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O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL EM 1998 Por JORGE MIRANDA * SUMARIO 1. VOLUME DAS DECISÓES.—2. PRINCIPÁIS DECISÓES.—3. AS ALTERA- CÓES DA L e ORGÁNICA EM 1998.—4. A RECOMPOSICÁO DO TRIBU- NAL.—5. 1998, ANO DE REFERENDOS.—6. O REGIME DO REFERENDO NACIONAL.—7. O REGIME ESPECÍFICO DO REFERENDO SOBRE AS RE- GIÓES ADMINISTRATIVAS.—8. O PROCESSO DE FISCALIZACÁO DOS RE- FERENDOS PELO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL.—9. O REFERENDO SOBRE A INTERRUPCAO VOLUNTARIA DA GRAVIDEZ E O TRIBUNAL CONSTITU- CIONAL.—10. O FRUSTRADO REFERENDO EUROPEU.—11. O REFERENDO SOBRE AS REGIÓES ADMINISTRATIVAS.—12. CRIME POREMISSÁO DE CHEQUE SEM PROVISÁO E PRISÁO POR DIVIDAS.—13. LEÍ, SEPARACÁO DE PODERES, TUTELA DACONFIANCÁ.—14. ELEICOES PARA O CONSE- LHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA E SEPARACÁO DE PODERES.—15. UM CASO ESTRANHO. 1. VOLUME DAS DECISÓES 1. Tendo em conta as diferentes modalidades de fiscalizacao da constitucionalidade previstas pela Constituicáo, o Tribunal Constitucio- nal portugués emitiu em 1998 o volume seguinte de decis5es: Fiscalizagáo concreta Decisoes sobre reclamacoes a respeito da admissibilidade de recursos 125 * Catedrático de Derecho Constitucional de la Universidad de Lisboa y de la Univer- sidad Católica Portuguesa. 373

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O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL EM 1998

Por JORGE MIRANDA *

SUMARIO

1. VOLUME DAS DECISÓES.—2. PRINCIPÁIS DECISÓES.—3. AS ALTERA-CÓES DA Le ORGÁNICA EM 1998.—4. A RECOMPOSICÁO DO TRIBU-NAL.—5. 1998, ANO DE REFERENDOS.—6. O REGIME DO REFERENDONACIONAL.—7. O REGIME ESPECÍFICO DO REFERENDO SOBRE AS RE-GIÓES ADMINISTRATIVAS.—8. O PROCESSO DE FISCALIZACÁO DOS RE-FERENDOS PELO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL.—9. O REFERENDO SOBREA INTERRUPCAO VOLUNTARIA DA GRAVIDEZ E O TRIBUNAL CONSTITU-CIONAL.—10. O FRUSTRADO REFERENDO EUROPEU.—11. O REFERENDOSOBRE AS REGIÓES ADMINISTRATIVAS.—12. CRIME POR EMISSÁO DECHEQUE SEM PROVISÁO E PRISÁO POR DIVIDAS.—13. LEÍ, SEPARACÁODE PODERES, TUTELA DA CONFIANCÁ.—14. ELEICOES PARA O CONSE-LHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA E SEPARACÁO DE PODERES.—15. UM

CASO ESTRANHO.

1. VOLUME DAS DECISÓES

1. Tendo em conta as diferentes modalidades de fiscalizacao daconstitucionalidade previstas pela Constituicáo, o Tribunal Constitucio-nal portugués emitiu em 1998 o volume seguinte de decis5es:

Fiscalizagáo concreta

Decisoes sobre reclamacoes a respeito daadmissibilidade de recursos 125

* Catedrático de Derecho Constitucional de la Universidad de Lisboa y de la Univer-sidad Católica Portuguesa.

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JORGE MIRANDA

Decisoes sobre reclamacdes para a confe-rencia 29

Decisoes sumarias 262Decisoes em seccáo 501 917

Fiscalizagao preventiva

De normas jurídicas 1De referendos nacionais 3De referendos locáis 2 6

Fiscalizagao sucessiva abstracta inconstitucio-nalidade por acgdo 7 7

Fiscalizagao da inconstitucionalidade por omis-sao 0 0

O Tribunal emitiu ainda 26 acordaos sobre outras materias da suacompetencia e 43 decisoes meramente interlocutórias.

Ao todo, foram 1.012 decisoes em 1998 (em 1997 tinham sido 741),o que eleva para 8.574 o número de decisSes do Tribunal Constitucionalde 1983.

2. O controlo concreto continua a dominar, agora com novos tiposde decisoes na sequéncia das alteracoes feitas, já em 1998, na lei orgánicado Tribunal. As varias modalidades de controlo abstracto, pelo contrario,continuam em retrocesso, o que causa alguma preocupacao.

A grande novidade foi representada pelos tres acordaos sobre a fisca-lizacáo da constitucionalidade e da legalidade de referendos nacionais.

2. PRINCIPÁIS DECISOES

3. No dominio dos direitos fundamentáis registem-se como acordaosmais importantes:

— Acórdáo n° 13/98, de 13 de Janeiro (prazo para alegacóes em re-cursos interpostos em processo penal militar e principio da igual-dade);

— Acórdáo n° 125/98, de 5 de Fevereiro (garantia do recurso con-tencioso administrativo);

— Acórdáo n° 181/98, de 11 de Fevereiro (acesso a tribunal e sus-pensáo de eficacia de acto administrativo impugnado);

— Acórdáo n° 191/98, de 19 de Fevereiro (uso de telecópia em pro-cessos judiciais e principio da igualdade);

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— Acórdao n° 222/98, de 4 de Margo (arrendamento rural, lei retros-pectiva, principio da confianga);

— Acórdao n° 274/98, de 9 de Margo (Direito penal urbanístico eprincipio da proporcionalidade);

— Acórdao n° 372/98, de 13 de Maio (dever do argüido de respon-der sobre antecedentes crimináis);

— Acórdao n° 383/98, de 19 de Maio (garantía de recurso conten-cioso e principio da igualdade);

— Acórdao n° 384/98, de 19 de Maio (garantía de recurso conten-cioso e conhecimento dos fundamentos da decisáo recorrível);

— Acórdao n° 435/98, de 16 de Junho (acgáo para o reconhecimentode um direito);

— Acórdao n° 506/98, de 2 de Julho (processo de falencias, limitagáodo principio dispositivo);

— Acórdao n° 663/98, de 25 de Novembro (crime de emissao decheque sem provisao, prisáo por dividas).

4. Sobre materias de organizagáo económica, apenas há a referir:

— Acórdao n° 275/98, de 9 de Margo (retroactividade da lei tri-butaria);

— Acórdao n° 354/98, de 12 de Maio (taxa de radiodifusáo);— Acórdao n° 504/98, de 2 de Julho (desalfandegagáo, cobranga de

impostos).

5. Relativamente á organizagáo do poder político e repercutindo-sesobre outras questóes, salientam-se, antes de mais, os acordaos sobre aconstitucionalidade e a legalidade de referendos:

— Acórdao n° 288/98, de 17 de Abril (referendo sobre alteragoeslegislativas concernentes á interrupgáo voluntaria da gravidez);

— Acórdao n° 531/98, de 29 de Julho (referendo sobre o Tratado deAmesterdao);

— Acórdao n° 532/87, de 29 de Julho (referendo sobre a instituigáoem concreto das regioes administrativas).

6. Ainda no ámbito da organizagáo do poder político podem serindicados:

— Acórdao n° 24/98, de 22 de Janeiro (lei e fungáo administrativa,separagao dos poderes);

— Acórdao n° 255/98, de 5 de Margo (Tribunal de Contas, recursos,caso julgado formal);

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— Acórdao n° 262/98, de 6 de Mar9o (tribunais arbitráis em processode expropriacoes);

— Acórdao n° 279/98, de 10 de Marc.o (elei?oes para o ConselhoSuperior da Magistratura e separacao de poderes);

— Acórdao n° 510/98, de 14 de Julho (amnistia, perdoes genéricos,principio da igualdade).

7. Finalmente, no que toca á fiscalizacáo constitucional sao de men-cionar:

— Acórdao n° 115/98, de 4 de Fevereiro (fiscalizacáo concreta);— Acórdao n° 200/98, de 3 de Marco (fiscalizacáo sucessiva abs-

tracta).

3. AS ALTERACÓES DA LEÍ ORGÁNICA EM 1998

8. O evento mais marcante relativo ao Tribunal Constitucional em1998 foi a publicacáo da Lei n° 13-A/98, de 26 de Fevereiro, com nu-merosas alteracoes e alguns aditamentos á sua lei orgánica, a Lei n° 28/82, de 15 de Novembro.

Urna grande parte dessas alter^oes teve origem directa na revisaoconstitucional de 1997. Outras resultaram da experiencia de funciona-mento do Tribunal Constitucional desde a última altera^áo, em 1989, dalei orgánica, visando melhorar as condicoes de trabalho e acelerar asdecisSes'.

As mais importantes modifica§oes incidiram no regime de designacáoe no estatuto dos juízes, na organizacáo interna do Tribunal e em variosaspectos atinentes a fiscalizacáo sucessiva abstracta e, sobretudo, á fis-calizacáo concreta. Os aditamentos reportaram-se as novas competen-cias recebidas fora do dominio da fiscalizacáo da constitucionalidade(art. 223°, n° 2)2.

9. Como se sabe, dez dos treze juízes do Tribunal Constitucional saoeleitos pelo Parlamento por maioria de dois tercos dos Deputados emefectividade de funcóes. O modo de eleicáo nao consta, porém, das nor-mas constitucionais.

A Lei n° 28/82, na sua versáo inicial, estabelecia que cada juiz seriaeleito individualmente, embora a eleicáo de cada candidato só se consi-

1 O texto da Lei n° 13-A/98 teve, de resto, por base um anteprojecto preparado pelosjuízes do Tribunal em exercício.

2 V. o parecer da comissáo parlamentar, in Diario da Assembleia da República, 7a

legislatura, 3a sessáo legislativa, 2° série-A, n° 32.

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derasse definitiva depois de preenchidos todas as vagas. Agora, com aLei n° 13-A/98, a eleicáo passa a fazer-se por lista completa, corres-pondente ao número total de juízes a eleger.

Nao concordamos, de modo algum, com o novo sistema, porque eledilui o sentido específico da eleicáo de cada juiz, esvazia quase por com-pleto a liberdade dos Deputados e concentra todo o poder nos directoriospartidarios, os verdadeiros proponentes das candidaturas. Pretende-seevitar a repeticao de situacoes, já verificadas noutros casos, de nao ob-tencáo da maoiria necessária por este ou aquele candidato. Mas o precoafigura-se demasiado elevado, porque afinal os Deputados nao sao cha-mados senáo a um acto de ratificacao com graves efeitos deslegitima-dores.

Com a tendencia do sistema político portugués para um bipartidismoimperfeito, com dominio crescente de dois partidos centráis (o PartidoSocialista e o Partido Social-Democrata), nao admira que se verifique— tal como noutros países — urna reparticáo das candidaturas viáveispor esses partidos, nem que eles se ponham de acordó para se atingiremos dois tercos. Simplesmente, até 1997 os Deputados tinham o poder de,dentro do quinháo reservado a cada partido (5 juízes em 10) aceitar ourejeitar os candidatos propostos. Com a nova modificacáo legislativadeixam de possuir tal direito.

A alteracáo é, de resto, contraditória com os projectos de reforma dosistema eleitoral dos Deputados a Assembleia da República em que, jus-tamente, os dois grandes partidos (se bem que por caminhos diferentes)preconizam formas de personalizado das candidaturas, de modo a aproxi-mar os Deputados dos eleitores.

10. A revisao constitucional alargou de 6 para 9 anos a duracao dosmandatos dos juízes do Tribunal Constitucional e declarou-os nao re-nováveis (novo art. 222°, n° 3 da Constituicao). Mas admitiu, entretanto,um regime transitorio relativo á primeira eleicáo e á primeira cooptacáoa ela subsequentes, destinado a garantir que o termo dos mandatos dosjuízes assim designados nao ocorresse simultáneamente quanto a todos,nao se aplicando aqueles cujos mandatos viessem a ser reduzidos a limita-cáo respeitante a nao renovacáo (art. 196° da Lei Constitucional n° 1/97).

A Lei n° 13-A/98 aproveitaria plenamente essa possibilidade e dis-poria que no fim da primeira metade dos mandatos desses juízes se pro-cedería a sorteio para determinar a cessacáo dos mandatos de quatro dosjuízes eleitos e de um dos juízes cooptados.

Compreende-se a intencao assumida pelo legislador: reforcar a con-tinuidade institucional e propiciar urna renovacáo parcial do Tribunal detantos em tantos anos. Simplesmente, a possibilidade de reconducáo dosjuízes com mandato reduzido, se pode representar para eles urna especie

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de compensagáo, nao deixa de por em causa o objectivo de salvaguardada independencia subjacente á regra geral de nao renovacáo dos manda-tos. É um caso de escola de derrogacáo constitucional.

11. O regime de responsabilidade criminal dos juízes foi, por seuturno, modificado, no sentido da aproximagáo do regime de efectivagáoda responsabilidade dos membros do Governo (art. 196° da Comstituigáo).

Antes eram aplicáveis aos juízes do Tribunal Constitucional, com asnecessárias adaptagoes, as normas reguladoras da efectivagáo de respon-sabilidade dos juízes do Supremo Tribunal de Justica. Agora, movidoprocedimento criminal contra algum juiz do Tribunal Constitucional eacusado este por crime praticado no exercício das suas funcoes, o se-guimento do processo depende de deliberacao da Assembleia da Repú-blica (novo art. 26°, n° 2 da lei orgánica).

Aparentemente, a alteracao justifica-se por causa da natureza especí-fica do Tribunal Constitucional e do nexo de designagao dos juízes coma Assembleia. Resta saber se ela nao pode vir também a afectar, indi-rectamente, a sua independencia.

12. Mudangas muito significativas tém que ver com o funcionamentodo Tribunal:

— O presidente fica adstrito a dar prioridade, na tabela dos recursose demais processos preparados para julgamento, aos recursos pro-feridos em materia penal em que algum dos interessados estejadetido ou preso ainda sem condenagáo definitiva, aos recursos deconstitucionalidade interpostos de decisoes proferidas em proces-sos qualificados como urgentes pela respectiva lei processual e aosprocessos em que estejam em causa direitos, liberdades e garantíaspessoais [arts. 39°, n° 1, alinea b), e 43°, n°s 3 e 5];

— O vice-presidente passa a poder receber competencia delegada ea presidir a urna das secgóes a que nao pertenga (art. 39°, n° 2);

— Passa a haver tres, e nao apenas duas secgoes nao especializadas(art. 41°, n° 1).

Por outro lado, acrescenta-se um novo capítulo sobre o regime fi-nanceiro (arts. 47°-A e segs.), muito generoso para o Tribunal.

13. Com vista a acelerar os processos de fiscalizagáo sucessiva abs-tracta, adoptam-se duas medidas (art. 63o):

— Entrega a cada um dos juízes, conjuntamente com os autos, de ummemorando no qual sao formuladas pelo presidente as questoes

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previas e de fundo a que o Tribunal há-de responder, bem comode quaesquer elementos documentáis reputados de interesse;

— Decorridos quize dias, realizacáo de um debate preliminar parase fixar a orientacáo do Tribunal, sendo entáo designado um re-lator.

14. Mais numerosas sao as alteragoes enxertadas na fiscalizadoconcreta, algumas das quais com idéntico objectivo e outras com senti-do racionalizador ou garantístico:

— Referencia aos recursos destinados a uniformizagáo de jurispru-dencia (arts. 70°, n° 2, e 70°, n° 6);

— Equiparado a recurso ordinario das reclamacoes para os presiden-tes dos tribunais superiores, nos casos de nao admissáo ou deretencáo dos recursos, bem como das reclamacoes dos despachosdos juízes relatores para a conferencia (art. 70°, n° 3);

— Consideracao de que se acham esgotados os recursos ordinariosquando tenha havido renuncia, tenha decorrido o prazo sem a res-pectiva interposigáo ou os recursos interpostos nao possam terseguimento por razoes de ordem processual (art. 70°, n° 4);

— Necessidade de suscitacáo da questáo de inconstitucionalidade oude ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tri-bunal que proferiu a decisao recorrida, em termos de este serobrigado a déla conhecer (art. 72°, n° 2);

— Generalizac.áo da regra segundo a qual o Ministerio Público podeabster-se se interpor recurso de decisoes conformes com orientacáoque se encontré já estabelecida, a respeito da questao em causa,em jurisprudencia constante do Tribunal (art. 72°, n° 4);

— Consideracáo como deserto do recurso no caso de o recorrente,depois de a isso convidado pelo relator, nao indicar os elementosnecessários ao conhecimento do recurso (art. 75o-A, n° 7);

— Garantía de reclamagáo para o Tribunal do despacho que no tri-bunal a quo retenha a subida do recurso (art. 76°, n° 4);

— Possibilidade, quando ao recurso couber efeito suspensivo, de oTribunal, oficiosamente e a título excepcional, lhe fixar efeito me-ramente devolutivo se, com isso, nao afectar a utilidade da decisáoa proferir (art. 78°, n° 5);

— Alargamento dos poderes do relator, por lhe competir doravanteproferir decisáo sumaria (embora com garantía de reclamacáo paraa conferencia) quando entenda que nao pode conhecer-se do ob-jecto do recurso ou que a questao é simples, designadamente pora mesma já ter sido objecto de decisáo anterior ou por ser ma-nifestamente infundada (arts. 78°-A e 78°-B);

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— Nova regulamentacáo dos prazos para alegacoes (art. 79°, n° 2) epara julgamento do objecto do recurso (art. 79°-B), impondo-seprioridade e reducto a metade dos prazos quando haja interessadosdetidos ou presos ainda sem condena9áo definitiva, quando se tratede processo qualificado como urgente ou quando estejam em causadireitos, liberdades e garandas pessoais (art. 78°-B, n° 3).

15. A lei regula as novas competencias atribuidas ao Tribunal em 1997:

— Contencioso da perda do mandato dos Deputados á Assembleiada República e as assembleias legislativas regionais, tendo le-gitimidade para recorrer o próprio, qualquer grupo parlamentar ou(quanto á Assembleia da República) um mínimo de dez Deputados(arts. 91°-A e 91°-B);

— Recursos relativos a eleigoes realizados na Assembleia da Repú-blica e ñas assembleias legislativas regionais, atribuindo-se legiti-midade a qualquer Deputado (art. 102°-D).

— AcgSes de impugnagáo de eleicoes de titulares de órgáos de par-tidos políticos, mas só sendo a impugnacáo admissível depoisde esgotados todos os meios internos previstos nos estatutos(art. 103°-C);

— Accoes de impugnacáo de deliberacoes tomadas por órgáos departidos políticos com fundamento em ilegalidade ou em violacáode regra estatutaria, quando tenham natureza punitiva ou afectemdirecta e pessoalmente os direitos de participacáo de qualquermilitante ñas actividades do partido e também só sendo admis-síveis depois de esgotados os meios internos (art. 103°-D);

— Possibilidade, no respeitante a estes dois tipos de accoes, de sus-pensao da eficacia como preliminar ou incidente, a requerimentodos interessados (art. 103°E).

16. Prevéem-se ainda tres causas de extingao dos partidos políticospara além das contempladas na respectiva lei (que continua sendo o De-creto-lei n° 595/74, de 7 de Novembro): nao apresentacao de contas emtres anos consecutivos, nao anotacáo dos nomes dos titulares dos seusórgáos centráis num período superior a seis anos e impossibilidade decitagáo ou notificacáo na pessoa de qualquer dos titulares dos seus órgáoscentráis (art. 103°-F).

Trata-se de materia manifestamente deslocada e só por nao se terquerido ou podido até agora elaborar urna nova lei dos partidos podeexplicar-se a sua insercao aqui.

17. A expressa prescricáo de prioridade conferida aos recursos emque estejam em causa direitos, liberdades e garantías pessoais — quer

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dizer, direitos consignados nos arts. 24° a 47° da Constituigáo — repre-senta um primeiro passo para dar exequibilidade ao imperativo, tambémintroduzido na revisáo constitucional de 1997, de a lei assegurar aoscidadáos procedimentos judiciais caracterizados pela prioridade e pelaceleridade de modo a obterem tutela efectiva e em tempo útil contraameacas ou violacoes desses direitos (novo art. 20°, n° 5 da Constituigáo).

Evidentemente, porém, nao bastam as disposigóes da Lei n° 13-A/98e até agora (quase no fim da legislatura) apenas se conhece um projectode lei com esse intuito formal3.

4. A RECOMPOSigÁO DO TRIBUNAL

18. Finalmente, em Margo de 1998, poucos dias após a entrada emvigor da Lei n° 13-A/98, os dois principáis partidos promoveram a re-composigao do Tribunal Constitucional, pondo termo á situagáo anóma-la de prorrogagáo em que se encontravam há dois anos e meio os man-datos de onze dos treze juízes.

Tal como das outras vezes, na designagáo dos dez juízes, observou-se urna prática igual á seguida em 1982-1983 e em 1989 (na base de umacordó político de difícil qualificagáo jurídica): cada um desses partidospropós, através do seu grupo parlamentar, e obteve a eleigáo de cincodos dez juízes a eleger; distribuigao análoga observou-se na cooptagaode dois juízes a cooptar; e o terceiro dos cooptados proveio de urnaindicagáo ou aceitagáo conjunta4.

Como a vedagao de recondugao para um novo mandato, introduzidaem 1997, nao se aplicava — por razoes evidentes de aplicagáo das nor-mas jurídicas no tempo — aos juízes em fungoes, nove dos treze juízesvoltaram a ser designados (e todos em conjunto, porque os dois juízescujos mandatos ainda nao tinham cessado em 1995 renunciaram agorapara esse efeito).

O Parlamento elegeria cinco juízes de tribunais superiores — Gui-lherme da Fonseca, Messias Bento, bravo Serra e Vítor Nunes de Almeida(reconduzidos) e Artur Mauricio (novo). E cinco docentes universitarios— Maria Fernanda Palma e José Sousa e Brito (reconduzidos) e MariaHelena Brito, Maria dos Prazeres Beleza, e Paulo Mota Pinto (novos).Os dez cooptariam um magistrado — Alberto Tavares da Costa (recon-duzido); e dois docentes universitarios — José Cardoso da Costa e LuísNunes de Almeida (estes dois últimos, por sinal, logo a seguir reeleitospresidente e vice-presidente).

3 O projecto de lei n° 571/VII dos Deputados Octavio Teixeira e outros (Diario daAssembleia da República, T legislatura, 4* sessáo legislativa, 2* série-A, n° 11).

4 Por isso, já houve quem comparasse o Tribunal a urna especie de tribunal arbitral.

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O Tribunal ficou constituido por seus juízes de carreira (em obe-diencia, alias, ao art. 222°, n° 2 da Constituicáo) e sete juízes de origemuniversitaria. E passou a contar com tres mulheres.

5. 1998, ANO DE REFERENDOS

19. Apesar de ter havido projectos de adopcáo do referendo desdea segunda metade do século xix, a figura apenas seria verdadeiramen-te introduzida no nosso País, primeiro, a nivel local em 1982, depois anivel nacional em 1989 e, finalmente, no ámbito das regioes autónomasem 1997.

Para isso concorreram dois factores. Em primeiro lugar, conforme aexperiencia comparada demonstra, institutos de democracia semidirectapressupoem a consolida?ao e o funcionamento efectivo da democraciarepresentativa. Em segundo lugar, no caso portugués, as vicissitudes his-tóricas aconselhavam toda a prudencia: nao se podia esquecer nem aaprovac.áo da Constituicáo autoritaria de 1933 por «plebiscito» (em queas abstenc.6es contaram como votos a favor), nem os propósitos, frustra-dos embora, em 1980, de modifica?áo da Constitui?áo de 1976 a margemdas suas regras.

Ter-se-á ido, no entanto, longe de mais no tocante ao referendo na-cional (o único de que aqui nos vamos ocupar) com as vedac,5es e, sobre-tudo, com o sistema muito complicado de realizagáo e, simultáneamente,muito frágil de vinculacao que se quis estabelecer. De jure condendovaleria a pena urna repondera?ao.

20. Antes de 1998 nao se tinha organizado nenhum referendo (na-cional ou local). Neste ano, viriam a ser propostos tres — um sobre ainterrupgao voluntaria da gravidez, outro sobre a Uniao Europeia e outroainda sobre as regióes administrativas do Continente — nao chegando arealizar-se o segundo e tendo sido o primeiro e o terceiro marcados porelevada abstengao (o que, por seu turno, deveria levar a reflectir os agen-tes políticos)5.

Antes de aludirmos á intervensáo que o Tribunal Constitucional tevenos tres referendos, importa resumir no essencial as normas reguladorasda materia.

5 Nos dois referendos realizados ganharia o nao, tangencialmente no referendo sobreo aborto e com larga maioria no referendo sobre as regióes administrativas.

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6. O REGIME DO REFERENDO NACIONAL

21. O referendo nacional tem a sua sede no art. 115° da Constituigáo(118° em 1989). Completam-no os arts. 119°, n° 1, alinea i), 134°, alineac), 139°, n° 1, 161°, alinea j), 197°, n° 1, alinea e), e 223°, n° 1, alineaf); e, quanto ao tratamento legislativo (por via de «lei orgánica»), os arts.136°, n° 3, 164°, alinea b), 166°, n° 2, 168°, n°s 4 e 5, e 278°, n°s 4 a 7.

O procedimento consta hoje da Lei n° 15-A/98, de 3 de Abril (querevogou a Lei n° 45/91, de 3 de Agosto).

22. Sao os seguintes os traeos substantivos do regime que se extraemdessas normas:

a) O referendo tem por objecto questoes de relevante interesse na-cional (art. 115°, n° 2, Ia parte) — nao de interesse regional ou local;

b) O referendo tem por objecto questoes que devam ser decididaspela Assembleia da República ou pelo Governo através de aprovacáo deconvengáo internacional ou de acto legislativo (art. 115°, n° 3) — e naoquestoes que devam ser decididas por outros órgaos ou por outras formas;

c) As questoes a decidir podem ser — 1) questoes ainda nao objectode convencao ou de lei; 2) questoes objecto de actos em formacao, emqualquer fase do respectivo item ou procedimento; 3) ou questoes objectode actos já existentes, sejam convencoes (para efeito de reservas ou dedesvinculagáo, se internacionalmente admissíveis), sejam leis (para efeitode modificacáo, suspensáo ou revogagáo);

d) Sao excluidas do referendo as alteracoes á Constituicao e materiasde reserva absoluta de competencia legislativa da Assembleia da Repú-blica, salvo ensino, e financeiras (art. 115°, n° 4) — nao podendo a lei(após 1997) excluir quaisquer outras;

e) Cada referendo recai sobre urna só materia, num número máxi-mo de tres perguntas formuladas com objectividade, clareza e precisáo(art. 115°, n° 6 e art. T da Lei n° 15-A/98);

f) Através do referendo o povo nao aprova convencao ou acto le-gislativo; decide, sim, se o órgáo competente deve ou nao aprovar(art. 115°, n° 3, de novo) — o que significa que a sua natureza de actopolítico stricto sensu, se bem que, quando se reflicta em acto legislati-vo, com forca afim da forga de lei;

g) Nenhuma questáo fica necessariamente sujeita a referendo; mas,se este se efectuar, os seus resultados — sejam positivos ou negativos arespeito das perguntas formuladas — vinculam o órgáo competente, im-pondo-se a sua liberdade de decisáo (art. 115°, n° 1, e arts. 241° e 243°da Lei n° 15-A/98);

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h) Se, contudo, o número de votantes nao for superior a metade doseleitores inscritos no recenseamento nao produz efeito vinculativo(art. 115°, n° 11, aditado em 1997) — quer dizer, nao produz efeito jurí-dico nenhum;

i) O carácter vinculativo acorrenta outrossim, pela natureza das coi-sas, consequéncias determinantes sobre alguns actos do Presidente daRepública, o qual nao pode recusar a ratificacáo, a assinatura ou a pro-mulgacáo (consoante as hipóteses) por discordancia com o sentido apu-rado no referendo (art. 242° da Lei n° 15-A/98);

j) Afora isto, a Constituicao nao prevé forma alguma específica degaranda de respeito dos resultados do referendo, nem por accáo nem poromissáo, mas qualquer tribunal, num caso concreto que tenha de deci-dir, pode e deve (com base na sua funcao genérica de defesa da legalidadedemocrática) recusar-se a aplicar qualquer norma que contenda com taisresultados.

23. O processo referendario assenta num específico relacionamentoentre a Assembleia da República e o Governo, dotados de poder de ini-ciativa, e o Presidente da República, único órgao com poder de con-vocagáo — o que deve entender-se congruente com o sistema de governosemipresidencial vindo de 1976:

a) A iniciativa postula a competencia — a Assembleia ou o Governosó podem propor referendos sobre questoes que entrem ñas suas com-petencias [arts. 115°, n° 1, 2a parte, 161°, alineas c) e i), 165°, 197°, n° 1,alinea c), e 198°, n° 1);

b) A iniciativa da Assembleia da República decorre, por sua vez, deiniciativa de Deputados, de grupos parlamentares e do Governo nos ter-mos gerais, bem como de cidadaos eleitores em número nao inferior a75.000 (arts. 167°, n°s 1 e 3, e 115°, n° 2 da Constituicao e art. 16° daLei n° 15-A/98);

c) A aprovagáo pelo Parlamento ou a apresentacáo pelo Governo deproposta sobre questao objecto de acto em formacáo implica a suspensaodo respectivo processo (art. 4o da Lei n° 15-A/98);

d) As propostas de referendo tomam a forma de resolugao publica-da no Diario da República [arts. 166°, n° 5 e 119°, n° 1, alinea e) daConstituicao, e art. 23°, n° 2 da Lei n° 15-A/98];

e) O Presidente da República submete a fiscaliza?ao preventiva obri-gatória da constitucionalidade e da legalidade as propostas de referendo(art. 115°, n° 8);

f) O Presidente da República interino nao pode decidir a convocadode referendo (art. 139°, n° 1);

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O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL EM 1998

g) Sao vedadas a convoca9áo e a realizacáo de referendo entre a datada convocacáo e a da realizacáo de eleicoes gerais (art. 115°, n° 7);

h) Nao pode ser praticado nenhum acto relativo á convocacáo ou arealizacáo de referendo (mas nao, parece, á sua iniciativa) em estado desitio ou de emergencia (art. 9o, n° 1 da Lei n° 15-A/98);

i) As propostas de teferendo recusadas pelo Presidente da Repúbli-ca ou cujas perguntas tenham obtido resposta negativa nao podem serrenovadas na mesma sessáo legislativa, salvo nova eleicáo da Assembleiada República, ou até á demissáo do Governo (art. 115°, n° 10).

7. O REGIME ESPECÍFICO DO REFERENDO SOBREAS REGIOES ADMINISTRATIVAS

24. A Constituicáo de 1976 previu dois tipos de regioes, entidadesterritoriais menores supramunicipais: as regioes autónomas nos arqui-pélagos atlánticos dos Acores e da Madeira e as regioes administrativasna parte continental do país, aquelas semelhantes as regioes autónomasitalianas, estas como a natureza de autarquías locáis. E enquanto que asprimeiras foram criadas e postas logo a funcionar nesse mesmo ano, asregioes administrativas foram sendo sucessivamente adiadas.

Nos últimos anos pareceu querer-se por fim á inercia. A Lei n° 56/91, de 13 de Agosto (dita «lei-quadro da regionalizacáo») definiu asatribuicoes regionais e as competencias dos respectivos órgaos; e, depoisde múltiplas vicissitudes entre 1996 e 1998, a Lei n° 19/98, de 28 deAbril, instituiu as regióes e delimitou as suas circunscricoes. Todavia, osacidentes de percurso, os contrastes entre os dois principáis partidos e aocorréncia da revisáo constitucional acabaram por ter um remate menosfrutuoso e até contraproducente.

A revisáo reforc,ou consideravelmente a autonomia — legislativa, po-lítica e financeira dos Ac.ores e da Madeira — ao mesmo tempo que, porcompromiso entre aqueles partidos, sujeitou a criagáo das regióes a umreferendo nacional, concomitante com referendos a nivel das diversasregioes (novo art. 265° da Constituicáo). A contradicáo nao poderia sermais obvia.

Mas este referendo — com regime específico — nao implica urnacondic.áo resolutiva; traduz-se, sim, numa condicáo suspensiva. Sem umresultado positivo, as regioes administrativas continuam, constitucional-mente, a existir a nao se revogam as pertinentes normas constitucionais;contudo, só em nova sessáo legislativa ou após nova eleic.áo da Assem-bleia da República, pode ser recolocada a questáo ao sufragio dos cida-daos (art. 112°, n° 10). Em contrapartida, se o resultado for positivo, naopoderá voltar-se atrás, submetendo a novo referendo as regioes (para

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eventual extingáo ou cessacáo de concretizagao); isso só será possível porvia de nova revisáo constitucional.

25. O regime especial consiste no seguinte (art. 256°, completadopelos arts. 245° e segs. da Lei n° 13-A/98):

a) É um referendo de incidencia constitucional, por versar sobre urnafigura constitucional, conquanto nao seja um referendo de revisao (por-que nao está em causa a subsistencia ou nao das regioes administrativascomo autarquías locáis);

b) Enquanto que a decisáo referendária em geral é sempre anteriorao acto legislativo, o referendo sobre as regioes administrativas insere-se numa cadeia ou processo mais ampio e complexo, com urna ou duasleis precedentes (as referidas «lei-quadro da regionalizagáo» e a lei dedelimitagao territorial das regioes) e diversas leis sucessivas (as leis cor-respondentes as diversas regioes); e, por isso, no tocante as leis prece-dentes funciona, em parte, como sancao popular;

c) O referendo é obrigatório, na medida em que sem a sua rea-lizagao, e realizacao com resultado positivo, nao podem ser criadas emconcreto essas regioes;

d) Por isso mesmo o Presidente da República é obrigado a proce-der á convocagao e nao parece valer aqui o limite á competencia do Pre-sidente interino;

e) A iniciativa é exclusiva do Parlamento; e somente a ele cabedecidir se e quando formula a proposta;

f) A par de urna pergunta de ámbito nacional, o referendo com-preende, no Continente, urna pergunta relativa á instituicao em concretode cada urna das regioes, como efeitos circunscritos a cada urna6.

26. No acórdao n° 709/97, de 10 de Dezembro de 19977 (emitidono ámbito da apreciagáo preventiva de um primeiro diploma de criagáo

6 Ponto duvidoso consiste em saber se também a este referendo se aplica o dispostono art. 115°, n° 11.

Em favor pode invocar-se o principio ubi lex non distiguit... e o argumento de maioriade razao (se em referendo ordinario se exige a participacao de mais de metade dos eleitoresinscritos, em referendo de alcance constitucional nao poderia admitir-se urna menor par-ticipacao).

Contra, poderia replicar-se que com este referendo se nao faz senáo conferir exequi-bilidade a urna decisao constituinte e mantida em sucessivas revisoes constitucionais (a deinstituicáo de regioes administrativas) e que o voto negativo tem aqui efeitos mais gravososdo que no referendo ordinario (no referendo em geral o voto negativo dos eleitores naoimpede o Parlamento de, na sessao legislativa seguinte, fazer ele próprio a lei, ao passo queno referendo sobre as regioes administrativas ele apenas pode propor nova convocacao).

7 Diario da República, Ia série-A, n° 16, de 20 de Janeiro de 1998.

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O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL EM 1998

concreta das regioes administrativa), o Tribunal Constitucional teve opor-tunidade de examinar alguns problemas importantes como o da dife-renciacáo de normas estatutarias aplicáveis a cada regiáo (art. 255°, infine), o da alteracáo dos limites geográficos e o da forca jurídica doreferendo e das leis orgánicas.

O problema mais difícil era o das alteracoes, por ser impensável aimodificabilidade definitiva das áreas regionais. E ofereciam-se duas viasde solucáo: ou que tais alteracoes poderiam e teriam de ser feitas porlei da Assembleia da República — a lei de regime de cria?ao, extincáoe modificacao de autarquias locáis [art. 164°, alinea n)], com a con-sequente exclusao de referendo (art. 115°, n° 4); ou que, em nome doparalelismo de formas, seria de postular um procedimento referendario.

Alguns juízes optaram pelo primeiro termo (Luís Nunes de Almeida,Ribeiro Mendes, Guilherme da Fonseca), mas a maioria — e parece-nosque com toda a razáo — seguiu a segunda via. Com efeito, embora asregioes administrativas sejam autarquias locáis, a Constituicao construiupara elas todo um sistema próprio de criacáo (arts. 255° e 256°), com oqual nao poderia ser desarmónica a materia das alteracoes. Se pertenceaos cidadaos decidir se aceitam ou nao a formacáo (originaria) das res-pectivas regioes, lógicamente há-de-lhes pertencer também decidir acer-ca de mudancas das suas áreas (as quais podem envolver até o desdo-bramento ou a fusáo de regioes).

Havia, porém, que distinguir, atendendo á amplitude das alteracoes(n° 4 do acórdáo). Alteracoes que implicassem urna verdadeira substi-tuicáo do «modelo» inicialmente adoptado exigiriam um referendo na-cional, ao passo que alteracoes de menor alcance (como explicitou melhoro Juiz José de Sousa e Brito) poderiam confinar-se as regioes afectadas.Já referendos circunscritos aos municipios ou as freguesias que estivessemem causa nao seriam admissíveis em face do art. 256° e do art. 240° (quesó prevé referendo local para tratamento de materias incluidas ñas com-petencias de órgáos locáis).

O decreto da Assembleia da República poderia ter recebido urna in-terpretacao conforme á Constituicao, mas a maioria do Tribunal enten-deu-o como afastando o recurso a referendo. Por isso e por causa dasdiferenciagoes estatutarias, a Assembleia teve de expurgar as inconsti-tucionalidades detectadas, aprovando entao o que viria a ser a referidaLei n° 19/98, de 28 de Abril.

8. O PROCESSO DE FISCALIZACÁO DOS REFERENDOSPELO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

27. Como bem se sabe, a fiscalizacao da constitucionalidade a car-go dos tribunais em geral e do Tribunal Constitucional em especial diri-

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ge-se ex professo a normas jurídicas, a actos normativos (arts. 204° e 277°e segs.). Nao abrange actos nao normativos, seja qual for a funcao doEstado a que se reconduzam.

Todavia, os referendos — nacional, regional e local — fazem ex-cepgáo a esta regra. Acham-se sujeitos a controlo de constitucionalidadee de legalidade — e, desde logo, a controlo preventivo — o que bem secompreende, porque eles podem comportar implicares normativas e por-que se pretende evitar factos consumados derivados de qualquer mani-festacáo da vontade popular (como sucedeu, por exemplo, em Fran?a, em1962, aquando do referendo acerca da elei?ao presidencial por sufragiodirecto).

O Tribunal Constitucional recebe, inclusive, aqui urna faculdade deapreciacao que se sitúa para além do mero juízo de constitucionalidadeem sentido estrito: a faculdade de apreciacao de requisitos relativos «aorespectivo universo eleitoral» [art. 223°, n° 2, alinea f), 2a parte], emvirtude de, a partir de 1997, os cidadáos portugueses residentes no es-trangeiro com «lacos de efectiva ligagáo á comunidade nacional» seremchamados a participar em referendos que recaiam sobre «materia que lhesdiga também especificamente respeito» (arts. 115°, n° 12 e 121°, n° 2).Menos líquido é que o Tribunal Constitucional possa ocupar-se da qua-lifica?áo de urna questao como sendo ou nao de «relevante interesse na-cional» (citado art. 115°, n° 3), pois, sendo tal qualificagao eminentementepolítica, o único criterio atendível afigura-se ser o do órgao autor daproposta.

28. Pela natureza das coisas, o controlo de constitucionalidade e delegalidade deve ser o mais ampio possível, abarcando todos os possíveisvicios, de fundo, de competencia ou de forma, que venham a inquinar oreferendo.

Evidentemente, sobre o Tribunal Constitucional impende a tarefa deindagar da observancia de todas as regras orgánicas e procedimentais(saber se a proposta veia da Assembleia da República ou do Governo,ou se aquela ou este é competente para tomar a iniciativa da propostaapresentada, ou se foram respeitados os limites temporais ou circuns-tanciáis, ou se a aprovagao parlamentar o foi nos devidos termos, ou seo referendo abarca urna ou mais de urna materia, ou se as perguntas seencontram bem formuladas).

Mas, antes de mais — lógica e cronológicamente (ao invés do quesucede, em geral, na fiscaliza§ao de constitucionalidade dos arts. 278° esegs. da Lei Fundamental) — cabe ao Tribunal verificar se o objecto doreferente é possível (se a materia nao se incluí no elenco do art. 115°,n°s 4 e 5) e verificar se a resposta a pergunta ou as perguntas submetidasao eleitorado nao se traduz numa decisáo e, consequentemente, numa

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norma contraria á Constituicao (inconstitucionalidade) ou a lei de valorreforcado (ilegalidade).

Insistimos: com o referendo político vinculativo nacional nao se de-creta lei, nem se aprova tratado ou acordó internacional; simplesmente,se o resultado for afirmativo, o Parlamento ou o Governo fica constituidono dever de decretar ou de aprovar. Logo, apreciar a constitucionalidadee a legalidade do referendo significa, forcosamente, apreciar, do mesmopasso, a validade substantiva do acto que vira, eventualmente, a ser emi-tido como sua decorréncia obrigatória (por exemplo, no limite, um refe-rendo a pena de morte nunca poderia ser realizado, porque iria por emcausa a proibicao absoluta constante do art. 24°, n° 2).

E tanto é assim que, efectuado qualquer referendo já nao pode o Pre-sidente da República requerer a fiscalizacao preventiva de acto legislati-vo correspondente ao sentido nele apurado (art. 242° da Lei n° 15-A/98):o Presidente nem pode exercer ai veto político, nem alegar inconsti-tucionalidade. Seria urna repeticao. Só mais tarde poderá vir a dar-sefiscalizagáo sucessiva, concreta ou abstracta (nunca precludida, como sesabe, pela fiscalizagao preventiva).

29. O processamento da fiscalizacao nao vem na lei orgánica doTribunal Constitucional, mas sim na lei do regime de referendo (arts. 26°e segs.) — o que se justifica, até certo ponto, por se situar necessaria-mente no interior do procedimento referendario.

Importa reter, nesta fase, os seguintes aspectos:

a) Iniciativa obrigatória e exclusiva do Presidente da República;b) Desnecessidade de fundamentacáo do pedido (ao contrario do que

sucede na fiscalizacáo da constitucionalidade das leis ex vi art. 51° daLei n° 28/82); embora nao impossibilidade, na hipótese de o Presidentecontestar ou ter dúvidas sobre a constitucionalidade do referendo (poisele nao está reduzido ao estatuto de transmissor passivo da proposta dereferendo e dispoe de certo tempo para a examinar);

c) Prescricáo de prazos estritos para a abertura do processo (oitodias) e para a decisáo (vinte e cinco dias), susceptível este de ser en-curtado, por urgencia, pelo Presidente da República, assim como, dentrodo Tribunal, para a distribuicao, a elaboracáo de memorando pelo rela-tor designado e a reuniao do plenário;

d) No caso de pronuncia no sentido da inconstitucionalidade ou dailegalidade, devolucáo ao órgáo donde tenha provindo a proposta;

e) Admissibilidade de expurgo do vicio e de reformulagáo da pro-posta;

f) Sujeicao da proposta eventualmente reformulada a nova fiscali-zacáo preventiva.

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9. O REFERENDO SOBRE A INTERRUPCÁO VOLUNTARIADA GRAVIDEZ E O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

30. O Tribunal já fora chamado, por duas vezes, a apreciar a pro-blemática da constitucionalidade de normas discriminalizadoras da in-terrupcao voluntaria da gravidez. Fé-lo através do acórdáo n° 25/84, de19 de Margo e do acórdao n° 85/85, de 29 de Maio (o primeiro emfiscalizacáo preventiva, o segundo em fiscalizacao sucessiva)8.

Em apreco tinha estado o diploma que veio considerar como situacáode exclusao da ilicitude (ou depois da reforma do Código Penal de 1995)de nao punibilidade o aborto efectuado por médico, ou sob a sua di-reccáo, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecidoe com o consentimento da mulher grávida quando, segundo o estado dosconhecimentos e da experiencia da medicina:

a) Constituísse o único meio de remover perigo de morte ou de gra-ve e irreversível lesao para o corpo ou para a saúde física ou psíquicada mulher grávida;

b) Se mostrasse indicado para evitar perigo de morte ou de grave eduradoura lesao para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulhergrávida, e fosse realizado ñas primeiras 12 semanas de gravidez;

c) Houvesse seguros motivos para prever que o nascituro viria osofrer, de forma incurável, de grave doenca ou malformacáo, e fosse rea-lizado ñas primeiras 16 semanas de gravidez;

d) Houvesse serios indicios de que a gravidez tinha resultado deviola?áo da mulher, e fosse realizado ñas primeiras 12 semanas de gra-videz.

Em ambos os acordaos, o Tribunal entendeu, por maioria, que naose verificava inconstitucionalidade por tres motivos principáis: Io) por-que, embora a vida intra-uterina constituísse um bem jurídico constitu-cionalmente protegido (art. 24° da Constituicao), ele nao teria de recebera mesma tutela que o direito a vida propriamente dita e poderia, inclusi-ve, ceder ante outros direitos ou valores também constitucionalmenteprotegidos; 2o) porque nao existiram imperativos constitucionais absolu-tos de criminalizagáo ou descriminalizacao, mas únicamente urna ordemde valores constitucionais (e nao hierarquizados); 3o) haveria outiros meiosde combate ao aborto (como a educa£ao sexual e o apoio socio-econó-mico á mulher grávida).

8 Cfr. a crónica publicada no Annuaire International de Justice Constitutionnelle, 1986,págs. 185 e segs.

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31. Em 1997, o problema voltaria ao Parlamento. Dos tres projectosentáo apresentados só seria, porém, aprovado o que alargou para 24 e16 semanas, respectivamente, os prazos relativos ao aborto eugénico eao aborto ligado a violacáo, procurando, ao mesmo tempo, definir, emmoldes científicamente mais correctos, doenga congénita, malformagáo einviabilidade do feto; daí a Lei n° 90/97, de 30 de Julho.

Em 1998, logo na sessáo legislativa seguinte (passado o período dedefeso imposto pelo art. 167°, n° 4 da Constituigáo) seriam retomados,com algumas modificacoes, os projectos rejeitados no ano anterior. Sub-metidos a votacáo na generalidade, também só um viria a ser aprovado.Entretanto, o procedimento parlamentar nao prosseguiria até a fim, por-que o Partido Socialista e o Partido Social-Democrata decidiriam promo-ver a realizacáo de um referendo sobre o assunto.

O projecto aumentava de doze para dezasseis semanas o prazo dedespenalizagáo do aborto, quando este se mostrasse «indicado para evi-tar perigo de morte ou de grave e duradoura lesao para o corpo ou paraa saúde física ou psíquica da mulher grávida, designadamente por razSesde natureza económica ou social». A novidade consistía, porém, na des-penalizagáo da interrupgáo voluntaria da gravidez quando, realizada atéas dez semanas, após consulta de acompanhamento e para «preservagáoda integridade moral, da dignidade social e da maternidade consciente»da mulher. E foi acerca deste ponto que veio a ser elaborada a pergun-ta da proposta de referendo e que, consequentemente, versou o acórdáon° 288/989.

32. Sendo o primeiro acórdáo sobre urna proposta de referendo po-lítico vinculativo nacional, ele nao poderia deixar de cuidar do institutoe de patentear o alcance atribuido pelo Tribunal ao seu próprio poder decontrolo.

Reconhece, pois, o aresto (n° 26) a indispensável emissáo de umjuízio de constitucionalidade substantiva sobre o sentido da perguntareferendada, por o principio maioritário ter de se conjugar com o prin-cipio da constitucionalidade. E aquele principio, sublinha, é bem menosatingido quando, por razoes de constitucionalidade se impede a expressáoda vontade popular directa do que quando se inviabiliza a execugáo dessavontade depois de livremente manifestada.

Reconhece igualmente que nada deveria obstar á sujeicáo a referendode questáo pertinente a acto legislativo em processo formativo, até por-que, a nao ser dessa sorte, bastaría a apresentacáo ao Parlamento de umprojecto ou urna proposta de lei sobre certa materia para se impedir arealizacáo de um referendo. Diversa seria a hipótese se o projecto tivesse

9 Publicado in Diario da República, 1* série-A, n° 91, de 18 de Abril de 1998.

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sido aprovado definitivamente (quer dizer, em votacáo final global)— embora isto nao signifique, acrescentamos nos, que a revogacao ou amodifica?ao de qualquer lei nao possa vir a ser questao referendável.

Eis aqui um interessante entrecruzamento de democracia representa-tiva e de democracia semidirecta, cujo exame quer der jure condito querde jure condendo excedería o escopo da presente crónica.

33. A pergunta do referendo era a seguinte: «Concorda com a des-penalizacao da interrup^ao voluntaria da gravidez se realizada, por opgáoda mulher, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?».

Ressalta á vista a sua extensáo compósita e aglutinante, com possíveisdificuldades de apreensáo clara e imediata. Teria sido preferível desdobrá-la. Talvez fosse exagerado, mesmo assim, sustentar que nao era objectiva.Aquilo de que poderia, pelo contrario, ser acusada seria de se mostrarpor demais redutora, nao esgotando as margens de escolha dos cidadáos10.

Sem grandes reticencias, o Tribunal admitiu a pergunta e quanto aouniverso referendario, aceitou que os portugueses recensados no estran-geiro nao fossem chamados a participar (por causa, nomeadamente, daterritorialidade do Direito penal).

34. A parte nuclear e mais controvertível do acórdao vem a ser aanálise do problema de constitucionalidade da resposta afirmativa á per-gunta (n° 27 e segs.).

Consciente da sua gravidade, o Tribunal comeca ai por dar conta dointenso debate sobre ele em varios países europeus e em Portugal, comsucessivas tomadas de posigáo da justica constitucional. E nota que, namaior parte desses países, se permite a interrupcáo voluntaria da gravi-dez até ao terceiro mes, por opgáo da mulher, em estabelecimento desaúde, embora tal opgáo suponha sempre urna previa consulta de acon-selhamento e um período de reflexao.

Na esteira dos dois acordaos anteriores, o Tribunal reafirma a di-mensao objectiva inerente á vida intra-uterina, mas sustenta que a suaprotecc.ao nao tem de assumir sempre idéntico grau de densificacjío, sendoeste tanto maior quanto mais próximo estiver o nascimento. E vai maislonge, dando um salto que ali nao fora dado: que a harmonizácáo entrea protecgáo da vida intra-uterina e certos direitos da mulher, na procurade urna equilibrada ponderacáo dos interesses, é susceptível de passarpelo estabelecimento de urna fase inicial do período da gestacao em quea decisao sobre urna eventual interrupcao cabe á própria mulher11.

10 O que viria a explicar, depois, segundo alguns observadores, o grande número deabstencóes no referendo que depois viria a realizar-se.

11 Sublinhados nossos.

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Uma coisa vem a ser, porém, a exclusao da ilicitude da interrupcáovoluntaria da gravidez, conferindo-se á mulher, dentro de certo prazo,determinar os casos e as circunstancias que a podem justificar. Outracoisa uma inteira liberdade da mulher de controlar a sua capacidadereprodutiva, um direito constitucional a livremente abortar — coisa queo Tribunal rejeita (tal como rejeita o aborto como método de controlode nascimentos).

Ou seja: a colisáo de bens jurídicos constitucionalmente amparadospode ser resolvida pelo legislador, dentro do seu campo de conformacáoou discricionariadade, punindo-se — suposto que permaneca o modelode infraccao — ou nao se punindo a interrupcáo voluntaria da gravidez.

De resto — e, neste trecho, orienta o Tribunal sem ambiguidades ourodeios pela segunda alternativa — nao existe consenso social em tornoda criminalizacáo, nem se exclui que se esteja perante um direito penalsimbólico, nem se demonstra que os meios penáis nao possam ser van-tajosamente substituidos por outros de maior eficacia prática.

A isto acresce que as circunstancias de facto, a quais só o legisladorpoderá dar resposta, permitem que, suma sociedade europeia em quepraticamente foram abolidas as fronteiras, se crie uma escandalosa si-tuacáo de desigualdade perante a lei penal: quem usufruir de razoávelsituacáo económica e pretender interromper a gravidez, quicá por co-modismo, poderá impunemente fazé-lo suma boa clínica de um país euro-peu; mas, quem nao tiver capacidade económica e for levada ao abortopor necessidade correrá o duplo risco da intervencáo clandestina e dasangáo penal.

35. Como seria de esperar, foi á volta da questáo da interrupcáovoluntaria da gravidez que, como sucederá em 1984 e em 1985, maisfortemente se dividiram os juízes constitucionais: 7 contra 6.

Para os juízes vencidos, nao seria admissível invocar a cánone her-menéutico da harmonia ou concordancia prática, pois a resposta afirma-tiva a pergunta proposta conduziria ao esmagamento de um dos bensjurídicos em presenca — e o mais essencial de todos, a vida humana —em favor do outro — os direitos da mulher; provocaría uma descon-siderafáo absoluta das 10 primeiras semanas de um ser humano em devir(Tavares da Costa).

Haveria situacóes em que se compreenderia que a mulher nao levassea gravidez até ao fim, mas situacoes a averiguar em concreto e submetidasa análise dos principios quer da nao exigibilidade, quer, mais precisa-mente, do estado de necessidade (desculpante). O que nao se compreen-deria seria uma norma de despenalizacáo da interrupcáo voluntaria dagravidez inteiramente livre, fosse por carencia de meios económicos ede insercáo social, fosse por puro comodismo, fosse em resultado de um

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verdadeiro estado depressivo da mae que visasse apenas, por exem-plo, selar a destruicáo das relacoes com o outro progenitor (Paulo MotaPinto).

Em segundo lugar, as declarac.oes de voto dissidentes insistiram nafuncáo do Direito penal enquanto mediador privilegiado da transposicáodos valores jurídico-constitucionais para a diuturna vida jurídica e social(Cardoso da Costa). Ao direito a nascer, como pressuposto do direito ávida, corresponderia uma obrigacao positiva do legislador penal (VitorNunes de Almeida, Messias Bento). Nao se divisariam outros meios aque se pudesse recorrer para adequadamente proteger um bem, afirman-do a sua dignidade ética para a comunidade jurídica (Paulo Mota Pin-to, Cardoso da Costa); nem seria líquido que uma resposta positivaviesse a contribuir para a diminui?áo do aborto clandestino (Paulo MotaPinto).

De todo o modo, ainda que, no limite, se defendesse que a simplesdiscriminalizacao se compatibilizaria com o principio da inviolabilidadeda vida humana, ficando esta protegida por formas de tutela jurídica semcarácter penal, já nunca o seria a liberalizacao no sentido de tornar ainterrupgao voluntaria da gravidez um acto lícito, nao condicionado porqualquer causa justificativa (Maria dos Prazeres Beleza).

36. Por nos, tal como os juízes minoritarios, nao enxergamos comopossa deixar-se á simples «op§ao da mulher» a decisáo sobre um serhumano até dez semanas de existencia — particularmente no contexto deuma Lei Fundamental como a nossa táo preocupada (talvez mais do quequalquer outra, como se vé pela expressáo peremptória usada no art. 24°,n° 1 e pela recusa frontal e absoluta da pena de morte do art. .24°, n° 2e do art. 33°, n° 4) com a defesa da inviolabilidade da vida humana.

O próprio acórdao (no n° 52) confessa honestamente que nao constamda pergunta formulada «elementos comuns a generalidade das legislacoeseuropeias sobre a materia, como sejam a obrigatoriedade de uma previaconsulta de aconselhamento, em que possa ser dada á mulher a infor-ma?ao necessária sobre os direitos sociais e os apoios de que poderiabeneficiar no caso de levar a termo a gravidez, bem como o estabe-lecimento de um período de reflexáo entre essa consulta e a intervengaoabortiva, para assegurar que a mulher tomou a sua decisao de forma livre,informada e nao precipitada, evitando-se a interrup?áo da gravidez mo-tivada por súbito desespero».

Mas nao se afigura satisfactorio o modo como o acórdao procuraultrapassar o obstáculo, lembrando a impossibilidade de introduzir todosesses elementos na pergunta e sugerindo que nada permite concluir queeles nao possam vir a constar de legislado a aprovar na sequéncia deresposta positiva. É que, independentemente de eventual crítica ao teor

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da pergunta, o objecto do referendo está balizado pela pergunta em simesma, e nao, virtualmente, pela lei que, depois, vira a ser decretada12.No sistema do art. 115° nao tem cabimento qualquer integragáo ou com-plementacáo a posteriori.

Por certo, medidas como essas e, em geral, a efectivacáo dos direitoseconómicos, sociais e culturáis háo-de ser muito mais eficazes na pre-vencáo e no combate ao aborto do que medidas crimináis (até por asociedade portuguesa ser hoje urna sociedade totalmente aberta ao exte-rior e filosóficamente nao homogénea). Se o sistema de direitos fun-damentáis da Constituicáo tem de ser entendido de modo global, articu-lado e coerente, também a experiencia tem mostrado como é ilusoriosupor que os direitos, liberdades e garandas e direitos sociais se acan-tonem em compartimentos estanques. A «proibicáo de um défice de pro-teccáo» vale para uns e para outros direitos.

Simplesmente, descriminalizacao nao pode equivaler a legalizacao. Emnome da laicidade ou aconfessionalidade do Estado há quem defenda quea lei penal nao deve tipificar como crime aquilo que urna parte da so-ciedade nao considera crime. Por conseguinte, em nome dessa mesmalaicidade também outra parte da sociedade pode pretender que nao sejalegalizado e nao apenas tornado nao ilícito aquilo que considera crime— pois redunda em legalizar admitir que nao é crime praticar a inter-rupcáo voluntaria da gravidez por opcao da mulher dentro de estabe-lecimento de saúde legalmente autorizado (ao passo que continua a sercrime se praticado fora).

Se a referencia a estabelecimento de saúde já constava de lei de 1984,ela aparecia ai incindível de causas objectivamente reconhecíveis de ex-clusao de ilicitude (ou, depois, de nao punibilidade). Agora dispensam-se quaisquer causas e o único factor relevante a acrescer á decisao damulher é o local. Mais ainda: o Estado assume a tarefa de propiciarestabelecimento adequado para a mulher, até as dez semanas de gravi-dez, abortar, se quiser. Fica entao patente urna mudanca qualitativa emconfronto com as normas vigentes e como se está tanto em contradicáocom a garantía constitucional da inviolabilidade da vida humana.

37. Urna última nota para mencionar criticamente ter tido o Tribu-nal Constitucional (neste acórdáo e no acórdáo sobre regioes adminis-trativas) por verificada a constitucionalidade e a legalidade do referendo.

Nao se desconhece que o art. 223° da Constituicao fala em inconsti-tucionalidade e em ilegalidade no n° 1 (a propósito de normas jurídi-cas) e em constitucionalidade e em legalidade no n° 2 (na alinea concer-

12 De resto, se no projecto de lei se previa a visita a consultas de aconselhamentofamiliar, ela era apenas a título meramente informativo, e nao (como noutros países) a títu-lo de salvaguarda, na medida do possível, da vida do embriáo.

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nente ao referendo). Daí nao pode decorrer, entretanto, nenhum efeitojurídico distintivo. Nao se vislumbra motivo algum que justifique umaafirmacáo positiva de constitucionalidade no controlo do referendo, emvez de pronuncia pela nao inconstitucionalidade do art. 279°. Nem, muitomenos, seria aceitável supor que ela obteria foros de decisáo definitiva,precludindo a faculdade de, em fiscalizac.ao sucessiva, o próprio Tribu-nal Constitucional ou qualquer outro tribunal vir a conhecer da con-formidade com a Constitui?ao de normas feitas em obediencia á vontadepopular referendária.

Seria, em suma, um desvio absurdo ao principio reiterado nos arts. 3o,10°, 108, 204° e 277° e segs. imaginar que um referendo de respostafavorável derrogaria ou impediría o pleno funcionamento do sistema defiscalizacáo jurisdicional da constitucionalidade. O sentido do art. 223°,n° 2, alinea f), é apenas aquele que atrás ficou exposto (e que, parece, oacórdáo tao pouco enjeita).

10. O FRUSTRADO REFERENDO EUROPEU

38. Aquando do Tratado de Maastricht, um dos temas que mais sedebateu foi o da realizacáo de um referendo, a semelhanca do que entáosucedeu na Dinamarca, na Irlanda e na Franga.

O art. 118° da Constituicáo (hoje 115°) nao o consentía, por impedirreferendos sobre alteracoes constituicionais e a respeito de tratados cons-titutivos de organizacoes internacionais (tomando-se organizagoes inter-nacionais numa acepcáo lata e menos rigorosa em Direito internacional).Porém, porque a aprovacáo do Tratado requeria uma previa revisáo cons-titucional (como também noutros países), poderia ultrapassar-se o obstá-culo ou modificando esse art. 118o ou consignando uma norma transitoria:ou seja, primeiro, alterar-se-ia a Constituigáo e depois promover-se-ia oreferendo (ainda que, para tanto, houvesse de se levar a cabo duas su-cessivas revisoes)13. Estas sugestoes nao foram acolhidas pelo Parlamento.

Em 1996-1997, agora na perspectiva de um novo Tratado, o assuntovoltaria a ser posto em foco e, dessa feita, inserir-se-iam emendas derelevo nos preceitos constitucionais. Passaram a ser admitidos referendossobre quaisquer questoes que devessem ser decididas através de aprovacáode convec.oes internacionais, excepto questóes relativas á paz e á recti-fica§áo de fronteiras (art. 115°, n°s 2, 4 e 5, alias de deficientíssima

13 Cfr. JORGE MIRANDA, «Le Traite de Maastricht et la Constitution Portugaise», inRevue frangaise de droit constitutionnel, 1992, págs. 679 e segs. ou «O Tratado de Maas-tricht e a Constitui?ao Portuguesa», in A Uniao Europeia na Encruzilhada, obra colectiva,Coimbra, 1996, págs. 45 e segs.

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redaccáo). E, portanto, passou a ser possível submeter a referendo ostratados europeus.

Na sequéncia da revisáo de 1997, a Assembleia da República aprovouurna proposta de referendo respeitante ao Tratado de Amesterdáo (entre-tanto assinado) e, com observancia do art. 115°, n° 8, o Presidente daRepública submeteu-a á apreciacáo do Tribunal Constitucional, acom-pañando o pedido de um elenco de dúvidas de constitucionalidade e delegalidade.

O Tribunal viria a lavrar o acórdáo n° 531/98, de 29 de Julho, tiradopor 8 votos contra 5 14.

39. A pergunta era: «Concorda com a continuacáo da participadode Portugal na construcáo da Uniáo Europeia no quadro do Tratado deAmesterdáo?».

Sem grande fólego doutrinal, o acórdáo, depois de evocar as fasesdeterminantes da integracao europeia, os conceitos envolvidos na perguntae as pertinentes normas constitucionais, concluiu pela inconstituciona-lidade e pela ilegalidade (conquanto, algo estranhamente, sem mencio-nar as dúvidas do Presidente da República). A pergunta seria susceptívelde comportar mais de um sentido e faltar-lhe-iam clareza e objectividade.

Como ai se escreve (n° 15), os cidadáos eleitores menos informadospoderiam ser levados a supor que urna resposta negativa teria como efeitonecessário a cessac,áo dessa «continuacáo», com o consequente abando-no da Uniáo Europeia por Portugal (o que implicaría urna altera?ao cons-titucional, coisa vedada a referendo). Nao assinalando que o que se pre-tendia era dar um novo passo no ámbito da constru$áo europeia e, antes,sugerindo a ideia de continuidade; a pergunta encontrar-se-ia formuladade modo a conduzir os eleitores que pretendessem que Portugal con-tinuasse a participar na construgáo da Uniáo Europeia a dar o seu votoafirmativo no referendo, desvalorizando aquilo que era essencial — asalteracoes a introduzir com a aprovacáo do Tratado de Amesterdáo.

Pelo contrario, os juízes minoritarios sustentaram que poderia formu-lar-se a pergunta remetendo para o sentido geral de urna convencáo, semque isso prejudicasse a clareza da pergunta.

Nao se deveria confundir a clareza da pergunta, considerada em si,com a falta de esclarecimento sobre a convencáo (Paulo Mota Pinto).Nem a pergunta sugería qualquer dos sentidos possíveis das respostas.Aqueles que eram aludidos nos autos situar-se-iam num plano argumen-tativo que nao seria aquele em que se movimenta o cidadáo comum, eseria a resposta dele que se pretendería e nao a solu?áo previa de pro-blemas de interpretacáo colocados por peritos de Direito constitucional(Vitor Nunes de Almeida).

14 Diario da República, 1* série-A, n° 174, de 30 de Julho de 1998.

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40. A pergunta, quanto a nos, estava mal concebida, por juntar duasquestoes diferentes: a da Uniao Europeia, em geral e a do Tratado deAmesterdáo em particular.

O acórdáo afirma, correctamente, que um referendo sobre a «questaoeuropeia» nao poderia por em causa a permanencia futura de Portugalna Uniao Europeia (n° 14). E é assim, na yerdade, porque esta Uniao seacha constitucionalizada (nao tanto pelo art. 7, n° 6, clausula de ha-bilitacáo, quanto pelos arts. 15, n° 5, 135, alinea b), 161, alinea n), 163,alinea f) 164, alinea p) e 297, n° 1, alinea i).

Mas, evidentemente, continuando a ser Portugal urna República so-berana (art. Io) e nao tolhendo os tratados de Roma e de Amsterdao odireito de recesso dos Estados membros, bem poderá amanha a País, sequiser, exercer esse direito — embora, necessariamente, a partir de urnarevisáo constitucional ou de urna revisáo constitucional que, para o efeito,preveja um referendo.

Quem sabe com algum peso na consciéncia por terem impedido umreferendo em 1992, os dois principáis partidos dir-se-ia desejarem, maisdo que urna decisáo sobre este Tratado, urna especie de legitimacao po-pular retroactiva do Tratado Maastricht. Ora, nao existindo referendos deefeitos retroactivos, a primeira parte da pergunta («a continuacáo») eradescabida ou inútil e a segunda quedava-se sem pressuposto.

Devolvida a proposta ao Parlamento, este nao se valeria da sua pre-rrogativa de reformulacáo e a ideia de um referendo europeu seria rápi-damente esqueciada. Os factos estavam consumados e nem sequer seencarou a hipótese de um referendo acerca da entrada (porventura, irrever-sível) na moeda única.

11. O REFERENDO SOBRE AS REGIÓES ADMINISTRATIVAS

41. Tornada dependente a criacáo concreta das regióes administra-tivas de referendo, a Assembleia da República viria a propor a sua reali-zacáo depois de proceder á sua delimitacao territorial através da Lei n°19/98, de 28 de Abril (que dividiu o Continente em oito regioes).

Diversamente dos referendos anteriores, houve agora, por forca do art.256° da Constituicao, duas perguntas, urna abrangendo todo o país e outradirigida só aos eleitores do Continente: «Concorda com a instituicao emconcreto das regioes administrativas?» e «Concorda com a institui?áoem concreto da regiao administrativa da sua área de recenseamento elei-toral?».

Mais urna vez chamado a pronunciar-se, o Tribunal Constitucionalemitiu entáo o acórdao n° 532/98, de 19 de Julho15; e, mais urna vez, os

Diario da República, 1" série-A, n° 174, de 30 de Julho de 1998.

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votos dos juízes repartiram-se e cruzaram-se (sem coincidirem com osvotos manifestados nos acordaos anteriores).

42. Segundo o acórdáo, ambas as perguntas satisfariam os requisi-tos de objectividade, clareza e dilematicidade enunciados no art. 115°,n° 6 da Constituicáo e no art. 1°, n° 2 da lei orgánica do regime doreferendo e permitiriam obter dos eleitores respostas conscientes.

Mas contrabateu-se que, com a pergunta de ámbito nacional, poderiasupor-se estar em causa, simplesmente, a concretizacáo das regióes ad-ministrativas, e nao o modelo aprovado pela Assembleia da República(Luís Nunes de Almeida, Paulo Mota Pinto, Artur Mauricio). Se o textoconstitucional permitisse, simultáneamente, um referendo á própriaregionalizacáo em abstracto e um referendo ao mapa e modelo concreto,estaría impossibilitada a fixagáo do objecto obrigatório do referendo etornar-se-ia ilegítimo vincular os cidadaos a qualquer urna das conse-quéncias arbitrariamente escolhidas em consonancia com a preferencia porum dos sentidos possíveis (María Fernanda Palma).

Mereceram ainda reparos a pergunta de ámbito regional (Luís Nunesde Almeida, María Helena Brito, María Fernanda Palma) e a naoparticipagáo de cidadaos residentes no estrangeiro — esta, por nao sedever reconduzir o conceito do art. 115°, n° 12 ao conceito do interesseespecífico das regiSes autónomas do art. 227° (Paulo Mota Pinto, Car-doso da Costa).

43. Concordamos com as críticas a respeito da pergunta de ámbitonacional, nao com as demais críticas.

Essa pergunta, induzia ou podia induzir em erro os eleitores, indu-zindo-os a pensar que estavam a votar acerca da existencia ou nao dasregioes administrativas, em vez de estarem a votar e a decidir sobre olempo e o modo da sua criac.áo com base na Lei n° 19/98 e (ponto, porsinal, pouco votado durante a campanha referendária) com base na Lein° 56/91.

Mal se percebe que o Tribunal Constitucional, no mesmo dia, se ti-vesse pronunciado pela inconstitucionalidade da pergunta do referendoeuropeu e — quando enfermavam de deficiencia análoga — tivesse dei-xado passar as perguntas do referendo regional. A diferenga de atitudesapenas pode explicar-se por urna insuficiente ou inexacta nogáo da na-tureza deste referendo — urna natureza, em parte, de sancho popular (re-petimos) a certa ou a certas leis, e nao (como no referendo em geral) dedecisáo dirigida para o futuro.

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12. CRIME POR EMISSÁO DE CHEQUE SEM PROVISÁOE PRISÁO POR DÍVIDAS

44. No acórdáo n° 663/9816, o Tribunal Constitucional foi chamadoa esclarecer um ponto importante: que a punicáo do crime de emissáode cheque sem provisao com pena de prisao nao afectava mínimamenteo principio da proibicáo da prisao por dividas (muito antigo no nossoDireito e também consagrado em instrumentos internacionais de proteccáodos direitos do homem).

A impossibilidade de cumprimento da obrigacáo nao constituí elemen-to desse crime; constitui sim, o incumprimento na forma de nao paga-mento integral por falta de provisao ou por irregularidades do saque,causador de prejuízo patrimonial ao tomador ou a terceiro. Sao circuns-tancias adicionáis, lé-se no acórdáo, que tornam socialmente táo grave aculpa do incumprimento que se torna necessária a intervencao do Direitopenal.

No decurso do processo invocou-se o art. Io de Protocolo n° 4 áConvencáo Europeia dos Direitos do Homem, mas o Tribunal Constitu-cional — o bem — considerou que o conteúdo dessa norma já integravao conteúdo da norma do art. 27°, n° 1 da Constituicao, de garanda dodireito á liberdade e á seguranca.

13. LEÍ, SEPARACÁO DE PODERES, TUTELA DA CONFIANCA

45. Na sequéncia de protestos de habitantes da regiáo, a Assembleiada República aprovou, com os votos a favor dos Deputados da Oposicáo(por o Governo ser minoritario), um diploma que retirava á empresaconcessionária das auto-estradas, a BRISA, o direito á cobranca de taxasde portagem em determinado troco da auto-estrada do Oeste.

O presidente da República requereu a apreciacáo preventiva da consti-tucionalidade, por entender que assim se restringia inconstitucionalmenteo direito da empresa á exploracao desse lanco (um direito patrimonialgarantido pelo art. 62° da Constituicao e com regime análogo ao dosdireitos, liberdades e garantías). O Tribunal Constitucional nao lhe deurazao, por achar, segundo afirmou no acórdáo n° 24/98 17, que a BRISApertencia ao Estado e nao poderia invocar nenhum direito contra o Es-tado.

O decreto da Assembleia afectaría, por outro lado, de acordó com oPresidente da República, o regime do concurso internacional para a con-

16 Diario da República, T serie, n° 12, de 15 de Janeiro de 1999.17 Diario da República, 2° serie, n° 42, de 19 de Fevereiro de 1998.

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cessáo de auto-estradas, deixando-o praticamente sem objecto, o queinfringiría o principio da tutela da confianga. Mas o Tribunal tambémcontrariou este argumento, por nao haver expectativas dos concorrentescom suficiente consistencia e que fossem atingidas de forma «excessi-vamente gravosa».

Enfim, o Presidente invocou violacáo do principio da separacao depoderes, por o Parlamento ter invadido o ámbito nuclear do poder doGoverno como órgáo de conducao da política geral do País e órgáo su-premo da Administragáo pública. E ainda aqui o Tribunal Constitucional— tal como dissera no acórdáo n° 1/97, de 8 de Janeiro, a respeito daabertura de vagas adicionáis para o ingresso no ensino superior por actosob forma de lei da Assembleia — respondeu que nao se tinha ultra-passado o limite funcional daquele principio. De resto, acrescentou, comoo Governo se tinha servido originariamente da forma de decreto-lei, po-deria dar-se a sujeigáo a ratificagáo com todas as consequéncias possíveisquanto a cessagáo de vigencia ou a suspensáo. Continuaria a verificar-segeneralidade no sentido de susceptibilidade de justificagáo racional e naose retiraria ao Governo a gestao administrativa da política rodoviária.

46. Emitido por maioria, o acórdáo recebeu declaragoes de voto dosjuízes minoritarios.

A contestagáo de certa medida governamental por parte de algunssectores da populagáo de uma regiao nao poderia levar a que terceiros deboa fé (e que apresentaram as suas propostas de contratos ao abrigo delegislagáo nao censurada pelo Parlamento) houvessem de ser penalizadospor uma legislagáo aprovada por esse mesmo Parlamento, só porque oGoverno era apoiado por um parlamento desprovido de maioria absoluta.

A inconstitucionalidade ainda seria mais nítida agora do que no casotratado no acórdáo n° 1/197, visto que o Parlamento pretendia, por umlado, alterar, através de um acto formalmente legislativo, um acto admi-nistrativo do Governo (ou seja, o despacho conjunto de aprovagáo doprograma do concurso e do caderno de encargos relativo ao concursopúblico internacional para a concessáo do lango de auto-estrada na regiaooeste de Portugal continental), eliminando o regime de portagens; e, poroutro lado, pretendia suprimir parte de uma cláusula do contrato remo-delado de concessáo já outorgado entre o Governo e a BRISA.

47. Por nos, sem hesitar, teríamos propendido no sentido da inconsti-tucionalidade.

Em primeiro lugar, se poderiam restar dúvidas acerca da atribuigáode direitos fundamentáis a pessoas colectivas públicas, teríamos de re-conhecer, objectivamente que o diploma introduzia um elemento pertur-bador no sistema jurídico, nada favorável a tutela da confianga.

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Em segundo lugar — na linha do que escrevemos em comentario aoacórdáo n° 1/97 — haveríamos de distinguir a esfera própria do Parla-mento e a do Governo. Pois como há vinte anos salientava a ComissáoConstitucional no parecer n° 16/7918, o Parlamento nao governa, naoexecuta, nao administra: ele controla, sim, critica e aprecia os actos doGoverno e da administragáo. Se os reprova, tem sempre e a todo o tempoo meio de exprimir a sua vontade política democrática, votando urnamogáo de censura. O que nao pode é conduzir a política e praticar actosde administragáo ou modificar ou alterar os actos praticados pelo órgáode soberania com competencia específica para tal.

Restaria, por último, notar a incorrecta referencia feita no acórdao aoinstituto da rectificagáo de decretos-leis (hoje, após a revisáo de 1997,chamado, sem necessidade de mudanca, instituto de apreciagáo parlamen-tar de actos legislativos). O Tribunal Constitucional, ao sugerir um fun-damento para a competencia do Parlamento na susceptibilidade da recti-ficagáo (ou da apreciagáo), estava confundindo competencia legislativa ecompetencia de fiscalizagáo: qualquer decreto-lei do governo, seja qualfor o seu conteúdo, pode ser feito cessar ou ser suspenso através desseinstituto, mas a Assembleia da República nao o poderá modificar, se eletiver por conteúdo um acto administrativo.

14. ELEigÓES PARA O CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURAE SEPARAgÁO DE PODERES

48. O Conselho Superior da Magistratura, órgáo constitucional a quecompete a gestáo da carreira dos juízes dos tribunais judiciais e o exer-cício da acgáo disciplinar (art. 217° da Constituigáo), é presidido peloPresidente do Supremo Tribunal de Justiga e composto por dois vogaisdesignados pelo Presidente da República, por sete eleitos pelo Parlamentoe por sete juízes eleitos pelos seus pares de harmonia com o principioda representagáo proporcional.

Que juízes devem participar na eleigáo? A pergunta justifica-se porpoder haver juízes que nao se encontrem no exercício de fungoes juris-dicionais, o que desde há muito se verifica em Portugal e a Constituigáo(hoje art. 216°, n° 3) admite, apenas tal depender de autorizagáo do pró-prio Conselho Superior da Magistratura. E a lei reguladora da eleigáo, oEstatuto dos Magistrados Judiciais, respondeu a esta pergunta concedendocapacidade eleitoral activa a todos os juízes, fosse qual fosse a sua si-tuagáo, embora só atribuindo capacidade passiva aos juízes em fungoesnos tribunais.

V. Pareceres da Comissáo Constitucional, VIII, págs. 205 e segs.

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Realizando-se em 1995 eleicoes, veio um juiz reclamar contra a ins-crigáo nos cadernos eleitorais de 128 magistrados, por só poderem serconsiderados juízes titulares dos tribunais e um juiz em exercício naopoder desempenhar qualquer outra funcáo pública ou privada, salvo fun-coes docentes ou de investigacáo científica, nao remuneradas (art. 216°,n° 3). Os cargos exercidos por esses magistrados ou situavam-se no ám-bito de Administracáo pública ou dos órgáos políticos, pelo que, emvirtude da separacao dos poderes, eles nao poderiam ser equiparados ajuízes.

Nao foi, contudo, esse o entendimento nem da comissáo das eleicoesnem do Supremo Tribunal de Justica, os quais consideraram como efec-tividade de servico o exercício de qualquer cargo ou comissáo por ma-gistrados, até por eles manterem sempre o seu estatuto profissional.Da decisao do Supremo houve entao recurso para o Tribunal Constitu-cional, e daí o acórdao n° 279/9819.

49. O Tribunal Constitucional, por maioria e muito dividido, deurazáo no essencial ao recorrente, julgando inconstitucional a norma doart. 140°, n° 3 do Estatuto dos Magistrados Judiciais na interpretacáo dadapela comissáo eleitoral e pelo Supremo tribunal de Justica. Para tantoimprimiu particularíssimo realce ao principio da separacáo de poderes.

A verdadeira razáo de ser do Conselho nao radicaria na intencáo deassegurar urna adequada proteccao de raiz corporativa aos juízes na defesados seus interesses profissionais, mas sim no objectivo de contributo parao reforco da independencia dos tribunais. Daí que nao devessem partici-par na sua eleicáo a magistrados que desempenhassem funcSes gover-nativas ou administrativas, em conexáo directo ou indirecta com o Go-verno. Quem nao julga nao deve eleger.

Diversamente, a minoría sustentou que o alargamento de capacidadeeleitoral activa aos juízes em comissoes de servico nao judicial traduziriaurna ideia de participacáo democrática dos directamente afectados pelofuncionamento do Conselho Superior da Magistratura — porque estescontinuariam sujeitos á sua jurisdicáo — no processo de formacáo dassuas decisoes.

50. Concordamos inteiramente com a decisao e com o seu funda-mento. Parece-nos obvio que nao pode proclamar-se e garantir-se a inde-pendencia dos tribunais e dos juízes e, simultáneamente, aceitar-se quejuízes envolvidos em actividades extrajudiciárias, inclusive como titula-res de outros órgaos de soberania, venham a influir na escolha de vogaisdo Conselho Superior da Magistratura.

19 Diario da República, 2' serie, n° 159, de 13 de Julho de 1998.

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Pela sua composicáo mista, o Conselho integra tanto urna legitimacaodemocrática como una base representativa dos juízes. Mas juízes so po-dem ser os que administram a justica, e nao os que ocupam outros car-gos na política e na administracáo pública (como membros do governo,Chefes de Gabinete, dirigentes da Procuradoria-Geral da República, etc.).E causa preocupacao que, com una crise de justica de que tanto se fala,haja um número tao avultado de juízes fora dos tribunais.

Como vimos defendendo há muitos anos, a principio da separacáo depoderes implicaria mesmo, em rigor, que quando algum magistrado ju-dicial fosse exercer funcoes nao judiciárias, saísse da magistratura e sólá pudesse voltar retomando a carreira desde o inicio.

15. UM CASO ESTRANHO

51. O Ministerio Público promoveu que se declarasse extinto poramnistia o procedimento criminal de todos os reús condenados com baseno art. Io da Lei n° 9/96, de 23 de Marco, e dos arts. 127° e 128°, n° 2do Código Penal.

O juiz-conselheiro relator no Supremo Tribunal de Justica, após tertomado conhecimento de que se encontrava pendente no Tribunal Cons-titucional um pedido de fiscaliza?áo sucessiva abstracta da constitucio-nalidade daquela lei, ordenou a suspensáo do processo até á decisáo queeste Tribunal viesse a emitir. Entendeu que a questao da constitucio-nalidade consubstanciava urna questao prejudicial relativamente á decisáodo recurso nos termos do art. 3o do Código de Processo Penal de 1929(preceito esse que admite a possibilidade de suspensáo do processo pe-nal, quando seja necessário decidir questao de natureza nao penal dedifícil soluc.áo, intentado-se entáo a respectiva acc.áo no tribunal compe-tente).

Apresentada reclamac,áo pelo Ministerio Público, o Supremo Tribunalde Justica, em conferencia, indeferiu-a, por considerar abrangido no con-ceito de accao do referido art. 3o do Código de Processo Penal de 1929o processo de fiscalizac.áo sucessiva abstracta da inconstitucionalidade.

Interposto recurso, o Tribunal Constitucional concedeu-lhe provimentoatravés do acórdáo n° 220/9820 e — como nao podia deixar de ser —julgou inconstitucional aquela norma na interpreta?áo dada pelo Supre-mo Tribunal de Justica.

52. Eis um caso estranho, difícilmente explicável, de aparente des-conhecimento pelos juízes do mais alto tribunal judicial das regras bási-

20 Diario da República, 2" serie, n° 275, de 27 de Novembro de 1998.

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cas do sistema portugués de garantía da constitucionalidade — um sis-tema misto em que os tribunais em geral e o Tribunal Constitucional emespecial desempenham papéis bem marcados.

Em primeiro lugar, ao nao aplicar a lei da amnistia, mas sem assumirum juízo sobre a sua constitucionalidade — por ficar a aguardar a decisáodo Tribunal Constitucional em processo diferente, o de fiscalizacáo abs-tracta — o Supremo Tribunal de Justica desconsiderou o seu própriopoder (e dos demais tribunais) de conhecer e decidir todas as questoesde inconstitucionalidade surgidas nos feitos submetidos a julgamento(art. 204° da Constituicáo, sucessor do art. 63° da Constituicáo de 1911e do art. 123° da Constituicáo de 1933).

Por outro lado, dir-se-ia ter ignorado a natureza dos processo defiscalizacáo sucessiva — por definicáo processos objectivos, sem partes.Ora, assim, as pessoas envolvidas no caso concreto, beneficiarías dasamnistías, ficavam impedidas de intervir e, por conseguinte, tinham osseus direitos de defesa atingidos.

Finalmente, o Supremo Tribunal de Justica criava na prática, á mar-gem de todas as normas constitucionais e legáis, urna insólita figura: ada suspensáo da aplicacao de normas de constitucionalidade questionada(verdadeira ou virtualmente) em fiscalizacáo concreta, em consequénciada abertura de um processo de fiscalizacáo abstracta a elas relativo. Podeimaginar-se toda a soma de consequéncias desastrosas para a constitu-cionalidade e para a seguranca jurídica se tal figura viesse a vingar!

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