O ULISSES DE JAMES JOYCE - bsfreud.com · Wake é um livro da noite, enquanto Ulisses é um livro...

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Página1: Luiz-Olyntho Telles da Silva, O Ulisses de James Joyce. Página da Biblioteca Sigmund Freud O ULISSES DE JAMES JOYCE Comentários de Luiz-Olyntho Telles da Silva www.tellesdasilva.com Quem pode dizer não, Tem muito poder, Mas quem pode dizer sim, tem muito mais! ANTÔNIO DELFIM NETTO Em 16 de junho, lembramos de dois importantes aniversários. Um, de 1904, é o dia em que James Joyce passeou pela primeira vez com aquela que viria a ser sua companheira, Nora Barnacle, a mesma data que ele escolheu para a jornada de Leopold Bloom, no seu Ulisses, publicado em 1922. A importância desse romance foi tanta que esse dia ganhou um nome especial: Bloomsday! A palavra conjuga Bloom o nome de família de Leopold, traduzido também por flor, índice do florescimento de um amor , com day, dia, mantendo ainda uma relação homofônica com Doomsday, o dia do juízo final. Outro, é o de 1975, quando Jacques Lacan, há exatos trinta e cinco anos, pronunciava, no grande anfiteatro da Sorbonne, em Paris, durante o Quinto Simpósio internacional James Joyce, sua famosa conferência Joyce le sinthome. Essa conferência é uma homenagem de Lacan a Joyce, na medida em que, do sintoma, ele dá sua grandeza, essência e abstração (Joyce le sinthome). Verdade que, para tal, Lacan toma apoio fundamentalmente em Finnegans Wake, no qual os neologismos são inúmeras vezes mais frequentes do que em Ulisses. Sinthome, conforme a um francês antigo, faz homofonia com saint homme. Tantos neologismos fazem aí sentido por tratar-se de um sonho, mais exatamente de um pesadelo, como detectou Maria da Glória, por intermédio da personagem Ana Livia Plurabelle, ALP, que em alemão conota pesadelo. Finnegans Wake é um livro da noite, enquanto Ulisses é um livro do dia, mas um livro do dia que termina preparando, no último capítulo, a noite. Antes de prosseguir, umas notas para contextualizar o assunto, pois estamos falando, senão do último romance, daquele que fecundou todos os que vieram depois.

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O ULISSES DE JAMES JOYCE

Comentrios de Luiz-Olyntho Telles da Silva www.tellesdasilva.com

Quem pode dizer no, Tem muito poder, Mas quem pode dizer sim, tem muito mais! ANTNIO DELFIM NETTO

Em 16 de junho, lembramos de dois importantes aniversrios.

Um, de 1904, o dia em que James Joyce passeou pela primeira vez com aquela que viria a ser sua companheira, Nora Barnacle, a mesma data que ele escolheu para a jornada de Leopold Bloom, no seu Ulisses, publicado em 1922. A importncia desse romance foi tanta que esse dia ganhou um nome especial: Bloomsday! A palavra conjuga Bloom o nome de famlia de Leopold, traduzido tambm por flor, ndice do florescimento de um amor , com day, dia, mantendo ainda uma relao homofnica com Doomsday, o dia do juzo final.

Outro, o de 1975, quando Jacques Lacan, h exatos trinta e cinco anos, pronunciava, no grande anfiteatro da Sorbonne, em Paris, durante o Quinto Simpsio internacional James Joyce, sua famosa conferncia Joyce le sinthome. Essa conferncia uma homenagem de Lacan a Joyce, na medida em que, do sintoma, ele d sua grandeza, essncia e abstrao (Joyce le sinthome). Verdade que, para tal, Lacan toma apoio fundamentalmente em Finnegans Wake, no qual os neologismos so inmeras vezes mais frequentes do que em Ulisses. Sinthome, conforme a um francs antigo, faz homofonia com saint homme. Tantos neologismos fazem a sentido por tratar-se de um sonho, mais exatamente de um pesadelo, como detectou Maria da Glria, por intermdio da personagem Ana Livia Plurabelle, ALP, que em alemo conota pesadelo. Finnegans Wake um livro da noite, enquanto Ulisses um livro do dia, mas um livro do dia que termina preparando, no ltimo captulo, a noite.

Antes de prosseguir, umas notas para contextualizar o assunto, pois estamos falando, seno do ltimo romance, daquele que fecundou todos os que vieram depois.

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Escrito entre 1914 e 1922, enquanto Joyce morou em Trieste, Zurique e Paris, Ulisses desenvolve-se em torno a trs personagens, os quais impregnam, com seu selo, as trs partes do romance: S, de Stephen Dedalus, P, de Poldy e M, de Molly, os dois ltimos, respectivamente, hipocorsticos de Leopold Paula Bloom e Marion Bloom. Os que o consideraram o cume de todos os romances, chegaram a essa considerao devido a seu carter de pardia de A Odissia, de Homero. O substrato para tal estava contido em uma frase atribuda a Kierkegaard: toda fase histrica termina com a pardia de si prpria. Era o que tinha acontecido com o Don Quixote em relao aos romances de cavalaria.

Ulisses, dizem, nasceu com um estigma: o de difcil ou mesmo impossvel leitura. Pode ser! Mas no se pode deixar de lembrar que as primeiras edies das duas tradues ao portugus esgotaram-se rapidamente. Em 2008, a editora Alfaguara Brasil fez outra edio da traduo de Bernardina.

As dificuldades parecem dever-se a duas vertentes: de um lado, um certo desconhecimento da intimidade do mito grego e, de outro, o fato de utilizar um ingls impregnado de dialeto irlands e tambm de outras ilhas britnicas, do slang americano, de dialetos no expressos literariamente, alm de citaes e aluses veladas da Bblia e dos escolsticos, de obras escritas em grego, latim, francs, italiano, hebraico, alemo, quando utiliza muitas vezes palavras no idioma original, sem a menor cerimnia. A relao com o clssico de Homero tem sido estabelecida assim: os trs primeiros captulos da parte S, em que traz cena o personagem de O retrato do artista quando jovem, Stephen Dedalus, compreende-se como uma referncia ao filho de Odisseu, Telmaco, e representa a arte. Os doze captulos seguintes levam a marca de Leopold Bloom: uma pardia do prprio Odisseu a viver sua odisseia de 18 anos em um nico dia, e representa a cincia. Os trs ltimos captulos tm como marca o M de Molly Bloom. A encontraremos o derradeiro deles composto com 8 frases, sem nenhuma vrgula e um nico ponto, bem no meio, entre a quarta e a quinta frase, distribudas ao longo de 42 pginas; representa a me-terra. Estou de acordo. Contudo, para mim, insiste uma frase do Fausto, de Goethe: Nicht Kunst und Wissenschaft allein, Geduld will bei dem Werke sein (Faust I Arte e Cincia por si ss no andam, preciso pacincia para o trabalho ir em frente). Se o filho e o pai representam a arte e a cincia, Molly por certo h de representar tambm a Geduld, a pacincia.

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Quando se fala em Ulisses, a primeira coisa que em geral as pessoas associam o que se chama de fluxo de conscincia. Entrou de moda nessa poca, e nunca mais saiu. Muitos autores a utilizaram, como Virginia Woolf, para citar um de seus expoentes, e que muitos consideram mesmo uma de suas criadoras, mas tambm, ainda antes dela, douard Dujardin que, em 1888, publicou Os loureiros esto cortados, do conhecimento de Joyce. Hoje, o fluxo de conscincia tornou-se quase um lugar comum. Sua manifestao foi estudada, teoricamente, por William James que utilizava a expresso retirada de antigas escrituras budistas , desde a publicao do seu Princpios de psicologia, em 1890, e depois, de modo mais especfico, no seu The Stream of Consciousness, de 1892. A palavra inglesa stream, do mesmo modo que a nossa portuguesa fluxo, tm, ambas, o sentido de um escoamento contnuo e, acima de tudo, natural, como um rio, a menorreia, etc. A premissa de William James era a de que a mente est sempre ocupada por um turbilho de pensamentos, e hoje, acorde teoria do caos, pode-se pensar mesmo que o pensamento nasa desse turbilho. Mas sua ocupao era com a mente consciente, com toda a gama de impresses, sensaes e raciocnios que fluem superficialmente.

A definio bsica de William James era a de que o primeiro e mais importante fato concreto que cada um afirmar pertencer sua experincia interior, o fato de que a conscincia, de algum modo, flui. Estados mentais sucedem-se uns aos outros na conscincia. Tudo o que se pode dizer, dizia ele, que na conscincia tudo flui. As principais caractersticas desse fluxo so condizentes com o fato de que (1) cada estado tende a ser parte de uma conscincia pessoal; (2) dentro de cada conscincia pessoal os estados esto sempre mudando; (3) cada conscincia individual sensivelmente contnua e (4) interessada em algumas partes de seu objeto em detrimento de outras, acolhendo-as ou rejeitando-as o tempo todo. Nessa constante e ininterrupta mutao, enquanto a concentrao se d sobre determinadas impresses ou sensaes, outras, necessariamente, esto sendo ignoradas.

Mas, enfim, como se diz, uma andorinha s no faz vero. E o episdio que veio somar-se s leituras, por Joyce, de Dujardin e de William James, dando-lhes sentido, foi seu encontro com o escritor Italo Svevo, ainda em Trieste, onde Joyce ensinava ingls para as escolas Berlitz. Svevo trazia textos para Joyce corrigir o ingls e Joyce comeou a achar muito interessante os textos sem nenhuma pontuao, no caso porque Svevo, com dificuldade para pontuar, escrevia um texto contnuo. De acordo com

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Richard Ellman, tendo percebido as implicaes literrias de uma estrutura assim, Joyce passou a adot-la imediatamente.

A expresso maior dessa tcnica aparece, no Ulisses, em seus dois monlogos, respectivamente o de Stephen Dedalus, no captulo trs, e o de Molly, no captulo dezoito. Enquanto o de Stephen bem comportado, com seus pontos, vrgulas e interrogaes, tudo em seu lugar, o de Molly tem um nico ponto ao final do quarto de seus oito pargrafos. Mas no se pode deixar de reconhecer que o texto tem ritmo e isso de certo modo facilita a leitura.

Como nem todos os captulos, como j vimos, so monlogos, falarei de um com monlogo e outro sem, duas maneiras distintas de dar vazo ao fluxo de conscincia. Falarei de Molly, mas falarei antes da seduo veremos como lhe corresponde , falarei das sereias.

Tendo escapado das rochas, no captulo anterior, o labirinto das ruas de

Dublin por onde fascam as rodas de ao da carroa do vice-rei, e antes de

se enfrentar com Polifemo, em Ulisses o enorme Cidado que na falta de

uma enorme pedra , termina por jogar nele uma parodstica lata de

biscoitos, Leopold Blomm passa, no captulo onze, pelas sereias.

H msica no ar. As sereias so capazes de enfeitiar at o vento. Em

ingls existem duas palavras para designar as sereias, siren, do grego

, como empregado por Homero, e mermaid, de mere, que alm do

sentido de marco, limite, fronteira, no vocabulrio potico tambm se

traduz por lago e mar, mais o verbete maid, que se traduz por donzela,

moa solteira, virgem; mermaid a maid of the sea, a virgem do mar, e

parece ter entrado para a lngua inglesa por volta do sculo XIV. No

captulo XI, no qual faz uma pardia das sereias, Joyce usa sempre a

verso mermaid. E, se elas enfeitiam at o vento, porque um dia foram

enfeitiadas.

A saga das sereias comea com seu pai, o deus-rio Aquelo. Corria entre a

Etlia e Arcnia, quando, ao atravess-lo, o jovem Aquelo foi ferido por

uma frecha e, ao morrer, cedeu nome e esprito ao rio. Vingativo, quando

quatro ninfas ao fazerem sacrifcio aos deuses esqueceram-se de incluir

seu nome, cresceu, transbordou e arrastou todas as quatro para o mar,

transformando-as nas ilhas Equinades. Amoroso, teve filhos com vrias

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mulheres. Com Melpmene, a Musa que preside a tragdia, foi pai das

sereias. Como sua me, sero cantoras! Embora algumas pinturas, como

a de William Waterhouse, por exemplo, retratem-nas em grande nmero,

originalmente, eram duas: Partnope, cuja raiz , denota

virgindade, e Ligia, cujo nome deriva de uma flor das margens do

Mediterrneo. Quando lhes aumentam o nmero, uma delas ir chamar-

se Teles, vejam s! Joyce chamar uma delas, no de Ligia, mas de Lydia.

Lydia, com o significado de irm, a irm de Mina.

No comeo de sua histria, Partnope e Ligia eram mulheres belssimas e

faziam parte do squito de Persfone. Mas quando Hades, apaixonado,

raptou Persfone, responsveis que eram por seu cuidado, as duas irms

pediram aos deuses asas para procur-la por terra, cu e mar. A me da

jovem raptada, Demter, indignada, fez mais: na tropelia, com um feitio,

transformou-as em almas-pssaros. Afrodite t-las-ia metamorfoseado em

pssaro, com cabea e tronco de mulher, e tambm como peixe, da

cintura para baixo. No podendo ento usufruir do prazer, atraam os

homens para devor-los. Assim que, de um modo ou de outro, eram umas

devoradoras de homens.

Mas as sereias carregam consigo ainda uma caracterstica semntica, a

qual, na verdade, foi a que me levou a falar delas para vocs: o primeiro

elemento de sua etimologia parece ser , com o sentido de corda,

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lao, liame e mesmo armadilha. No o que faz a msica? No tem a

msica o poder de nos envolver? Como com qualquer coisa se faz msica

e todas as profisses tm seu instrumento, logo todos fazem msica,

todos seduzidos sedutores. Se de uma concha, por si s, colada concha

do ouvido (p.312),1 j se pode ouvir msica (p.311), com uma lmina de

gramnea, na concha de suas mos, basta soprar. Mesmo de um pente e

papel de seda voc pode tirar uma melodia. [...] O caador com seu clarim.

Clarina. Voc tem a? Cloche. Sonnez la. O pastor a sua flauta. Pfuiti

pequeno minsculo. O policial um apito. A sete chaves! Limpar a chamin!

Quatro horas est tudo bem! Dormir! Est tudo perdido agora. Tambor?

Badapom. Espera. Eu sei. Pregoeiro, quadrilheiro. Long John. Despertar os

mortos. Pom. Dignam. Pobre do pequeno nominedomine. Pom. Isso

msica. Quero dizer naturalmente tudo pom pom pom muito do que eles

chamam de da capo. Ainda assim voc pode ouvir. Quando ns

marchamos, marchamos em frente, marchamos em frente. Pom

(p.321/277-8).

A msica desse captulo est estruturada conforme a uma fuga, e todos os

instrumentos possveis so utilizados para compor esta fuga per canonen.

Aqui, depois de caracterizar as cinquenta e oito frases da exposio do

tema, o autor d por acabado. E, da capo, recomea! A fuga, como disse

uma vez o Prof. Donaldo, no seu Narciso errante, a traduo do

sofrimento humano. Como Ulisses, cada um de ns, a cada dia, corre o

risco de afogar-se, no trabalho, nos amores, na tristeza, na bebida. A ilha

das sereias ser agora o Bar Ormond, um dos lugares preferidos pelos

dublinenses para ouvir msica. Atendem a duas maids, miss Lydia Douce,

o bronze, e miss Minna Kennedy, o ouro. Os metais denunciam uma poca

homrica. Ondas espumantes percorrem a sala em canecos de cerveja.

s frases desacompanhadas seguem agora as respostas com vrias vozes.

As duas primeiras (respectivamente nas pginas 286 e 287) reproduzem

exatamente o sujeito, configurando uma fuga real, mas j so por si

1 Os nmeros entre parnteses correspondem edio de Ulisses, da editora Objetiva (Rio de

Janeiro, 2005, 888 p.), na traduo de Bernardina da Silveira Pinheiro.

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mesmas enganadoras porque a imitao estrita no seguir ao longo do

captulo. Nas respostas seguintes, quando j veremos alterados os

intervalos do sujeito, a linearidade obedecer outra lgica e a fuga

tomar sua caracterstica tonal, impondo-se, contudo, a cada tanto, o que

se chama de uma fuga enigmtica. Caracteriza esta ltima a frase: Que o

caranguejo avance por completo e recue pela metade. Ou, como diz Joyce:

Em toda msica se voc pensar bem. Dois multiplicado por dois dividido

pela metade duas vezes um (p.308). com essa teoria que Joyce justifica

o movimento de Miss Kennedy, quando ela verteu o ch na xcara e depois

verteu de volta o ch da xcara no bule (p.287), e mesmo que, depois de

queimada, volte a ficar morena (p.287). Sua testemunha o calvo Pat, o

garom, ao encontrar ouro (Miss Kennedy) na porta sem ch que

retornava (p. 297). E, por falar em porta, estamos frente mesma

escanso do tempo lgico que permite aos prisioneiros, no aplogo de

Jacques Lacan, reconhecer que todos so brancos.

As repostas comeam sob a tnica da clave de Sol, como disseram os

lbios molhados da senhorita Douce, rindo (p.286). O vice-rei, tremendo

idiota, vira a cabea para trs e a senhorita Kennedy tristemente se afasta

da luz do sol. So como as ondas. Enquanto a senhorita Kennedy solta da

garganta uma risada estridente e esganiada, a senhorita Douce sopra e

bufa por suas narinas que estremecem impertnite como um focinho em

busca (p.289). o comeo da msica. Em seguida entra o Sr. Simon

Dedalus, para o piano, embora as primeiras notas de pfaro saiam de seu

cachimbo (p.290). Os refros so de Floradora, que na pea comea por

ser uma pequena ilha das Filipinas, onde fabricam uma doce fragrncia do

mesmo nome. O perfume das flores, o perfume de Bloom est no ar.

Metem psi coisas (pp.299. 315, 319): agora nesta ilha moram as sereias do

Bar Ormond. Mudam o piano de lugar (p.292), acertam o diapaso

(p.293), explode a rolha de uma garrafa (p.293), os sapatos de Blazes

Boylan rangem no cho (p. 294); o tempo parece tender sincronia, so

sempre quatro horas; segue Idolores, de Floradora, agora a bela do Egito,

retine a caixa registradora (p.295); adejantes (p.31), os dedos no piano

vo e voltam; por serem virgens, a virgem Maria, de azul e branco,

tambm sereia (p.288); por sedutora, Molly tambm o (p.299).

Sedutores so tambm os tordos cantadores (p.302)[throstle], o

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codornizo crocitador (p.308). A msica toma conta, desde o tamborilar

dos dedos de Bloom (p.309), castagnettes no ar (p.318), o retinir das

vasilhas, as gotas de chuva, gligloglu gligloglu (p.313), algum que bate de

leve na porta, toc toc toc (p.313), harpias de lentos harpejos (p.315).

Contudo, atravs da quietude do ar uma voz cantava para eles, baixo, no

era chuva, no eram folhas em murmrio, como nenhuma voz de

instrumentos de corda ou de sopro ou comovocaschama ctaras,

enternecendo seus ouvidos serenos com palavras, os coraes serenos de

cada um as suas vidas relembradas. Bom, bom de ouvir (p.304).

Escutemo-lo junto ria das sereias (vs. 184-191 do canto XII da Odissia),

na traduo do Professor Donaldo:

Pra perto, preclaro Odisseu, pra perto, brilhante

aqueu, nosso hino delicie de perto o teu corao.

Todos nos ouvem. a regra. Sem nos

ouvir ningum passou aqui em nau negra.

Com nosso saber prossegue mais pleno.

Do que se passou nos campos de Tria sabemos tudo

por divino favor, o padecimento de troianos

e argivos, mais o ocorrido na prolfera terra.

Sabendo ser quem somos, quando nos atraem s pode ser para uma

paranoica armadilha, e h que resistir seduo. Excitados, Ulisses se faz

amarrar ao mastro do navio enquanto metem psi coisas (pp.299, 315,

319) , Bloom, com frgil categute (pp.307-8), suas mos laava,

desenlaava, atava, desatava (p.305). Na escolha do lugar para se

amarrar, no propriamente o mastro, o , mas o (Canto

XII, v.179), quer dizer, exatamente a parte onde encaixa o mastro, pode-se

ler uma preocupao de Ulisses com o centramento. Nestes barcos de um

s mastro, seu lugar precisa ser to central como centrado em si mesmo

precisa ser o homem para o enfrentamento com os desafios de cada dia;

para Leopold Bloom, preciso estar enlaado visceral e cirurgicamente a

si mesmo, vale dizer simbolicamente castrado, para poder resistir a outros

laos.

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Mas preciso ir disse o prncipe Bloom (p.314), enquanto o Sr. Dedalus [fica]

olhando para [...] uma ltima, uma solitria, ltima sardinha de vero. [E]

Bloom to s (p.320). Mas ainda dia!

Mais seis captulos e, decididamente, ser noite.

Agora estamos agora no captulo dezoito. O captulo final. Como na vida, no se chega ao fim sem ajuda. A chave facilitadora nem sempre est onde se espera. Como Ulisses, retornando com a ajuda de seu filho Telmaco, Leopold Bloom, no captulo anterior, retorna para casa com a ajuda de Stephen Dedalus, a quem quer adotar como filho. Verdade que um no sem o outro: se de Stephen com Bloom temos Stoom, de Bloom com Stephen, temos Blephen (p.707). Blefe? Por que nenhum diz a verdade para o outro? Por que, quando tudo parecia certo, Stephen no aceita o convite para passar a noite? Apenas urinam juntos, e depois seguem cada um seu caminho. O som da urina, que noutro tempo inspirou a Joyce sua Msica de cmera chamber pot , ser uma simples indicao de um ritornelo para, da capo, comear tudo outra vez?

Mas voltaram. Odisseu, depois de vinte anos, volta para casa e a tem que conquistar outra vez sua mulher, agora com vrios pretendentes. Passados vinte anos, a mulher no mais o reconhece. H que vencer os concorrentes, eliminando-os, um a um. Nem vencendo a prova do olho do machado, a mulher o reconhece, afinal mais fcil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino de deus. Penlope s o reconhece como marido quando ele lhe fornece a senha correta, construda sobre um segredo de alcova: o tlamo construdo sobre o tronco de uma oliveira de folhas alongadas (XXIII: 190-91). A soluo tem que ser discursiva. pelo discurso que Leopold Bloom reconquista sua mulher Marion Bloom. A metfora forte: no inamovvel tlamo que se sabe quem quem! Porque o que se diz na cama no se esquece. E, agora, Leopold Bloom pede, como a muito no fazia, desde o Hotel City Arms, seu caf na cama, e com dois ovos, please. Da em diante, Molly no resistir mais. Para quem conhece a linguagem dos selos (p.788), no difcil decifrar a implicao de sua posio nas bordas do envelope.

O ttulo deste dcimo oitavo captulo chama-se Penlope, justamente em homenagem ao captulo XXIII de A Odissia. Penlope, a quase sempre citada como exemplo da esposa fiel, servir de modelo para a figura parodstica da mal dita infiel Molly Bloom.

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Conheamos de Molly o que se pode conhecer. Veremos que no muito! Seu monlogo no tem a mesma consistncia do de Stephen Dedalus, um sujeito que veio da lus permitam que o diga luz assim, com s inversamente, para a sonora ded (death), para a morte. Ela faz um balano de sua vida, recorda, mas no se analisa. Enquanto Stephen se compara com outros, buscando saber quem , Molly, ao comparar-se com outras, fica restrita a um primrio e alienante nvel de identificao. Quem mais parece falar seu corpo.

Antes de entrarmos no monlogo propriamente dito, lembremos que de sua me, Lunita Laredo, ela no sabe nada (p. 791, l.5), ou morreu muito cedo, ou ento desertou. Casou-se com Leopold Bloom, um peripattico vendedor de anncios para jornal, com quem teve uma filha, Milly, e um filho natimorto Rudy; a partir dessa perda, seu marido tornou-se praticamente impotente. Molly, por sua vez, trabalha como cantora em um bar, o Palace, e amante de seu agente teatral, Blazes Boylan. Como no difcil de perceber, Molly est sempre s voltas com a falta para citar Churchill , de fracasso em fracasso, mas sempre com entusiasmo. Mas verdade que a frase de Antonio Maria e Fernando Lobo, em Ningum me ama, poderia estar tambm na boca de Molly, que ento diria: - Vim pela noite to longa, de fracasso em fracasso. Molly Bloom, a mulher infiel, uma pardia da fida Penlope, diz-se. Pois vejamos: em uma das muitas verses, a origem do deus P, uma das figuras mais populares de todos os tempos, atribuda aos amores de Penlope com Hermes. Vejam s! E outra verso atribui sua origem aos amores de Penlope com todos os seus pretendentes, da o sentido de todo atribudo ao deus. De modo que a fidelidade de Penlope no assim to indiscutvel. E o adultrio de Marion? O cenrio uma cama e o tempo da cena o dia seguinte, as primeiras horas da madrugada do dia seguinte ao 16 de junho de 1904. O que quer dizer isso? Que o que a se descreve no tem lugar no dia a dia? Uma antecipao ao livro da noite? Estamos lembrados de que a cama o lugar da verdade. E a est Marion Bloom. Antnio Houaiss chama esse monlogo de solissmnio uma palavra que ele no incluiu nem no seu dicionrio! , quem sabe para diferenci-lo do monlogo de Stephen Dedalus. Ela est em um estado crepuscular, entre o sono e a viglia, entre o sono e o sonho. Seria uma

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maneira de interpretar a ausncia de pontuao, uma forma de representar a atemporalidade onrica. Vamos ento ao monlogo. No o mais difcil de ler. Se no tem pontuao, tem ritmo, o que facilita em muito a leitura. E tambm no tem tantas lnguas, embora grande parte da gria a utilizada tenha que ver com o llanito. Isso porque Molly originria de Gibraltar, uma pennsula do territrio espanhol cedido ao Reino Unido pelo tratado de Utrech, em 1713. Quem alguma vez j viu o Rochedo de Gibraltar, sabe que ele no fica a dever nada ao nosso Po de Acar! A, alm do ingls, sua lngua oficial, fala-se tambm o espanhol e, sobretudo, o llanito, formado pelo ingls e o espanhol, porm com uma influncia do rabe, do genovs, do italiano, do ladino, do malts e do hebraico, mas no nada difcil, tudo est dito com o mais conhecido de cada lngua.

um captulo inteiro bordado de sim.

Ela comea surpresa com a mudana do marido. Ele, que sempre a servira, viera para a cama encomendando para seu desjejum um caf acompanhado de dois ovos. o seu primeiro sim! Quando se sente desejada, dessas mulheres que s dizem sim. Um carvoeiro? Sim. Um bispo? Sim (p.767). O padre Corrigan a quis? Sim (p.767). Bartell dArcy quer beij-la depois de ter cantado a Ave Maria, de Gounod? Sim (p.773). Harold a persegue pela chuva at ela dizer sim? Oh! Maria Santssima, sim! (p.773-74). E Gardner, circuncidado ou no? Sim (774). Henri Doyle, pedindo com 8 papoulas, no dia oito? No beija to bem como Gardner, mas sim. Na segunda-feira, sim (p.774). E o velho Goodwin, de rosto gelado? Sim (p.775). Val Dillon, grande e selvagem? Sim (p.777-78). O velho Larry, por uma garrafa de clarete que ningum mais queria? Sim (p.788). Algum mais? Quem sabe uma banana? Isso no, pois teme pudesse quebrar e ficar perdida em algum lugar l dentro (789). No mais, todos pginas viradas no seu folhetim. Com Boylan era diferente. Ele notava a forma de seu p (p.772), mesmo na presena de seu marido, o Poldy, querido! Uma cena que parecia excit-lo (p.772). Quando se diz que dois bom, trs demais, usa-se uma frmula que no serve para todos os casos. Boylan, o terceiro, bem pode ser condio da felicidade conjugal (p. 813). do gosto de Poldy ver Molly e Boylan juntos (p.804). Em seu solissmnio, Molly se lembra de todas as

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mulheres que conheceu, desde os dias de Gibraltar, seus amores pelos homens, frustrados, sofridos, perdidos, apaixonados, e o imenso valor do desejo dos homens pelas mulheres. Os vivos, as vivas, sem esquecer o que um traje de luto (p. 805) hoje diramos um pretinho bsico , pode fazer por uma mulher bonita. E, l ci darem la mano,2 a cena no topo do monte Howth (p.814) desdobra-se em mirades. Bernardina da Silveira Pinheiro, na sua transcriao, ao fazer de O much about it, muito barulho toa (p.812/l.18), fez-me lembrar de uma comdia de Shakespeare, Much Ado About Nothing, em geral traduzida como Muito barulho por nada. O particular da pea tem a ver com a gria da poca elisabetana, quando thing conotava pnis, e nothing, sua ausncia. Da que uma coisa o desejo dos homens pelas mulheres e outra, o desejo de um homem por uma mulher. Molly lembra, ento, o dia em que foi pedida em casamento (pp.814-15). Desde esse dia, ela s quer dizer sim. Em sua resposta est presente toda a histria do mundo, dos muros mourescos de Algecira Duke Street, as mulheres sempre dizendo sim. Em todas as perguntas, repete-se sempre esta que representou para ela a mxima expresso do desejo de um pelo outro, a mxima expresso do desejo de Leopold por Marion, a mxima expresso do desejo do homem pela mulher: ele me pediu se eu queria sim dizer sim [...] e sim eu disse sim eu quero sim.

Voil!

2 Uma das rias da pera Don Giovanni repetida vrias vezes em diversos captulos e, pela ltima vez, aqui, p.812, l.7.