O Tropicalismo na esteria do rojeto nacional-desenvolvimentista: um estudo de economia e cultura

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O presente artigo tem como propósito relacionar o objeto da cultura com a análise econômica a partir da metodologia do materialismo histórico marxista e do conceito de indústria cultural de Adorno e Horkheimer. Adoto como recorte a movimentação cultural tropicalista na MPB e o padrão de desenvolvimento econômico brasileiro com base, a priori , na substituição de importações de bens de consumo duráveis: de JK ao “milagre econômico” . Discuto a partir da visão de Roberto Schwarz, Carlos Nelson Coutinho, Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves, o conteúdo e o posicionamento político da Tropicália no esteio da indústria cultural no Brasil. Por fim, ressaltarei o elemento contraditório do Tropicalismo em comum com o modelo de desenvolvimento da economia brasileira.

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  • O TROPICALISMO NA ESTEIRA DO PROJETO NACIONAL-

    DESENVOLVIMENTISTA: UM ESTUDO DE ECONOMIA E CULTURA

    Rafael Giurumaglia Zincone Braga1

    Bruno Nogueira Ferreira Borja2

    Resumo: O presente artigo tem como propsito relacionar o objeto da cultura com a anlise

    econmica a partir da metodologia do materialismo histrico marxista e do conceito de

    indstria cultural de Adorno e Horkheimer. Adoto como recorte a movimentao cultural

    tropicalista na MPB e o padro de desenvolvimento econmico brasileiro com base, a priori , na

    substituio de importaes de bens de consumo durveis: de JK ao milagre econmico .

    Discuto a partir da viso de Roberto Schwarz, Carlos Nelson Coutinho, Helosa Buarque de

    Hollanda e Marcos Gonalves, o contedo e o posicionamento poltico da Tropiclia no esteio

    da indstria cultural no Brasil. Por fim, ressaltarei o elemento contraditrio do Tropicalismo em

    comum com o modelo de desenvolvimento da economia brasileira.

    Palavras-chave: tropicalismo, indstria fonogrfica, nacional-desenvolvimentismo.

    I.Introduo

    A partir da minha monografia de concluso de curso Economia e Cultura:

    tropicalismo, indstria cultural e desenvolvimentismo brasileiro, apresento este artigo-

    sntese com o propsito de discutir a msica tropicalista na esteira no desenvolvimento

    da indstria fonogrfica entre as dcadas de 1960 e 1970 no bojo do modelo de

    desenvolvimento em percurso no Brasil destes mesmos anos.

    Defendendo a hiptese da esttica tropicalista como uma alegoria das

    contradies do Brasil de seu tempo (desenvolvimento/subdesenvolvimento,

    arcaico/moderno, contra-cultura/tradio, urbano/rural), apresento a controvrsia em

    torno da autenticidade do elemento crtico tropicalista num contexto de ditadura e de um

    acelerado desenvolvimento capitalista no Brasil. Para tanto, apresento as contribuies

    1 Mestrando em Mdia e Cotidiano na UFF e pesquisador do Laboratrio de Estudos Marxistas

    (LEMA/UFRJ). [email protected]. 2 Professor da UFRRJ e pesquisador do Laboratrio de Estudos Marxistas (LEMA/UFRJ).

    [email protected]

  • tericas de Roberto Schwarz, de Helosa Buarque de Hollanda e Marcos Gonalves e,

    por fim, a viso de Carlos Nelson Coutinho.

    II - Materialismo histrico: uma questo de mtodo

    Pensar a problemtica da alegoria tropicalista, "o Brasil como absurdo", na

    msica popular brasileira sem ter como pano de fundo as contradies inerentes do

    modelo de desenvolvimento levado a cabo no pas entre os Anos JK e o "milagre

    econmico" seria, para fins da minha pesquisa, um esforo sem muita relevncia. Parto,

    assim, da premissa de que o campo da cultura e da economia esto compreendidos em

    uma mesma totalidade, ou seja, por mais que exista uma relativa autonomia na produo

    musical por exemplo, ela somente se viabiliza concretamente dentro das possibilidades

    materiais de seu tempo. Cito Marx:

    Na produo social da prpria existncia, os homens entram em relaes determinadas,

    necessrias, independente da sua vontade; essas relaes de produo correspondem a

    um grau determinado do desenvolvimento de suas foras produtivas materiais. A

    totalidade dessas relaes de produo constitui a estrutura econmica da sociedade, a

    base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurdica e poltica e qual

    correspondem formas sociais determinadas de conscincia. O modo de produo da

    vida material condiciona o processo de vida social, poltica e intelectual. No a

    conscincia dos homens que determina o seu ser; ao contrrio, o seu ser social que

    determina sua conscincia. (MARX, [1859] 2008, p.47)

    A partir desta mesma lgica, aproveito o conceito de indstria cultural

    desenvolvido por Adorno e Horkheimer no artigo homnimo A Indstria Cultural

    (1947) para discutir a viabilidade crtica da Tropiclia no esteio da indstria cultural.

    Os pensadores da Escola de Frankfurt argumentam que a indstria cultural, por

    meio de todo seu aparato tcnico, expressa a viso social de mundo de seus detentores,

    ou seja, da classe burguesa. Para eles, o termo indstria significa a estandardizao do

    produto cultural que uma vez massificado seria idntico sob o domnio do monoplio e

    assim, o artista no seria mais sujeito de sua obra e sim as grandes corporaes.

    Com base nesta postulao, discutirei em seguida a efetiva crtica da Tropiclia

    nos parmetros de indstria.

  • III - A indstria fonogrfica brasileira no contexto do "milagre econmico".

    Analiso, neste artigo, os contornos da indstria fonogrfica no Brasil entre os

    anos de 1968 e 1973, perodo entre a impresso do disco-manifesto Tropiclia ou Panis

    et Circenses e o disco Ara Azul de Caetano Veloso 3.

    Nesse recorte espao-temporal, tem lugar no Brasil, primeiramente, o

    desenvolvimento de um parque industrial com base em bens de consumo durveis e de

    altas rendas. O desenvolvimento industrial era a pea central do modelo de

    desenvolvimento econmico entre o Plano de Metas do governo JK e o "milagre

    econmico" dos anos de chumbo da ditadura. Alm desta caracterstica principal de

    industrializao, tal modelo priorizou o segmento de bens durveis (discos, televiso,

    aparelhos toca-discos, carros, etc.) cujo mercado consumidor se delimitava entre os

    ricos e a alta classe mdia. Ademais, a industrializao do perodo foi protagonizada

    pelo grande capital estrangeiro, corporaes multinacionais como Wolkswagen, Ford,

    GM, Philips, etc.

    O desenvolvimento da indstria fonogrfica entre as dcadas de 1960 e 1970

    apresentou grande crescimento e apresentou os mesmos contornos do modelo de

    desenvolvimento em que analisei na minha monografia conforme j listados acima:, (i)

    concentrao de capital, (iii) protagonismo do capital estrangeiro, (iv) mercado

    consumidor de altas rendas.

    Com base na consulta do artigo Organizao, crescimento e crise: a indstria

    fonogrfica brasileira nas dcadas de 60 e 70 de Eduardo Vicente, o autor defende a

    ideia de uma cristalizao dos padres de consumo e organizao da indstria

    fonogrfica no Brasil no intervalo dessas duas dcadas. Combinado a um extraordinrio

    crescimento desse segmento de mercado, Vicente aponta a preponderncia da empresa

    transnacional sobre a nacional e do conglomerado sobre a de orientao nica

    independente.

    Embora o mercado de LPs ainda no fosse massificado e, portanto, restrito

    populao de altas rendas, a msica nacional apresentou, segundo Vicente, significativa

    hegemonia nesse segmento na dcada de 1960, com destaque para os anos de 1968 e

    1969 no calor da manifestao tropicalista. Contudo, julgo importante observar que a

    msica importada ganha significativa participao no repertrio dos brasileiros

    consumidores de LP, frao essa que se consolida na dcada de 1970. Assim, o

    3 Conforme discografia apresentada no final deste artigo.

  • mimetismo cultural4 das classes de alta renda fica cada vez mais evidente no mercado

    fonogrfico, conforme se verifica entre os anos de 1970 e 1973. O efeito-demonstrao

    sobre a classe consumidora de bens de consumo durveis no se verifica apenas no fato

    de se comprar LPs, mas tambm em consumir msica no mercado estrangeiro.

    Vicente ento explica que com o objetivo de compensar essa diferena e

    incentivar a gravao de msica nacional, uma lei de incentivos fiscais foi promulgada

    em 1967 facultando s empresas "abater do montante do Imposto de Circulao de

    Mercadorias os direitos comprovadamente pagos a autores e artistas domiciliados no

    pas" (Idart, 1980: 118). Segundo o autor, as gravaes beneficiadas recebiam o selo

    "Disco Cultura". Assim, nesse perodo e, sobretudo, na dcada de 1970 -, os artistas

    de maior projeo na msica popular brasileira concentravam-se nas gravadoras

    multinacionais, principalmente na Philips, que passou a congregar nomes como Caetano

    Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Gal Costa, Maria Bethnia, Jorge Ben, Elis

    Regina, entre outros.

    A alegoria tropicalista, por seu posto, conjugava o arcaico e moderno em sua

    metfora de Brasil. O parque industrial e o monumento do planalto central do pas

    estavam num s corpo a nao imbrincados ao serto, rua antiga estreita e torta e

    criana sorridente feia e morta. Da mesma forma que Fernando Henrique Cardoso,

    Enzo Faletto e Francisco de Oliveira defendem em seus trabalhos o moderno e o arcaico

    como determinaes de um mesmo desenvolvimento capitalista tardio e dependente,

    identifico estes opostos reunidos na construo tropicalista de um s Brasil. Sua

    roupagem moderna evidencia estes opostos unidos em uma mesma unidade e no como

    contrapartes estanques. Mesmo que aparentemente alegre em sua forma, a ironia de um

    Brasil que se desenvolve de forma autoritria e empobrecedora est dada.

    Da mesma forma que a intelectualidade de esquerda debateu o modelo de

    desenvolvimento do Brasil entre meados das dcadas de 1960 e 1970, a concepo de

    msica popular brasileira (e seus rumos) tambm estiveram em discusso no final dos

    anos 1960 especialmente em 1967 e 1968. Discutia-se o que era e o que no era

    msica popular brasileira. Se guitarra eltrica era msica popular brasileira, se Caetano

    Veloso era msica popular brasileira, se Roberto Carlos era msica popular brasileira e

    assim seguia a discusso em espaos artsticos, partidrios e acadmicos.

    A hiptese por mim esboada da Tropiclia como alegoria irnica de um

    capitalismo perifrico, autoritrio e dependente do Brasil de seu tempo antes de ser

    4 Celso Furtado.

  • um consenso se inscreveu na larga controvrsia que apresento na quarta sesso deste

    trabalho. Encaminho, portanto, algumas questes: a Tropiclia foi capaz de construir

    uma crtica antropofgica em relao ao consumo da esttica pop internacional? A

    Tropiclia apontou alternativas no-alienadoras de consumo dos produtos no

    somente culturais originados nos grandes centros imperialistas? No estudo desta

    controvrsia, aproveitei a questo da dimenso cultural e ideolgica das naes

    imperialistas sobre o padro de desenvolvimento dos pases capitalistas perifricos,

    pensada por Furtado e reforada por Cardoso e Faletto.

    IV - A controvrsia em torno da mensagem tropicalista: as contribuies de

    Roberto Schwarz, Helosa Buarque de Hollanda e Carlos Nelson Coutinho.

    IV.I Roberto Schwarz e a tese do "esnobismo de massas"

    Em seu Cultura e Poltica: 1964-1969, SCHWARZ ([1969] 2009) indagou qual

    era o lugar social do tropicalismo, e tambm, qual era o fundamento histrico de sua

    alegoria sincretista a combinao entre extremos e absurdos: "para obter seu efeito

    artstico e crtico o Tropicalismo trabalha com a conjuno esdrxula de arcaico e

    moderno que a contra revoluo cristalizou, ou por outra ainda, com o resultado da

    anterior tentativa fracassada de modernizao nacional". A respeito de seu locus social,

    informa:

    Diante de uma imagem tropicalista, diante do disparate aparentemente

    surrealista que resulta da combinao que descrevemos, o espectador

    sintonizado lanar mo das frases da moda, que se aplicam: dir que o Brasil

    incrvel, a fossa, o fim, o Brasil demais. Por meio dessas expresses,

    em que simpatia e desgosto esto indiscernveis, filia-se ao grupo dos que

    tem senso do carter nacional. Por outro lado, este clima, esta essncia

    impondervel do Brasil de construo simples, fcil de reconhecer ou

    produzir. Trata-se de um truque de linguagem, de uma frmula de viso

    sofisticada ao alcance de muitos. (SCHWARZ, [1978] 2009, p. 31)

    Schwarz quer com isto dizer que o Tropicalismo no campo musical atravs de uma

    linguagem simples e de fcil reproduo alcana pblicos diversos: tanto um pblico letrado e

    consciente das referncias e intertextualidades presentes em suas letras e atinge tambm aqueles

    que iro simplesmente apreci-las e reconhec-las em estilos que lhes so familiares o pop

    internacional e a prpria msica popular do Brasil5. Em outras palavras, Schwarz defende que o

    5 Um exemplo que considero interessante a msica 2001 dos Mutantes , presente no lbum que leva o

    nome do grupo: Mutantes (1968). A msica faz referencia direta msica caipira brasileira, bastante

    difundida entre a classe trabalhadora daquela poca principalmente do campo. A msica alia a esttica

  • tropicalismo, atravs de um estilo compatvel com o gosto popular, atinge um pblico amplo

    entre aqueles uma minoria que compreenderiam a alegoria de Brasil de seu tempo e aqueles

    a grande maioria que estariam em contato com sua obra sem, contudo, reconhecer

    sua imanente metfora: de um Brasil que conforma seus absurdos, o arcaico e o

    moderno.

    No entanto, o Tropicalismo, na viso de Schwarz, no discutia diferentes

    possibilidades para o Brasil, bem como no vislumbrava alternativas engendradas pela

    esquerda. A desigualdade social existente no pas, os resqucios no superados de um

    passado colonial as relaes servis de trabalho no campo e o grande latifndio, por

    exemplo - eram para o movimento, caractersticas inerentes ao pas, intrnsecas ex-

    colnia continental da Amrica do Sul, que conviveria com uma mistura mantenedora

    de todos esses traos no esteio da modernizao do pas. Assim, questiona se a

    modernizao realizada pelo regime civil-militar do Brasil seria necessariamente boa

    questionamento este que para ele estava ausente na Tropiclia.

    Diferentemente, Schwarz indica no cinema contemporneo ao Golpe uma

    alternativa verdadeiramente crtica ao status-quo: uma esttica da fome em Vidas Secas,

    Deus e o Diabo na Terra do Sol e Os Fuzis respectivamente de Nelson Pereira dos

    Santos, Glauber Rocha e Ruy Guerra. Tal esttica tem suas linhas de fora na oposio

    direta modernizao tecnolgica e econmica vigente no pas e neste ponto que a

    direo tomada pelo Tropicalismo contrria para Schwarz: registra o atraso do pas

    como coisa aberrante, tomando como contrapontos a vanguarda e a moda

    internacionais.

    Desta feita, pude ento concluir que o Tropicalismo na tica de Schwarz um

    microcosmos do processo de modernizao do Brasil, que corrobora o arcasmo e

    aproveita-se dele para o crescimento da economia, para a promoo da infraestrutura,

    alm de uma grande promessa do regime: a manuteno do status quo. Cito o autor:

    (...) Na metfora tropicalista os termos opostos de um Brasil existiam

    alegremente lado a lado, igualmente simpticos, sem perspectivas de

    superao. (SCHWARZ, 2012, p.99)

    de origem estrangeira presente no cotidiano urbano do Brasil de 1968 e faz referncia direta ao ritmo de A

    Marvada Pinga composta por Ochelsis Laureano em 1937, que ficou clebre na voz de Inezita Barroso.

  • IV.II Helosa Buarque de Hollanda e Marcos Gonalves: o tropicalismo e a

    inter(mdia)o da indstria cultural.

    Helosa Buarque de Hollanda e Marcos Gonalves apontam tanto o Cinema

    Novo quanto a Tropiclia como "linha evolutiva" do processo cultural desse perodo.

    Definem o primeiro como tendo um papel de frente no campo da reflexo poltica e

    esttica alm de retratar as contradies do intelectual-poltico no contexto de ditadura.

    J o segundo, seria para eles a renovao da cano popular no Brasil tendo como eixo

    temtico os impasses e inquietaes da situao ps-1964.

    Alm disso, argumentam que a vanguarda cinematogrfica influenciou

    diretamente aquilo que em 1968 se constituiria em movimento - o Tropicalismo - com a

    impresso do lbum manifesto Tropiclia ou Panis et Circenses (1968) . Em suas

    palavras:

    De fato, significativa a influncia da informao cinemanovista na esttica

    tropicalista. O corte, a justaposio, o uso do fragmento e do flashback, a

    narrativa onrica, presentes na produo cinematogrfica, pareciam atrair a

    ateno no apenas do grupo baiano, mas de expressivos setores da juventude interessados pela cultura. (HOLLANDA&GONALVES, [1982]

    1987, p.52)

    Para Hollanda e Gonalves, o que separava o Tropicalismo do projeto

    revolucionrio pr-64 defendido pela intelectualidade brasileira era a reviso da defesa

    do nacionalismo especificamente na esfera cultural - e sua idealizao de uma cultura

    popular moderna. Uma autntica cultura popular brasileira seria, para os autores,

    aquela capaz de elaborar criticamente as diversas informaes dispostas em sua

    realidade objetiva o que compreende elementos originais da formao cultural

    brasileira desde os tempos de colnia e as inovaes, de origens estrangeiras,

    concretamente dispostas em territrio brasileiro. Isso tudo sem que se esquecesse da

    nova dinmica de dependncia do Brasil, ou seja, o carter do modelo de

    desenvolvimento econmico que toma corpo nos fins dos anos 1960 e que se desdobra

    no milagre.

    A problemtica do tropicalismo estava para os autores no seguinte ponto: seria

    possvel combinar exigncia poltica e a solicitao da indstria cultural? Ao contrrio

    de Adorno, respondem que sim e que o tropicalismo operou nesta chave. Argumentam

    que tanto a arte engajada quanto a adequao aos sistemas de consumo de massa foram

    redimensionadas sobretudo para o eixo comportamental:

  • Na opo tropicalista o foco da preocupao poltica foi deslocado da rea da

    Revoluo Social para o eixo da rebeldia, da interveno localizada, da

    poltica concebida enquanto problemtica cotidiana, ligada vida, ao corpo,

    ao desejo, cultura em sentido amplo. Na relao com a indstria cultural

    essa nova forma de conceber a poltica veio a se traduzir numa explosiva

    capacidade de provocar reas de atrito e de tenso no apenas no plano

    especfico da linguagem musical, mas na prpria explorao dos aspectos

    visuais/corporais que envolviam suas apresentaes. (HOLLANDA

    &GONALVES, p. [1982] 1987, p.66)

    Portanto, a simbiose de arte engajada e indstria cultural no foi, para os

    tropicalistas ao final dos anos 1960, uma impossibilidade como postulava grande parte

    da militncia de esquerda daquele tempo. Em linhas gerais, apresentaram sua arte crtica

    em todas as estruturas (imprimindo discos pela Phillips ou se apresentando no Cassino

    do Chacrinha) metaforizando um Brasil que se modernizava corroborando seus

    arcasmos o que valia tanto para um modelo econmico quanto para uma sociedade,

    sobretudo a classe mdia, que consumia o moderno e reproduzia a cultura

    hegemnica dos grandes centros sem deixar de flertar com valores conservadores6.

    IV.III Carlos Nelson Coutinho: o tropicalismo como um amadurecimento da

    cultura nacional-popular.

    Em seu Cultura e Sociedade no Brasil: ensaio sobre ideias e formas, presente no

    seu livro homnimo Cultura e Sociedade no Brasil de 1979, Coutinho defende a ideia

    de que o processo de transformao social no Brasil atravs da conciliao de suas

    classes dirigentes a modernizao conservadora prussiana - marca de diversas

    formas o contedo da cultura brasileira. Surgem nesse contexto manifestaes prprias

    da ideologia prussiana expresses ideolgicas excludentes das massas populares de

    qualquer participao ativa nas grandes decises nacionais (Cf. COUTINHO, [1979]

    2011, p.41). Esse modus pensandi se verificava, para o autor, no s em pensadores

    autoritrios e de direita, mas tambm em pensadores liberais moderados e at

    progressistas em construes irracionalistas. Para o autor, a construo irracionalista

    estaria em combinar princpios ideolgicos incompatveis no corpo de uma mesma

    defesa, intelectual ou artstica.

    O que importante observar nesta reflexo a relao que faz entre a

    conciliao social e poltica e sua expresso no plano das ideias o que inclui o plano

    6 Tomo como exemplo A Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade (1964) que reuniu diversos

    segmentos da classe mdia brasileira, sobretudo ligados ao clero, e que se opunham as reformas de base

    propostas pelo ento Presidente Joo Goulart.

  • cultural. Coutinho trata das diversas presses das condies objetivas de um sistema

    poltico autocrtico alm da prpria economia de mercado que artistas e pensadores

    sofrem, direcionando-os para snteses eclticas (e acrticas da realidade brasileira) em

    seus trabalhos que diminuiriam seus caracteres progressistas. Seria o caso do

    Tropicalismo? Assim, responde:

    Vejamos um exemplo concreto: sob muitos aspectos, o movimento

    tropicalista em seus incios na medida em que tendia desistoricizar

    as contradies concretas da realidade brasileira e a eterniz-las numa

    abstrao alegrica e irracionalista (o Brasil como absurdo etc.)

    pode ser considerado expresso do intimismo. Mas no se deve

    deixar de registrar a presena, na evoluo do tropicalismo, de um

    saudvel esforo no sentido de conquistar para a arte brasileira novos

    meios expressivos e, sobretudo, de figurar uma nova temtica,

    resultante do modo prussiano de implementao do CME7 entre ns

    (coexistncia de um sofisticado capitalismo de consumo com a

    conservao do atraso nos meios rurais e nas periferias urbanas).

    (COUTINHO, 2011, p.67).

    Para alm disso, Coutinho defende a ideia de que a viso tropicalista contribuiu

    para superar os evidentes limites de um populismo ingnuo presente nos grandes

    festivais da cano. Para o autor tratava-se do canto de um otimismo ingnuo que

    pudesse pretensamente apagar a represso dos anos de chumbo. Assim, argumenta que o

    tropicalismo se contraps ao que chamou de doena senil do nacional popular ou

    nacionalismo infantil quando seus melhores representantes abandonam,

    progressivamente, a alegoria irracionalista (neutralizadora) e optam por uma dura crtica

    , nada populista nem ingnua, da cotidianidade moderna, portando, da modernizao

    conservadora da ditadura.

    V Consideraes Finais

    Tomando como base a controvrsia existente entre os trabalhos de Roberto

    Schwarz, Carlos Nelson Coutinho, Helosa Buarque de Hollanda e Mrcio Gonalves,

    procurei discutir ao longo deste trabalho o Tropicalismo na Msica Popular Brasileira

    7 Capitalismo monopolista de estado. Conceito utilizado por Carlos Nelson Coutinho para caracterizar a particularidade do modo de produo capitalista no Brasil sobretudo aps a ditadura, quando o Estado assume importante papel coordenador das atividades econmicas no pas.

  • de acordo com o seu recorte espao-temporal: o Brasil nos anos de endurecimento na

    ditadura civil-militar e insurgncia do bastante alardeado milagre econmico. Busquei

    assim demonstrar que o produto musical da Tropiclia os LPs produzidos por

    Caetano, Gil, Gal Costa, Tom Z, Mutantes e outros assim como a produo da M.P.B

    tradicional eram frutos de um padro de desenvolvimento econmico baseado na

    indstria de bens de consumo durveis para um mercado consumidor restrito ainda

    no massificado e reprodutor da cultura mercadolgica dos grandes centros capitalistas.

    Nesse sentido, a Tropiclia se materializou em acordo com a modernizao conceituada

    por Celso Furtado: a promoo da moderna indstria - sustentada pela reproduo do

    padro de consumo do mercado de massa das potncias capitalistas pelas elites locais

    coexistente manuteno do arcasmo brasileiro.

    Em concordncia com as viso de Coutinho e o trabalho conjunto de Helosa

    Buarque de Hollanda e Marcos Gonalves, identifico na msica tropicalista uma crtica

    contundente e irnica em relao momento poltico e social de seu tempo que no pode

    ser menosprezada pelo simples fato de se constituir como um produto da grande

    indstria fonogrfica e por incorporar o elemento estrangeiro em sua esttica. A M.P.B

    tradicional operou nos mesmos meios da Tropiclia: ambos os lados imprimiam seus

    discos na Phillips-Phonogram e se dirigiam a um mesmo segmento de mercado, um

    mercado consumidor muitas vezes crtico, porm burgus.

    Concluo essa anlise retomando, antes de mais nada, a ideia de que a arte

    necessariamente organiza os elementos que esto dispostos em sua realidade objetiva e

    de diferentes formas. A manifestao musical tropicalista, inserida no contexto de

    endurecimento do regime militar e nas proximidades do amadurecimento do modelo de

    desenvolvimento brasileiro abordado nesta anlise, constituiu em sua metfora a

    representao do Brasil de seu contexto: o arcaico de mos dadas com o moderno,

    questionando o papel de satlite cultural de um Brasil cujas classes mdia e alta

    reproduziam, atravs de um consumo chapado e alienante, os comportamentos ditados

    pelos centros hegemnicos. O elemento estrangeiro em meio ao amlgama cultural

    brasileiro foi assumido pelos tropicalistas de forma original, isso sem que eles

    deixassem de dizer onde estavam e em que contexto viviam.

    Eu quero dizer ao jri: me desclassifique. Eu no tenho nada a ver com isso. Gilberto Gil. Gilberto Gil est comigo, para ns acabarmos com o festival e com toda a imbecilidade que reina no Brasil. Acabar com tudo isso de uma vez. Ns s entramos no festival pra isso, no Gil? No fingimos. No fingimos aqui que desconhecemos o que seja festival, no. Ningum nunca me ouviu falar assim.

  • Entendeu? Eu s queria dizer isso, baby. Sabe como ? Ns, eu e ele, tivemos a coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas. E vocs? Se vocs forem ... Se vocs, em poltica, forem como so em esttica, estamos feitos! Me desclassifiquem junto com o Gil! Junto com ele, t entendendo? E quanto a vocs... O jri muito simptico, mas incompetente. Deus est solto!

    Fora do tom, sem melodia. Como jri? No acertaram? Qualificaram a melodia de Gilberto Gil? Ficaram por fora. Gil fundiu a cuca de vocs, hein? assim que eu quero ver.

    Chega!

    ( proibido proibir, Caetano Veloso)8

    V Bibliografia

    ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. A Indstria Cultural: o Esclarecimento como

    Mistificao das Massas. In: ADORNO, T. & HORKHEIMER, M. (org.), Dialtica do

    Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, [1969] 2006.

    BORJA, B. A Formao da Teoria do Subdesenvolvimento de Celso Furtado. Rio

    de Janeiro: UFRJ, 2013.

    ___________. Notas sobre a dimenso cultural na obra de Celso Furtado. In:

    FREIRE DAGUIAR. R. (org.) Celso Furtado e a dimenso cultural do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Centro Celso Furtado, 2013.

    CAMPOS, A. Conversas com Gilberto Gil. In: COHN, S. & COELHO, F. (Org.)

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    Caetano Veloso Caetano Veloso (1967) Philips Caetano Veloso Proibido Proibir (1968) Philips Caetano Veloso Ara Azul (1973) Philips Gal Costa Gal Costa (1969) Gal Costa Gal (1969) Gilberto Gil Gilberto Gil (1968) Philips Gilberto Gil Questo de Ordem (1969) Philips Grupo Baiano Tropiclia ou Panis et Circenses (1968) Philips Os Mutantes Os Mutantes (1967) Polydor Os Mutantes Mutantes (1968) Polydor Tom Z Tom Z (1968) Rozemblit