O UNIVERSO Teorias Sobre Sua Origem e Evolução
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O UNIVERSO
TEORIAS SOBRE SUA ORIGEM E EVOLUO
ROBERTO DE ANDRADE MARTINS
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INTRODUO
A origem do universo um tema que sempre interessou a toda a
humanidade. Em todos os povos, em todas as pocas, surgiram muitas e
muitas tentativas de compreender de onde veio tudo o que conhecemos. No
passado, a religio e a mitologia eram as nicas fontes de conhecimento. Elas
propunham uma certa viso de como um ou vrios deuses produziram este
mundo.
H mais de dois mil anos, surgiu o pensamento filosfico. Ele props
novas idias, modificando ou mesmo abandonando a tradio religiosa. Por
fim, com o desenvolvimento da cincia, apareceu um outro modo de estudar a
evoluo do universo.
Atualmente, a cincia predomina. dessa cincia que muitos esperam
obter a resposta s suas indagaes sobre a origem do universo. Muitas vezes,
lemos notcias em jornais e revistas apresentando pesquisas recentes sobre a
formao do universo. Na tentativa de chamar a ateno para uma nova
descoberta, os jornalistas s vezes exageram sua importncia e publicam
manchetes do tipo: "Acaba de ser provado que o universo comeou de uma
exploso". Mas foi provado, mesmo?
As notcias, quase sempre, do a impresso de que acabaram todos os
mistrios, que no h mais dvidas sobre o incio e evoluo do cosmo. Mas a
verdade no exatamente essa. H dezenas de anos, os jornais repetem as
mesmas manchetes, com notcias diferentes. Quem se der ao trabalho de
consultar tudo o que j se publicou sobre o assunto, ver que os meios de
comunicao revelam sempre um enorme otimismo. O resultado de cada nova
pesquisa apresentado como se tivesse sido conseguida a soluo final. Mas
se a notcia de trinta anos atrs fosse correta, no poderiam ter surgido todas
as notcias dos anos seguintes - at hoje - repetindo sempre que um certo
cientista ou grupo de pesquisadores "acaba de provar" que o universo
comeou assim e assim.
A cincia tem evoludo, isso inegvel. Durante o sculo XX, nossos
conhecimentos aumentaram de um modo inconcebvel. Entretanto, nem todos
os problemas foram resolvidos. A cincia ainda no esclareceu a maior parte
das dvidas. As teorias sobre a origem do universo ainda devem sofrer muitas
mudanas, no futuro. Por isso, ningum deve esperar encontrar aqui a resposta
final. A ltima palavra ainda no foi dita.
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A cincia no o nico modo de se estudar e tentar captar a realidade. O
pensamento filosfico e religioso possuem tambm grande importncia. As
antigas indagaes ressurgem sempre: ser possvel que esse universo tenha
surgido sem uma interveno divina? at que ponto a cincia e a religio se
contradizem ou se completam?
Ao longo da histria da humanidade, desenrolou-se - e ainda se desenrola
- um enorme esforo para descobrir de onde veio tudo aquilo que existe. a
histria desse esforo que ser descrita neste livro. Apenas sabendo todas as
fases pelas quais j passou o pensamento humano, podemos tentar avaliar
corretamente o estgio atual de nossos conhecimentos. Para isso, no podemos
nos limitar apenas s investigaes mais recentes, nem apenas cincia.
Devemos recuar a um passado distante, e acompanhar essa grandiosa aventura
intelectual da humanidade: a tentativa de entender a origem do universo, a sua
prpria origem e o seu prprio significado.
Em nossa viagem, encontraremos alguns dos maiores pensadores de toda
a histria. Muitas teorias so difceis ou obscuras. preciso um certo esforo
para entend-las. Mas vale pena esse esforo de elevar-se e poder dialogar
com alguns dos maiores gnios da humanidade.
Nossa viagem pela histria do pensamento humano nos mostrou muitas
tentativas realizadas para se compreender a origem de nosso universo. Essa
busca existiu em todas as civilizaes, em todos os tempos. Mas a forma de
buscar essa explicao variou muito. O mito, a filosofia, a religio e a cincia
procuraram dar uma resposta s questes
fundamentais: O universo existiu sempre, ou teve um incio? Se ele teve
um incio, o que havia antes? Por que o universo como ? Ele vai ter
um fim?
Nosso conhecimento moderno sobre o universo est muito distante
daquilo que era explicado pelos mitos e pela religio. Nenhum mito ou
religio descreveu o surgimento do sistema solar, do Sol, das galxias ou da
prpria matria. Esperaramos da cincia uma resposta s nossas dvidas, mas
ela tambm no tem as respostas finais.
Por que no desistimos, simplesmente, de conhecer o incio de tudo?
Que importncia pode ter alguma coisa que talvez tenha ocorrido h 20
bilhes de anos?
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A presena universal de uma preocupao com a origem do universo
mostra que esse um elemento importante do pensamento humano.
Possuir alguma concepo sobre o universo parece ser importante para
que possamos nos situar no mundo, compreender nosso papel nele. Em certo
sentido, somos um microcosmo. O astrnomo James Jeans explicava o
interesse dos cientistas por coisas to distantes de nossa vida diria, da
seguinte maneira:
Ele quer explorar o universo, tanto no espao quanto no tempo, porque ele
prprio faz parte do universo, e o universo faz parte do homem.
Essa busca de uma compreenso do universo e do prprio homem ainda
no terminou. De uma forma ou de outra, todos participamos dessa mesma
procura. Uma procura que tem acompanhado e que ainda dever continuar a
acompanhar todos os passos da humanidade.
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CAPTULO 1 - A ORIGEM DO UNIVERSO NA
MITOLOGIA E NA RELIGIO
1.1 UM MITO INDGENA DO BRASIL
De onde veio este mundo? Como ele surgiu? De onde vieram os homens?
Qual o significado de tudo isso que existe? Em todos os tempos e em todas as
civilizaes, essas foram perguntas que sempre inquietaram a humanidade e
que receberam diferentes tipos de respostas.
Uma lenda indgena nheengatu, da Amaznia, assim conta a origem do
mundo:
No princpio, contam, havia s gua, cu.
Tudo era vazio, tudo noite grande.
Um dia, contam, Tupana desceu de cima no meio de vento grande, quando j
queria encostar na gua saiu do fundo uma terra pequena, pisou nela.
Nesse momento Sol apareceu no tronco do cu, Tupana olhou para ele.
Quando Sol chegou no meio do cu seu calor rachou a pele de Tupana, a pele
de Tupana comeou logo a escorregar pelas pernas dele abaixo. Quando Sol
ia desaparecer para o outro lado do cu a pele de Tupana caiu do corpo dele,
estendeu-se por cima da gua para j ficar terra grande.
No outro Sol [no dia seguinte] j havia terra, ainda no havia gente.
Quando Sol chegou no meio do cu Tupana pegou em uma mo cheia de
terra, amassou-a bem, depois fez uma figura de gente, soprou-lhe no nariz,
deixou no cho. Essa figura de gente comeou a engatinhar, no comia, no
chorava, rolava toa pelo cho. Ela foi crescendo, ficou grande como
Tupana, ainda no sabia falar.
Tupana, ao v-lo j grande, soprou fumaa dentro da boca dele, ento
comeou j querendo falar. No outro dia Tupana soprou tambm na boca
dele, ento, contam, ele falou. Ele falou assim:
- Como tudo bonito para mim ! Aqui est gua com que hei de esfriar minha
sede. Ali est fogo do cu com que hei de aquecer meu corpo quando ele
estiver frio. Eu hei de brincar com gua, hei de correr por cima da terra;
como o fogo do cu est no alto, hei de falar com ele aqui de baixo.
Tupana, contam, estava junto dele, ele no viu Tupana.
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Essa lenda indgena mostra um tipo de explicao para a origem do mundo e
do prprio homem. As explicaes mais antigas, como essa, eram mitos: histrias que descreviam como um ou vrios personagens sobrenaturais
(deuses ou outros seres) fizeram o mundo primitivo, criaram os animais, as
plantas, os homens e estabeleceram os costumes, as leis, a estrutura da
sociedade. A lenda nheengatu indicada acima um mito de origem do mundo,
pois tenta descrever esse incio como o resultado da ao de Tupana, um ser sobrenatural.
Esses mitos esto sempre associados a uma viso religiosa: os seres
sobrenaturais descritos nos mitos devem ser respeitados e e obedecidos;
dependendo da religio, devem ser feitos cultos dedicados a esses deuses que
produziram o universo e o homem.
O mito nheengatu citado acima muito mais longo do que o trecho que
foi apresentado. Ele explica como surgiram as plantas, os animais, e tudo o
que tem importncia para a vida na natureza. Diz tambm como surgiu o erro,
fala sobre a desobedincia do primeiro homem e descreve como teria ocorrido
a destruio do mundo por uma espcie de inundao ou dilvio.
1.2 A ORIGEM BBLICA DO UNIVERSO
Essa descrio tem grande semelhana com a origem do universo
descrita no Genesis o incio da Bblia judaica. Nos dois casos, existe um incio de trevas, existem certas guas primitivas, existe uma divindade invisvel que vai formando todas as coisas, e que ir formar o homem a partir
do barro, soprando sobre ele para lhe dar a vida. Embora o Genesis seja bem
conhecido, vamos relembrar o seu incio:
No princpio, Deus criou o cu e a terra.
E a terra era informe e vazia, e havia trevas sobre a face do abismo; e o
esprito de Deus se movia sobre as guas.
E disse Deus: que seja feita a luz. E a luz se fez.
E Deus viu que a luz era boa. E separou a luz das trevas.
Chamou a luz de Dia, e as trevas de Noite. E fez-se a tarde e a manh do dia
um.
E disse tambm Deus: seja feito o firmamento em meio s guas, e divida as
guas das guas.
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E Deus fez o firmamento, dividindo as guas que estavam sob o firmamento e
as que estavam sobre o firmamento. E isso se fez assim.
E Deus deu ao firmamento o nome de Cu. E fez-se a tarde e a manh do
segundo dia.
Deus disse: reunam-se as guas que esto sob o cu, em um lugar, e que
aparea o seco. E isso se fez assim.
E Deus chamou o seco de Terra, e denominou a reunio das guas de Mar. E
Deus viu que era bom.
Depois, nos dias seguintes, Deus produz as plantas, os astros, os animais, das guas e da terra e, por fim, o homem:
E disse: Faamos o homem a nossa imagem e semelhana; e que ele presida
os peixes dos mares, os que voam no cu, as feras de toda a terra, e todos os
rpteis que se movem na terra.
E Deus criou o homem sua imagem; pela imagem de Deus o criou; criou-o
macho e fmea.
E Deus os abenoou, e disse: Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra, e
sujeitai e dominai os peixes dos mares, e os pssaros dos cus, e sobre todos
os animais que se movem sobre a terra.
No stimo dia Deus terminou a obra que havia feito; e repousou no stimo
dia, de todas as obras que produziu.
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Segundo a Bblia, Deus criou o
mundo em 6 dias e descansou no
stimo.
Nesse mito bblico da criao, existe
apenas uma divindade, que produz todas as
coisas. Nada surge por si prprio: parecem
no existir foras ativas da matria.
necessria a deciso e o poder de um deus
para que tudo possa surgir.
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1.3 O MITO BABILNICO DA CRIAO
Em outras culturas, podem existir diversos deuses que participam da
produo do universo, e o incio pode envolver lutas e violncia. O mais
antigo mito conhecido sobre a origem de tudo o Enuma elis, um mito
babilnico que parece ter sido elaborado cerca de 4.000 anos atrs. Ele
comea falando sobre uma unidade primitiva, uma mistura de guas, anterior
a todos os deuses:
Quando no alto o cu [Anshar] ainda no tinha sido nomeado
e em baixo a terra [Kishar] ainda no tinha nome,
nada existia seno uma mistura das guas
de Apsu, o oceano primordial, o gerador,
e da tumultuosa Mummu-Tiamat, a gua doce, a me de todos.
Ento as trevas eram profundas,
um tufo movia-se sem repouso.
Ento nenhum deus havia sido criado.
Nenhum nome havia sido nomeado,
nenhum destino havia sido fixado.
Marduk, o Deus das guas
doces
Nesse mito babilnico, vo surgindo
gradativamente diversos deuses. Na verdade, h uma
enorme variedade de deuses e de mitos, na tradio
babilnica, pois cada regio e cidade tinha seu
prprio deus protetor e seus prprios mitos. O mais
importante, para o tema aqui discutido, Marduk,
filho de Ea, o deus das guas doces (rios, lagos).
Marduk associado s tempestades e aos raios,
e suas armas so o arco e a flecha. Ele tambm
descrito como um grande mago, capaz de fazer com
que as coisas apaream e desapaream. Por isso, ele
escolhido pelos outros deuses como seu lder, para
livr-los do poder de Tiamat. Marduk luta contra
Tiamat, a deusa das guas e das trevas, que
representada s vezes por um drago. Ele a mata e
corta em dois pedaos. O pedao de cima se torna o
cu, e o de baixo se torna a terra. Anu se torna o
deus celeste, e Enlil se torna a deusa da terra.
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aps a destruio de Tiamat que surgem os astros luminosos. Algumas
vezes a criao das estrelas descrita como sendo realizada por Marduk,
outras vezes como realizada pelos deuses das vrias regies em que o
universo ficou dividido:
No tempo em que Anu, Enlil e a, os grandes deuses,
criaram o cu e a terra,
eles quiseram tornar visveis os signos,
fixaram as estaes e estabeleceram a posio dos astros,
deram nomes s estrelas e lhes atriburam as trajetrias,
desenharam, sua prpria imagem, as estrelas em constelaes,
mediram a durao do dia e da noite
criaram o ms e o ano
traaram a rota da Lua e do Sol.
Assim, eles tomaram suas decises sobre o cu e a terra.
...
Eles confiaram aos grandes deuses
a produo do dia e a renovao do ms,
para as observaes astrolgicas dos homens.
Viu-se ento o Sol se levantar
e os astros brilharem para sempre em pleno cu.
O mito descreve tambm as outras fases de criao do universo, at a
produo dos homens. Segundo uma verso, Marduk aconselhado por seu
pai Ea a criar os homens com a finalidade de adorarem os deuses. Marduk,
ento, mata um drago (Kingu) e faz os homens a partir de seu sangue. Em
outra verso, a deusa Aruru que faz os homens a partir da argila.
interessante notar as semelhanas e diferenas entre os diversos
mitos de criao. H aspectos que se repetem em culturas muito diferentes,
como a produo dos homens a partir do barro ou argila; e outros que
parecem originais.
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Na Babilnia, a astrologia era de enorme importncia. Acreditava-se que os
astros dirigiam a vida das pessoas e todos os acontecimentos da Terra. Por
isso, os planetas e estrelas so considerados como elementos centrais, no mito
de criao. Eles so to importantes, que as constelaes recebem formas que
representam a imagem dos prprios deuses. Pelo contrrio, no mito da Bblia,
o centro de tudo o homem. No se menciona a astrologia, e o homem
criado como uma imagem divina. Nos dois casos, esse um aspecto estranho
do mito: em que sentido os deuses possuem uma forma?
Outro aspecto muito interessante que, nesses mitos, os deuses vo
estruturando o universo, produzindo suas partes, e tambm lhes do nomes e
estabelecem as leis que devem ser obedecidas por todos os fenmenos. No
incio, diz o Enuma elis, nada tinha nome. O Genesis no afirma isso
diretamente, mas indica que Deus d o nome ao dia e noite, ao cu e terra,
etc. Dar um nome significa, nas mitologias, tornar real, concreto, definido, controlvel. Aquilo que no tem nome o que desconhecido, impalpvel,
obscuro, indefinido e assustador.
O mito babilnico diz que no incio nada tinha nome e que nenhum
destino havia sido traado: ou seja, no existiam regras ou leis que
permitissem dizer o que deveria ocorrer no futuro. No entanto, quando os
deuses criam os planetas, eles determinam suas trajetrias, isso , estabelecem
como eles devem se mover. So assim criadas aquilo que podemos chamar de
leis da natureza. Da mesma forma, no Genesis, Deus estabelece que as plantas, os animais e os homens devem se multiplicar e produzir outros iguais
a eles prprios, segundo sua espcie. As divindades, assim, vo dando ordens,
isto , vo ordenando o universo. O estabelecimento de uma organizao, de
uma ordem, um aspecto essencial de todo mito de origem do universo os chamados mitos cosmognicos.
Normalmente, os mitos cosmognicos pressupem que j existe alguma
coisa, desde o incio. Ao invs de criar tudo a partir do nada, uma divindade
modifica essa coisa original, dividindo-a e produzindo outras. comum o
aparecimento de uma espcie de gua primordial, ou escurido (trevas, noite)
como ponto de partida, como nos mitos indicados acima. Ao invs de um
criador, a divindade , ento, um tipo de arteso que vai estruturar o universo.
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1.4 AS SEMELHANAS ENTRE OS MITOS DE DIFERENTES POVOS
impossvel descrever a mitologia de todos os povos. No entanto,
estudos j realizados mostram que muitos temas e idias bsicas se repetem.
Em alguns casos, a tradio de um povo pode ter sido passada a um outro
povo. Afinal, os babilnicos, os egpcios, os gregos e outros povos da
Antigidade viviam prximos e possuam relaes comerciais e culturais
muito fortes. O mais estranho, no entanto, que mesmo os povos das
Amricas, da frica ou da Austrlia, que no parecem ter tido ligao com as
culturas da Europa e da sia antiga, tambm desenvolveram mitos que
possuem muitas semelhanas com aqueles. Como explicar isso?
Em alguns casos, pode-se pensar em uma tradio comum, muito antiga.
Assim, a mitologia grega e a indiana, por exemplo, possuem vrias
semelhanas que so atribudas a uma cultura indo-europia primitiva, de
onde teriam sado tanto os gregos quanto os indianos. Os estudos lingsticos,
no sculo passado, mostraram que os idiomas de muitos povos europeus e
asiticos possuem semelhanas to grandes que deve-se supor que saram
todos de um s idioma comum; da mesma forma, isso deve ter acontecido
com muitos outros elementos culturais e religiosos. Mas no se pode aplicar a
mesma idia ao mundo todo. Os idiomas africanos ou dos ndios americanos,
por exemplo, no possuem semelhana com os idiomas indo-europeus.
quase impossvel se pensar em explicar por uma origem histrica comum as
semelhanas entre mitos dos ndios brasileiros, dos judeus e de povos da
Austrlia.
O psiclogo Carl Jung props uma explicao para essas semelhanas.
Ele sups que o inconsciente de cada pessoa tem dois tipos de componentes:
por um lado, lembranas pessoais de sua prpria vida e, por outro lado,
imagens impessoais, uma espcie de memria da raa humana, herdada por
cada pessoa ao nascer.
Esses dois tipos de inconscientes o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo poderiam se manifestar na produo de sonhos. Alguns sonhos possuem carter pessoal e podem ser compreendidos pela
lembrana de acontecimentos recentes ocorridos com a prpria pessoa. Mas
outros sonhos apresentam imagens impessoais e estranhas, que a prpria
pessoa no consegue associar com nada que lhe conhecido. Esses sonhos
viriam do inconsciente coletivo, uma espcie de depsito de imagens e
smbolos, comuns a todos os seres humanos. Esses smbolos, que Jung chama
de arqutipos, seriam tambm a fonte de onde seriam tirados todos os mitos. Isso explicaria as semelhanas entre mitos de civilizaes totalmente distintas
e sem ligao histrica conhecida.
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interessante comparar a concepo de Jung prpria idia dos criadores de
mitos como o poeta grego Hesodo, do qual ainda falaremos mais adiante. Na sua obra Teogonia, em que descreve a origem dos deuses e do universo, Hesodo se refere deusa Mnemsine. Ela uma personificao da memria
ou da lembrana, mas no representa a memria individual ou pessoal, e sim o
conhecimento universal. Ela a me das nove Musas, que so as que inspiram
todos os poetas. As musas podem dizer mentiras, mas sabem dizer a verdade.
Elas conhecem no s o passado mas tambm o futuro. E a elas que Hesodo
invoca:
Saudao, filhas de Zeus! Dai-me vosso canto que arrebata! Celebrai a raa
sagrada dos imortais que vivem sempre, e que nasceram da Terra e do Cu
estrelado, e da tenebrosa Noite e do Mar amargo.
Dizei como nasceram os deuses e a Terra, e os Rios, e o imenso Mar que ruge
furioso, e os astros resplandecentes, e, acima, o grande Cu, e os deuses,
fonte dos bens que deles nasceram; e como, tendo partilhado as honras e
riquezas desde a origem, eles tomaram o Olimpo de muitos picos.
Dizei-me essas coisas, Musas das moradas do Olimpo, e quais foram, no
incio, as primeiras dentre elas.
O Parnaso, de Andr Appiani (1754-1817),
representa as nove Musas inspirando um poeta. A
terceira Musa da esquerda para a direita, com um
compasso na mo apoiado sobre uma esfera
celeste Urnia, a Musa dos astrnomos.
Em sua descrio, portanto,
Hesodo no atribui nem a si
prprio nem tradio o
conhecimento dos mitos que
apresenta. Eles estariam sendo
transmitidos pelas Musas, filhas
da Memria eterna, que sabe o
passado e o futuro. Assim, o
conhecimento dos mitos estaria
em uma fonte impessoal, de
onde fluem esses smbolos
captados pelo poeta. H grande
semelhana entre essa descrio
de Hesodo e a concepo de
Jung. Aceitemos ou no a idia
de um inconsciente coletivo ou
de uma memria impessoal, o
fato que os mitos no so
produes arbitrrias da
imaginao humana, pois nesse
caso no encontraramos tantas
semelhanas entre povos to
diferentes.
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1.5 A IMPORTNCIA DOS MITOS SUA UTILIDADE
As concepes sobre a origem do universo no eram consideradas apenas
como a satisfao de uma curiosidade intelectual. Elas possuam tambm uma
utilidade prtica, na vida das pessoas.
Na Polinsia, por exemplo, utilizava-se o mito cosmognico para curar
doenas, para dar fertilidade s mulheres estreis e para outras finalidades.
Segundo um mito cosmognico polinsio, s existiam inicialmente as
guas e as Trevas. O deus supremo, Io, separou as guas pelo poder de seu
pensamento e criou o Cu e a Terra. Ele disse: Que as guas se separem, que os Cus se formem, que a Terra exista! Essas palavras de Io, com as quais ele criou o mundo, so dotadas de um grande poder sagrado e podem ser repetidas
pelos homens em situaes especiais, quando necessrio criar alguma coisa. Os polinsios acreditavam que, repetindo essas palavras, era possvel
dar fertilidade a uma mulher estril, ou dar foras a uma pessoa doente e
velha. Pois se as palavras do deus Io foram capazes de dar luz e foras ao
universo todo, elas tambm podem iluminar, alegrar e dar foras a uma
pessoa.
O mito serve, assim, para recriar um estado original perfeito, a partir de
uma situao de degradao ou decadncia. O mito de origem do universo
serve como modelo para a criao, renovao ou revitalizao de qualquer
coisa.
O uso do mito cosmognico muito amplo e variado. Em certos povos,
recitado quando nasce cada criana, pois o nascimento a recriao da vida.
Em outros, cantado durante todo o perodo de gravidez de uma rainha, pois
est ocorrendo a criao de um novo soberano, que representa um reincio do
mundo social. Muitas vezes, o mito da origem do universo recitado quando
um rei sobe ao trono. Sua recitao tambm acompanha a construo de
templos e de casas especiais, sagradas, que representam simbolicamente toda
a estrutura do universo.
A repetio do mito, em meio a um ritual adequado, renova a natureza,
d-lhe novas foras, pois a leva perfeio do incio. Essa idia sempre
acompanhada pela concepo de que o incio mais perfeito do que aquilo
que veio depois. Quanto mais uma coisa se afasta da origem, mais decadente
ela fica. Para lev-la a se revigorar, necessrio retornar ao princpio,
origem. Isso feito pelo ritual e pela recitao e reproduo do mito.
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1.6 A RENOVAO DO UNIVERSO NAS FESTAS DE ANO NOVO
A crena de que possvel revigorar o mundo atravs da repetio do
mito de origem do universo est por trs de inmeras festas anuais, muito
antigas.
Um ano um perodo de tempo no qual todos os grandes fenmenos
astronmicos, climticos e biolgicos se repetem. Para quem vive nas cidades,
esse ciclo pouco observvel; mas, para quem vive no campo ou tem maior
contato com a natureza, esse ciclo muito visvel e de grande importncia.
Cada ano, com sua seqncia de estaes, representa um ciclo do universo,
com um incio e um fim.
O incio do ciclo anual pode ser colocado em diferentes pocas do ano, dependendo daquilo que mais importante para um determinado povo. O
nosso atual Ano novo, no dia 1 de janeiro, uma conveno sem grande importncia. Mas na Babilnia, por exemplo, o incio de cada novo ano era de
enorme importncia religiosa. A celebrao do Ano Novo ocorria na
primavera, quando toda a natureza parecia nascer novamente. A festa durava
uma semana, e era precedida pela limpeza, purificao e restaurao dos
templos, pois tudo devia estar novo, como no princpio de tudo. A festa inclua uma repetio ritual de todo o mito de origem do universo, pois era
como se tudo estivesse comeando de novo.
Durante o Ano Novo babilnico, o prprio rei precisava ter o seu poder
renovado. Para isso, o sacerdote supremo arrancava do rei todos os seus
smbolos reais e o esmurrava no queixo, fazendo-o ajoelhar-se diante da
esttua do deus Marduk. O rei precisava ento orar e garantir que no havia
cometido nenhum erro e que havia governado corretamente. Ento o sacerdote
lhe dizia que Marduk aceitava e era favorvel ao rei; devolvia-lhe os smbolos
reais e lhe dava um novo murro no queixo. Se isso fazia os olhos do rei se
encherem de lgrimas, era um bom sinal: significava que o deus Marduk era
amigvel. Caso contrrio, indicava que ele estava bravo.
Cada povo, como foi dito, escolhia com cuidado a data correspondente
ao fim de um ano e incio do outro. Essa data tem, em geral, um significado
astronmico bem definido. Em grande nmero de casos, coincide com os
momentos denominados solstcios de vero e de inverno. Os solstcios so os momentos nos quais o Sol, visto da Terra, est mais ao Norte ou mais ao
Sul. Pelo calendrio atual, correspondem aos dias 22 ou 23 de junho e 22 ou
23 de dezembro. Para quem vive no hemisfrio Sul, o solstcio de inverno (22
ou 23 de junho) quando ocorre o dia mais curto e a noite mais longa do ano.
Pelo contrrio, no solstcio de vero (22 ou 23 de dezembro) ocorre o dia mais
longo e a noite mais curta do ano.
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No inverno, a luz do Sol atinge a Terra de forma mais fraca, obliquamente. No
dia do solstcio, sua fora atinge o mnimo, o tempo frio, a noite longa. Nesse dia, muitos povos realizam rituais, destinados a inverter a marcha do
Sol e a trazer de volta sua luz e seu calor, para que a Terra adquira novamente
fora e vida. Terminou um ciclo: que comece um outro. Mas esse comeo de
um novo ciclo depende da cooperao dos homens. preciso recriar o mundo,
atravs de rituais que reproduzam, de forma simblica, o incio do universo.
Os antigos rituais realizados nos dias de solstcio eram variados, mas
possuam vrios elementos quase universais. Eram festas realizadas nas
aldeias, tendo mantido antigas tradies, de forma quase independente das
mudanas sociais e religiosas que ocorriam nas cidades. Por isso, foram
chamadas de festas pags: a palavra pago vem do latim pagus, que significa aldeia.
De um modo geral, essas festas eram realizadas em torno do fogo seja o fogo pblico, formado por grandes fogueiras, ou o fogo domstico (lareiras,
por exemplo, nos pases frios). O fogo desses dias especial: aceso
solenemente, e supe-se que ele tem poderes mgicos.
Na noite de solstcio, as fogueiras eram acesas no alto das montanhas ou
em outros locais especiais como encruzilhadas. Muitas vezes, eram acesas atravs de processos pouco comuns: pelo atrito de dois bastes, ou atravs de
fagulhas de uma pederneira que nunca tivesse sido usada. Freqentemente, o
homem que havia se casado mais recentemente era quem devia acender o
fogo.
Os camponeses acendiam tochas na fogueira e corriam com elas pelos
campos, com o objetivo de espantar pragas, doenas e maus espritos, bem
como aumentar a fertilidade do solo. Batiam com as tochas nas rvores e no
cho, gritando e dizendo frases mgicas. Os jovens saltavam trs vezes sobre
as fogueiras e, quando o fogo estava mais fraco, passavam sobre ele as
crianas e os animais domsticos como as vacas e os cavalos para dar-lhes sade. Os jovens que saltavam mais alto sobre o fogo eram os que se casariam
primeiro, durante o ano. E a altura do salto dos jovens indicava a altura qual
cresceriam os cereais e o feno, nos campos, no ano seguinte. Nessa noite,
algumas pessoas passavam descalas sobre as brasas da fogueira, ou
colocavam brasas na boca, sem se queimar.
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As cinzas e as madeiras remanescentes da fogueira eram consideradas de
grande valor mgico. Essas cinzas eram espalhadas pelo campo, para
aumentar a fertilidade do solo e proteger as plantaes. Os ties eram
guardados dentro de cada casa, para proteger de incndios, de raios e de
bruxaria. Durante tempestades, acendia-se dentro de casa esses ties, para
que protegessem a todos. Nas plantaes, eles protegiam tambm contra
encantamentos de feiticeiras, e contra o granizo.
O fogo aceso durante a festa do solstcio era um fogo novo, mais forte,
vigoroso, do que os outros. Por isso, em muitos lugares da China at a frica era costume apagar todos os fogos mantidos nas casas, antes da festa, levando depois o novo fogo, da fogueira para casa, onde devia se manter
aceso durante todo o ano.
As noites de solstcio so mgicas e nelas possvel adivinhar-se ou
modificar-se o futuro. Sendo o incio de um novo ciclo, essas noites so
consideradas uma espcie de miniatura do ciclo inteiro. Por isso, nessa noite, as moas fazem adivinhaes para saberem com quem vo se casar ou
como vai ser seu futuro; o lavrador faz adivinhaes para saber como vo ser
as chuvas e as colheitas do ano todo. Quebrando-se um ovo e derramando a
clara em uma taa ou copo, a forma adquirida pela clara podia indicar aquilo
que se queria saber por exemplo, quem seria o marido de uma jovem.
A gua tambm adquiria propriedades especiais, no solstcio, a partir da
meia-noite. Costumava-se recolher gua de poos ou fontes, nesse horrio, e
guard-la para necessidades especiais. Aps a meia-noite ou pouco antes do
nascer do dia seguinte, tambm era costume que as pessoas se banhassem nos
rios ou no mar, ou pelo menos rolassem, nuas, sobre a relva orvalhada. Isso
era considerado benfico para a sade da pessoa, simbolizando um novo
nascimento.
Nascimento e morte so inseparveis: os camponeses sempre acreditaram
que as sementes plantadas na terra precisam morrer, apodrecer e depois
adquirem da terra uma nova vida, e germinam. Quando esto no solo, so
guardadas pelo esprito dos familiares mortos. Na festa de solstcios, esses
mortos esto presentes: em muitos lugares, eram colocados assentos especiais
para que seus espritos se assentassem e assistissem festa.
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Atravs dessas festas, as pessoas
vivenciavam a mudana do ano: o
fim de um perodo o incio do outro,
com todas as suas expectativas, com
todo o seu potencial mgico.
Comear um novo ano no era
apenas recomear a contagem dos
dias e meses.
Isso tudo pode parecer estranho
e extico, para ns. Mas aqui, no
Brasil, esses antigos costumes ainda
existem, principalmente no interior,
nas festas de So Joo. A noite de So Joo corresponde exatamente ao
solstcio de inverno, no hemisfrio
Sul. Os estudiosos do folclore
brasileiro, como Cmara Cascudo,
estudaram detalhadamente essa festa
e mostraram que os costumes e
supersties da festa de So Joo so
milenares. Embora o povo do interior
do Brasil no saiba qual a origem
dessa festa, ela um ritual de
repetio do nascimento do mundo.
As festas de So Joo, comuns no interior do
Brasil, ocorrem no solstcio de inverno no
hemisfrio sul.
1.7 A NATUREZA DOS MITOS
Os mitos no so vistos como lendas, como simples estrias, pelos que
os respeitam. So considerados como histrias verdadeiras, ocorridas em um
tempo primordial, envolvendo seres sobrenaturais que produzem uma nova
realidade. Esses mitos servem para explicar o mundo, mas no de um modo
racional. O mito proporciona imagens, ele traz emoes. Ele sentido e
vivido por quem o ouve, por quem o v representado e por quem o revive por
meio dos rituais.
Vemos um mundo nossa volta: casas, pessoas, cidades, rios, rvores, o
Sol, etc. O que tudo isso? O objetivo do conhecimento mtico compreender
o universo, situar-se nesse contexto, saber de onde saram as coisas e os
homens, como se estruturou a sociedade. Trata-se de entender o passado para
entender a si prprio, como parte do universo, atravs do mito.
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Ao compreender as coisas, a pessoa aprende os segredos que lhe permitem
atuar de forma mgica sobre o mundo. Conhecendo a origem da vida,
possvel curar os doentes. Conhecendo a origem do fogo, possvel caminhar
sobre ele ou segurar uma brasa na mo sem se queimar. Mas no s isso:
possvel agir corretamente, sabendo seu papel no mundo; possvel participar
do drama csmico, de acrdo com aquilo que foi estabelecido pelos deuses na
origem de tudo.
O ritual repete aquilo que os deuses fizeram no tempo primordial. Essa
repetio mais do que uma comemorao ou uma imitao. Ao repetir um
ritual, a pessoa se identifica com o deus, e o tempo primordial recriado. O
ritual poderoso porque ele a repetio exata e vlida daquilo que foi feito
pelos deuses e que refaz e recria o momento primordial. Na nossa tradio, h
um exemplo bem conhecido: a missa da Igreja Catlica, na qual, durante a
celebrao, o sacerdote se torna Cristo, o vinho se torna o sangue e o po se
torna o corpo de Cristo.
Participar do ritual e reviver o mito significa sair do tempo e do mundo
profano, decadente, para retornar e reviver no mundo do tempo primordial.
uma experincia essencialmente religiosa.
Com o passar do tempo, em muitas civilizaes, houve um
enfraquecimento do mito e da religio, surgindo em seu lugar o pensamento
filosfico. Mas nem sempre a filosofia se desprendeu totalmente da religio e
do mito. Muitas vezes, o pensamento filosfico uma reflexo e
desenvolvimento de mitos mais antigos. isso que ser estudado nos
prximos captulos.
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CAPTULO 2 - O MITO FILOSFICO NA GRCIA
E NA NDIA
2.1 A ANTIGA VISO DE MUNDO DOS GREGOS
Os mitos e a religio so fenmenos universais: surgiram em todos os
lugares, em todos os povos. A filosofia, pelo contrrio, algo mais restrito.
Em alguns poucos lugares do mundo, como a Grcia e a ndia, apareceu
gradualmente um pensamento filosfico que procurou dar uma explicao
para o mundo sem utilizar mitos. Mas isso no aconteceu de repente, nem
houve um abandono total das concepes mitolgicas e religiosas. Muitas
vezes, elas foram aproveitadas pelos filsofos. Por isso, preciso partir dos
prprios mitos, para entender o surgimento da filosofia.
A mitologia grega foi de grande importncia e influenciou muito toda a
cultura ocidental. Os textos mais antigos que conservam informaes sobre a
mitologia grega so as obras atribudas a Homero (Ilada e Odissia),
compostas aproximadamente nos sculos IX ou VIII antes da era crist; e as
obras de Hesodo, do final do sculo VIII antes de Cristo.
A antiga viso de mundo dos gregos era de que a Terra (a deusa Gaia ou
Gia) era uma superfcie redonda, plana (a menos de suas irregularidades,
como as montanhas), semelhante a um prato ou disco. O Cu (o deus Ouranos
ou Urano) seria a metade de uma esfera oca, colocada sobre a Terra. Entre a
Terra e o Cu existiriam duas regies: a primeira, mais baixa, que vai da
superfcie do solo at as nuvens, seria a regio do Ar e das brumas. A segunda
seria o ar superior e brilhante, azul, que visto durante o dia, e que era
chamado de ter. Embaixo da Terra, existiria uma regio sem luz, o Trtaro.
Em volta do Trtaro, existiriam trs camadas da Noite (Nyx). A Noite
considerada como uma deusa assustadora, a quem todos os deuses respeitam.
Em algumas descries posteriores, a Noite tem grande importncia, sendo
considerada como anterior maioria dos deuses.
A Terra conteria todas as regies secas que eram conhecidas (Europa,
sia e frica). Todas elas seriam cercadas por uma espcie de rio circular, o
Oceano, que iria at a borda onde o Cu e a Terra se encontram. O Oceano
descrito como a fonte e origem de todos os rios e mares. Homero chega a
descrev-lo com a origem de todas as coisas e dos prprios deuses, o que se
assemelha ao mito babilnico j descrito no captulo anterior.
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Essa viso da estrutura do mundo muito diferente de nossa idia atual. Mas
ela no absurda. Ns, atualmente, aprendemos que a Terra redonda, e
vemos desenhos e fotografias mostrando a sua forma. Mas se ningum nos
tivesse dito que ela uma bola, como poderamos saber isso?
Quando uma pessoa olha para o cu, ou olha sua volta, ela v
exatamente aquilo que os antigos gregos descreviam. Quando se sobe no alto
das montanhas, v-se o cu como se fosse uma cobertura redonda; e v-se a
Terra estendendo-se por todos os lados, parecendo um grande disco ou prato
(a menos das irregularidades de seu relevo). Os limites do mundo conhecido
eram os mares, existentes por todos os lados das terras. Era perfeitamente
aceitvel que o Oceano cercasse toda a Terra. Devemos respeitar essas
concepes, e no ridiculariz-las. Elas mostram uma tentativa de
compreender o universo e de sistematizar aquilo que era observado.
2.2 A TEOGONIA DE HESODO
Existem descries cosmognicas que so intermedirias entre os mitos
propriamente ditos e as concepes filosficas sobre a origem do universo.
Tal o caso da Teogonia de Hesodo. O ttulo desse poema quer dizer: a origem dos deuses. Embora se possa imaginar que ele est apenas
apresentando um mito sobre os deuses, h muito nessa descrio que
claramente simblico e que deve ser interpretado como uma alegoria de idias
de tipo filosfico.
Realmente, antes de tudo existiu Khos [Caos],
depois Gaia [Terra] de amplo seio,
sede sempre firme de todas as coisas,
e o Tartaros enevoado nas profundezas da Terra espaosa,
e depois Eros [Desejo], o mais belo dos deuses imortais,
que rompe todas as foras,
e que doma a inteligncia e a sabedoria no peito
de todos os deuses e de todos os homens.
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O incio de tudo, segundo Hesodo, o Caos. Mas o que representa essa
palavra? Na linguagem atual, caos significa confuso, desordem. Mas esse no o significado primitivo desse termo. Khos Caos, vem do termo grego khnein, abrir-se, entreabrir-se. Significa uma abertura, uma fenda, um abismo. Associa-se ao Caos a presena de escurido e de ventos ou
tempestades. Pode ser entendido como um espao vazio, ou algo indefinido,
anterior a todas as coisas. Alguns autores o interpretam como uma primeira
diviso ou separao mas diviso de que? Na verdade, muito j se escreveu sobre o Caos de Hesodo, mas sem se chegar a uma concluso definitiva,
aceita por todos.
Mais tarde, a palavra Caos foi interpretada no sentido de uma matria primitiva, em que todos os elementos estavam misturados entre si.
Segundo Hesodo, os primeiros filhos do Caos so: a Terra; aquilo que est abaixo dela, o Tartaros; e o desejo, Eros. Tartaros considerado como o
local mais profundo na Terra, abaixo do prprio Hades, o inferno dos gregos.
A Terra se apoia sobre o Tartaros: no tempo de Hesodo, no se imagina a
Terra flutuando no espao. O Tartaros, por sua vez, talvez se apoie no Caos.
Em autores posteriores, o mundo conhecido imaginado como se fosse uma
bolha no meio do Caos, que o cerca por todos os lados.
Eros, por sua vez, representa a atrao ou desejo, capaz de superar a razo e
qualquer outra fora. representado como um deus masculino. Ele nasceu
diretamente do Caos, como a Terra. pela fora do desejo que os deuses se
uniro entre si, para procriar outros deuses.
Do Khos surgiram Erebos [Trevas] e a negra Nyx [Noite].
E de Nyx nasceram Aither [ter] e Hmra [Dia],
concebidos quando ela se uniu a Erebos em amor.
Erebos (masculino) e Nyx (feminina) so deuses da escurido (trevas e
noite); no entanto, da Noite e das Trevas nasce a luz: Aither, o ter
(masculino), representa o cu brilhante e azul do dia; e nasce junto com
Hmra, a luz do dia (feminino). Na sucesso do tempo, os dias nascem das
noites. Poder-se-ia dizer tambm que as noites nascem dos dias, mas a
linguagem popular se refere apenas ao nascer do dia e nunca ao nascer da noite. Simbolicamente, a noite vista como algo negativo, e o dia como algo positivo; e aquilo que positivo nasce do que negativo.
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E inicialmente Gaia [a Terra] gerou Ouranos [o Cu] estrelado,
igual a ela prpria em tamanho,
para que ele a cobrisse toda
e para que fosse uma moradia segura para os deuses felizes.
Neste ponto, aparentemente
Hesodo est utilizando uma
concepo semelhante dos
babilnios, de que a Terra e o
Cu estavam inicialmente
misturados, formando uma s
unidade, sendo depois separados.
Oranos o Cu noturno,
estrelado. concebido como um
deus masculino, fecundador.
Inicialmente, ele sai da prpria
Terra; portanto, estavam
inicialmente unidos, formando
uma s unidade, que se rompe.
Depois dessa separao, o Cu se
une Terra, para produzir novos
seres. Ele representa a
fecundidade masculina. A chuva
, s vezes, descrita como se
fosse o smen de Ouranos, que
fecunda a Terra, para a produo
das plantas. A Terra, por sua vez,
concebida como uma deusa e
como elemento primordial, a
fonte de toda vida. Dela surgem
os vegetais e os animais.
Mitologicamente, a Terra a me
universal.
No antigo Egito, o cu era uma imensa deusa,
Nut, que cobria toda a Terra.
Primeiramente, surgem da Terra os acidentes geogrficos, que so partes
dela prpria; por isso, ela no precisa ser fecundada para ter esses filhos.
Posteriormente, a Terra se une ao Cu, e tem diversos filhos e filhas.
Esses filhos de Gaia e Oranos so os chamados Tits e Titnidas.
O primeiro desses filhos Okeans. Em contraste com o mar
Mediterrneo, que uma comunicao e espao intermedirio, o Oceano
representado como o rio que circunda todo o mundo conhecido. Era
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imaginado como uma serpente que envolvia todas as terras. Ele era
considerado o pai de todos os rios. O Oceano representa tambm o ponto onde
o Cu e a Terra se encontram, na viso de mundo da poca. Por isso, natural
que fosse descrito como o primeiro filho do Cu e da Terra.
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2.3 KRNOS O DOMNIO DO TEMPO NO UNIVERSO
A Teogonia de Hesodo descreve que o Cu no permitia que os filhos da
Terra sassem de dentro dela. Revoltada contra o Cu, a Terra pediu a seu
filho caula, Krnos, que terminasse com essa situao de sofrimento. Ela lhe
d uma foice e o esconde. Quando, ao cair da noite, o Cu estrelado surge e se
deita sobre a Terra, Krnos sai de seu esconderijo e, com a foice, corta os
rgos genitais de seu pai e os lana para longe. A partir de ento, termina o
domnio do Cu e comea o de Krnos.
Representao de Kronos: Um velho com asas
segurando uma foice.
Krnos representa o tempo (da
vem a palavra cronmetro: medidor de tempo). Krnos uma
fora que produz todas as coisas e
que, ao mesmo tempo, destri e
devora tudo o que gerou. Por isso,
no mito, um pai que devora os
prprios filhos.
Na mitologia romana, que se
baseou na mitologia grega, Krnos
recebe o nome de Saturno. Ele
representado como um velho, com
uma foice. Esse instrumento que
representa ao mesmo tempo o
instrumento utilizado para mutilar o
Cu e o poder destruidor do tempo.
A imagem desse velho com a foice,
at os tempos atuais, tambm
utilizada para representar o tempo
ou o ano velho.
Aps ser destronado por seu filho, Oranos disse a Krnos que ele
prprio seria derrubado por um de seus filhos. Krnos, unindo-se a sua irm
Ria, teve seis filhos, mas logo que eles nasciam ele os devorava, para que
nenhum pudesse destron-lo. Os seis filhos foram Hstia, Hera, Demter
(femininas) e Hades, Posdon e Zeus (masculinos). Todos eram engolidos,
mas Ria ocultou o ltimo filho, Zeus, entregando a Krnos apenas uma pedra
envolta em panos, que ele engoliu pensando ser seu filho.
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Depois que cresce, Zeus decide se vingar de Cronos. Atravs de um artifcio,
faz com que Krnos vomite todos os filhos que havia devorado. Com a ajuda
de seus irmos e de outros deuses, Zeus luta contra Krnos, que tem a ajuda
dos seus irmos, os Tits. Depois de venc-los, Zeus os prende abaixo da
Terra, no Trtaro. A partir de ento, Zeus passa a ser o soberano dos deuses
gregos. Zeus considerado, na mitologia, como aquele que ordena o universo
e que estabelece as suas leis gerais.
Apesar de ter sido destronado, Krnos no foi esquecido. Durante seu
reinado, segundo o mito, ele teria criado os primeiros homens. Essa primeira
fase da humanidade teria sido a idade do ouro, na qual teria existido paz, igualdade, fartura, liberdade.
Em homenagem a Krnos-Saturno, realizavam-se em Roma, no final de
dezembro (poca do solstcio de inverno), as Saturnais. Essas festas, que duravam de um at cinco dias, eram uma volta simblica idade do ouro.
Durante todo o ano, o pedestal da esttua de Saturno ficava recoberto com
uma faixa de l. No dia do incio da festa, essa faixa era retirada. Todo
trabalho era interrompido, e se fazia um grande banquete. A partir de ento,
durante os dias da festa, todas as regras e leis eram abolidas. Elegia-se um
rei das saturnais, os escravos eram temporariamente libertados, e reinava um clima de alegria, liberdade e orgia. Os escravos eram servidos pelos seus
senhores e podiam insult-los impunemente. Ao final da festa, o rei das
saturnais era morto em homenagem a Saturno, e a sociedade voltava
normalidade.
O Carnaval com seu Rei Momo surgiu de modo anlogo.
2.4 AS QUATRO ERAS DE HUMANIDADE
A idia de uma idade de ouro e de uma decadncia da humanidade est presente em muitas culturas. Ela uma das formas da idia bsica de que o
incio do universo o tempo mais perfeito e, quanto mais nos afastamos dele,
mais imperfeito fica o mundo. Da a necessidade constante de voltar ao
princpio de tudo, pelos rituais.
Na mitologia grega existe a tradio de quatro idades ou eras da humanidade: a idade do ouro a primeira e mais perfeita de todas seguida pela da prata, do bronze e, por fim, do ferro (que seria a atual, a pior de todas).
s vezes se inseria entre a idade do bronze e a do ferro uma idade dos heris.
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Como j foi dito, na mitologia grega, a idade do ouro teria comeado com a
criao dos primeiros homens pelos deuses, no reinado de Krnos. Essa
primeira raa de homens no precisava trabalhar, no havia velhice ou morte;
havia apenas uma espcie de sono profundo, ao final da vida. Havia total
justia, nessa idade. Aps sua morte, os homens da idade de ouro se transformaram em intermedirios entre os deuses celestes e os demais
homens.
A segunda idade, da prata, inferior primeira. Mas ainda no existem
doenas, nem necessrio trabalhar. Os homens criados pelos deuses ainda
respeitam a justia, mas no respeitam os deuses, e so por isso destrudos por
Zeus.
Os homens da idade de bronze so criados por Zeus a partir da madeira.
Eles so dominados pela violncia, pelo desejo de lutar, e morrem pelas
prprias guerras que travam.
Por fim, na idade do ferro, surgem as doenas, a velhice, a morte, a
ignorncia. preciso trabalhar, a terra j no proporciona alimentos sozinha,
sendo preciso ar-la e seme-la. A idade do ferro passaria, sendo Hesodo, por
duas fases. Numa delas, h leis naturais e morais, os filhos so semelhantes
aos seus pais, e os homens nascem jovens. Na outra fase, os homens nascem
velhos, no h mais semelhana entre pais e filhos, no existem mais leis,
somente a violncia e a fora.
Como vivemos na idade do ferro, a busca de uma sociedade melhor
vista como o retorno origem, idade do ouro. Da a necessidade das
Saturnais, todos os anos.
No se sabe muito sobre os rituais religiosos gregos antigos; mas
certamente eles tambm estavam associados aos mitos.
2.5 O MITO DE CRIAO NA NDIA: CDIGO DE MANU
A Teogonia de Hesodo , como vimos, uma mitologia altamente
sofisticada e intelectualizada. Ela ter, depois, uma grande influncia sobre os
filsofos gregos. De forma semelhante, surgiram tambem na ndia
(aparentemente, sem influncia grega) mitos sobre a origem do universo que
j apresentavam muitos elementos filosficos. Um deles apresentado em um
texto anterior era crist, chamado Cdigo de Manu. Esse texto apresenta a seguinte descrio:
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Capa de edio recente e
traduzida para o ingls do
Cdigo de Manu.
Este mundo era trevas, imperceptvel, sem
distines, impossvel de descobrir,
incognoscvel, como se estivesse totalmente
mergulhado no sono.
Ento este grande senhor auto-existente
indiscernvel, manifestou-se, removendo a
obscuridade; indiviso, ele tornou discernvel
este mundo com as cinco grandes substncias e
outros elementos.
Ele, que s pode ser apreendido pelo rgo
supra-sensvel, sutil, indiviso, eterno, que a
essncia de tudo, o incompreensvel, ele
brilhou por si prprio.
Aqui, no incio da descrio do Cdigo de
Manu, vemos que desde o incio existe um deus
supremo e abstrato, e algo que denominado
de trevas. Esse deus, usualmente denominado Brahman (uma palavra neutra, isto , nem
masculina nem feminina) est alm dos
sentidos e do prprio pensamento. Inicialmente,
ele uma unidade, mas vai se dividir e
fragmentar, como os primeiros deuses gregos:
Desejando produzir diferentes criaturas de
seu prprio corpo, por sua vontade criou
inicialmente as guas e nelas depositou sua
semente.
Esta tornou-se um ovo dourado, brilhante
como o astro de mil raios, no qual ele prprio
nasceu como Brahm, antecessor dos
mundos.
...
Esse senhor, tendo habitado esse ovo por um
ano, dividiu-o em duas partes pelo seu mero
conhecimento.
Com essas duas conchas ele formou o cu e a
terra, e no meio o firmamento, as oito regies,
e a eterna morada das guas.
Brahm, a forma ativa e
masculina de Brahman.
Brahm, o deus criador, uma forma ativa e masculina de Brahman, o deus
supremo.
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Tambm entre os gregos houve mitos que descreviam a Terra e o Cu como
oriundos da ruptura de um ovo. Em um deles, o Tempo (Chronos) gera
Phanes, um deus da luz, o qual produz a Noite; e a Noite produz o ovo de
onde saem a Terra e o Cu. Em outra verso, o Tempo produz o Caos e o ter;
esses se unem e produzem um ovo, do qual brotam a Terra, o Cu e Phanes.
No mito indiano, o deus primordial produz o ovo e ele prprio nasce do ovo,
sob uma outra forma.
O mito apresentado pelo Cdigo de Manu prossegue, indicando que
Brahm, o criador, produz logo em seguida a mente, o ego e as substncias
fundamentais. Aps a criao da matria e do esprito, ele se pe a formar as
diferentes criaturas e a estabelecer as leis naturais. Como nos mitos babilnico
e judaico, ele d nomes s coisas.
De acordo com as palavras dos Vedas, ele (Brahm) assinalou desde o incio
os nomes e as atividades prprias a cada criatura, e as leis prprias a cada
uma.
As palavras so, na tradio indiana, a essncia das prprias coisas. Por
isso, o Cdigo de Manu afirma que os hinos sagrados (os Vedas) deram o
nome de cada coisa; e esses hinos, por sua vez, foram tirados do Fogo, do
Vento e do Sol, ou seja, das foras da natureza.
2.6 OS CICLOS DO UNIVERSO NO PENSAMENTO INDIANO
No Cdigo de Manu aparece um aspecto original e interessante: o
universo no criado apenas uma vez. Ele cclico, sendo repetidamente
criado e destrudo. O narrador do mito diz que Brahman passa por etapas de
repouso (ou sono) e outras etapas em que est desperto.
Quando este deus desperta, ento o mundo se coloca em movimento. Quando
adormece pacificamente, ento tudo se dissolve.
Em seu tranquilo sono, os seres corpreos feitos para a ao deixam de agir,
e o esprito deles cai nas trevas.
Quando todos juntos se dissolvem nesta grande Alma, ento ela, a alma de
todos os seres, dorme feliz, em paz.
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O Cdigo de Manu especifica, em seguida, a durao dessas fases de
existncia e destruio do universo. Para isso, faz primeiro a introduo de
diversas unidades de tempo. Cada ano humano considerado como apenas um
dia, para os deuses. A vida desses seres sobrenaturais regida por ciclos
muito mais longos.
Como cada dia dos deuses um ano humano e corresponde a cerca de
365 dias, cada ano dos deuses corresponde a 365 anos humanos. As fases do
universo seriam regidas por eras de enorme durao. O Cdigo de Manu fala
em quatro idades, com as seguintes duraes:
- idade Krita: 400+4.000+400 anos dos deuses
- idade Trita: 300+3.000+300 anos dos deuses
- idade Dvapara: 200+2.000+200 anos dos deuses
- idade Kali: 100+1.000+100 anos dos deuses
A idade Krita teria uma durao total de 4.800 anos dos deuses, ou 4.800
x 365 anos humanos (1.752.000 anos). Somando-se as duraes de todas as
idades, obtm-se o valor de 12.000 anos dos deuses:
Este conjunto das quatro idades, cujo total doze mil (anos dos deuses),
chamado idade dos devas.
Saibam que um total de mil idades dos devas constitui um dia de Brahman, e
que a noite tem a mesma durao.
Os que sabem que o dia sagrado de Brahman termina com mil idades dos
devas, e que a noite tem a mesma durao, conhecem realmente o dia e a
noite.
Ou seja, uma idade dos devas corresponde a 12.000 anos dos deuses, ou
4.380.000 anos humanos. O dia de Brahman teria uma durao mil vezes
maior, ou seja, 4 bilhes e 380 milhes de anos terrestres.
O dia de Brahman o perodo durante o qual o deus absoluto est desperto, ativo, ou seja, o perodo durante o qual existem as coisas do
universo. A noite de Brahman o perodo de inatividade, de trevas.
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Nenhuma outra tradio da Antigidade conseguiu imaginar duraes de
tempo to longas quanto as do Cdigo de Manu. A tradio judaica, por
exemplo, admitiu que o universo havia sido criado por Deus h apenas alguns
milhares de anos. Somente no sculo XX a cincia ocidental comeou a
avaliar a durao do universo em bilhes de anos.
O Cdigo de Manu prossegue descrevendo de forma bastante abstrata e
filosfica a produo dos cinco elementos bsicos do universo: ter, fogo, ar,
gua e terra. Eles so precedidos, no entanto, pelo pensamento. A descrio
desses cinco elementos bsicos e o modo como eles surgem um a partir do
outro constituem um aspecto bastante avanado do pensamento indiano
antigo.
Ao fim desse dia e dessa noite, quem dormia (Brahman)desperta;
despertando, ele cria o pensamento (manas), que existe e no existe.
Movida pelo desejo de criar, a mente se modifica gerando o ter; ele dotado
da qualidade da vibrao.
Do ter, modificado por sua vez, nasce o vento puro e poderoso, que carrega
todos os aromas; ele dotado de tangibilidade.
Do vento, transformado, procede a luz brilhante, que ilumina e dissipa as
trevas; ela tem a qualidade da cor.
Da luz, modificada, nasce a gua, que tem a qualidade do sabor; da gua
nasce a terra, que tem por qualidade o odor. Eis o princpio da criao.
A idade dos devas, antes descrita, com seus doze mil anos, multiplicada por
setenta e um, forma o perodo de um Manu.
Inumerveis so os perodos dos Manus, e a criao e a dissoluo do
mundo. O Ser supremo os repete sempre, por brincadeira.
O universo, como um todo, repete-se portanto indefinidamente. Mas, em
cada uma de suas fases de existncia, em cada dia de Brahman, ocorrem
muitos ciclos menores. Em cada um desses ciclos, a humanidade criada e
passa por uma decadncia em quatro fases, que se assemelham s quatro
idades da mitologia grega:
Na Krita-yuga, a justia e a verdade so completas, com seus quatro ps; e
nenhum proveito obtido pelos homens injustamente.
Nas outras (idades), pelos proveitos ilcitos, a justia perde sucessivamente
seus ps; e pelo roubo, pela mentira e pela falsidade, o mrito diminui a cada
vez em um quarto.
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Na idade Krita, os homens, sem doenas, sempre obtm o que desejam e
vivem 400 anos; mas na idade Trita e nas seguintes [Dvapara, Kali], sua
existncia diminui em um quarto.
A durao da vida dos mortais, declarada no Veda, os poderes e as
recompensas pelas aes rituais, dependem da idade em que este mundo se
encontra.
Existem leis corretas para a idade Krita, outras na Trita ena Dvapara, e
outras ainda na idade Kali, conforme se deterioram essas idades.
Na Krita-yuga, o essencial a ao correta; na Trita, o conhecimento; na
Dvapara, o sacrifcio; na Kali, somente a bondade tem valor.
Assim como na mitologia grega, tambm o Cdigo de Manu ir indicar
que vivemos atualmente na quarta era da humanidade a mais decadente, a Kali-yuga ou idade negra.
A idia de uma decadncia da humanidade, como j foi indicado,
bastante comum, quase universal. No entanto, a idia de enormes ciclos do
universo uma concepo original indiana. De onde ela saiu?
O Cdigo de Manu no d nenhuma indicao, mas o prprio nome
utilizado para as eras (Yuga) permite descobrir a origem dessas idias. A palavra yuga um termo tcnico utilizado pela antiga astronomia indiana. Ela significa conjuno de astros. Cada planeta, visto da Terra, se move pelo cu estrelado com uma velocidade diferente. Quando dois planetas so
vistos em posies prximas, no cu, chama-se isso de conjuno. Podem tambm ocorrer conjunes de trs ou mais planetas ao mesmo tempo. claro
que elas so muito raras e demoram muito para acontecer.
A partir desses estudos, os astrnomos indianos conceberam que todos os
planetas foram criados juntos, no mesmo lugar; e quando se reunirem
novamente, todos ao mesmo tempo, o universo voltar ao seu princpio.
Portanto, a durao do universo seria o tempo necessrio para que ocorresse
uma grande conjuno (mah-yuga). A partir dos dados existentes sobre os movimentos dos planetas, foram feitos clculos que indicaram enormes
duraes, semelhantes s indicadas no Cdigo de Manu. Essa parece ter sido a
justificativa da durao do dia de Brahman.
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2.7 A INTERPRETAO CRTICA DOS MITOS
Como se pode ver, esses mitos esto em um nvel de elaborao racional
muito avanado. Continuam a ser mitos, pois descrevem aes de seres
sobrenaturais que produzem o universo. Mas no podem ser considerados
meros mitos. Por isso, estamos lhes dando o nome de mitos filosficos.
Xenfanes de Clofon,
filsofo que criticou os mitos.
Em princpio, o pensamento mtico poderia
ter se sofisticado sempre, indefinidamente, sem
deixar de ser o que era: um pensamento religioso.
No entanto, em torno do quinto sculo antes da
era crist, ocorreu tanto na Grcia quanto na ndia
uma crtica religio tradicional e uma tendncia
ao surgimento de um pensamento totalmente
independente da religio: a filosofia.
Na Grcia, um importante representante da
corrente intelectual que criticou os mitos foi
Xenfanes de Clofon (576 a 480 a.C.). Ele
aponta que os deuses da mitologia grega tinham
muitos defeitos morais: eram injustos, vingativos,
adlteros, ciumentos, etc.; alm disso, eram
semelhantes aos homens, j que tinham corpo,
voz, roupas e nada disso era compatvel com a idia de um deus. Xenfanes ridiculariza esse tipo
de concepo:
Os mortais consideram que os deuses tiveram nascimento, e que possuem
roupas e vozes e corpos como os seus.
Os Etopes [africanos] dizem que seus deuses possuem narizes achatados e
que so negros; e os Trcios que os seus possuem olhos azuis e cabelo
vermelho.
Se os bois, cavalos e lees tivessem mos e pudessem pintar e produzir as
obras que os homens realizam, os cavalos pintariam figuras de deuses
semelhantes a cavalos, os bois semelhantes a bois, e lhes atribuiriam os
corpos que eles prprios tm.
Ou seja: Xenfanes considera a mitologia como uma criao da
imaginao humana, que projeta sobre os deuses aquilo que conhece sobre os
prprios homens. Pelo contrrio, ele considera que existe uma concepo
verdadeira muito mais elevada: H um deus acima de todos os deuses e homens; nem sua forma nem seu pensamento se assemelham aos dos
mortais.
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A crtica mitologia mais popular no leva, necessariamente, negao da
religio. Mas certamente levou ao seu enfraquecimento, entre as pessoas mais
cultas.
Como veremos mais adiante, alguns filsofos gregos, como Demcrito e
Epicuro, negaram a prpria existncia de deuses sobrenaturais.
Desenvolveram uma teoria atomista, na qual tudo o que existe formado por
tomos. Nessa sua viso, no existem espritos imateriais e poderiam existir
certos deuses, mas formados de tomos e portanto materiais, que depois se dissolveriam como qualquer outra coisa. Os mitos, por isso, no tinham valor
e precisavam ser substitudos por um conhecimento racional do mundo algo como nossa idia de cincia.
medida que se enfraqueceu a crena nos mitos, surgiram entre os
filsofos gregos vrias interpretaes para eles. Alguns pensadores, como
Crisipo, interpretaram os mitos como alegorias, como representaes
simblicas de outra coisa: fenmenos fsicos ou celestes, ou mesmo
ensinamentos ticos, representados sob a forma de mitos. Outros, como
Evmero, supuseram que os mitos eram histrias de antigos reis e heris, que
a tradio havia divinizado, transformando fatos antigos, reais, em histrias
exageradas e fabulosas, de seres sobrenaturais.
Essa queda da crena dos mitos levou a dois desenvolvimentos
importantes, na filosofia grega. Por um lado, ao desenvolvimento de
interpretaes simblicas dos mitos e tentativa de extrair deles ensinamentos
filosficos gerais. Por outro lado, ao desenvolvimento de concepes
filosficas que substitussem os mitos e que permitissem compreender o
universo e sua origem, sem a interveno de deuses.
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CAPTULO 3 - O PENSAMENTO FILOSFICO E A
ORIGEM DO UNIVERSO
3.1 O PROBLEMA DO
CONHECIMENTO DO INCIO DE TUDO
A filosofia surge quando a tradio
religiosa e mitolgica colocada em dvida.
Um dos mais belos textos da antiga tradio
indiana, o Nasadasiyasukta do Rig-veda (composto cerca de 10 sculos antes da era
crist) uma especulao crtica sobre o
incio do universo. Inicialmente, de forma
bastante obscura, ele fala sobre o que
poderia ter existido antes de todas as outras
coisas:
Pginas do "Rig Veda".
Ento ho havia nem o ser nem o no-ser;
no havia o domnio do ar, nem o cu alm dele.
O que estava recoberto? onde? em que receptculo?
Existia um abismo de guas profundas?
Ento no havia morte, nem havia imortalidade;
nem havia distino entre dia e noite.
Aquele Um respirava sem vento, por si prprio.
Nada diferente dele; o qu, alm dele?
Havia trevas ocultas em trevas,
tudo isso era um ondular indistinto.
Aquilo existia envolto no vazio;
pelo poder de seu ardor, aquilo cresceu e se manifestou.
Nele surgiu primeiramente o desejo,
a semente primordial da mente.
A unio do ser ao no-ser foi descoberta pelos sbios
que refletiram sobre o que contemplaram em seus coraes.
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O raio se estendeu atravs deles.
O que estava embaixo, e o que estava acima?
Havia inseminadores, havia poderes,
autonomia embaixo e energia alm.
Depois, no final do hino, o seu autor apresenta a questo bsica: como se
pode conhecer o que havia no incio de tudo? Ele coloca em dvida que os
prprios deuses, ou mesmo o deus supremo, possam saber isso:
Quem realmente sabe, quem poderia dizer
de onde brotou, de onde provm esta criao?
Os deuses so posteriores sua produo.
Quem sabe ento de onde ela surgiu?
De onde brotou esta criao,
se ela foi feita ou no o foi,
ele que a observa do mais alto dos cus,
ele realmente o sabe, ou talvez nem ele o saiba.
Tentar interpretar todo esse hino exigiria um enorme nmero de pginas.
Ele busca compreender o incio absoluto de tudo. Aquilo de onde tudo vem,
no era nada do que conhecemos, e s pode, por isso, ser descrito atravs de
smbolos ou de paradoxos: era uma unidade, que respirava sem que existisse o
vento (ou ar); no havia o ser, nem o no-ser; no havia morte, nem
imortalidade. No existiam os opostos que podemos conhecer pelo nosso
pensamento. Como, ento, conhecer esse princpio? Os deuses no
presenciaram esse incio, pois surgiram depois dele; por isso, nem eles podem
nos ensinar isso. No nos adianta procurar textos sagrados, revelaes
religiosas.
No entanto, h algo de positivo nesse hino: A unio do ser ao no-ser foi descoberta pelos sbios que refletiram sobre o que contemplaram em seus
coraes. Ou seja: existe um processo de conhecimento que pode chegar quilo que est, aparentemente, fora do alcance dos prprios deuses. Os sbios
descobriram essa unio do ser ao no-ser voltando-se para dentro de si prprios, isto , pela meditao.
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Tanto na Grcia quanto na ndia, surgem concepes filosficas diferentes da
tradio mitolgica; mas os caminhos seguidos so muito diferentes. A
filosofia grega se baseia principalmente na razo, no pensamento, em
raciocnios lgicos, cujo modelo fundamental a matemtica. No pensamento
indiano, h um processo de conhecimento no racional, direto, uma viso da verdade, pela meditao.
3.2 OS PR-SOCRTICOS E A BUSCA DO PRINCPIO UNIVERSAL,
NA GRCIA
Entre os sculos IX e VI antes da era crist, o mundo grego passou por
uma profunda transformao. Ocorreu uma ampla mudana poltica, social,
religiosa e cultural, envolvendo mltiplos fatores que no so ainda totalmente
compreendidos. Por um lado, o contato comercial e cultural muito intenso com outros povos, nesse perodo, trouxe ao mundo grego uma variedade de
idias que passaram a ser confrontadas com o pensamento tradicional. Isso
envolveu a entrada de novas concepes religiosas, polticas, filosficas,
cientficas (por exemplo, na matemtica e astronomia). O surgimento de uma
classe econmica poderosa, atravs do comrcio, enfraqueceu a antiga
aristocracia. Surgiram novos valores, e uma sociedade mais aberta, pessoas
mais confiantes em seu prprio poder individual, com um enfraquecimento de
toda a tradio cultural e do respeito pelos mitos, pela religio, pela autoridade
antiga.
Scrates, um dos
mais importantes
filsofos da
histria.
Em meio a todo esse amplo processo cultural, que
envolveu uma crtica racional dos mitos (j apontada no
captulo 2), houve tambm o aparecimento de algo novo: o
despertar da filosofia como algo novo, independente, que
procurava fundamentar-se apenas no pensamento, na razo.
Costuma-se dividir a filosofia grega em dois perodos:
antes e depois de Scrates. Os filsofos anteriores a Scrates
(os chamados pr-socrticos) escreveram muitas obras que, no entanto, no foram conservadas. Tudo o que se sabe
sobre eles indireto, baseado em pequenos trechos de seus
escritos que foram citados por outros autores posteriores (os
fragmentos dos pr-socrticos) e em descries feitas por autores posteriores a Scrates (os testemunhos, ou doxografia). Diante do pequeno nmero de informaes sobre esses pensadores, qualquer tentativa de descrever seu
pensamento ser apenas uma tentativa, uma reconstruo, que pode ser at razovel, mas nunca ser definitiva ou
segura. Fala-se e escreve-se muito sobre Pitgoras,
Herclito, Tales e outros dos pr-socrticos; mas pouco se
sabe, realmente, sobre o que eles ensinaram.
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Apesar disso, no podemos deixar de fazer um breve estudo sobre o
pensamento cosmolgico dos pr-socrticos.
Tales, Anaximandro e Anaxmenes so trs dos primeiros filsofos pr-
socrticos. Todos eles so da mesma cidade (Mileto) e do mesmo perodo
(sculo VI antes da era crist). Eles possuem um ponto em comum: ensinavam
que todas as coisas se originam em uma nica matria primordial, que seria o
princpio (em grego, arqu ). A idia bsica pode ser esclarecida por meio de uma comparao. Suponhamos que s existisse argila no mundo, e que a
partir dessa argila fossem continuamente modelados diferentes tipos de
objetos, que depois fossem desmanchados, para depois fazer outros objetos
com a mesma argila. Essa argila seria o arqu o princpio de tudo e tambm o fim de tudo. Dois sculos depois, essa idia foi assim descrita por
Aristteles:
A maioria dos primeiros filsofos pensava que os princpios de todas as
coisas eram certos princpios materiais. Eles declararam que o elemento e
primeiro princpio das coisas que existem era uma substncia que continuava
sempre a existir mas mudava suas qualidades, sendo a fonte original de todas
as coisas que existem, a partir da qual uma coisa surge e na qual ela
finalmente se decompe. Por esta razo, eles consideravam que no existe um
surgimento ou desaparecimento absoluto, tomando como base que essa
natureza sempre preservada. Pois deveria existir alguma substncia
natural ou uma, ou mais de uma a partir da qual as outras coisas surgem, mas que se conserva.
Trs dos primeiros filsofos pr-socrticos, na sequncia: Tales, Anaximandro e
Anaxmenes.
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Aqui se encontram os germes das idias que utilizamos at hoje, de elementos
da matria e de conservao da matria. Essas idias no surgiram da
observao e do experimento, e sim a partir do pensamento e de analogias.
Os diferentes filsofos pr-socrticos no concordaram entre si a respeito
do nmero e do tipo de elemento ou princpio de todas as coisas materiais.
Tales afirmava que esse princpio era a gua. De onde ele tirou essa idia?
No sabemos. Segundo Aristteles, que a principal fonte de que dispomos
para falar sobre Tales, ele se baseou em duas coisas: primeiro, que todos os
seres vivos precisam de umidade para viver; segundo, que a origem dos seres
vivos a umidade, pois os animais nascem do smen, que um lquido, e as
sementes no germinam sem umidade. Assim, a gua seria aquilo de onde se
origina a vida e que necessria para manter todos os seres vivos.
3.3 O PENSAMENTO DE ANAXIMANDRO: A ORIGEM A PARTIR
DO APEIRON
Anaximandro foi outro filsofo pr-socrtico, pouco posterior a Tales e
que pode ter sido seu discpulo. H mais informaes sobre ele do que sobre
Tales, mas tambm difcil compreender seu pensamento. De acordo com o
que se diz sobre ele, Anaximandro ensinava que o princpio e elemento de
tudo era o indefinido (peiron, em grego), que no era a gua, nem o ar, ou qualquer coisa de conhecido e palpvel. Todas as coisas viriam do peiron
e retornariam a ele, ao serem destrudas.
Mas o que significa esse peiron? H muita discusso sobre isso. A palavra pode ser traduzida como infinito ou como indefinido ou como ilimitado. um termo abstrato, talvez inventado pelo prprio Anaximandro. possvel que ele quisesse indicar, com essa palavra, um tipo de matria que
no corresponde a nada de definido, mas que pode assumir a aparncia de
todos os tipos de substncias que conhecemos. Talvez essa idia fosse um
passo adiante, um novo grau de abstrao, a partir da idia de Tales. Ao invs
de admitir que uma substncia conhecida (a gua) pudesse se transformar em
todas as outras, Anaximandro parece ter imaginado uma substncia
desconhecida, talvez at impossvel de ser observada, que pudesse servir de
origem para todas as outras. A partir desse perion, que no quente nem frio,
surgiriam o calor e o frio; a partir do peiron, que no duro nem mole,
surgiriam as substncias duras e moles.
A justificativa pode ter sido a seguinte: para cada tipo de coisa que
existe, pode-se pensar em outra coisa diametralmente oposta, com as
propriedades contrrias. Por exemplo: o fogo totalmente oposto gua e
difcil imaginar como um deles pudesse sair do outro. Assim, a matria
primordial se que ela existe e se que ela de um nico tipo no deve
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ser nem gua, nem fogo, nem qualquer coisa definida que possua
caractersticas prprias, mas algo indefinido, de onde podem sair todos os
opostos.
Essa substncia primordial, o peiron, seria indestrutvel, ou imortal: ela no deixa de existir quando a partir dele se formam as diferentes substncias e
coisas do universo, mas continuaria a existir dentro delas, tendo apenas
adquirido uma nova aparncia. Essa idia elimina, portanto, a possibilidade de
um incio absoluto de tudo: o peiron no tem incio, ele sempre existiu. Pelo
contrrio, o universo provm do peiron, e pode no ser eterno. Talvez
Anaximandro tivesse concebido a possibilidade de diversos mundos,
formando-se a partir da destruio do anterior; mas no se sabe com certeza se
ele de fato defendeu essa idia.
O peiron seria infinito, preenchendo todo o espao. No existiria
nenhum lugar vazio ou com outro tipo de substncia. O peiron existiria
dentro de tudo o que conhecemos.
Os filsofos ps-socrticos que descreveram o pensamento de
Anaximandro lhe atribuem a idia de que os opostos provm da separao a
partir do peiron. Isso no quer dizer que o peiron fosse uma mistura de
opostos: ele uma substncia nica. Talvez uma boa comparao fosse a
seguinte: suponhamos que exista uma grande extenso de areia, totalmente
plana, sem altos nem baixos. Pode-se fazer um buraco nessa areia, mas, para
isso, a areia tirada do buraco precisa ser colocada em algum lugar e vai
produzir um monte, de volume equivalente ao do buraco. O buraco e o monte
podem ser considerados como opostos, que no existiam antes, mas que
passam a existir ao mesmo tempo, a partir de algo que no tinha nem buracos
nem montes.
a partir do peiron que se forma o mundo. Anaximandro parece ter sido
o primeiro pensador grego a propor uma teoria racional pela qual o mundo se
forma a partir de uma matria que existe por si mesma, e na qual no existe a
interveno de deuses ou outros seres sobrenaturais.
Anaximandro apresenta uma
certa viso do universo que ainda
bastante primitiva. A Terra, para
ele, ainda no esfrica: um
cilindro, com dimetro trs vezes
maior do que a altura. O mundo
habitado estaria em uma das
superfcies planas do cilindro. Essa
viso no muito diferente da de
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um disco, que j foi indicada, e que
existia j na poca de Homero. No
entanto, surge um elemento
interessante, em Anaximandro. Ele
no vai propor que existe algo
debaixo da Terra que a sustenta,
como os pensadores anteriores. Ele
vai dizer que a Terra est no centro
de tudo, e que por isso fica em
equilbrio, no podendo se mover
nem para um lado, nem para o
outro. O cu deixa, portanto, de
ser
Para Anaximandro a Terra era um cilindro com
dimetro trs vezes maior que a altura.
imaginado como uma simples cpula acima da superfcie da Terra, e passa a
ser pensado como algo que a cerca por todos os lados: uma esfera. Esse um
grande avano, para a poca.
Em cada momento, o conhecimento sobre o universo vai se modificando, e da
mesma forma mudam as explicaes dadas sobre a sua origem. Algumas
mudanas de viso sobre o universo so radicais e profundas. Anaximandro,
ao contrrio de outros pensadores anteriores, coloca claramente a viso de
algo infinito e ilimitado, enquanto que a viso mais imediata do mundo a de
que ele finito, e que termina logo ali, no cu. Mas o que existe depois do cu? E depois? E depois? ... Pensar sobre o que est alm de tudo o que se
conhece um passo de enorme importncia, tpico da Filosofia.
Anaximandro imaginou que, a partir do peiron eterno, separaram-se as
origens do quente e do frio. A parte fria (que talvez fosse um tipo de bruma ou
umidade) se concentrou no centro de tudo, formando a Terra, envolvida por
ar; e, em torno do ar, teria se formado uma espcie de casca, cercada por uma
esfera de fogo. Depois, ela se rompe, quebrando-se em certos crculos, que
formam o Sol, a Lua e as estrelas. Segundo Anaximandro, inicialmente, toda a
Terra era uma massa mida; mas o calor do Sol secou uma parte, que se
tornou a terra slida; a umidade que sobrou se tornou o mar; e os vapores que
saram da Terra pelo calor do Sol produziram ventos, que colocaram os astros
em movimento.
Aqui, pode-se ver que Anaximandro tenta justificar vrios aspectos do
universo que conhecemos a partir de explicaes que se baseiam em
fenmenos conhecidos: o calor do Sol pode realmente secar uma regio
alagada, pode produzir vapores, etc. claro que no acreditamos, hoje em dia,
que os ventos possam movimentar os astros celestes; mas, para a poca, essa
no era uma idia absurda, e preciso avaliar cada concepo dentro de seu
prprio tempo.
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Isso tudo o que se pode dizer sobre o pensamento cosmognico de
Anaximandro, a partir das poucas informaes que restaram de sua poca. Por
um lado, seu pensamento pode ser considerado como muito primitivo,
comparado com aquilo que qualquer criana atual sabe sobre o universo. Por
outro lado, sob o ponto de vista de sua poca, trata-se de uma tentativa
extremamente ousada e admirvel de explicar racionalmente aquilo que se
conhecia sobre o mundo, deixando de lado toda a tradio mitolgica.
3.4 ANAXMENES E A IMPORTNCIA DO AR
Aps Anaximandro, outro filsofo importante foi Anaxmenes, da
mesma cidade de Mileto. Para ele, o princpio material de todas as coisas era o
ar. Ao se tornar mais rarefeito, ele se tornaria fogo; ao se tornar mais denso,
produziria nuvens, depois gua, terra e rochas. O frio e o calor no seriam
poderes independentes, mas associados ao estado do ar: o ar, ao se condensar,
produziria o frio; e, ao se rarefazer, produziria calor. Todos os materiais e
todas as coisas viriam, portanto, do ar. Esse ar, para Anaximandro, um
elemento que est sempre se movendo, ou seja, um princpio dinmico. O ar
no teria sido produzido por nenhum deus, mas todos os deuses teriam vindo
do ar, isto , ele seria a origem at mesmo dos deuses.
De onde Anaxmenes tirou essa idia? Novamente, no se sabe. Pode ser
que a grande importncia que ele d ao ar venha da observao daquilo que
chamamos mudanas de estado: o fogo parece ser apenas um ar muito quente; e, como o vapor d'gua transparente, as nuvens e a gua parecem se
formar a partir do prprio ar.
Por outro lado, ele parece tambm ter chamado a ateno para a
importncia do ar nos seres vivos: o animal que impedido de respirar morre.
O ar seria, assim, essencial para a vida. Ele parece ter identificado a alma com
um tipo de ar interno. Essa uma idia que aparece, a nvel mitolgico, em
muitas civilizaes. Por exemplo: Tupana d a
vida ao primeiro homem, feito
do barro, soprando sobre ele,
exatamente como na Bblia. O
alento ou respirao, em grego,
se chama pneuma (da vem pneumonia, uma doena do pulmo, que o rgo da
respirao). No pensamento
indiano antigo, a fora vital
chamada prna, que tambm o nome dado
respirao.
Para Anaxmenes, a Terra um disco achatado e
fino, que flutua no ar, assim como o sol.
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Para Anaxmenes, a Terra
um disco achatado, muito
fino, que flutua cercado pelo
ar. Ela no cai apenas por ser
muito fina e grande, por isso
fica pairando, como uma folha
no ar. Tambm os astros
celestes Sol, Lua, etc. seriam discos finos, de fogo,
que tambm flutuariam no ar.
Por isso, seus movimentos
seriam produzidos tambm
pelo ar.
Anaxmenes no parece ter produzido uma teoria sobre a origem do universo.
Mas representa tambm a tradio que tentava encontrar um princpio material
de todas as coisas, e explicar os fenmenos do universo sem utilizar
concepes religiosas.
impossvel apresentar aqui todas as concepes importantes que
surgiram entre os gregos. necessrio, no entanto, mencionar ainda
Empdocles, da cidade de Acragas, e os atomistas.
3.5 OS QUATRO ELEMENTOS DE EMPDOCLES
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Empdocles, filsofo atomista
grego.
Empdocles viveu no sculo V antes da
era crist. Ele considerado o primeiro filsofo
grego a apresentar a concepo dos quatro
elementos materiais (terra, gua, ar e fogo).
Esses quatro elementos so descritos como
sendo as razes de todas as coisas. So associados a quatro divindades: Zeus (fogo),
Hera (ar), Aidoneus ou Hades (terra) e Nestis
(gua).
O universo, para Empdocles, cclico:
h momentos em que as razes brotam a partir de uma unidade, e constituem todas as
coisas; e h outros momentos em que elas se
renem, e formam uma unidade novamente,
desaparecendo todas as coisas. Essa alternncia
ocorreria devido ao domnio do dio ou do
Amor. No existe um incio absoluto do
universo, mas apenas diferentes estados que se
alternam.
Segundo Empdocles, os elementos ou
razes de todas as coisas se unem em diferentes propores, e formam os animais, as
plantas e todas as outras coisas. Ele d um
interessante exemplo: os artesos, misturando
diversos pigmentos em diferentes propores,
so capazes de
criar todas as cores e assim representar rvores, pessoas, pssaros, peixes e at
deuses. Da mesma forma, a mistura das quatro razes poderia produzir todas as coisas conhecidas.
Os elementos, em si, no so destrudos nem criados; apenas se unem e
separam. Em um certo sentido, portanto, no existe nem nascimento nem
morte: aquilo que realmente existe, existe sempre, mudando apenas suas
combinaes e sua aparncia.
Em cada ciclo do universo, haveria uma fase de destruio de todas as coisas.
Empdocles descreve um tipo de turbilho ou redemoinho, no qual todas as
coisas iriam se misturando e se unindo entre si, pela fora do Amor, at que se
eliminassem todas as separaes. A partir da unio, por sua vez, surgiria a
separao, quando o poder da Luta ou do dio fosse a mais forte. Inicialmente
se separaria o ar, a partir da