-Z Alexander Balmain Bruce, um homem to escocs quanto seu nome, nasceu em uma fazenda de Perthshire e foi educado no Edinburgh College. Ministrou em congregaes no territrio escocs e deu aulas em um Seminrio em Glasgow. Por mais de quarenta anos, dedicou-se a ministrar o evangelho cristo, primeiro como pastor, e ento como um ilustre professor de Apologtica e Exegese do Novo Testamento. Comeou a escrever durante o tempo em que pastoreava, e seu conhecido livro O Treinamento dos Doze foi publicado em 1871. Mantendo a preferncia por ttulos ponderosos e descritivos no sculo XIX, a obra recebeu o seguinte subttulo: Passagens Extradas dos Evangelhos Apresentando os Doze Discpulos de Jesus sob Disciplina para o Apostolado.

    Por mais de um sculo O Treinamento dos Doze foi altamente respeitado e amplamente recebido. Uma autoridade como o Dr. W. H. Griffith Thomas chamou o livro de um dos grandes clssicos cristos do sculo XIX, e o Dr. W ilbur Smith, principal biblifilo americano, observou: No h nada importante na vida de nosso Senhor em relao ao treinamento dos doze apstolos que no tenha sido relatado nesse livro...

    Agora, esse clssico do sculo XIX pode expandir seu ministrio j rico e abenoado. Embora com mais de cem anos de idade, a obra do Dr. Bruce fala poderosa e efetivamente gerao crist contempornea.

    Nos anos recentes, tem havido uma redescoberta da importncia dos ensinamentos de Paulo no captulo 4 de Efsios acerca da responsabilidade de os pastores e mestres prepararem os santos para a obra do ministrio. Por vrios anos, muitas igrejas ignoraram, ou escolheram ig

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    norar, esses ensinamentos bblicos, e, portanto, uma pequena parte do povo de Deus ficou sobrecarregada enquanto a m aioria ficou subempregada. Enquanto um pouco dos dons eram colocados em prtica de forma plena, milhares de pessoas que receberam dons nem mesmo sabiam que os haviam recebido. Como resultado, o ministrio potencial da Igreja de Cristo foi reduzido consideravelmente. O Dr. Bruce teria se sentido em casa com a nfase atual no treinamento de pessoas para o ministrio, e seu livro tem muito a oferecer como fonte para o treinamento ao apresentar o Mestre ensinando sua equipe especial.

    Ver a Igreja como o Corpo de Cristo outra nfase contempornea saudvel. Ela serve para libertar as pessoas da idia equivocada de que a igreja um lugar que as pessoas freqentam e as apresenta ao conceito bblico de que a Igreja algo que as pessoas so. E potencialmente revolucionrio para os cristos verem a si mesmos como o Corpo de Cristo e consagrarem suas vidas a amar uns aos outros como membros companheiros, comprometidos com a nutrio mtua. Este livro documenta com todo o cuidado os conflitos e os sucessos do primeiro grupo de pessoas que se empenhou tanto para amar aos outros que se tornaram reconhecidos como discpulos de Cristo.

    Recentemente, muito tem sido escrito sobre o crescimento cristo pessoal. Alguns materiais se inclinam mais para as cincias sociais do que para ensinamentos teolgicos e bblicos, e cheiram mais a auto- aperfeioamento do que a crescimento espiritual. A obra do Dr. Bruce beneficiar muitos leitores modernos porque seus estudos examinam cuidadosamente de que forma os discpulos cresceram como resultado do relacionamento que tinham com o Mestre. A igreja contempornea precisa lembrar-se de que informao inestimvel ajuntada aos poucos de cientistas sociais acerca do comportamento humano nunca deve ser vista como substituta para um relacionamento pessoal com o Senhor Jesus semelhante quele experimentado pelos doze enquanto caminhavam juntos para cima e para baixo. Como eles ouviam sua palavra, estudavam suas reaes, cumpriam seus mandamentos e respondiam s suas promessas esto fielmente registrados para ns nas Escrituras e muito bem aplicados a nossas situaes neste livro.

    Pessoalmente, constatei que O Treinamento dos Doze de imenso valor por motivos alm dos relacionados acima. Quando prego acerca dos

  • Prefcio 7

    Evangelhos, constantemente uso este livro, e descobri que se trata de um excelente comentrio. Alm disso, quase sempre me sento e leio alguns captulos apenas porque preciso do alimento que s encontro nas aplicaes devocionais das Escrituras em minha alma. Poucos expositores fizeram mais do que A. B. Bruce em relao a isso.

    Talvez a melhor recomendao que posso dar sobre o livro, porm, dizer que embora eu tenha centenas de livros em minha crescente biblioteca, todos cuidadosamente catalogados e organizados em prateleiras, percebi que O Treinamento dos Doze nunca foi includo oficialmente em minha biblioteca! A razo simples. Desde que adquiri meu exemplar, anos atrs, ele fica em minha escrivaninha ou em minhas mos, com muitos outros livros a que recorro constantemente. Simplesmente no consegui ficar sem us-lo por tempo suficiente para que minha secretria pudesse coloc-lo no lugar apropriado! Pensando bem, o lugar apropriado para ele onde eu possa peg-lo rapidamente. Espero que o seu exemplar encontre esse lugar em sua vida e em sua experincia.

    D. Stuart Briscoe

  • Prefcio Segunda Edio

    AJL Vd ser informado por um editor de que seria necessria uma segunda edio de O Treinamento dos Doze, que foi publicado pela primeira vez em 1871, fui compelido a pensar sobre a questo de que alteraes deveriam ser feitas em um trabalho que, embora escrito com cuidado, tambm estava obviamente, em minha opinio, selado com imperfeio. Duas alternativas surgiram em minha mente. Uma foi reformar a obra por inteiro, a fim de conferir-lhe um carter mais crtico e cientfico, e fazer com que resistisse mais diretamente as atuais controvrsias sobre a origem do cristianismo. A outra era permitir que o livro ficasse substancialmente como estava, conservando sua forma popular, e limitando as alteraes a detalhes suscetveis de melhoria sem mudana do plano. Depois de um pouco de hesitao, optei pela ltima, pelas seguintes razes. De expresses de opinies que me alcanaram de muitas e diversas reas, fiquei convencido de que o livro era apreciado e til, e por isso conclu que, apesar de suas falhas, continuaria sendo til em sua forma original. Ento, considerando quo difcil em todas as coisas servir a dois senhores ou concluir com dois finais, percebi que a escolha da primeira das duas alternativas era equivalente a escrever um novo livro, o que poderia ser feito, se necessrio, independentemente da atual publicao. Confesso ter uma vaga idia de tal trabalho em minha mente, que pode ou no ser colocada em prtica. A escola Tbingen de crticos, com cujas palavras os leitores ingleses esto ficando acostumados atravs das tradues, afirma que o cristianismo catlico foi o resultado de um compromisso ou reconciliao entre duas tendncias radicais opostas, representadas respectivamente pelos apsto

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    los originais e por Paulo, sendo as duas tendncias uma exclusividade judaica por um lado e, por outro, o universalismo paulino. Os doze disseram: Cristianismo para os judeus, e todos que esto dispostos a se tornarem judeus por submisso aos costumes judaicos; Paulo disse: Cristianismo para o mundo todo, e para todos nos mesmos termos. Agora o material com que se lidou em O Treinamento dos Doze, deve, pela natureza do caso, ter algum resistncia nessa hiptese-conflito do Dr. Baur e seus amigos. Surge a questo: O que deve ser esperado dos homens que estavam com Jesus? E a considerao dessa questo formaria uma importante diviso no trabalho to controverso que tenho em vista. Um outro captulo poderia ser considerado a parte designada a Pedro em Atos dos Apstolos (alegado pela mesma escola de crticos como sendo uma parte inventada pelo escritor com propsito apologtico), buscando especialmente determinar se era uma parte apropriada para ele desempenhar apropriada em vista de suas idiossincrasias, ou o treinamento que ele havia recebido. Um outro tpico adequado seria o carter do apstolo Joo como retratado nos Evangelhos Sinticos, em sua resistncia sobre as questes acerca da autoria do quarto Evangelho, e a hostilidade a Paulo e seu universalismo que alegava estar manifesto no livro de Apocalipse. Em uma obra dessas, falharia em considerar os materiais resistindo ao mesmo tema em outras partes do Novo Testamento, especialmente aquelas encontradas na Epstola aos Gaiatas. Por fim, apropriadamente seria encontrado um lugar na obra para discutir sobre a questo: At que ponto os Evangelhos Sinticos as principais fontes de informao acerca dos ensinamentos e dos atos pblicos de Cristo conservam traos da influncia de tendncias controversas ou conciliatrias? Por exemplo: Qual a razo para se afirmar que a misso dos setenta uma inveno causada pelo interesse do universalismo paulino com a inteno de superar os apstolos originais?

    No presente trabalho, no tentei desenvolver o argumento esboado aqui, mas simplesmente indiquei os lugares em que diferentes pontos do argumento aparecem, e a maneira como poderiam ser usados. A hiptese-conflito no esteve ausente de minha mente enquanto eu escrevia este livro inicialmente; mas eu nem estava acostumado com a literatura relativa a isso, nem to sensvel acerca de sua importncia como estou agora.

  • Prefcio Segunda Ediao 11

    Ao preparar esta nova edio, no perdi de vista quaisquer dicas de crticas amigveis que podem torn-la mais aceitvel e til. Em particular, tenho mantido a vista fixa na economia de elementos homilticos, embora eu esteja ciente de que ainda posso ter conservado demais para o gosto de alguns, porm espero que no tanto para os leitores em geral. Tive que me lembrar que enquanto alguns amigos pediram condensao, outros reclamaram que a questo estava hermeticamente fechada. Tambm tive oportunidade de observar em minhas leituras de obras sobre a histria do Evangelho que possvel ser to breve e resumido a ponto de perder no s as conexes latentes das idias, mas tambm as prprias idias. Nem todas as mudanas foram na direo da economia. Embora alguns pargrafos tenham sido cancelados ou reduzidos em tamanho, outros foram adicionados, e em um ou dois casos, pginas inteiras foram reescritas. Entre os acrscimos mais importantes podemos mencionar uma nota no final do captulo acerca do discurso de despedida, fazendo uma anlise do discurso e das partes que o compem; e um pargrafo conclusivo no final da obra resumindo as instrues que os doze receberam de Jesus durante o tempo em que estiveram com Ele. Alm disso, uma caracterstica dessa edio uma srie de notas de rodap referindo-se a algumas das principais publicaes recentes, inglesas ou no, cujo contedo se relacione mais ou menos com a histria do Evangelho, tais como as obras de Keim, Pfleiderer, Golani, Farrar, Sanday e Supernatural Religion (Religio Sobrenatural). As notas em referncia obra do Sr. Sanday apoia-se na importante questo, at que ponto temos no Evangelho de Joo um registro confivel das palavras ditas por Jesus aos seus discpulos na vspera de sua morte.

    Alm do ndice de passagens examinadas que aparece na primeira edio, essa contm uma tabela cuidadosamente preparada com os contedos no final, com a qual se espera acrescentar utilidade obra. Para tornar a base do contedo do treinamento dos discpulos mais aparente, em vrios casos mudei o ttulo dos captulos, ou inclu ttulos alternativos.

    Com essas explicaes, envio esta nova edio, com sentimentos de gratido pela gentil recepo com que a obra j tem sido recebida, e na esperana de que pela bno divina continuar a ser usada como uma tentativa de ilustrar um tema to interessante e importante.

    A. B. B.

  • SumrioPrefcio de D. S tuart Briscoe .............................. ........................................................ .............. 5Prefcio Segunda Edio............................................................................................................................ 9

    1. O P r in c p io ....................................................................................................................................... 152. Pescadores de H o m en s ...............................................................................................................2 53. M ateus, o P ub licano ......................................................................................................... .........334. Os D o ze ..............................................................................................................................................455. Ouvindo e V en d o ...........................................................................................................................576. Lies sobre a O rao ..................................................................................................................697. Lies sobre a Liberdade Religiosa; ou A Natureza da Verdadeira Santidade ...8 7

    Seo I. O Jejum....................................................................................................................87II. Ablues R itu a is .................................................................................................96III. A Observncia do Sbado........................................................................... 106

    8. Primeiras Tentativas de Evangelizao............................................................ .............. 119Seo I. A M isso .............................................................................................................. 119

    II. As Instrues.....................................................................................................1299. A Crise da G a lil ia ..................... ........................... ....................................................... ..........141

    Seo I. O M ilagre ............................................................................................................ 141II. A Tempestade.................................................................................................... 149III. O Sermo..........................................................................................................156IV A Escolha Peneirando .......................................................................... 165

    10. O Fermento dos Fariseus e dos Saduceus........................... ........... ............................. 17911. A Confisso de Pedro; ou A O pinio Corrente e a Verdade E terna......... . 18712. A Prim eira L io sobre a C ru z ............................................................................................197

    Seo I. O Primeiro Anncio da Morte de Cristo................................................. 197II. Tomar a sua Cruz, a Lei do Discipulado............................................... 205

    13. A T ransfigurao ........................................................... ...........................................................21314. Treinando o Temperamento; ou Discurso sobre a H um ildade .............. .........223

    Seo I. Como uma Criancinha....................................................................................223II. A Disciplina da Igreja.................................................................................... 2 3 1III. Perdoando as Ofensas..................................................................................239IV O Imposto do Templo: Uma Ilustrao do Sermo.......................... 246V A Interdio do Homem que Expulsava Demnios: Outra Ilustraodo Sermo................ ...............................................................................................253

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    515 . Os Filhos do T rovo .......................................................... ................................................2 6 516. N a Peria; ou A D outrina do A u to -Sacrifc io ....... ...................................................275

    Seo I. Conselhos de Perfeio....................................................................................2 75II. As Recompensas do Sacrifcio Pessoal..................................................... 287III. Os Primeiros que se Tornaro os ltimos e os ltimos que se Tornaro os Primeiros......................................................................................................296

    17. Os Filhos de Zebedeu de Novo; ou Segunda Lio sobre a Doutrina da Cruz .. 30918. A Uno em Betnia; ou A Terceira Lio da D outrina da C r u z .......................32519. As Prim cias dos G entios........................................................................................... . 34720 . Jerusalm, Jerusalm ! ou O Discurso sobre as U ltim as C o isas .....................3572 1 . O M estre Servindo; ou U m a O utra Lio de H u m ild ad e ................................... 373

    Seo I. A Cerimnia de Lavar os Ps.......................................................................... 373II. A Explicao...................................................................................................... 381

    22 . Em M em ria; ou A Q uarta Lio sobre a D outrina da C ru z ............................ 38923 . Judas Iscario tes............. ............................ ...................... ...... .................................................. 40124 . O Pai que M orre e seus F ilh in h o s................................................................................... 4 1 1

    Seo I. Palavras de Conforto e Conselho para os Filhos Entristecidos........4 1 1II. As Perguntas dos Filhos e a Despedida....................................................420

    25 . Orientaes aos Futuros Apstolos antes da M orte do S en h o r ............. . 443Seo I. A Videira e seus R am os....................................................................................443

    II. Tribulaes Apostlicas e Encorajamento................................................455III. O Breve Perodo e o Final do D iscurso..................................................467

    2 6 . A Orao In te rcess ria ............................... ......................................................................... 481Apndice dos Captulos 2 4 26 ............................................................ ..................... . 4 9 4

    27 . As Ovelhas D ispersas................................................................... ..........................................4 9 7Seo I. Todos os Discpulos, Deixando-o, Fugiram ............. ...........................497

    II. Peneirados como o Trigo .............................................................................. 504III. Pedro e Joo......................................................................................................514

    28 . O Pastor R essuscitado ....................................................................................................... 523Seo I. Uma Notcia Boa demais para Ser Verdade....................................................... ............. 523

    II. Os Olhos dos Discpulos So Abertos..................................................... 5 3 1III. A Dvida de Tom.........................................................................................540

    29 . Os Co-pastores So A dvertidos........ ............................................................................... 551Seo I. Dever Pastoral...................................................................................................... 551

    II. Pastor Pastorum...................................................................................... . 56030 . Poder do A lto ......................................... ...... .................... ............................................... . 56931 . Esperando...................................... ........................................................................... ..................575

  • 10 Princpio

    Joo 1.29 -5 1

    trecho do Evangelho de Joo indicado acima possui um interesse mpar para o conhecimento da gnese de algumas coisas que vieram a alcanar a grandeza. Aqui nos mostrado a Igreja ainda em seu bero, as fontes singelas do Rio da Vida, o desabrochar da f crist, a origem humilde do poderoso Imprio de Jesus Cristo.

    Todo incio mais ou menos obscuro em relao sua aparncia, mas nenhum foi to obscuro quanto o cristianismo. Que evento insignificante na histria da igreja, para no dizer do mundo, foi esse primeiro encontro de Jesus de Nazar com os cinco homens humildes, Andr, Pedro, Filipe, Natanael, e outro cujo nome no mencionado! Na realidade, parece um tanto trivial que esse evento encontre um lugar at mesmo nas narrativas dos Evangelhos. No se trata aqui de nenhum chamado solene funo do apostolado, ou mesmo do incio de um apostolado ininterrupto, mas no mximo do incio de um conhecimento da f em Jesus por parte de certos indivduos que subseqentemente se tornaram assistentes constantes de sua pessoa, e finalmente apstolos de suas Boas Novas. Assim, no encontramos nos trs primeiros evangelhos nenhuma meno dos eventos aqui registrados.

    Longe de se surpreender com o silncio dos evangelistas sinpticos, algum pode sentir-se tentado a questionar o fato de Joo, o autor do quarto evangelho, depois de um intervalo de tempo to grande, ter pensado que valeria a pena relatar incidentes to minuciosos, especialmente em relao proximidade das sentenas sublimes com as quais seu Evangelho comea. Mas somos afastados de tais dvidas incrdulas atravs

  • 16 0 Treinamento dos Doze

    da reflexo de que fatos objetivamente insignificantes podem ser muito importantes para os sentimentos daqueles a quem so pessoalmente dirigidos. E se Joo fosse um dos cinco homens presentes na ocasio em que conheceram Jesus? Haveria ento uma grande diferena entre ele e os outros evangelistas, que poderiam saber dos incidentes aqui relatados, se realmente tivessem conhecimento dos mesmos, somente por intermedirios. No suposto caso, no de se estranhar que Joo, em seus ltimos momentos, tenha se lembrado com emoo da primeira vez que viu o verbo encarnado, e considerado as lembranas mnimas daquele momento de preciosidade mpar. Os primeiros encontros so sagrados, assim como os ltimos, especialmente quando so seguidos de uma histria significativa, e acompanhados, como apropriado ao caso, com pressgios profticos do futuro1. Tais pressgios no estavam ligados ao primeiro encontro de Jesus com os cinco discpulos. No foi Joo Batista quem primeiro deu a Jesus o nome de Cordeiro de Deus, descrevendo to precisamente sua misso e destino na terra? No foi a pergunta duvidosa de Natanael: Pode vir alguma coisa boa de Nazar? um pressgio indicando um conflito e a descrena que aguardavam o Messias? E que bom pressgio aquele da chegada de uma nova era de milagres a serem realizados atravs da graa divina e do poder contidos na promessa de Jesus aos israelitas, embora a princpio duvidosos: Daqui em diante, vereis o cu aberto e os anjos de Deus subirem e descerem sobre o Filho do Homem!

    Pode ser considerado como certo que Joo, o escritor do quarto Evangelho, realmente tenha sido o quinto discpulo cujo nome no foi mencionado. Este o seu estilo, ao longo de seu Evangelho: quando se referia a si prprio, usava perfrases, ou deixava em branco, como aqui, o lugar onde deveria constar o seu nome. Dos discpulos que ouviram Joo Batista chamar Jesus de Cordeiro de Deus, provavelmente um fosse o prprio evangelista, e o outro fosse Andr, irmo de Simo Pedro2.

    As impresses produzidas em nossas mentes por essas pequenas passagens da infncia do Evangelho devem ser pequenas, quando comparadas s emoes despertadas pela memria delas no peito do velho apstolo, por quem foram registradas. De qualquer modo, no seria possvel creditar nem nossa inteligncia, nem nossa piedade um exa-

  • 0 Princpio 17

    me dessa pgina da histria evanglica, inalterada, como se fosse totalmente destituda de interesse. Devemos nos dirigir ao estudo dessa simples histria com um pouco do sentimento com que os homens fazem peregrinaes a locais sagrados; por que de fato o solo sagrado.

    O cenrio das ocorrncias sobre o qual estamos falando a regio da Peria, nas margens do Jordo, na regio mais baixa do seu curso. As pessoas que aparecem em cena eram todas nativas da Galilia, e sua presena aqui deve-se fama do notvel homem, cujo ofcio era ser o precursor de Cristo. Joo, chamado de Batista, que havia passado sua juventude no deserto como um ermito, vivendo de mel silvestre e gafanhotos, vestido com plos de camelo, saiu de seu retiro, e apareceu diante dos homens como um profeta de Deus. O contedo de sua profecia era: Arrependei-vos, porque chegado o Reino dos cus. Em um curto perodo de tempo, muitos foram atrados de todos os cantos para v-lo e ouv-lo. Daqueles que se reuniam para ouvir sua pregao, um grande nmero se foi da mesma forma como tinha vindo; mas no eram poucos os que estavam profundamente impressionados e, confessando os seus pecados, submetiam-se ao batismo nas guas do Jordo. Daqueles que foram batizados, um nmero seleto formou um crculo de discpulos ao redor da pessoa de Joo Batista, dentre os quais pelo menos dois, e provavelmente todos os cinco homens mencionados pelo evangelista. A converso anterior por intermdio de Joo Batista despertou nesses discpulos um desejo de ver Jesus, e os preparou para crer nele. Em sua comunicao com as pessoas ao seu redor, Joo freqentemente fazia aluses "Aquele que viria depois dele. Ele falou da vinda dessa pessoa em uma linguagem peculiar, de modo a despertar grandes expectativas. Ele se referiu a si prprio em relao ao que estava por vir, como sendo uma mera voz no deserto, clamando: Preparai o caminho do Senhor. Em uma outra ocasio ele disse: E eu, em verdade, vos batizo com gua, para o arrependimento; mas aquele que vem aps mim mais poderoso do que eu; no sou digno de levar as suas sandlias; ele vos batizar com o Esprito Santo e com fogo. Esse grandioso homem no era outro seno o Messias, o Filho de Deus, o Rei de Israel.

    Tais discursos, por parte do homem de Deus que os proferiu, provavelmente teriam como resultado o fato de os discpulos de Joo Batista

  • 18 O Treinamento dos Doze

    deixarem-no para seguir Jesus. E aqui vemos, na verdade, o incio do processo de transio. No afirmamos que as pessoas aqui mencionadas tenham se privado da companhia de Joo Batista na ocasio para se tornarem, a partir de ento, seguidores regulares de Jesus. Mas aqui tem incio um conhecimento que no final levar esses homens a seguirem ao Senhor. A noiva apresentada ao noivo, e o casamento se dar na devida estao; no para o pesar, mas para a alegria do amigo do Noivo3.

    Com que facilidade e simplicidade a noiva mstica, representada pelos cinco discpulos, se familiarizou com o Noivo! A importncia desse encontro idlica pela simplicidade, e somente seria danificada por um comentrio. No h necessidade de uma apresentao formal: todos se apresentam uns aos outros. Nem mesmo Joo e Andr foram formalmente apresentados a Jesus por Joo Batista; eles mesmos se apresentaram. A exclamao do profeta do deserto ao ver Jesus: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo! repetida de uma forma abreviada no dia seguinte, foi uma elocuo involuntria de algum absorto em seus prprios pensamentos, e no o discurso deliberado de algum que estava orientando seus discpulos a deixarem-no e a seguirem Aquele de quem ele falava. Os dois discpulos, por outro lado, em sua partida rumo quele cuja presena havia sido to largamente anunciada, no estavam obedecendo ordem dada por seu velho mestre; estavam simplesmente seguindo a ordem dos sentimentos que foram despertados dentro deles por tudo o que o ouviram dizer a respeito de Jesus, tanto no presente como em outras ocasies. Eles no precisavam de uma injuno para buscar o conhecimento daquele por quem se sentiam to profundamente interessados: tudo o que precisavam saber era que esse era Ele. Estavam ansiosos para ver o Rei Messinico da mesma forma que o mundo est ansioso para ver a face de um prncipe secular.

    E natural que devamos examinar cuidadosamente a narrativa dos Evangelhos para encontrar indicaes referentes queles que, no modo to singularmente descrito, viram Jesus pela primeira vez. Pouco tem sido dito sobre os cinco discpulos, mas esse pouco suficiente para demonstrar que eram todos homens piedosos. O que encontraram em seu novo amigo indica o que queriam encontrar. Evidentemente, eles pertenciam a um grupo seleto que esperava pela consolao de Israel, e

  • 0 Princpio 19

    procuravam avidamente por Aquele que cumpriria as promessas de Deus e as expectativas de todas as almas devotas. Alm dessa indicao geral do carter contido em sua confisso comum de f, alguns poucos fatos so relatados a respeito desses primeiros crentes em Jesus que nos levam a saber mais sobre eles. Provavelmente todos tenham sido discpulos de Joo Batista (dois deles com certeza foram). Este fato decisivo em relao sua seriedade moral. De tal regio ningum, alm dos homens que eram espiritualmente sinceros, poderia possivelmente surgir. Se todos os seguidores de Joo fossem de alguma forma como ele, seriam homens famintos e sedentos pela verdadeira justia, fartos dos justos populares de ento. Disseram amm em seus coraes exposio do pregador dos desertos, sobre o vazio existente na profisso religiosa e da inutilidade das obras de ento, e suspiravam por uma santidade que estava alm da superstio farisaica e da ostentao; suas conscincias reconheciam a verdade do orculo proftico: Todos ns somos como o imundo, e todas as nossas justias, como trapo da imundcia; e todos ns camos corno a folha, e as nossas culpas, como um vento, nos arrebatam; e eles oravam fervorosamente pela revivificao da verdadeira religio, pela vinda do reino divino, pelo advento do Rei Messinico com a p em sua mo para separar o joio do trigo, e para corrigir todas as coisas que estivessem erradas. Tais, sem dvida, eram os sentimentos daqueles que tiveram a honra de ser os primeiros discpulos de Cristo.

    Simo, o mais conhecido dos doze, sob o nome de Pedro, nos apresentado aqui por meio do critrio proftico de Jesus, pelo lado bom de seu carter, como um homem de pedra. Quando este discpulo foi trazido por seu irmo Andr presena de seu futuro Mestre, olhando Jesus para ele, disse: Tu s Simo, filho de Jonas; tu sers chamado Cefas Cefas em aramaico significa, como o evangelista explicou, o mesmo que Petros em grego. O olhar penetrante de Cristo discerniu nesse discpulo a capacidade latente de f e devoo, os rudimentos da fora mxima e poder.

    O evangelista no nos diz diretamente que tipo de homem era Filipe, mas apenas de onde ele veio. Pela passagem presente, e pelas outras observaes contidas nos Evangelhos, a concluso que ele era caracte- risticamente deliberado, lento para tomar uma deciso; e para provar tal

  • 20 O Treinamento dos Doze

    ponto de vista, foi feita uma referncia circunstncia flegmtica4 com a qual ele descreveu a Natanael quem era Aquele que havia acabado de conhecer5. Mas estas palavras de Filipe, e tudo o que lemos em outros lugares sobre ele, nos sugerem a idia de um inquiridor sincero buscando a verdade, que havia realmente pesquisado as Escrituras, e se tornado conhecedor do Messias da promessa e da profecia, e a quem o conhecimento de Deus era summum bonum. Na solicitude manifestada por esse discpulo para cativar seu amigo Natanael mesma f, reconhecemos um esprito generoso e solidrio, caracterstico dos inquiridores sinceros, que posteriormente se revelou quando se tornou o portador do pedido dos gregos devotos que queriam ver Jesus6.

    As observaes relacionadas a Natanael, conhecido de Filipe, so mais detalhadas e mais interessantes do que no caso de qualquer um dos outros cinco discpulos; e no de causar surpresa o fato de que deveramos vir a saber mais sobre algum de quem, de outra maneira, no conheceramos quase nada. No absolutamente certo afirmar que ele tenha pertencido ao crculo dos doze, embora exista a probabilidade de que ele seja identificado como Bartolomeu nos sinpticos seu nome completo seria Bartolomeu, filho deTolmai. Por causa desta suposio que o nome Bartolomeu vem imediatamente aps o de Filipe na lista dos apstolos7. Sendo assim, sabemos que Natanael era um homem de grande excelncia moral. Assim que Jesus o viu, exclamou: Eis aqui um verdadeiro israelita, em quem no h dolo! As palavras sugerem a idia de algum puro de corao; em quem no havia inconstncia, motivos impuros, orgulho, ou paixes profanas: um homem brando, de esprito pensativo, em cuja mente o cu era refletido como o cu azul em um lago de guas tranqilas em um dia calmo de vero. Ele era um homem afeioado aos hbitos da devoo: ele estava entregue a exerccios espirituais debaixo da copa de uma figueira pouco antes de conhecer a Jesus. Chegamos a esta concluso a partir da profunda impresso causada em sua mente pelas palavras de Jesus: Antes que Filipe te chamasse, te vi eu estando tu debaixo da figueira. Natanael parece ter compreendido estas palavras da seguinte maneira: Eu vi teu corao e sei com que estavas ocupado. Por esta razo declarei que s de fato um verdadeiro israelita. Natanael aceitou a declarao feita por Jesus como uma evidncia de

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    conhecimento sobrenatural, e ento sem demora fez a seguinte confisso: Rabi, tu s o Filho de Deus, tu s o Rei de Israel o Rei daquele reino sagrado de onde dizes que sou cidado.

    E notvel que esse homem, to dotado das disposies morais necessrias para ver a Deus, fosse o nico de todos os cinco discpulos que tenha manifestado alguma hesitao em relao a receber Jesus como o Cristo. Quando Filipe lhe falou que havia encontrado o Messias em Jesus de Nazar, ele perguntou com incredulidade: Pode vir alguma coisa boa de Nazar? E difcil imaginar tanto preconceito em algum to brando e amvel; porm, quanto sua reflexo, percebemos ser um tanto caracterstica. O preconceito de Natanael contra Nazar no se originava de orgulho, como no caso das pessoas da Judia, que desprezavam os galileus em geral, mas da humildade. Ele prprio era galileu, e um objeto de desprezo dos judeus tanto quanto os nazarenos. Seu pensamento ntimo era: Certamente o Messias nunca poderia vir de um pobre povo desprezado como o nosso de Nazar ou de qualquer outra cidade ou vila da galilia!8. Natanael timidamente permitiu que sua mente fosse influenciada pela opinio geral, o que originou sentimentos com os quais ele no simpatizava; uma falha comum nos homens cuja piedade, embora pura e sincera, tm uma elevada considerao pela autoridade humana, e naqueles que se tornam escravos de sentimentos absolutamente indignos de sua qualidade moral.

    Embora Natanael no estivesse livre de preconceitos, mostrou sinceridade ao se dispor a desprender-se deles. Ele veio e viu. Esta abertura convico a marca da integridade moral. A sinceridade que o homem no dogmatiza, mas investiga, e que, ao final, se mostra a contento. O homem propenso ao mal, que tem o corao desonesto, ao contrrio, no vem e v. Considerando seu interesse de permanecer em seu estado presente, ele cautelosamente evita olhar para qualquer coisa que no seja para confirmar suas concluses anteriores. Natanael poderia, de fato, professar um desejo de questionar como certos israelitas a respeito dos quais lemos neste mesmo Evangelho um tipo de carter diferente do seu, mas compartilhando com esses homens o preconceito contra a Galilia. Examina e vers, diziam esses israelitas, em resposta pergunta ingnua do honesto e tmido Nicodemos: Porventura, condena a

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    nossa lei um homem sem primeiro o ouvir e ter conhecimento do que faz? Examina e vers, disseram eles, apelando observao e atraindo a dvida; porm acrescentaram: Da Galilia nenhum profeta surgiu9 uma expresso que proibia a realizao do questionamento e sugeria que isso era desnecessrio. Procure e veja; mas nos dizemos antecipadamente que voc no poder chegar a nenhuma outra concluso alm da nossa; e ainda o alertamos, melhor que no o faa.

    Assim era o carter dos dois primeiros homens que creram em Jesus. Qual era, ento, o tamanho e o valor de sua f? primeira vista, a f dos cinco discpulos, ignorando o relato da hesitao de Natanael, parece naturalmente repentina e madura. Eles creram em Jesus rapidamente e expressaram a sua f em termos que pareciam apropriados apenas ao conhecimento cristo avanado. Na presente seo do Evangelho de Joo, vemos Jesus ser chamado, no apenas de Cristo, o Messias, o Rei de Israel, mas de Filho de Deus e de Cordeiro de Deus nomes que para ns expressam as principais doutrinas do cristianismo, a encarnao e a expiao.

    A rapidez e a maturidade que pareciam caracterizar a f dos cinco discpulos eram apenas uma aparncia superficial. Como j foi dito anteriormente, estes homens acreditavam que o Messias viria em breve, e esejavam muito que tosse naquele momento, porque sentiam que Ele era imensamente necessrio. Eles eram homens que esperavam pela consolao de Israel, e estavam preparados para testemunhar o advento do Consolador a qualquer momento. Ento Joo Batista disse-lhes que Cristo havia chegado, e que era a pessoa a quem ele havia batizado, e cujo batismo havia sido acompanhado por notveis sinais vindos do cu; e eles criam implicitamente naquilo que Joo Batista lhes havia dito. Finalmente, a impresso produzida neles quando conheceram a Jesus, confirmava o testemunho de Joo, pois todo o conjunto era digno de Cristo.

    A aparncia da maturidade da f dos cinco irmos era igualmente superficial. O nome Cordeiro de Deus foi dado a Jesus por Joo, no por eles. O prncipe dentre os pregadores do arrependimento havia aprendido que o Senhor Jesus era o Cordeiro de Deus por meio da reflexo, ou por uma revelao especial. Ele mesmo compreendia apenas vagamente o que esse nome significava. Sua repetio mostrava que ele era

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    um aprendiz que estava se esforando para entender a sua lio; mas sabemos que aquilo que Joo compreendia somente em parte, tambm no foi totalmente compreendido pelos homens apresentados a Jesus, naquele momento, e por muito tempo10.

    O ttulo Filho de Deus foi dado a Jesus por um dos cinco discpulos assim como por Joo Batista, um ttulo que at mesmo os apstolos anos mais tarde consideraram suficiente para expressar a sua credulidade madura em relao pessoa do seu Senhor. Mas no lhes ocorreu que o nome usado por eles no incio teria o mesmo significado no final. Era um nome que poderia ser usado em um sentido muito alm do que capaz de transmitir, e que foi transmitido na pregao apostlica meramente como um dos ttulos do Antigo Testamento para o Messias, um sinnimo de Cristo. Sem dvida foi neste sentido rudimentar que Natanael aplicou essa designao a Cristo, a quem tambm chamou de Rei de Israel.

    A f desses irmos estava, portanto, de acordo com aquela que devemos esperardos iniciantes. Em essncia, eles reconheceram em Jesus o divino Profeta, o Rei, o Filho da profecia do Antigo Testamento. E seu valor no repousa em sua maturidade ou preciso, mas nisto: que mesmo sendo imperfeita, a f que possuam os aproximou, os colocou em contato e ntima comunho com o Senhor, na companhia de quem veriam coisas ainda maiores do que quando creram no incio; uma verdade aps outra, assumindo o seu lugar no firmamento de suas mentes, como as estrelas aparecendo no cu vespertino medida que a luz se desvanece.

    1 Omina principiis inesse solent. OVID. Fast. i. 1782 v. 413 Joo 3.294 Luthardt, Das Johan. Evang. i. 1025 v. 456 Joo 12.22.7 Ewald enfatiza este argumento como prova da identidade dos dois, na obra Geschichte Christus, p. 327. Em Atos

    1.13, Tom est entre Felipe e Bartolomeu.8 Stanley pensa que Natanael teve a inteno de separar Nazar do resto da Galilia como um local de m

    reputao. Neste caso o argumento seria fortiori: Pode algo bom vir da Galilia, e especialmente de Nazar, mesmo sendo um local to infame? Sinai and Palestine, p. 366.

    9 Joo 7.52. Na verso moderna (N TLH ) l-se: Estude as Escrituras Sagradas e ver que da Galilia nunca surgiu nenhum profeta.

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    10 O uso de tal ttulo por Joo em um perodo to precoce certamente surpreendente. E no mais surpreendente encontrar tal passagem no captulo 53 de Isaas, em qualquer interpretao do mesmo ou em qualquer livro do Antigo Testamento? E estando l, porque nos maravilharmos de que este ttulo estivesse nos lbios de Joo? No pocjemos afirmar nem sugerir que Joo compreendesse toda a profundidade de suas palavras. Por que a afirmao no seria to misteriosa para ele como, de acordo com o apstolo Pedro, as afirmaes semelhantes o eram para profetas mais antigos?

  • Pescadores de HomensMateus 4 .18 -22 ; Marcos 1 .16-20; Lucas 5 .I-II

    O s doze haviam chegado ao relacionamento ntimo com Jesus por etapas; trs etapas na histria de sua comunho com Ele so identificveis. Na primeira etapa eles simplesmente criam nele como sendo o Cristo, e sendo seus companheiros mais prximos, particularmente em eventuais ocasies festivas. Desta fase inicial do relacionamento dos discpulos com seu Mestre, temos algumas lembranas nos primeiros quatro captulos do Evangelho segundo Jcso^ . que narra como alguns deles inicialmente conheceram Jesus, e o acompanharam nas bodas de Can1, na Pscoa em Jersalm2, em uma visita ao local onde Joo Batista estava ministrando3, e na jornada de retorno do sul para a Galilia, passando por Samaria4.

    Na segunda etapa, a comunho com Cristo assumiu a forma de uma presena ininterrupta de sua pessoa, em tempo integral ou, ao menos, o abandono das ocupaes seculares habituais5. As narrativas presentes nos mostram alguns discpulos entrando nesta segunda fase do discipulado. Das quatro pessoas aqui mencionadas, reconhecemos trs: Pedro, Andr e Joo, como antigos conhecidos, que j haviam passado pela primeira fase do discipulado. De um deles, Tiago, o irmo de Joo, tomamos conhecimento pela primeira vez; um fato que sugere a observao de que em alguns casos, a primeira e a segunda fase podem ter ocorrido simultaneamente profisses de f em Jesus como o Cristo sendo imediatamente seguidas pela renncia das atividades seculares com o propsito de se unir sua companhia. Tais casos, de qualquer modo, eram provavelmente excepcionais e raros.

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    Os doze entraram no estgio final e mais elevado do discipulado quando foram escolhidos por seu Mestre dentre toda a multido de seus seguidores, e formaram um grupo seleto, a ser treinado para a grande obra do apostolado. Este importante evento provavelmente no ocorreu at que todos os membros do crculo apostlico tivessem convivido por algum tempo com Jesus.

    A partir dos registros dos Evangelhos parece que Jesus comeou logo no incio de seu ministrio a reunir em torno de si um grupo de discpulos, com a inteno de preparar uma representao para a continuao do trabalho do reino divino. Os dois pares de irmos foram chamados no incio do primeiro ministrio galileu, no qual o primeiro ato foi a seleo de Cafarnaum, ao lado do mar, como o centro das operaes e o lugar comum de residncia6. E quando pensamos na chamada que receberam, percebemos que esta no poderia ter vindo cedo demais. Os doze deveriam ser testemunhas de Cristo no mundo aps a sua partida; era o dever peculiar deles transmitir ao mundo um relato fiel das palavras e atos do Mestre, uma imagem justa do seu carter, e um reflexo verdadeiro do seu esprito7. Este servio obviamente s poderia ser realizado por aqueles que tivessem sido, tanto quanto possvel, testemunhas oculares e servos do Verbo Encarnado desde o incio. Como exceto nos casos de Pedro, Tiago, Joo, Andr e Mateus, no h meno no Evangelho em relao ao chamado de homens que posteriormente se tornaram apstolos, devemos assumir que todos os chamados ocorreram no primeiro ano do ministrio pblico do Salvador.

    Estes chamados foram feitos com referncia consciente a um final distante, o prprio apostolado, ficando evidente a partir dos termos notveis atravs dos quais foram expressos. Vinde aps mim, disse Jesus ao pescador de Betsaida, e eu vos farei pescadores de homens. Estas palavras (cuja originalidade as identifica como uma declarao de Jesus) mostram o grande fundador da f, desejando no somente ter discpulos, mas ter consigo homens que pudesse treinar para fazer outros discpulos: para lanar a rede da verdade divina ao mar do mundo, e para aportar nas margens do reino divino uma grande multido de almas crentes. Tanto de suas palavras como de seus atos, podemos ver que Ele dava suma importncia a esta parte de seu trabalho, que consistia no

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    treinamento dos doze. Na orao intercessria8 por exemplo, Ele fala do treinamento que havia concedido a estes homens nos dando a idia de que esta fosse a parte principal de seu prprio ministrio terreno. E, de certo modo, o foi. O cuidadoso e esmerado ensino dos discpulos assegurou que a influncia do professor no mundo deveria ser permanente; que seu reino deveria ser fundado sobre a rocha da profunda convico indestrutvel na mente de poucos, no na areia movedia das impresses superficiais imperceptveis na mente de muitos. Em relao a tal reino, nosso Senhor nos ensinou em uma de suas parbolas a trabalhar9 como aquele que introduz no mundo uma semente que lanada ao solo e que dever crescer de acordo com as leis naturais. Mas para os doze havia o risco da doutrina, das obras e da lembrana de Jesus perecerem na mente humana, no restando seno uma vaga tradio mtica, sem valor histrico e de pouca influncia prtica.

    Aqueles de quem essa obra tanto dependia possuam, claramente, qualificaes extraordinrias. Os espelhos devem ser completamente polidos pois estavam destinados a refletir a imagem de Cristo! Os apstolos da mensagem crist deveriam ser homens de rara capacitao espiritual. Trata-se de uma religio universal, direcionada a todas as naes; portanto, seus'apstolos deveriam ser livres da mesquinhez judaica e ter sentimentos to amplos quanto o mundo. Trata-se de uma religio espiritual, h muito destinada a tornar antiquado o cerimonialismo judaico; e assim, seus apstolos deveriam ser emancipados, em sua conscincia, em relao ao jugo das ordenanas10. Trata-se de uma religio que deve proclamar a cruz. A cruz, dantes um instrumento da crueldade e uma insgnia da infmia, agora se torna a esperana da redeno do mundo e o smbolo de tudo o que nobre e herico em conduta. Portanto, seus arautos deveriam ser superiores a todos os conceitos convencionais de dignidade humana e estarem altura da dignidade divina, sendo capazes de se gloriar na cruz de Cristo, e estarem dispostos a carregar, eles prprios, a cruz. Em suma, o carter apostlico deveria combinar a liberdade de conscincia, a amplitude de corao, a iluminao da mente e todas as qualidades no grau superlativo.

    Os humildes pescadores da Galilia tinham muito a aprender antes de corresponderem satisfatoriamente a essas elevadas exigncias; porm

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    o tempo do seu aprendizado para o desempenho do trabalho apostlico, mesmo contando desde o incio do ministrio de Cristo, parece muito curto. Eles eram homens devotos, que j haviam mostrado a sinceridade de sua piedade ao renunciar a tudo pela causa de seu Mestre. Mas na ocasio de seu chamado, eles eram excessivamente ignorantes, de mentes limitadas, supersticiosos, cheios de preconceitos judaicos, concepes errneas, e animosidades. Tinham muito a mudar em relao ao que era mau, assim como tinham muito a aprender sobre o que era bom. Eram lentos tanto para aprender quanto para desaprender o que era inconveniente. Velhas crenas j incutidas em suas mentes fizeram da comunicao das novas idias religiosas uma tarefa difcil. Homens de corao bom e honesto, o solo de sua natureza espiritual era adequado para produzir uma colheita abundante; mas era duro, e precisava ser muito arado antes de produzir frutos. Ento, mais uma vez, demonstravam ser homens pobres, de origem humilde, de posio inferior, com ocupaes simples, que nunca haviam sentido a influncia de uma educao liberal ou de um relacionamento social com pessoas cultas11.

    A medida que prosseguimos com os estudos relativos ao assunto em questo, podemos observar as evidncias abundantes da condio de imaturidade espiritual dos doze, mesmo muito'tempo depois do perodo em que foram chamados para seguir Jesus. Neste processo, podemos vir a descobrir indicaes significativas da imaturidade religiosa de pelo menos um dos discpulos Simo, o filho de Jonas na narrativa de Lucas quanto aos incidentes relacionados ao seu chamado. Pressionado por uma multido que se reuniu margem do lago para ouvi-lo pregar, Jesus entrou em um barco (um dos dois mais prximos), que era de Simo e pediu-lhe que o afastasse um pouco da margem; sentou-se e, do barco, ensinava as pessoas. Quando terminou de falar, Jesus disse ao dono do barco: faze-te ao mar alto, e lanai as vossas redes para pescar. Seus esforos anteriores de pesca foram em vo; mas Simo e seu irmo fizeram como Jesus havia ordenado, e foram recompensados com uma pesca extraordinria, que para eles e seus companheiros, Tiago e Joo, no era nada menos do que uma pesca milagrosa. Simo, o mais impressionvel e impulsivo dos quatro, expressou seu sentimento de espanto por meio de palavras e gestos caractersticos. Ele caiu aos ps de

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    Jesus dizendo: Senhor, ausenta-te de mim, por que sou um homem pecador!

    Esta exclamao abre uma janela para o seu lado interior aqui demonstrado; atravs dessa janela podemos ver o seu estado espiritual. Em tal ocasio, observamos em Pedro uma mistura de bem e mal, de graa e natureza, que com freqncia reaparece em seu carter na histria subseqente. Dentre os bons elementos que podem ser discernidos est o temor reverente na presena do poder divino, uma pronta lembrana do pecado que incomoda a conscincia, e uma sincera auto-humilhao em razo do benefcio imerecido. Valiosas caractersticas de carter; masexistiam em Pedro na forma de uma mistura. Junto com essas estavam associados temores supersticiosos do sobrenatural, e um escravizante medo de Deus. A presena do elemento anterior est implcita na exortao tranqilizadora dirigida por Jesus ao discpulo: No temas; de agora em diante, sers pescador de homens. O medo escravizante que Pedro sentia em relao a Deus manifestado por suas prprias palavras: Senhor, ausenta-te de mim. Muito impressionado com o conhecimento sobre-humano revelado na grande pesca, Pedro considera, por um momento, que Jesus um ser sobrenatural, e tal fato o leva a concluir que no segiro estar prximo dele, especialmente tratando-se de um pobre mortal, pecador. Este estado de conscincia mostra quo incapacitado era Pedro para ser um apstolo de um Evangelho que exalta a graa de Deus dirigida at mesmo aos maiores pecadores. Sua piedade, suficientemente forte e decidida, no era crist, era legal, quase, pode-se dizer, pag em esprito.

    Com todas as suas imperfeies, que eram tanto numerosas como grandes, esses humildes pescadores da Galilia tinham, no incio de sua carreira, uma grande virtude que os distinguia. Embora esta pudesse coexistir com muitos defeitos, a principal virtude da tica crist, e a precursora para se alcanar as maiores realizaes. Eles eram incentivados pela devoo a Jesus e pelo reino divino que os tornou capazes de quaisquer sacrifcios. Ao crerem naquele que os convidou a segui-lo com a finalidade de estabelecer o reino de Deus na terra, imediatamente deixaram as suas redes e se juntaram sua companhia, para serem, a partir de ento, seus companheiros em todas as suas jornadas. Isto foi

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    reconhecido pelo prprio Senhor Jesus Cristo como meritrio; e no podemos, sem cometer injustia, buscar menosprezar os motivos dos apstolos, relacionando-os ao cio, ao descontentamento ou ambio. A narrativa do Evangelho mostra que os quatro irmos no eram ociosos, e sim trabalhadores assduos, homens laboriosos. Nem.eram descontentes, porque no havia outro motivo para que o fossem. A famlia de Tiago e Joo parecia ter uma situao confortvel. Marcos relata que quando estes foram chamados por Jesus, eles deixaram seu pai Zebedeu no barco com os servos e o seguiram. Mas e a ambio, ela tinha lugar em meio aos seus motivos? Bem, devemos admitir que os doze, especialmente Tiago e Joo, no estavam livres do sentimento de ambio, como veremos a seguir. Mas qualquer que fosse a extenso da ambio que pode ter influenciado a conduta desses homens em um perodo posterior, no foi este o motivo que determinou que deixassem suas redes. A ambio precisa de uma tentao: ela no se une a uma causa obscura e relutante, cujo sucesso seja duvidoso; tem incio quando o sucesso aparentemente certo e quando o movimento que ela incentiva se d na vspera de sua glorificao. A causa de Jesus ainda no havia alcanado tal estgio.

    Somente uma acusao pode ser feita contra aqueles homens, e podem ser feitas com veracidade e sem causar dano algum sua memria. Eles eram entusiastas: seus coraes eram inflamados e, como o mundo descrente poderia dizer, suas idias estavam voltadas ao sonho de estabelecer o reino divino em Israel, com Jesus de Nazar como o seu rei. Este sonho os possua, e imperiosamente governava suas mentes e moldava seus destinos, compelindo-os, como Abrao, a deixarem suas famlias e seu pas, para seguir o que antes parecia ser um objetivo tolo. Que bom para o mundo que eles estavam possudos pela idia do reino! Porque seu objetivo no era tolo, ao deixarem suas redes para trs. O reino que buscavam se tornou to real quanto a terra de Cana, embora no fosse inteiramente do modo como o haviam imaginado. Os pescadores da Galilia se tornaram pescadores de homens em uma escala mais extensiva e, com a ajuda de Deus, reuniram, na igreja, muitas almas que deveriam ser salvas. Eles estavam lanando suas redes ao mar do mundo, e pelo seu testemunho a respeito de Jesus nos Evangelhos e nas Epstolas, leva

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    ram multides a se tornarem discpulos dele, dentre as quais tiveram a alegria de ser contados como os primeiros seguidores.

    Os quatro, e mais tarde os doze, renunciaram a tudo e seguiram ao seu Mestre. A palavra tudo inclua tambm a esposa e os filhos? Sim, em pelo menos um caso 110 caso de Pedro; os Evangelhos contam como a sogra de Pedro foi curada de uma febre pelo poder miraculoso de Cristo12. A partir de uma passagem na primeira epstola de Paulo igreja de Corinto, parece que Pedro no era o nico casado entre os apstolos13. Na mesma passagem observamos que tal renncia das esposas pela causa de Cristo no significava a desero literal. Pedro, como apstolo, levou sua esposa consigo, e Pedro, como discpulo, ao lado de Jesus, algumas vezes pode ter feito o mesmo. Provavelmente, os discpulos casados, assim como os soldados casados, tenham levado suas esposas consigo ou as deixado em casa, conforme as circunstncias permitiam ou exigiam. As mulheres, mesmo as casadas, s vezes seguiam a Jesus; e a esposa de Simo, ou de qualquer outro discpulo casado, pode ocasionalmente ter estado entre elas. Em um perodo avanado na histria, vemos a me de Tiago e Joo na companhia de Cristo e longe de casa; e onde havia mes, as esposas, se desejassem, tambm poderiam estar. A igreja, em seu 'estado inicial nmade ou itinerante, parece ter sido uma mistura de peregrinos, na qual havia todos os tipos de pessoas, de ambos os sexos, de vrias posies sociais e carter moral diverso, totalmente unidas, sendo o lao de unio um intenso apego a Jesus.

    Essa igreja itinerante no era uma sociedade regularmente organizada, da qual era necessrio ser um membro constante para ser considerado um verdadeiro discpulo. Exceto no caso dos doze, seguir a Jesus de um lugar para outro era opcional, no um ato compulsrio; e na maioria dos casos provavelmente era somente ocasional14. Era a conseqncia natural da f, cujo objeto, o centro do crculo, era o prprio Senhor Jesus em movimento. Os crentes espontaneamente desejavam ver o maior nmero possvel das obras de Cristo, e ouvir as suas palavras tanto quanto fosse possvel. Quando o objeto dessa f deixou a terra, e sua presena passou a ser espiritual, todas as ocasies para o discipulado itinerante foram encerradas. A partir de ento, para estar em sua presena, os homens devem apenas renunciar aos seus pecados.

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    1 Joo 2.12 Joo 2.13, 17, 223 Joo 3.224 Joo 4.1-27, 31 ,43-455 Um abandono completo no caso de Mateus, claro; no caso dos pescadores, no necessariamente.6 Mateus 4.137 No se assume aqui que os Evangelhos, como os temos, tenham sido escritos pelos apstolos. A declarao no

    texto implica apenas que o ensino dos apstolos, quer orais ou escritos, foram a fonte suprema das tradies registradas nos Evangelhos.

    8 Joo 17.69 Marcos 4.2610 E universal e espiritualmente admitido pela escola Tbingen que os atributos da religio de Jesus foram

    estabelecidos por Ele mesmo. Este um fato importante em relao s suas hipteses-conflitos.11 Ao longo deste trabalho dada grande proeminncia aos defeitos morais e espirituais dos doze. Mas deve

    mos protestar desde o incio contra a inferncia de que tais homens sejam permanentemente considerados desqualificados (exceto Judas) para a tarefa de serem apstolos da religio universal, a religio da humanidade. Tudo de bom pode ser esperado de homens que foram capazes de deixar tudo para seguir a Cristo. Onde quer que exista uma alma nobre, existir uma capacidade extremamente grande de crescimento.

    12 Mateus 8 .14; Marcos 1,29-31; Lucas 4.38, 3913 I Corntios 9.514 As palavras registradas em Lucas 22.28, ditas por Jesus aos seus discpulos na noite anterior sua morte: Vs

    sois os que tendes permanecido comigo nas minhas tentaes, tm sido utilizadas com a inteno de provar tanto a continuidade da companhia dos doze com Jesus quanto a data do seu incio. Este pronunciamento tem a inteno direta de transmitir o testemunho da fidelidade dos discpulos, mas indiretamente tambm d testemunho de outros pontos. Eles estiveram com o seu Mestre, se no como um corpo constitudo por doze pessoas, pelo menos como indivduos, desde o tempo em que Ele comeou a sofrer tentaes, o que ocorreu muito cedo, e estiveram com Ele ao longo de todas elas.

  • Mateus, o PublicanoMateus 9 .9-13; Marcos 2 .I5 -I7 ; Lucas 5.27-32

    O chamado de Mateus ilustra bem o carter proeminente da ao pblica de Jesus, e seu desprezo absoluto em relao ao mximo da sabedoria mundana. Um discpulo publicano, e muito mais um apstolo publicano, no deixaria de ser uma pedra de tropeo ao preconceito judeu e, na ocasio, uma fonte de fraqueza e no de fora. E mesmo estando perfeitamente ciente desse fato, Jesus convidou ao convvio ntimo do discipulado algum que havia procurado uma ocupao de cobrador de impostos, e que posteriormente foi selecionado para ser um dos doze. Seu procedimento nesse caso o mais notvel de todos quando comparado com o modo como Ele tratou outros que tinham aparentes vantagens que os recomendavam favoravelmente, e que haviam mostrado sua boa vontade de seguirem-no voluntariamente como discpulos. Observe, por exemplo o escriba que se apresentou e disse: Mestre, aonde quer que fores, eu te seguirei1. Esse homem, cuja posio social e capacidade profissional pareciam apont-lo como uma aquisio muito desejvel, no foi convidado pelo Mestre, que deliberadamente lhe mostrou o difcil panorama de sua prpria condio, dizendo: As raposas tm covis2, e as aves do cu tm ninhos, mas o Filho do Homem no tem onde reclinar a cabea.

    Os olhos de Jesus so nicos e tambm oniscientes. Ele olhava para o corao e tinha um respeito exclusivo pela aptido espiritual. Ele no tinha f alguma no discipulado baseado em equvocos e coisas mundanas; e, por outro lado, no tinha medo de obstculos vindos das conexes externas ou da histria passada dos crentes; pelo contrrio, Ele era

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    completamente indiferente aos antecedentes dos homens. Confiante no poder da verdade, escolheu as coisas bsicas do mundo ao invs das coisas favorveis, seguro de que venceriam no final. Ciente de que tanto Ele quanto os seus discpulos seriam desprezados e rejeitados pelos homens por algum tempo, seguiu seu caminho calmamente,, escolhendo como seus companheiros e auxiliares os que Ele quis, sem se preocupar com a contradio de sua gerao como algum que sabia que sua obra dizia respeito a todas as naes; em todas as pocas.

    O discpulo publicano possui dois nomes no relato do Evangelho. No primeiro Evangelho ele chamado de Mateus, enquanto no segundo e no terceiro chamado de Levi. Podemos considerar com certeza tratar-se da mesma pessoa3. Dificilmente seria concebvel que dois publicanos tivessem sido chamados para ser discpulos no mesmo lugar e ao mesmo tempo, e com as mesmas circunstncias envolvidas, e estas to notveis e precisamente similares. No deveramos nos surpreender pelo fato de a identidade no ter sido notificada, em razo dos dois nomes pertencentes mesma pessoa terem sjdo familiares aos primeiros leitores do Evangelho, o que tornaria tal informao suprflua.

    No improvvel que Levi tenha sido o nome desse discpulo antes de receber seu chamado, e que Mateus tenha sido seu nome como discpulo assim, o novo nome passou a ser um smbolo e uma lembrana da mais importante mudana ocorrida em seu corao e em sua vida. M udanas emblemticas de nomes ocorriam com freqncia no incio do Evangelho. Simo, o filho de Jonas, passou a se chamar Pedro; Saulo de Tarso passou a ser Paulo, e Jos, o Cipriota, recebeu dos apstolos o belo nome cristo Barnab (filho da consolao, ou profecia), por sua filantropia, magnanimidade, e sabedoria espiritual um nome bem merecido.

    Parece que Mateus desempenhava a funo de coletor de impostos na ocasio em que foi chamado em Cafarnaum, cidade que Jesus adotou como residncia. Foi enquanto Jesus estava em casa, em sua cidade4, como Cafarnaum passou a ser chamada, que o paraltico foi levado at Ele para ser curado; e em todos os Evangelhos5 constatamos que foi na sada de sua casa onde o milagre foi efetuado que Ele viu Mateus, e disse-lhe: Siga-me. A inferncia a ser feita a partir desses fatos simples, e tambm importante, para explicar a prontido do chamado e

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    a prontido com que foi respondido. Sendo Jesus e seus novos discpulos da mesma cidade, provavelmente tiveram oportunidades de se ver anteriormente.

    A data do chamado de Mateus no pode ser determinada com preciso, mas existe uma boa razo para coloc-la antes do Sermo da Montanha, sobre o qual o Evangelho segundo Mateus contm o relato mais completo. O fato por si s sustenta uma forte evidncia a favor dessa colocao cronolgica, porque tal narrativa to completa do Sermo no poderia se originar de algum que no o tivesse ouvido. Um exame do terceiro Evangelho converte a probabilidade em algo como certo. Lucas anexa sua abreviada narrativa do Sermo uma nota da constituio da sociedade apostlica e representa Jesus como descendo com eles6 os doze, cujos nomes ele havia acabado de citar cena onde o sermo foi proferido. E bvio que o ato da constituio deve ter sido precedido pelos atos separados do chamado, e pelo chamado de Mateus em particular, que relatado pelo terceiro evangelista em um trecho anterior ao seu Evangelho7. E verdade que a posio do chamado na narrativa de Lucas por si s no prova nada, j que Mateus relata o seu prprio chamado depois do Sermo. E assim, nenhum deles nem outros afirmam algum princpio cronolgico de organizao no relato dos fatos. Baseamos a nossa concluso na suposio de que quando algum dos evangelistas professa dando a ordem de seqncia, seu depoimento pode ser confivel; e na observao, Lucas manifestadamente emprega uma ordem cronolgica na organizao dos doze antecedendo o Sermo da Montanha. A organizao de Mateus no incio de seu Evangelho no obedece a uma cronologia; sua questo se concentra no seguinte princpio tpico: captulos 5 a 7, mostrar Jesus como um grande professor tico; captulos 8 e 9, como um operador de milagres; captulo 10, como um Mestre, escolhendo, instruindo, e ordenando uma misso evangelstica dos doze discpulos; captulo II , como um crtico dos seus contemporneos e preservador das suas prprias prerrogativas; captulo 12, como exposto s contradies da incredulidade; e captulo 13, ensinando as doutrinas do reino por meio de parbolas.

    Passando desses pontos subordinados ao chamado em si, observamos que as narrativas do evento so muito breves e fragmentadas. No

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    h nenhuma insinuao de algum conhecimento prvio que pudesse preparar Mateus para aceitar o convite que lhe fora feito por Jesus. No se deve concluir, de qualquer forma, que tal conhecimento no existisse, como podemos ver no caso dos quatro pescadores cujo chamado narrado com igual brevidade nos evangelhos sinpticos, enquanto sabemos a partir do Evangelho de Joo que pelo menos trs deles j conheciam Jesus. A verdade que, considerando ambos os chamados, os evangelistas se preocuparam somente com os momentos crticos, passando em silncio por todos os estgios preparatrios, e no considerando necessrio informar aos leitores inteligentes que, claro, nem os publicanos nem os outros discpulos seguiram cegamente quele a respeito de quem no sabiam nada, meramente por terem sido convocados a segui-lo. Um fato j averiguado que Mateus, na condio de publicano, residia em Cafarnaum torna absolutamente certo que ele conhecia Jesus antes de ser chamado. Nenhum homem poderia ter vivido em tal cidade naqueles dias sem ter ouvido falar das obras maravilhosas realizadas nela e em sua vizinhana. O cu havia sido aberto exatamente sobre Cafarnaum, aos olhos de todos, e os anjos subiam e desciam sobre o Filho do Homem. Leprosos foram limpos, os demnios dos possessos foram expulsos, os cegos voltaram a ver, e os homens paralticos puderam usar seus membros; uma mulher foi curada de uma doena crnica, e uma outra, filha de um cidado distinto Jairo, prncipe da sinagoga foi ressuscitada. Estas coisas eram feitas publicamente, causavam grande alarde e eram notveis. Os evangelistas relatam como as pessoas se admiraram, a ponto de perguntarem entre si, dizendo: Que isto? Que nova doutrina esta? Pois com autoridade ordena aos espritos imundos, e eles lhe obedecem!8, como glorificavam a Deus dizendo: Nunca tal vimos9 ou, Hoje, vimos prodgios10. O prprio Mateus concluiu sua narrativa da ressurreio da filha de Jairo com a seguinte observao: E espalhou-se aquela notcia por todo aquele pas11.

    No afirmamos que todos esses milagres foram realizados antes do chamado do publicano, mas alguns deles certamente o foram. Comparando um Evangelho com o outro, para determinar a seqncia histrica12, conclumos que a maior de todas essas obras maravilhosas, a ltima mencionada, embora narrada por Mateus depois de seu chamado, real

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    mente ocorreu antes disso. Pense, ento, no efeito poderoso que esse ato excelente teria na preparao do coletor de impostos para reconhecer, em uma palavra solenemente pronunciada: "Siga-me, a ordem daquele que era o Senhor tanto da morte como da vida, e se render ao seu convite, prontamente, obedecendo sem hesitao!

    Ao creditar a Mateus algum conhecimento prvio de Cristo, fazemos essa converso ao discipulado parecer razovel sem diminuir seu valor moral. No era natural que ele devesse se tornar um seguidor de Jesus meramente por ter ouvido, ou mesmo visto, suas obras maravilhosas. Os milagres por si s no poderiam fazer nenhum homem se tornar crente, porque se este fosse o caso, todas as pessoas de Cafarnaum teriam crido. Que fato diferente aprendemos a partir das reclamaes mais tarde feitas por Jesus em relao s cidades ao longo das margens do Lago de Genesar, onde a maior parte de suas obras poderosas foi feita, e de Cafarnaum em -particular. A respeito desta cidade, Ele disse com amargura: E tu, Cafarnaum, que te ergues at aos cus, sers abatida at aos infernos; porque, se em Sodoma tivessem sido feitos os prodgios que em ti se operaram, teria ela permanecido at hoje13. A queixa de Cristo contra os habitantes dessas cidades favorecidas era que elas no se arrependiam, ou seja, no permitiam que o Reino dos cus se tornasse o seu maior bem, assim como o motivo de sua vida. Questionavam o suficiente seus milagres, e falavam muito sobre eles. Corriam atrs dele para ver mais obras do mesmo tipo e ter uma nova sensao de estupefao. Porm depois de algum tempo, reincidiam em sua prpria estupidez e indiferena, e permaneciam moralmente como eram antes de sua presena entre eles, no se tornando filhos do reino, mas permanecendo ainda como filhos deste mundo.

    No foi assim com o coletor de impostos. Ele no vagava e falava simplesmente, mas se arrependeu. Se ele tinha mais do que se arrepender que seus vizinhos, no sabemos. E verdade que Mateus pertencia a uma classe de homens que, vistos atravs do preconceito popular comum, eram todos maus, e muitos eram realmente culpados de fraudes e extorses, mas ele pode ter sido uma exceo. Seu banquete de despedida mostra que ele possua recursos, mas no podemos presumir que estes tenham sido adquiridos de forma ilcita. Porm podemos dizer

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    com certeza que se o discpulo publicano era cobioso, agora o esprito da ganncia havia sido expulso; se alguma vez foi culpado de oprimir os pobres, agora abominava tal atitude. Ele havia se cansado de coletar impostos de uma populao relutante, e estava feliz por seguir algum que tinha vindo para carregar os fardos, e no para se apoiar neles, para perdoar as dvidas ao invs de cobr-las com rigor. E ento aconteceu que a voz de Jesus agiu em seu corao com muito vigor: E ele, deixando tudo, levantou-se e o seguiu.

    Esta importante deciso, de acordo com o relato de todos os evangelistas, foi feita logo aps o banquete na casa de Mateus, no qual Jesus estava presente14. A partir da narrativa de Lucas, podemos ver que essa festa tinha todas as caractersticas de uma grande ocasio, e que havia sido feita em homenagem a Jesus. A homenagem, contudo, no estava altura, pois os outros convidados eram peculiares. Chegaram muitos publicanos e pecadores e sentaram-se juntamente com Jesus e seus discpulos15; e em meio aos outros haviam alguns que eram estimados, em um grau superlativo, como pecadores16.

    Esse banquete era, como julgamos, no menos rico em importncia moral do que as iguarias servidas mesa. Para o prprio anfitrio era, sem dvida, um jubileu, um banquete comemorativo de sua emancipao do trabalho enfadonho, da sociedade incompatvel e do pecado ou, de um modo geral, da tentao de pecar, e o seu ingresso na livre e abenoada vida de comunho com Jesus. Era um tipo de poema, dizendo a Mateus o que as linhas familiares de Doddridge dizem a muitos outros, talvez no to bem:

    O dia feliz, quando fiz a minha escolha Por ti, meu Salvador e meu Deus!Que este corao ardente possa se regozijar,Contar sobre seu entusiasmo em todos os lugares!

    Est feita; a grande transao est feita:Eu sou do meu Senhor, e Ele meu;Ele me chamou, e eu o segui,Fascinado por confessar a voz divina.

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    O banquete tambm foi, como j mencionado, um ato de homenagem a Jesus. Mateus fez seu esplndido banquete em honra ao seu novo mestre, assim como Maria, de Betnia, derramou seu precioso ungento sobre os seus ps. E o meio de aqueles a quem muita graa mostrada manifestarem seu grato amor*em seus atos, exibindo o que um filsofo grego chamava de magnificncia17, e as pessoas mais simples chamam de extravagncia. Quem quer que tente criticar tais atos de devoo, deve se lembrar de que Jesus sempre os aceitou com prazer.

    O banquete do publicano parece ter tido o carter de uma festa de despedida para seus amigos publicanos. Dali em diante, Mateus e seus amigos seguiriam caminhos diferentes, e ele se separaria deles em paz.

    Mais uma vez podemos acreditar que Mateus fez o banquete com a inteno de apresentar Jesus aos seus amigos e vizinhos, procurando com o zelo caracterstico de um jovem discpulo induzir outros a tomar a mesma deciso que ele, ou pelo menos esperando que alguns pecadores presentes pudessem ser tirados do caminho do mal e levados ao caminho da justia. E por que no poderamos dizer que foi nessa reunio festiva, ou em alguma outra ocasio semelhante, que as impresses da graa haviam produzido o resultado final da comovente demonstrao de gratido inefvel naquele outro banquete na casa de Simo, no qual nem os publicanos nem os pecadores foram admitidos?

    O banquete de Mateus foi visto internamente como muito agradvel, inocente e at edificante. Mas que i n f e l i c id ad e ! Visto externamente, como por janelas sujas, tinha um aspecto diferente: era, de fato, nada menos que escandaloso. Certos fariseus observaram a chegada ou a sada daquelas pessoas, notaram quem eram, e depois fizeram reflexes sinistras a seu bel-prazer. Quando surgiu uma oportunidade, eles fizeram aos discpulos de Jesus uma pergunta que era simultaneamente um elogio e uma censura: Por que comeis e bebeis com publicanos e pecadores? Aqueles que fizeram esta pergunta eram, em sua maioria, membros da seita local dos fariseus, pois Lucas se refere a eles como: os escribas deles e os fariseus18, o que implica que Cafarnaum era suficientemente importante para ser honrada com a presena dos representantes de tal faco religiosa. E pouco provvel, contudo, que em meio aos espectadores pouco amistosos estivessem alguns fariseus vindos de Jerusalm, o

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    centro do governo eclesistico, j no encalo do Profeta de Nazar, observando seus atos, assim como fizeram com Joo Batista, antes dele. As notcias das obras milagrosas de Cristo logo se espalharam por toda a terra, e atraram espectadores de todos os cantos de Decpolis, de Jerusalm, da Judia, e da Peria, assim como da Galilia19! e podemos estar certos de que os escribas e fariseus da cidade santa no foram os ltimos a ir e ver. Devemos considerar que estes cumpriram o dever da espionagem religiosa com diligncia exemplar.

    A presena desses homens doentes da ordem farisaica era quase um aspecto permanente no ministrio pblico de Cristo. Mas isso nunca o perturbou. Ele seguiu calmamente o seu caminho fazendo a sua obra; e quando sua conduta era posta em questo, Ele estava sempre pronto com uma resposta conclusiva. Dentre as mais impressionantes de suas respostas ou apologias aos que o examinavam, estavam aquelas nas quais Ele se justificava por se misturar com pecadores e publicanos. So trs, expressas em muitas ocasies: a primeira relacionada ao banquete de Mateus; a segunda na casa de Simo, o farkeu20; e a terceira, em uma ocasio sem data definida, quando certos escribas e fariseus lhe fizeram uma grave acusao: Este recebe pecadores e come com eles21. Essas apologias pelo fato de amar os no-amados e os moralmente desagradveis esto repletas de verdade e graa, poesia e compaixo, com um toque particular de stira dirigida contra os santarres acusadores. A primeira pode ser distinguida como o argumento profissional, e tinha o seguinte contedo: Eu freqento a casa dos pecadores porque sou um mdico; eles esto doentes e precisam de cura. Onde deveria estar um mdico se no em meio aos seus pacientes? Onde mais se no entre os mais gravemente aflitos? A segunda pode ser descrita como sendo um argumento poltico, e sua construo tem o seguinte sentido: E uma boa poltica ser amigo dos pecadores que tm muito a ser perdoado; porque quando forem restitudos ao caminho da virtude e da piedade, quo grande ser o seu amor! Veja aquela mulher penitente, chorando de dor e tambm de alegria, banhando os ps do seu salvador com suas lgrimas. Tais lgrimas so um refrigrio para o meu corao, como uma fonte de gua no deserto rido do formalismo e da indiferena farisaica. A terceira pode ser chamada de argumento do instinto natural, e poderia

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    ser expressa assim: Eu recebo os pecadores, e como com eles, e assim procuro estabelecer a sua restaurao moral. Fao-o pela mesma razo que leva o pastor a sair em busca de uma ovelha perdida, deixando o seu rebanho no deserto. Porque natural procurar o perdido e ter mais alegria ao encontrar coisas perdidas do que se alegrar por aquilo que nunca foi perdido. Os homens que no compreendem este sentimento so solitrios no universo; porque os anjos no cu, os pais, as donas de casa, os pastores, todos os que tm coraes humanos na terra, compreendem bem, e agem dessa forma todos os dias.

    Em todo esse raciocnio Jesus falou aos seus acusadores baseando- se nas prprias premissas deles, aceitando as estimativas que tinham de si prprios e da classe que julgavam ser infame para se associarem, como justos e pecadores respectivamente. Mas Jesus decidiu expor que seu julgamento em relao a essas duas classes no coincidia com o de seus interrogadores. Ele o fez na ocasio do banquete de Mateus, ordenando que fossem estudar o texto: Misericrdia quero e no sacrifcio, querendo pela citao insinuar que, embora fossem muito religiosos, os fariseus eram tambm muito desumanos, cheios de orgulho, preconceitos, severidade, e dio. E, proclamando a verdade, disse-lhes que este carter era, aosolhos de Deus, muito mais detestvel que o daqueles que eram afeioados s vozes vulgares da multido, para no falar daqueles que eram pecadores principalmente na imaginao farisaica. Desse modo, Jesus mostrou-lhes um outro lado da situao.

    As ltimas palavras de nosso Senhor para as pessoas que haviam colocado a sua conduta em questo nessa ocasio no eram meramente apologticas, mas judiciais: Eu no vim, disse Ele, chamar os justos, mas sim os pecadores, ao arrependimento22. Com isto, declarou que aqueles que se consideravam justos ficariam sozinhos, e convidou ao arrependimento e s alegrias do reino aqueles que no estivessem satisfeitos com a sua prpria vida. Estes ltimos passariam a cuidar dos benefcios agora oferecidos, e o banquete do evangelho lhes seria uma verdadeira festa. A palavra, na verdade, continha uma significativa aluso a uma iminente revoluo religiosa, na qual os ltimos se tornariam os primeiros e os primeiros, os ltimos; os judeus proscritos, os vis gentios (considerados at mesmo como ces), tomariam parte das alegrias do

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    reino e os aparentemente justos seriam excludos. Este foi um dos discursos significativos atravs do qual Jesus tornou conhecido para aqueles que podiam compreender que a sua religio era universal, uma religio para a humanidade, um evangelho para o gnero humano, um evangelho para os pecadores. E o que estava sendo declarado em palavras, a apologia conduta crist, era proclamado de forma ainda mais expressiva por meio de suas obras. Tal compaixo pelos publicanos e pecadores era algo abominvel o instinto farisaico o discerniu deste modo e eles em seguida se alarmaram. Significava a morte dos monoplios e privilgios da graa e do orgulho judaico e do exclusivismo todos os homens so iguais aos olhos de Deus, e so bem-vindos salvao nos mesmos termos. De fato, era uma proclamao virtual do programa paulmo de um evangelho universalista, o qual os doze deveriam, como uma escola de telogos, defender com a mesma determinao exibida pelos prprios fariseus. Causa estranheza saber que aqueles que estiveram com Jesus tivessem a viso to restrita a ponto de no entenderem, mesmo no final, o que estava envolvido na comunho de seu Mestre com aqueles que eram considerados inferiores e perdidos! [Ser que Buda foi mais afortunado em relao aos seus discpulos do que Jesus em relao aos seus? Buda disse: Minha lei uma lei de graa para todos, dirigindo suas palavras imediatamente contra a preconceituosa casta bramnica; e seus seguidores entenderam o que isto significava; o budismo como uma religio missionria, uma religio para os sudras, e conseqentemente para toda a humanidade!]

    I Mateus 8.18-20" Mais corretamente, alojamentos, pousadas.3 Ewald ( Cbristus, pp. 364, 397) nega a identidade, e afirma que Levi no era um dos doze; porm admite a

    identidade menos evidente de Natanael e Bartolomeu.4 Mateus 9.13 Mateus 9.9; Marcos 2.13; Lucas 5.276 Lucas 6.13-177 Lucas 5.278 Marcos 1.279 Marcos 2.1210 Lucas 5.26II Mateus 9.2612 Veja Ebrard, Gospel History, sobre o assunto da seqncia.

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    13 Mateus 11.23. Podem haver poucas dvidas de que mh , na primeira clusula, adotada na verso revisada, seja a correta. Ela traz a palavra proftica de Cristo a uma correspondncia mais prxima com Isaas 14.13-15, ao qual existe uma aluso bvia: E tu dizias no teu corao: Eu subirei ao cu... contudo, levado sers ao inferno...

    14 Mateus diz modestamente, em casa (9.10).13 Mateus 9.1016 Lucas 5.29ll meploprepeii Aristteles, tica a i\'ic$waco 4.2' Lucas 5 3010 Mateus 4.2520 Lucas 7.3621 Lucas 15.222 e parece ser genuno somente em Lucas, e as palavras expressam somente uma parte daquilo que Cristo estava

    dizendo. Ele convidou os homens no somente ao arrependimento, mas participao em todas as bnos do reino.

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    Mateus I0.I-4; Marcos 3.13-19; Lucas 6.I2-I6; Atos I.I3

    AL. 1 escolha que Jesus fez dos doze discpulos que gradualmente se reuniram ao seu redor uma importante referncia na histria do evangelho. Tal ato divide o ministrio do nosso Senhor em duas partes provavelmente muito semelhantes quanto durao, mas diferentes quanto extenso e a importncia do trabalho realizado em cada uma. No perodo inicial Jesjjs trabalhou sozinho; suas obras milagrosas estavam confinadas a uma rea limitada, e seu ensino era, em sua maior parte, de carter elementar. Mas na ocasio em que os doze foram escolhidos, a obra do reino "assumiu dimenses que requeriam organizao e diviso de trabalho. O ensino de Jesus estava comeando a ser de natureza mais profunda e elaborada, e suas atividades beneficentes estavam crescendo muito.

    E provvel que a escolha de um nmero limitado de discpulos para ser seus companheiros ntimos e constantes tenha se tornado uma necessidade para Cristo, em conseqncia de seu prprio sucesso ao fazer discpulos. Seus seguidores eram to numerosos a ponto de serem um impedimento aos seus movimentos, especialmente nas longas jornadas que marcam a parte posterior de seu ministrio. Era impossvel que todos os que criam pudessem ento continuar a segui-lo de modo literal, para onde quer que Ele fosse: o grande nmero de pessoas agora poderia ser apenas de seguidores ocasionais. Mas era seu desejo que alguns homens escolhidos estivessem consigo em todos os momentos e em todos os lugares seus companheiros de viagem em todas as suas jornadas, testemunhando toda a sua obra e ministrando s suas necessidades di

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    rias. E assim, nas palavras singulares de Marcos: E subiu ao monte e chamou para si os que ele quis; e vieram a ele. E nomeou doze para que estivessem com ele...1.

    Estes doze, contudo, como sabemos, deveriam ser mais que meros companheiros de viagem ou servos comuns do Senhor Jesus Cristo. Eles deveriam ser, ento, aprendizes da doutrina crist, e ocasionais cooperadores das obras do reino, e mais tarde agentes treinados, escolhidos por Cristo para propagar a f depois que Ele deixasse a terra. A partir do momento em que foram escolhidos, de fato, os doze iniciaram um aprendizado regular para o grande ofcio do apostolado, no curso do qual deveriam aprender, na privacidade de um relacionamento ntimo dirio com seu Mestre, como deveriam ser, agir, crer, e ensinar como suas testemunhas e seus embaixadores no mundo. Doravante o treinamento desses homens deveria ser uma parte constante e proeminente da obra pessoal de Cristo. Ele os orientava noite a respeito do que deveriam falar de dia, e falava aos seus ouvidos o que nos anos posteriores anunciariam publicamente2.

    A ocasio em que ocorreu essa eleio (embora no se conhea tal data com preciso) fixa em relao a certos eventos-chave da histria do evangelho. Joo se refere aos doze como uma companhia organizada na ocasio em que o Senhor realizou o milagre de alimentar mais de cinco mil pessoas, e do discurso sobre o Po da vida na sinagoga de Cafarnaum, proferido pouco tempo aps aquele milagre. Desse fato aprendemos que os doze foram escolhidos pelo menos um ano antes da crucificao; pois o milagre da multiplicao dos alimentos ocorreu, de acordo com o quarto evangelista, logo aps a festa da Pscoa3. A partir das palavras ditas por Jesus aos homens que havia escolhido, transmitindo a sua pergunta em relao fidelidade devida a ele depois da multido t-lo abandonado: No vos escolhi a vs os doze? E um de vs um diabo4, conclumos que a escolha no era to recente. Os doze haviam estado juntos durante tempo suficiente para dar ao falso discpulo a oportunidade de mostrar o seu verdadeiro carter.

    Voltando agora aos evangelistas sinpticos, encontramo-los tentando estabelecer a posio da eleio em referncia a dois outros eventos ainda mais importantes. Mateus fala pela primeira vez dos doze como

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    um corpo distinto em relao sua misso na Galilia. Ele no diz, contudo, que foram escolhidos imediatamente antes e com referncia direta a tal misso. Antes, fala como se a fraternidade apostlica j existisse anteriormente, sendo estas as suas palavras: E, chamando os seus doze discpulos... Lucas, por outro lado, faz um relato formal da eleio, como um prefcio de seu relatrio do Sermo ia Montanha, dando a impresso de que um evento ocorreu logo aps o outro5. Finalmente, a narrativa de Marcos confirma o ponto de vista sugerido por essas observaes de Mateus e Lucas, isto , os doze foram chamados pouco antes da realizao do Sermo da Montanha, e um tempo considervel antes de terem sido enviados em misso para pregar e curar. Est escrito: E subiu ao monte (t )6 e chamou para si os que ele quis a subida obviamente se refere ocasio em que Jesus subiu antes de pregar seu grande discurso. Marcos continua: E nomeou doze para que estivessem com ele e os mandasse a pregar e para que tivessem o poder de curar as enfermidades e expulsar os demnios. Aqui h uma aluso feita a uma inteno da parte de Crist de enviar seus discpulos em uma misso, mas a inteno no representada e imediatamente executada. Nem pode ser dito que a execuo imediata esteja implcita, embora no tenha sido expressa; o evangelista faz um relato da misso como consta em vrios captulos seguintes em seu Evangelho, iniciando com estas palavras: Chamou a si os doze, e comeou a envi-los de dois a dois...7.

    Deve ser considerado, ento, como toleravelmente certo, que o chamado dos doze tenha sido um preldio pregao do grande sermo sobre o reino, em cuja fundao eles teriam, posteriormente, uma participao ainda mais distinta. No podemos determinar com exatido em que perodo do ministrio de nosso Senhor o sermo em si deve ser precisamente alocado. Nossa opinio, contudo, que o Sermo da M ontanha foi proferido prximo ao primeiro ministrio prolongado de Cristo na Galilia, durante o tempo passado entre as duas visitas a Jerusalm em ocasies de festas mencionadas no segundo e no quinto captulo do Evangelho de Joo8.

    O nmero da companhia apostlica significativo e, sem dvida, uma questo de escolha, assim como a composio daquele grupo seleto. Um nmero maior de homens elegveis poderia ser facilmente en-

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    contrado no crculo de discpulos que, mais tarde, no se tornou menor que setenta auxiliares na obra evangelstica9; e um nmero menor pode ter servido a todos os propsitos presentes ou futuros do ap