O UNIVERSO Teorias Sobre Sua Origem e Evolução

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A presença universal de uma preocupação com a origem do universo mostra que esse é um elemento importante do pensamento humano. Possuir alguma concepção sobre o universo parece ser importante para que possamos nos situar no mundo, compreender nosso papel nele.

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  • O UNIVERSO

    TEORIAS SOBRE SUA ORIGEM E EVOLUO

    ROBERTO DE ANDRADE MARTINS

  • 2

    INTRODUO

    A origem do universo um tema que sempre interessou a toda a

    humanidade. Em todos os povos, em todas as pocas, surgiram muitas e

    muitas tentativas de compreender de onde veio tudo o que conhecemos. No

    passado, a religio e a mitologia eram as nicas fontes de conhecimento. Elas

    propunham uma certa viso de como um ou vrios deuses produziram este

    mundo.

    H mais de dois mil anos, surgiu o pensamento filosfico. Ele props

    novas idias, modificando ou mesmo abandonando a tradio religiosa. Por

    fim, com o desenvolvimento da cincia, apareceu um outro modo de estudar a

    evoluo do universo.

    Atualmente, a cincia predomina. dessa cincia que muitos esperam

    obter a resposta s suas indagaes sobre a origem do universo. Muitas vezes,

    lemos notcias em jornais e revistas apresentando pesquisas recentes sobre a

    formao do universo. Na tentativa de chamar a ateno para uma nova

    descoberta, os jornalistas s vezes exageram sua importncia e publicam

    manchetes do tipo: "Acaba de ser provado que o universo comeou de uma

    exploso". Mas foi provado, mesmo?

    As notcias, quase sempre, do a impresso de que acabaram todos os

    mistrios, que no h mais dvidas sobre o incio e evoluo do cosmo. Mas a

    verdade no exatamente essa. H dezenas de anos, os jornais repetem as

    mesmas manchetes, com notcias diferentes. Quem se der ao trabalho de

    consultar tudo o que j se publicou sobre o assunto, ver que os meios de

    comunicao revelam sempre um enorme otimismo. O resultado de cada nova

    pesquisa apresentado como se tivesse sido conseguida a soluo final. Mas

    se a notcia de trinta anos atrs fosse correta, no poderiam ter surgido todas

    as notcias dos anos seguintes - at hoje - repetindo sempre que um certo

    cientista ou grupo de pesquisadores "acaba de provar" que o universo

    comeou assim e assim.

    A cincia tem evoludo, isso inegvel. Durante o sculo XX, nossos

    conhecimentos aumentaram de um modo inconcebvel. Entretanto, nem todos

    os problemas foram resolvidos. A cincia ainda no esclareceu a maior parte

    das dvidas. As teorias sobre a origem do universo ainda devem sofrer muitas

    mudanas, no futuro. Por isso, ningum deve esperar encontrar aqui a resposta

    final. A ltima palavra ainda no foi dita.

  • 3

    A cincia no o nico modo de se estudar e tentar captar a realidade. O

    pensamento filosfico e religioso possuem tambm grande importncia. As

    antigas indagaes ressurgem sempre: ser possvel que esse universo tenha

    surgido sem uma interveno divina? at que ponto a cincia e a religio se

    contradizem ou se completam?

    Ao longo da histria da humanidade, desenrolou-se - e ainda se desenrola

    - um enorme esforo para descobrir de onde veio tudo aquilo que existe. a

    histria desse esforo que ser descrita neste livro. Apenas sabendo todas as

    fases pelas quais j passou o pensamento humano, podemos tentar avaliar

    corretamente o estgio atual de nossos conhecimentos. Para isso, no podemos

    nos limitar apenas s investigaes mais recentes, nem apenas cincia.

    Devemos recuar a um passado distante, e acompanhar essa grandiosa aventura

    intelectual da humanidade: a tentativa de entender a origem do universo, a sua

    prpria origem e o seu prprio significado.

    Em nossa viagem, encontraremos alguns dos maiores pensadores de toda

    a histria. Muitas teorias so difceis ou obscuras. preciso um certo esforo

    para entend-las. Mas vale pena esse esforo de elevar-se e poder dialogar

    com alguns dos maiores gnios da humanidade.

    Nossa viagem pela histria do pensamento humano nos mostrou muitas

    tentativas realizadas para se compreender a origem de nosso universo. Essa

    busca existiu em todas as civilizaes, em todos os tempos. Mas a forma de

    buscar essa explicao variou muito. O mito, a filosofia, a religio e a cincia

    procuraram dar uma resposta s questes

    fundamentais: O universo existiu sempre, ou teve um incio? Se ele teve

    um incio, o que havia antes? Por que o universo como ? Ele vai ter

    um fim?

    Nosso conhecimento moderno sobre o universo est muito distante

    daquilo que era explicado pelos mitos e pela religio. Nenhum mito ou

    religio descreveu o surgimento do sistema solar, do Sol, das galxias ou da

    prpria matria. Esperaramos da cincia uma resposta s nossas dvidas, mas

    ela tambm no tem as respostas finais.

    Por que no desistimos, simplesmente, de conhecer o incio de tudo?

    Que importncia pode ter alguma coisa que talvez tenha ocorrido h 20

    bilhes de anos?

  • 4

    A presena universal de uma preocupao com a origem do universo

    mostra que esse um elemento importante do pensamento humano.

    Possuir alguma concepo sobre o universo parece ser importante para

    que possamos nos situar no mundo, compreender nosso papel nele. Em certo

    sentido, somos um microcosmo. O astrnomo James Jeans explicava o

    interesse dos cientistas por coisas to distantes de nossa vida diria, da

    seguinte maneira:

    Ele quer explorar o universo, tanto no espao quanto no tempo, porque ele

    prprio faz parte do universo, e o universo faz parte do homem.

    Essa busca de uma compreenso do universo e do prprio homem ainda

    no terminou. De uma forma ou de outra, todos participamos dessa mesma

    procura. Uma procura que tem acompanhado e que ainda dever continuar a

    acompanhar todos os passos da humanidade.

  • 5

    CAPTULO 1 - A ORIGEM DO UNIVERSO NA

    MITOLOGIA E NA RELIGIO

    1.1 UM MITO INDGENA DO BRASIL

    De onde veio este mundo? Como ele surgiu? De onde vieram os homens?

    Qual o significado de tudo isso que existe? Em todos os tempos e em todas as

    civilizaes, essas foram perguntas que sempre inquietaram a humanidade e

    que receberam diferentes tipos de respostas.

    Uma lenda indgena nheengatu, da Amaznia, assim conta a origem do

    mundo:

    No princpio, contam, havia s gua, cu.

    Tudo era vazio, tudo noite grande.

    Um dia, contam, Tupana desceu de cima no meio de vento grande, quando j

    queria encostar na gua saiu do fundo uma terra pequena, pisou nela.

    Nesse momento Sol apareceu no tronco do cu, Tupana olhou para ele.

    Quando Sol chegou no meio do cu seu calor rachou a pele de Tupana, a pele

    de Tupana comeou logo a escorregar pelas pernas dele abaixo. Quando Sol

    ia desaparecer para o outro lado do cu a pele de Tupana caiu do corpo dele,

    estendeu-se por cima da gua para j ficar terra grande.

    No outro Sol [no dia seguinte] j havia terra, ainda no havia gente.

    Quando Sol chegou no meio do cu Tupana pegou em uma mo cheia de

    terra, amassou-a bem, depois fez uma figura de gente, soprou-lhe no nariz,

    deixou no cho. Essa figura de gente comeou a engatinhar, no comia, no

    chorava, rolava toa pelo cho. Ela foi crescendo, ficou grande como

    Tupana, ainda no sabia falar.

    Tupana, ao v-lo j grande, soprou fumaa dentro da boca dele, ento

    comeou j querendo falar. No outro dia Tupana soprou tambm na boca

    dele, ento, contam, ele falou. Ele falou assim:

    - Como tudo bonito para mim ! Aqui est gua com que hei de esfriar minha

    sede. Ali est fogo do cu com que hei de aquecer meu corpo quando ele

    estiver frio. Eu hei de brincar com gua, hei de correr por cima da terra;

    como o fogo do cu est no alto, hei de falar com ele aqui de baixo.

    Tupana, contam, estava junto dele, ele no viu Tupana.

  • 6

    Essa lenda indgena mostra um tipo de explicao para a origem do mundo e

    do prprio homem. As explicaes mais antigas, como essa, eram mitos: histrias que descreviam como um ou vrios personagens sobrenaturais

    (deuses ou outros seres) fizeram o mundo primitivo, criaram os animais, as

    plantas, os homens e estabeleceram os costumes, as leis, a estrutura da

    sociedade. A lenda nheengatu indicada acima um mito de origem do mundo,

    pois tenta descrever esse incio como o resultado da ao de Tupana, um ser sobrenatural.

    Esses mitos esto sempre associados a uma viso religiosa: os seres

    sobrenaturais descritos nos mitos devem ser respeitados e e obedecidos;

    dependendo da religio, devem ser feitos cultos dedicados a esses deuses que

    produziram o universo e o homem.

    O mito nheengatu citado acima muito mais longo do que o trecho que

    foi apresentado. Ele explica como surgiram as plantas, os animais, e tudo o

    que tem importncia para a vida na natureza. Diz tambm como surgiu o erro,

    fala sobre a desobedincia do primeiro homem e descreve como teria ocorrido

    a destruio do mundo por uma espcie de inundao ou dilvio.

    1.2 A ORIGEM BBLICA DO UNIVERSO

    Essa descrio tem grande semelhana com a origem do universo

    descrita no Genesis o incio da Bblia judaica. Nos dois casos, existe um incio de trevas, existem certas guas primitivas, existe uma divindade invisvel que vai formando todas as coisas, e que ir formar o homem a partir

    do barro, soprando sobre ele para lhe dar a vida. Embora o Genesis seja bem

    conhecido, vamos relembrar o seu incio:

    No princpio, Deus criou o cu e a terra.

    E a terra era informe e vazia, e havia trevas sobre a face do abismo; e o

    esprito de Deus se movia sobre as guas.

    E disse Deus: que seja feita a luz. E a luz se fez.

    E Deus viu que a luz era boa. E separou a luz das trevas.

    Chamou a luz de Dia, e as trevas de Noite. E fez-se a tarde e a manh do dia

    um.

    E disse tambm Deus: seja feito o firmamento em meio s guas, e divida as

    guas das guas.

  • 7

    E Deus fez o firmamento, dividindo as guas que estavam sob o firmamento e

    as que estavam sobre o firmamento. E isso se fez assim.

    E Deus deu ao firmamento o nome de Cu. E fez-se a tarde e a manh do

    segundo dia.

    Deus disse: reunam-se as guas que esto sob o cu, em um lugar, e que

    aparea o seco. E isso se fez assim.

    E Deus chamou o seco de Terra, e denominou a reunio das guas de Mar. E

    Deus viu que era bom.

    Depois, nos dias seguintes, Deus produz as plantas, os astros, os animais, das guas e da terra e, por fim, o homem:

    E disse: Faamos o homem a nossa imagem e semelhana; e que ele presida

    os peixes dos mares, os que voam no cu, as feras de toda a terra, e todos os

    rpteis que se movem na terra.

    E Deus criou o homem sua imagem; pela imagem de Deus o criou; criou-o

    macho e fmea.

    E Deus os abenoou, e disse: Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra, e

    sujeitai e dominai os peixes dos mares, e os pssaros dos cus, e sobre todos

    os animais que se movem sobre a terra.

    No stimo dia Deus terminou a obra que havia feito; e repousou no stimo

    dia, de todas as obras que produziu.

  • 8

    Segundo a Bblia, Deus criou o

    mundo em 6 dias e descansou no

    stimo.

    Nesse mito bblico da criao, existe

    apenas uma divindade, que produz todas as

    coisas. Nada surge por si prprio: parecem

    no existir foras ativas da matria.

    necessria a deciso e o poder de um deus

    para que tudo possa surgir.

  • 9

    1.3 O MITO BABILNICO DA CRIAO

    Em outras culturas, podem existir diversos deuses que participam da

    produo do universo, e o incio pode envolver lutas e violncia. O mais

    antigo mito conhecido sobre a origem de tudo o Enuma elis, um mito

    babilnico que parece ter sido elaborado cerca de 4.000 anos atrs. Ele

    comea falando sobre uma unidade primitiva, uma mistura de guas, anterior

    a todos os deuses:

    Quando no alto o cu [Anshar] ainda no tinha sido nomeado

    e em baixo a terra [Kishar] ainda no tinha nome,

    nada existia seno uma mistura das guas

    de Apsu, o oceano primordial, o gerador,

    e da tumultuosa Mummu-Tiamat, a gua doce, a me de todos.

    Ento as trevas eram profundas,

    um tufo movia-se sem repouso.

    Ento nenhum deus havia sido criado.

    Nenhum nome havia sido nomeado,

    nenhum destino havia sido fixado.

    Marduk, o Deus das guas

    doces

    Nesse mito babilnico, vo surgindo

    gradativamente diversos deuses. Na verdade, h uma

    enorme variedade de deuses e de mitos, na tradio

    babilnica, pois cada regio e cidade tinha seu

    prprio deus protetor e seus prprios mitos. O mais

    importante, para o tema aqui discutido, Marduk,

    filho de Ea, o deus das guas doces (rios, lagos).

    Marduk associado s tempestades e aos raios,

    e suas armas so o arco e a flecha. Ele tambm

    descrito como um grande mago, capaz de fazer com

    que as coisas apaream e desapaream. Por isso, ele

    escolhido pelos outros deuses como seu lder, para

    livr-los do poder de Tiamat. Marduk luta contra

    Tiamat, a deusa das guas e das trevas, que

    representada s vezes por um drago. Ele a mata e

    corta em dois pedaos. O pedao de cima se torna o

    cu, e o de baixo se torna a terra. Anu se torna o

    deus celeste, e Enlil se torna a deusa da terra.

  • 10

    aps a destruio de Tiamat que surgem os astros luminosos. Algumas

    vezes a criao das estrelas descrita como sendo realizada por Marduk,

    outras vezes como realizada pelos deuses das vrias regies em que o

    universo ficou dividido:

    No tempo em que Anu, Enlil e a, os grandes deuses,

    criaram o cu e a terra,

    eles quiseram tornar visveis os signos,

    fixaram as estaes e estabeleceram a posio dos astros,

    deram nomes s estrelas e lhes atriburam as trajetrias,

    desenharam, sua prpria imagem, as estrelas em constelaes,

    mediram a durao do dia e da noite

    criaram o ms e o ano

    traaram a rota da Lua e do Sol.

    Assim, eles tomaram suas decises sobre o cu e a terra.

    ...

    Eles confiaram aos grandes deuses

    a produo do dia e a renovao do ms,

    para as observaes astrolgicas dos homens.

    Viu-se ento o Sol se levantar

    e os astros brilharem para sempre em pleno cu.

    O mito descreve tambm as outras fases de criao do universo, at a

    produo dos homens. Segundo uma verso, Marduk aconselhado por seu

    pai Ea a criar os homens com a finalidade de adorarem os deuses. Marduk,

    ento, mata um drago (Kingu) e faz os homens a partir de seu sangue. Em

    outra verso, a deusa Aruru que faz os homens a partir da argila.

    interessante notar as semelhanas e diferenas entre os diversos

    mitos de criao. H aspectos que se repetem em culturas muito diferentes,

    como a produo dos homens a partir do barro ou argila; e outros que

    parecem originais.

    .

  • 11

    Na Babilnia, a astrologia era de enorme importncia. Acreditava-se que os

    astros dirigiam a vida das pessoas e todos os acontecimentos da Terra. Por

    isso, os planetas e estrelas so considerados como elementos centrais, no mito

    de criao. Eles so to importantes, que as constelaes recebem formas que

    representam a imagem dos prprios deuses. Pelo contrrio, no mito da Bblia,

    o centro de tudo o homem. No se menciona a astrologia, e o homem

    criado como uma imagem divina. Nos dois casos, esse um aspecto estranho

    do mito: em que sentido os deuses possuem uma forma?

    Outro aspecto muito interessante que, nesses mitos, os deuses vo

    estruturando o universo, produzindo suas partes, e tambm lhes do nomes e

    estabelecem as leis que devem ser obedecidas por todos os fenmenos. No

    incio, diz o Enuma elis, nada tinha nome. O Genesis no afirma isso

    diretamente, mas indica que Deus d o nome ao dia e noite, ao cu e terra,

    etc. Dar um nome significa, nas mitologias, tornar real, concreto, definido, controlvel. Aquilo que no tem nome o que desconhecido, impalpvel,

    obscuro, indefinido e assustador.

    O mito babilnico diz que no incio nada tinha nome e que nenhum

    destino havia sido traado: ou seja, no existiam regras ou leis que

    permitissem dizer o que deveria ocorrer no futuro. No entanto, quando os

    deuses criam os planetas, eles determinam suas trajetrias, isso , estabelecem

    como eles devem se mover. So assim criadas aquilo que podemos chamar de

    leis da natureza. Da mesma forma, no Genesis, Deus estabelece que as plantas, os animais e os homens devem se multiplicar e produzir outros iguais

    a eles prprios, segundo sua espcie. As divindades, assim, vo dando ordens,

    isto , vo ordenando o universo. O estabelecimento de uma organizao, de

    uma ordem, um aspecto essencial de todo mito de origem do universo os chamados mitos cosmognicos.

    Normalmente, os mitos cosmognicos pressupem que j existe alguma

    coisa, desde o incio. Ao invs de criar tudo a partir do nada, uma divindade

    modifica essa coisa original, dividindo-a e produzindo outras. comum o

    aparecimento de uma espcie de gua primordial, ou escurido (trevas, noite)

    como ponto de partida, como nos mitos indicados acima. Ao invs de um

    criador, a divindade , ento, um tipo de arteso que vai estruturar o universo.

  • 12

    1.4 AS SEMELHANAS ENTRE OS MITOS DE DIFERENTES POVOS

    impossvel descrever a mitologia de todos os povos. No entanto,

    estudos j realizados mostram que muitos temas e idias bsicas se repetem.

    Em alguns casos, a tradio de um povo pode ter sido passada a um outro

    povo. Afinal, os babilnicos, os egpcios, os gregos e outros povos da

    Antigidade viviam prximos e possuam relaes comerciais e culturais

    muito fortes. O mais estranho, no entanto, que mesmo os povos das

    Amricas, da frica ou da Austrlia, que no parecem ter tido ligao com as

    culturas da Europa e da sia antiga, tambm desenvolveram mitos que

    possuem muitas semelhanas com aqueles. Como explicar isso?

    Em alguns casos, pode-se pensar em uma tradio comum, muito antiga.

    Assim, a mitologia grega e a indiana, por exemplo, possuem vrias

    semelhanas que so atribudas a uma cultura indo-europia primitiva, de

    onde teriam sado tanto os gregos quanto os indianos. Os estudos lingsticos,

    no sculo passado, mostraram que os idiomas de muitos povos europeus e

    asiticos possuem semelhanas to grandes que deve-se supor que saram

    todos de um s idioma comum; da mesma forma, isso deve ter acontecido

    com muitos outros elementos culturais e religiosos. Mas no se pode aplicar a

    mesma idia ao mundo todo. Os idiomas africanos ou dos ndios americanos,

    por exemplo, no possuem semelhana com os idiomas indo-europeus.

    quase impossvel se pensar em explicar por uma origem histrica comum as

    semelhanas entre mitos dos ndios brasileiros, dos judeus e de povos da

    Austrlia.

    O psiclogo Carl Jung props uma explicao para essas semelhanas.

    Ele sups que o inconsciente de cada pessoa tem dois tipos de componentes:

    por um lado, lembranas pessoais de sua prpria vida e, por outro lado,

    imagens impessoais, uma espcie de memria da raa humana, herdada por

    cada pessoa ao nascer.

    Esses dois tipos de inconscientes o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo poderiam se manifestar na produo de sonhos. Alguns sonhos possuem carter pessoal e podem ser compreendidos pela

    lembrana de acontecimentos recentes ocorridos com a prpria pessoa. Mas

    outros sonhos apresentam imagens impessoais e estranhas, que a prpria

    pessoa no consegue associar com nada que lhe conhecido. Esses sonhos

    viriam do inconsciente coletivo, uma espcie de depsito de imagens e

    smbolos, comuns a todos os seres humanos. Esses smbolos, que Jung chama

    de arqutipos, seriam tambm a fonte de onde seriam tirados todos os mitos. Isso explicaria as semelhanas entre mitos de civilizaes totalmente distintas

    e sem ligao histrica conhecida.

  • 13

    interessante comparar a concepo de Jung prpria idia dos criadores de

    mitos como o poeta grego Hesodo, do qual ainda falaremos mais adiante. Na sua obra Teogonia, em que descreve a origem dos deuses e do universo, Hesodo se refere deusa Mnemsine. Ela uma personificao da memria

    ou da lembrana, mas no representa a memria individual ou pessoal, e sim o

    conhecimento universal. Ela a me das nove Musas, que so as que inspiram

    todos os poetas. As musas podem dizer mentiras, mas sabem dizer a verdade.

    Elas conhecem no s o passado mas tambm o futuro. E a elas que Hesodo

    invoca:

    Saudao, filhas de Zeus! Dai-me vosso canto que arrebata! Celebrai a raa

    sagrada dos imortais que vivem sempre, e que nasceram da Terra e do Cu

    estrelado, e da tenebrosa Noite e do Mar amargo.

    Dizei como nasceram os deuses e a Terra, e os Rios, e o imenso Mar que ruge

    furioso, e os astros resplandecentes, e, acima, o grande Cu, e os deuses,

    fonte dos bens que deles nasceram; e como, tendo partilhado as honras e

    riquezas desde a origem, eles tomaram o Olimpo de muitos picos.

    Dizei-me essas coisas, Musas das moradas do Olimpo, e quais foram, no

    incio, as primeiras dentre elas.

    O Parnaso, de Andr Appiani (1754-1817),

    representa as nove Musas inspirando um poeta. A

    terceira Musa da esquerda para a direita, com um

    compasso na mo apoiado sobre uma esfera

    celeste Urnia, a Musa dos astrnomos.

    Em sua descrio, portanto,

    Hesodo no atribui nem a si

    prprio nem tradio o

    conhecimento dos mitos que

    apresenta. Eles estariam sendo

    transmitidos pelas Musas, filhas

    da Memria eterna, que sabe o

    passado e o futuro. Assim, o

    conhecimento dos mitos estaria

    em uma fonte impessoal, de

    onde fluem esses smbolos

    captados pelo poeta. H grande

    semelhana entre essa descrio

    de Hesodo e a concepo de

    Jung. Aceitemos ou no a idia

    de um inconsciente coletivo ou

    de uma memria impessoal, o

    fato que os mitos no so

    produes arbitrrias da

    imaginao humana, pois nesse

    caso no encontraramos tantas

    semelhanas entre povos to

    diferentes.

  • 14

    1.5 A IMPORTNCIA DOS MITOS SUA UTILIDADE

    As concepes sobre a origem do universo no eram consideradas apenas

    como a satisfao de uma curiosidade intelectual. Elas possuam tambm uma

    utilidade prtica, na vida das pessoas.

    Na Polinsia, por exemplo, utilizava-se o mito cosmognico para curar

    doenas, para dar fertilidade s mulheres estreis e para outras finalidades.

    Segundo um mito cosmognico polinsio, s existiam inicialmente as

    guas e as Trevas. O deus supremo, Io, separou as guas pelo poder de seu

    pensamento e criou o Cu e a Terra. Ele disse: Que as guas se separem, que os Cus se formem, que a Terra exista! Essas palavras de Io, com as quais ele criou o mundo, so dotadas de um grande poder sagrado e podem ser repetidas

    pelos homens em situaes especiais, quando necessrio criar alguma coisa. Os polinsios acreditavam que, repetindo essas palavras, era possvel

    dar fertilidade a uma mulher estril, ou dar foras a uma pessoa doente e

    velha. Pois se as palavras do deus Io foram capazes de dar luz e foras ao

    universo todo, elas tambm podem iluminar, alegrar e dar foras a uma

    pessoa.

    O mito serve, assim, para recriar um estado original perfeito, a partir de

    uma situao de degradao ou decadncia. O mito de origem do universo

    serve como modelo para a criao, renovao ou revitalizao de qualquer

    coisa.

    O uso do mito cosmognico muito amplo e variado. Em certos povos,

    recitado quando nasce cada criana, pois o nascimento a recriao da vida.

    Em outros, cantado durante todo o perodo de gravidez de uma rainha, pois

    est ocorrendo a criao de um novo soberano, que representa um reincio do

    mundo social. Muitas vezes, o mito da origem do universo recitado quando

    um rei sobe ao trono. Sua recitao tambm acompanha a construo de

    templos e de casas especiais, sagradas, que representam simbolicamente toda

    a estrutura do universo.

    A repetio do mito, em meio a um ritual adequado, renova a natureza,

    d-lhe novas foras, pois a leva perfeio do incio. Essa idia sempre

    acompanhada pela concepo de que o incio mais perfeito do que aquilo

    que veio depois. Quanto mais uma coisa se afasta da origem, mais decadente

    ela fica. Para lev-la a se revigorar, necessrio retornar ao princpio,

    origem. Isso feito pelo ritual e pela recitao e reproduo do mito.

  • 15

    1.6 A RENOVAO DO UNIVERSO NAS FESTAS DE ANO NOVO

    A crena de que possvel revigorar o mundo atravs da repetio do

    mito de origem do universo est por trs de inmeras festas anuais, muito

    antigas.

    Um ano um perodo de tempo no qual todos os grandes fenmenos

    astronmicos, climticos e biolgicos se repetem. Para quem vive nas cidades,

    esse ciclo pouco observvel; mas, para quem vive no campo ou tem maior

    contato com a natureza, esse ciclo muito visvel e de grande importncia.

    Cada ano, com sua seqncia de estaes, representa um ciclo do universo,

    com um incio e um fim.

    O incio do ciclo anual pode ser colocado em diferentes pocas do ano, dependendo daquilo que mais importante para um determinado povo. O

    nosso atual Ano novo, no dia 1 de janeiro, uma conveno sem grande importncia. Mas na Babilnia, por exemplo, o incio de cada novo ano era de

    enorme importncia religiosa. A celebrao do Ano Novo ocorria na

    primavera, quando toda a natureza parecia nascer novamente. A festa durava

    uma semana, e era precedida pela limpeza, purificao e restaurao dos

    templos, pois tudo devia estar novo, como no princpio de tudo. A festa inclua uma repetio ritual de todo o mito de origem do universo, pois era

    como se tudo estivesse comeando de novo.

    Durante o Ano Novo babilnico, o prprio rei precisava ter o seu poder

    renovado. Para isso, o sacerdote supremo arrancava do rei todos os seus

    smbolos reais e o esmurrava no queixo, fazendo-o ajoelhar-se diante da

    esttua do deus Marduk. O rei precisava ento orar e garantir que no havia

    cometido nenhum erro e que havia governado corretamente. Ento o sacerdote

    lhe dizia que Marduk aceitava e era favorvel ao rei; devolvia-lhe os smbolos

    reais e lhe dava um novo murro no queixo. Se isso fazia os olhos do rei se

    encherem de lgrimas, era um bom sinal: significava que o deus Marduk era

    amigvel. Caso contrrio, indicava que ele estava bravo.

    Cada povo, como foi dito, escolhia com cuidado a data correspondente

    ao fim de um ano e incio do outro. Essa data tem, em geral, um significado

    astronmico bem definido. Em grande nmero de casos, coincide com os

    momentos denominados solstcios de vero e de inverno. Os solstcios so os momentos nos quais o Sol, visto da Terra, est mais ao Norte ou mais ao

    Sul. Pelo calendrio atual, correspondem aos dias 22 ou 23 de junho e 22 ou

    23 de dezembro. Para quem vive no hemisfrio Sul, o solstcio de inverno (22

    ou 23 de junho) quando ocorre o dia mais curto e a noite mais longa do ano.

    Pelo contrrio, no solstcio de vero (22 ou 23 de dezembro) ocorre o dia mais

    longo e a noite mais curta do ano.

  • 16

    No inverno, a luz do Sol atinge a Terra de forma mais fraca, obliquamente. No

    dia do solstcio, sua fora atinge o mnimo, o tempo frio, a noite longa. Nesse dia, muitos povos realizam rituais, destinados a inverter a marcha do

    Sol e a trazer de volta sua luz e seu calor, para que a Terra adquira novamente

    fora e vida. Terminou um ciclo: que comece um outro. Mas esse comeo de

    um novo ciclo depende da cooperao dos homens. preciso recriar o mundo,

    atravs de rituais que reproduzam, de forma simblica, o incio do universo.

    Os antigos rituais realizados nos dias de solstcio eram variados, mas

    possuam vrios elementos quase universais. Eram festas realizadas nas

    aldeias, tendo mantido antigas tradies, de forma quase independente das

    mudanas sociais e religiosas que ocorriam nas cidades. Por isso, foram

    chamadas de festas pags: a palavra pago vem do latim pagus, que significa aldeia.

    De um modo geral, essas festas eram realizadas em torno do fogo seja o fogo pblico, formado por grandes fogueiras, ou o fogo domstico (lareiras,

    por exemplo, nos pases frios). O fogo desses dias especial: aceso

    solenemente, e supe-se que ele tem poderes mgicos.

    Na noite de solstcio, as fogueiras eram acesas no alto das montanhas ou

    em outros locais especiais como encruzilhadas. Muitas vezes, eram acesas atravs de processos pouco comuns: pelo atrito de dois bastes, ou atravs de

    fagulhas de uma pederneira que nunca tivesse sido usada. Freqentemente, o

    homem que havia se casado mais recentemente era quem devia acender o

    fogo.

    Os camponeses acendiam tochas na fogueira e corriam com elas pelos

    campos, com o objetivo de espantar pragas, doenas e maus espritos, bem

    como aumentar a fertilidade do solo. Batiam com as tochas nas rvores e no

    cho, gritando e dizendo frases mgicas. Os jovens saltavam trs vezes sobre

    as fogueiras e, quando o fogo estava mais fraco, passavam sobre ele as

    crianas e os animais domsticos como as vacas e os cavalos para dar-lhes sade. Os jovens que saltavam mais alto sobre o fogo eram os que se casariam

    primeiro, durante o ano. E a altura do salto dos jovens indicava a altura qual

    cresceriam os cereais e o feno, nos campos, no ano seguinte. Nessa noite,

    algumas pessoas passavam descalas sobre as brasas da fogueira, ou

    colocavam brasas na boca, sem se queimar.

  • 17

    As cinzas e as madeiras remanescentes da fogueira eram consideradas de

    grande valor mgico. Essas cinzas eram espalhadas pelo campo, para

    aumentar a fertilidade do solo e proteger as plantaes. Os ties eram

    guardados dentro de cada casa, para proteger de incndios, de raios e de

    bruxaria. Durante tempestades, acendia-se dentro de casa esses ties, para

    que protegessem a todos. Nas plantaes, eles protegiam tambm contra

    encantamentos de feiticeiras, e contra o granizo.

    O fogo aceso durante a festa do solstcio era um fogo novo, mais forte,

    vigoroso, do que os outros. Por isso, em muitos lugares da China at a frica era costume apagar todos os fogos mantidos nas casas, antes da festa, levando depois o novo fogo, da fogueira para casa, onde devia se manter

    aceso durante todo o ano.

    As noites de solstcio so mgicas e nelas possvel adivinhar-se ou

    modificar-se o futuro. Sendo o incio de um novo ciclo, essas noites so

    consideradas uma espcie de miniatura do ciclo inteiro. Por isso, nessa noite, as moas fazem adivinhaes para saberem com quem vo se casar ou

    como vai ser seu futuro; o lavrador faz adivinhaes para saber como vo ser

    as chuvas e as colheitas do ano todo. Quebrando-se um ovo e derramando a

    clara em uma taa ou copo, a forma adquirida pela clara podia indicar aquilo

    que se queria saber por exemplo, quem seria o marido de uma jovem.

    A gua tambm adquiria propriedades especiais, no solstcio, a partir da

    meia-noite. Costumava-se recolher gua de poos ou fontes, nesse horrio, e

    guard-la para necessidades especiais. Aps a meia-noite ou pouco antes do

    nascer do dia seguinte, tambm era costume que as pessoas se banhassem nos

    rios ou no mar, ou pelo menos rolassem, nuas, sobre a relva orvalhada. Isso

    era considerado benfico para a sade da pessoa, simbolizando um novo

    nascimento.

    Nascimento e morte so inseparveis: os camponeses sempre acreditaram

    que as sementes plantadas na terra precisam morrer, apodrecer e depois

    adquirem da terra uma nova vida, e germinam. Quando esto no solo, so

    guardadas pelo esprito dos familiares mortos. Na festa de solstcios, esses

    mortos esto presentes: em muitos lugares, eram colocados assentos especiais

    para que seus espritos se assentassem e assistissem festa.

  • 18

    Atravs dessas festas, as pessoas

    vivenciavam a mudana do ano: o

    fim de um perodo o incio do outro,

    com todas as suas expectativas, com

    todo o seu potencial mgico.

    Comear um novo ano no era

    apenas recomear a contagem dos

    dias e meses.

    Isso tudo pode parecer estranho

    e extico, para ns. Mas aqui, no

    Brasil, esses antigos costumes ainda

    existem, principalmente no interior,

    nas festas de So Joo. A noite de So Joo corresponde exatamente ao

    solstcio de inverno, no hemisfrio

    Sul. Os estudiosos do folclore

    brasileiro, como Cmara Cascudo,

    estudaram detalhadamente essa festa

    e mostraram que os costumes e

    supersties da festa de So Joo so

    milenares. Embora o povo do interior

    do Brasil no saiba qual a origem

    dessa festa, ela um ritual de

    repetio do nascimento do mundo.

    As festas de So Joo, comuns no interior do

    Brasil, ocorrem no solstcio de inverno no

    hemisfrio sul.

    1.7 A NATUREZA DOS MITOS

    Os mitos no so vistos como lendas, como simples estrias, pelos que

    os respeitam. So considerados como histrias verdadeiras, ocorridas em um

    tempo primordial, envolvendo seres sobrenaturais que produzem uma nova

    realidade. Esses mitos servem para explicar o mundo, mas no de um modo

    racional. O mito proporciona imagens, ele traz emoes. Ele sentido e

    vivido por quem o ouve, por quem o v representado e por quem o revive por

    meio dos rituais.

    Vemos um mundo nossa volta: casas, pessoas, cidades, rios, rvores, o

    Sol, etc. O que tudo isso? O objetivo do conhecimento mtico compreender

    o universo, situar-se nesse contexto, saber de onde saram as coisas e os

    homens, como se estruturou a sociedade. Trata-se de entender o passado para

    entender a si prprio, como parte do universo, atravs do mito.

  • 19

    Ao compreender as coisas, a pessoa aprende os segredos que lhe permitem

    atuar de forma mgica sobre o mundo. Conhecendo a origem da vida,

    possvel curar os doentes. Conhecendo a origem do fogo, possvel caminhar

    sobre ele ou segurar uma brasa na mo sem se queimar. Mas no s isso:

    possvel agir corretamente, sabendo seu papel no mundo; possvel participar

    do drama csmico, de acrdo com aquilo que foi estabelecido pelos deuses na

    origem de tudo.

    O ritual repete aquilo que os deuses fizeram no tempo primordial. Essa

    repetio mais do que uma comemorao ou uma imitao. Ao repetir um

    ritual, a pessoa se identifica com o deus, e o tempo primordial recriado. O

    ritual poderoso porque ele a repetio exata e vlida daquilo que foi feito

    pelos deuses e que refaz e recria o momento primordial. Na nossa tradio, h

    um exemplo bem conhecido: a missa da Igreja Catlica, na qual, durante a

    celebrao, o sacerdote se torna Cristo, o vinho se torna o sangue e o po se

    torna o corpo de Cristo.

    Participar do ritual e reviver o mito significa sair do tempo e do mundo

    profano, decadente, para retornar e reviver no mundo do tempo primordial.

    uma experincia essencialmente religiosa.

    Com o passar do tempo, em muitas civilizaes, houve um

    enfraquecimento do mito e da religio, surgindo em seu lugar o pensamento

    filosfico. Mas nem sempre a filosofia se desprendeu totalmente da religio e

    do mito. Muitas vezes, o pensamento filosfico uma reflexo e

    desenvolvimento de mitos mais antigos. isso que ser estudado nos

    prximos captulos.

  • 20

    CAPTULO 2 - O MITO FILOSFICO NA GRCIA

    E NA NDIA

    2.1 A ANTIGA VISO DE MUNDO DOS GREGOS

    Os mitos e a religio so fenmenos universais: surgiram em todos os

    lugares, em todos os povos. A filosofia, pelo contrrio, algo mais restrito.

    Em alguns poucos lugares do mundo, como a Grcia e a ndia, apareceu

    gradualmente um pensamento filosfico que procurou dar uma explicao

    para o mundo sem utilizar mitos. Mas isso no aconteceu de repente, nem

    houve um abandono total das concepes mitolgicas e religiosas. Muitas

    vezes, elas foram aproveitadas pelos filsofos. Por isso, preciso partir dos

    prprios mitos, para entender o surgimento da filosofia.

    A mitologia grega foi de grande importncia e influenciou muito toda a

    cultura ocidental. Os textos mais antigos que conservam informaes sobre a

    mitologia grega so as obras atribudas a Homero (Ilada e Odissia),

    compostas aproximadamente nos sculos IX ou VIII antes da era crist; e as

    obras de Hesodo, do final do sculo VIII antes de Cristo.

    A antiga viso de mundo dos gregos era de que a Terra (a deusa Gaia ou

    Gia) era uma superfcie redonda, plana (a menos de suas irregularidades,

    como as montanhas), semelhante a um prato ou disco. O Cu (o deus Ouranos

    ou Urano) seria a metade de uma esfera oca, colocada sobre a Terra. Entre a

    Terra e o Cu existiriam duas regies: a primeira, mais baixa, que vai da

    superfcie do solo at as nuvens, seria a regio do Ar e das brumas. A segunda

    seria o ar superior e brilhante, azul, que visto durante o dia, e que era

    chamado de ter. Embaixo da Terra, existiria uma regio sem luz, o Trtaro.

    Em volta do Trtaro, existiriam trs camadas da Noite (Nyx). A Noite

    considerada como uma deusa assustadora, a quem todos os deuses respeitam.

    Em algumas descries posteriores, a Noite tem grande importncia, sendo

    considerada como anterior maioria dos deuses.

    A Terra conteria todas as regies secas que eram conhecidas (Europa,

    sia e frica). Todas elas seriam cercadas por uma espcie de rio circular, o

    Oceano, que iria at a borda onde o Cu e a Terra se encontram. O Oceano

    descrito como a fonte e origem de todos os rios e mares. Homero chega a

    descrev-lo com a origem de todas as coisas e dos prprios deuses, o que se

    assemelha ao mito babilnico j descrito no captulo anterior.

  • 21

    Essa viso da estrutura do mundo muito diferente de nossa idia atual. Mas

    ela no absurda. Ns, atualmente, aprendemos que a Terra redonda, e

    vemos desenhos e fotografias mostrando a sua forma. Mas se ningum nos

    tivesse dito que ela uma bola, como poderamos saber isso?

    Quando uma pessoa olha para o cu, ou olha sua volta, ela v

    exatamente aquilo que os antigos gregos descreviam. Quando se sobe no alto

    das montanhas, v-se o cu como se fosse uma cobertura redonda; e v-se a

    Terra estendendo-se por todos os lados, parecendo um grande disco ou prato

    (a menos das irregularidades de seu relevo). Os limites do mundo conhecido

    eram os mares, existentes por todos os lados das terras. Era perfeitamente

    aceitvel que o Oceano cercasse toda a Terra. Devemos respeitar essas

    concepes, e no ridiculariz-las. Elas mostram uma tentativa de

    compreender o universo e de sistematizar aquilo que era observado.

    2.2 A TEOGONIA DE HESODO

    Existem descries cosmognicas que so intermedirias entre os mitos

    propriamente ditos e as concepes filosficas sobre a origem do universo.

    Tal o caso da Teogonia de Hesodo. O ttulo desse poema quer dizer: a origem dos deuses. Embora se possa imaginar que ele est apenas

    apresentando um mito sobre os deuses, h muito nessa descrio que

    claramente simblico e que deve ser interpretado como uma alegoria de idias

    de tipo filosfico.

    Realmente, antes de tudo existiu Khos [Caos],

    depois Gaia [Terra] de amplo seio,

    sede sempre firme de todas as coisas,

    e o Tartaros enevoado nas profundezas da Terra espaosa,

    e depois Eros [Desejo], o mais belo dos deuses imortais,

    que rompe todas as foras,

    e que doma a inteligncia e a sabedoria no peito

    de todos os deuses e de todos os homens.

  • 22

    O incio de tudo, segundo Hesodo, o Caos. Mas o que representa essa

    palavra? Na linguagem atual, caos significa confuso, desordem. Mas esse no o significado primitivo desse termo. Khos Caos, vem do termo grego khnein, abrir-se, entreabrir-se. Significa uma abertura, uma fenda, um abismo. Associa-se ao Caos a presena de escurido e de ventos ou

    tempestades. Pode ser entendido como um espao vazio, ou algo indefinido,

    anterior a todas as coisas. Alguns autores o interpretam como uma primeira

    diviso ou separao mas diviso de que? Na verdade, muito j se escreveu sobre o Caos de Hesodo, mas sem se chegar a uma concluso definitiva,

    aceita por todos.

    Mais tarde, a palavra Caos foi interpretada no sentido de uma matria primitiva, em que todos os elementos estavam misturados entre si.

    Segundo Hesodo, os primeiros filhos do Caos so: a Terra; aquilo que est abaixo dela, o Tartaros; e o desejo, Eros. Tartaros considerado como o

    local mais profundo na Terra, abaixo do prprio Hades, o inferno dos gregos.

    A Terra se apoia sobre o Tartaros: no tempo de Hesodo, no se imagina a

    Terra flutuando no espao. O Tartaros, por sua vez, talvez se apoie no Caos.

    Em autores posteriores, o mundo conhecido imaginado como se fosse uma

    bolha no meio do Caos, que o cerca por todos os lados.

    Eros, por sua vez, representa a atrao ou desejo, capaz de superar a razo e

    qualquer outra fora. representado como um deus masculino. Ele nasceu

    diretamente do Caos, como a Terra. pela fora do desejo que os deuses se

    uniro entre si, para procriar outros deuses.

    Do Khos surgiram Erebos [Trevas] e a negra Nyx [Noite].

    E de Nyx nasceram Aither [ter] e Hmra [Dia],

    concebidos quando ela se uniu a Erebos em amor.

    Erebos (masculino) e Nyx (feminina) so deuses da escurido (trevas e

    noite); no entanto, da Noite e das Trevas nasce a luz: Aither, o ter

    (masculino), representa o cu brilhante e azul do dia; e nasce junto com

    Hmra, a luz do dia (feminino). Na sucesso do tempo, os dias nascem das

    noites. Poder-se-ia dizer tambm que as noites nascem dos dias, mas a

    linguagem popular se refere apenas ao nascer do dia e nunca ao nascer da noite. Simbolicamente, a noite vista como algo negativo, e o dia como algo positivo; e aquilo que positivo nasce do que negativo.

  • 23

    E inicialmente Gaia [a Terra] gerou Ouranos [o Cu] estrelado,

    igual a ela prpria em tamanho,

    para que ele a cobrisse toda

    e para que fosse uma moradia segura para os deuses felizes.

    Neste ponto, aparentemente

    Hesodo est utilizando uma

    concepo semelhante dos

    babilnios, de que a Terra e o

    Cu estavam inicialmente

    misturados, formando uma s

    unidade, sendo depois separados.

    Oranos o Cu noturno,

    estrelado. concebido como um

    deus masculino, fecundador.

    Inicialmente, ele sai da prpria

    Terra; portanto, estavam

    inicialmente unidos, formando

    uma s unidade, que se rompe.

    Depois dessa separao, o Cu se

    une Terra, para produzir novos

    seres. Ele representa a

    fecundidade masculina. A chuva

    , s vezes, descrita como se

    fosse o smen de Ouranos, que

    fecunda a Terra, para a produo

    das plantas. A Terra, por sua vez,

    concebida como uma deusa e

    como elemento primordial, a

    fonte de toda vida. Dela surgem

    os vegetais e os animais.

    Mitologicamente, a Terra a me

    universal.

    No antigo Egito, o cu era uma imensa deusa,

    Nut, que cobria toda a Terra.

    Primeiramente, surgem da Terra os acidentes geogrficos, que so partes

    dela prpria; por isso, ela no precisa ser fecundada para ter esses filhos.

    Posteriormente, a Terra se une ao Cu, e tem diversos filhos e filhas.

    Esses filhos de Gaia e Oranos so os chamados Tits e Titnidas.

    O primeiro desses filhos Okeans. Em contraste com o mar

    Mediterrneo, que uma comunicao e espao intermedirio, o Oceano

    representado como o rio que circunda todo o mundo conhecido. Era

  • 24

    imaginado como uma serpente que envolvia todas as terras. Ele era

    considerado o pai de todos os rios. O Oceano representa tambm o ponto onde

    o Cu e a Terra se encontram, na viso de mundo da poca. Por isso, natural

    que fosse descrito como o primeiro filho do Cu e da Terra.

  • 25

    2.3 KRNOS O DOMNIO DO TEMPO NO UNIVERSO

    A Teogonia de Hesodo descreve que o Cu no permitia que os filhos da

    Terra sassem de dentro dela. Revoltada contra o Cu, a Terra pediu a seu

    filho caula, Krnos, que terminasse com essa situao de sofrimento. Ela lhe

    d uma foice e o esconde. Quando, ao cair da noite, o Cu estrelado surge e se

    deita sobre a Terra, Krnos sai de seu esconderijo e, com a foice, corta os

    rgos genitais de seu pai e os lana para longe. A partir de ento, termina o

    domnio do Cu e comea o de Krnos.

    Representao de Kronos: Um velho com asas

    segurando uma foice.

    Krnos representa o tempo (da

    vem a palavra cronmetro: medidor de tempo). Krnos uma

    fora que produz todas as coisas e

    que, ao mesmo tempo, destri e

    devora tudo o que gerou. Por isso,

    no mito, um pai que devora os

    prprios filhos.

    Na mitologia romana, que se

    baseou na mitologia grega, Krnos

    recebe o nome de Saturno. Ele

    representado como um velho, com

    uma foice. Esse instrumento que

    representa ao mesmo tempo o

    instrumento utilizado para mutilar o

    Cu e o poder destruidor do tempo.

    A imagem desse velho com a foice,

    at os tempos atuais, tambm

    utilizada para representar o tempo

    ou o ano velho.

    Aps ser destronado por seu filho, Oranos disse a Krnos que ele

    prprio seria derrubado por um de seus filhos. Krnos, unindo-se a sua irm

    Ria, teve seis filhos, mas logo que eles nasciam ele os devorava, para que

    nenhum pudesse destron-lo. Os seis filhos foram Hstia, Hera, Demter

    (femininas) e Hades, Posdon e Zeus (masculinos). Todos eram engolidos,

    mas Ria ocultou o ltimo filho, Zeus, entregando a Krnos apenas uma pedra

    envolta em panos, que ele engoliu pensando ser seu filho.

  • 26

    Depois que cresce, Zeus decide se vingar de Cronos. Atravs de um artifcio,

    faz com que Krnos vomite todos os filhos que havia devorado. Com a ajuda

    de seus irmos e de outros deuses, Zeus luta contra Krnos, que tem a ajuda

    dos seus irmos, os Tits. Depois de venc-los, Zeus os prende abaixo da

    Terra, no Trtaro. A partir de ento, Zeus passa a ser o soberano dos deuses

    gregos. Zeus considerado, na mitologia, como aquele que ordena o universo

    e que estabelece as suas leis gerais.

    Apesar de ter sido destronado, Krnos no foi esquecido. Durante seu

    reinado, segundo o mito, ele teria criado os primeiros homens. Essa primeira

    fase da humanidade teria sido a idade do ouro, na qual teria existido paz, igualdade, fartura, liberdade.

    Em homenagem a Krnos-Saturno, realizavam-se em Roma, no final de

    dezembro (poca do solstcio de inverno), as Saturnais. Essas festas, que duravam de um at cinco dias, eram uma volta simblica idade do ouro.

    Durante todo o ano, o pedestal da esttua de Saturno ficava recoberto com

    uma faixa de l. No dia do incio da festa, essa faixa era retirada. Todo

    trabalho era interrompido, e se fazia um grande banquete. A partir de ento,

    durante os dias da festa, todas as regras e leis eram abolidas. Elegia-se um

    rei das saturnais, os escravos eram temporariamente libertados, e reinava um clima de alegria, liberdade e orgia. Os escravos eram servidos pelos seus

    senhores e podiam insult-los impunemente. Ao final da festa, o rei das

    saturnais era morto em homenagem a Saturno, e a sociedade voltava

    normalidade.

    O Carnaval com seu Rei Momo surgiu de modo anlogo.

    2.4 AS QUATRO ERAS DE HUMANIDADE

    A idia de uma idade de ouro e de uma decadncia da humanidade est presente em muitas culturas. Ela uma das formas da idia bsica de que o

    incio do universo o tempo mais perfeito e, quanto mais nos afastamos dele,

    mais imperfeito fica o mundo. Da a necessidade constante de voltar ao

    princpio de tudo, pelos rituais.

    Na mitologia grega existe a tradio de quatro idades ou eras da humanidade: a idade do ouro a primeira e mais perfeita de todas seguida pela da prata, do bronze e, por fim, do ferro (que seria a atual, a pior de todas).

    s vezes se inseria entre a idade do bronze e a do ferro uma idade dos heris.

  • 27

    Como j foi dito, na mitologia grega, a idade do ouro teria comeado com a

    criao dos primeiros homens pelos deuses, no reinado de Krnos. Essa

    primeira raa de homens no precisava trabalhar, no havia velhice ou morte;

    havia apenas uma espcie de sono profundo, ao final da vida. Havia total

    justia, nessa idade. Aps sua morte, os homens da idade de ouro se transformaram em intermedirios entre os deuses celestes e os demais

    homens.

    A segunda idade, da prata, inferior primeira. Mas ainda no existem

    doenas, nem necessrio trabalhar. Os homens criados pelos deuses ainda

    respeitam a justia, mas no respeitam os deuses, e so por isso destrudos por

    Zeus.

    Os homens da idade de bronze so criados por Zeus a partir da madeira.

    Eles so dominados pela violncia, pelo desejo de lutar, e morrem pelas

    prprias guerras que travam.

    Por fim, na idade do ferro, surgem as doenas, a velhice, a morte, a

    ignorncia. preciso trabalhar, a terra j no proporciona alimentos sozinha,

    sendo preciso ar-la e seme-la. A idade do ferro passaria, sendo Hesodo, por

    duas fases. Numa delas, h leis naturais e morais, os filhos so semelhantes

    aos seus pais, e os homens nascem jovens. Na outra fase, os homens nascem

    velhos, no h mais semelhana entre pais e filhos, no existem mais leis,

    somente a violncia e a fora.

    Como vivemos na idade do ferro, a busca de uma sociedade melhor

    vista como o retorno origem, idade do ouro. Da a necessidade das

    Saturnais, todos os anos.

    No se sabe muito sobre os rituais religiosos gregos antigos; mas

    certamente eles tambm estavam associados aos mitos.

    2.5 O MITO DE CRIAO NA NDIA: CDIGO DE MANU

    A Teogonia de Hesodo , como vimos, uma mitologia altamente

    sofisticada e intelectualizada. Ela ter, depois, uma grande influncia sobre os

    filsofos gregos. De forma semelhante, surgiram tambem na ndia

    (aparentemente, sem influncia grega) mitos sobre a origem do universo que

    j apresentavam muitos elementos filosficos. Um deles apresentado em um

    texto anterior era crist, chamado Cdigo de Manu. Esse texto apresenta a seguinte descrio:

  • 28

    Capa de edio recente e

    traduzida para o ingls do

    Cdigo de Manu.

    Este mundo era trevas, imperceptvel, sem

    distines, impossvel de descobrir,

    incognoscvel, como se estivesse totalmente

    mergulhado no sono.

    Ento este grande senhor auto-existente

    indiscernvel, manifestou-se, removendo a

    obscuridade; indiviso, ele tornou discernvel

    este mundo com as cinco grandes substncias e

    outros elementos.

    Ele, que s pode ser apreendido pelo rgo

    supra-sensvel, sutil, indiviso, eterno, que a

    essncia de tudo, o incompreensvel, ele

    brilhou por si prprio.

    Aqui, no incio da descrio do Cdigo de

    Manu, vemos que desde o incio existe um deus

    supremo e abstrato, e algo que denominado

    de trevas. Esse deus, usualmente denominado Brahman (uma palavra neutra, isto , nem

    masculina nem feminina) est alm dos

    sentidos e do prprio pensamento. Inicialmente,

    ele uma unidade, mas vai se dividir e

    fragmentar, como os primeiros deuses gregos:

    Desejando produzir diferentes criaturas de

    seu prprio corpo, por sua vontade criou

    inicialmente as guas e nelas depositou sua

    semente.

    Esta tornou-se um ovo dourado, brilhante

    como o astro de mil raios, no qual ele prprio

    nasceu como Brahm, antecessor dos

    mundos.

    ...

    Esse senhor, tendo habitado esse ovo por um

    ano, dividiu-o em duas partes pelo seu mero

    conhecimento.

    Com essas duas conchas ele formou o cu e a

    terra, e no meio o firmamento, as oito regies,

    e a eterna morada das guas.

    Brahm, a forma ativa e

    masculina de Brahman.

    Brahm, o deus criador, uma forma ativa e masculina de Brahman, o deus

    supremo.

  • 29

    Tambm entre os gregos houve mitos que descreviam a Terra e o Cu como

    oriundos da ruptura de um ovo. Em um deles, o Tempo (Chronos) gera

    Phanes, um deus da luz, o qual produz a Noite; e a Noite produz o ovo de

    onde saem a Terra e o Cu. Em outra verso, o Tempo produz o Caos e o ter;

    esses se unem e produzem um ovo, do qual brotam a Terra, o Cu e Phanes.

    No mito indiano, o deus primordial produz o ovo e ele prprio nasce do ovo,

    sob uma outra forma.

    O mito apresentado pelo Cdigo de Manu prossegue, indicando que

    Brahm, o criador, produz logo em seguida a mente, o ego e as substncias

    fundamentais. Aps a criao da matria e do esprito, ele se pe a formar as

    diferentes criaturas e a estabelecer as leis naturais. Como nos mitos babilnico

    e judaico, ele d nomes s coisas.

    De acordo com as palavras dos Vedas, ele (Brahm) assinalou desde o incio

    os nomes e as atividades prprias a cada criatura, e as leis prprias a cada

    uma.

    As palavras so, na tradio indiana, a essncia das prprias coisas. Por

    isso, o Cdigo de Manu afirma que os hinos sagrados (os Vedas) deram o

    nome de cada coisa; e esses hinos, por sua vez, foram tirados do Fogo, do

    Vento e do Sol, ou seja, das foras da natureza.

    2.6 OS CICLOS DO UNIVERSO NO PENSAMENTO INDIANO

    No Cdigo de Manu aparece um aspecto original e interessante: o

    universo no criado apenas uma vez. Ele cclico, sendo repetidamente

    criado e destrudo. O narrador do mito diz que Brahman passa por etapas de

    repouso (ou sono) e outras etapas em que est desperto.

    Quando este deus desperta, ento o mundo se coloca em movimento. Quando

    adormece pacificamente, ento tudo se dissolve.

    Em seu tranquilo sono, os seres corpreos feitos para a ao deixam de agir,

    e o esprito deles cai nas trevas.

    Quando todos juntos se dissolvem nesta grande Alma, ento ela, a alma de

    todos os seres, dorme feliz, em paz.

  • 30

    O Cdigo de Manu especifica, em seguida, a durao dessas fases de

    existncia e destruio do universo. Para isso, faz primeiro a introduo de

    diversas unidades de tempo. Cada ano humano considerado como apenas um

    dia, para os deuses. A vida desses seres sobrenaturais regida por ciclos

    muito mais longos.

    Como cada dia dos deuses um ano humano e corresponde a cerca de

    365 dias, cada ano dos deuses corresponde a 365 anos humanos. As fases do

    universo seriam regidas por eras de enorme durao. O Cdigo de Manu fala

    em quatro idades, com as seguintes duraes:

    - idade Krita: 400+4.000+400 anos dos deuses

    - idade Trita: 300+3.000+300 anos dos deuses

    - idade Dvapara: 200+2.000+200 anos dos deuses

    - idade Kali: 100+1.000+100 anos dos deuses

    A idade Krita teria uma durao total de 4.800 anos dos deuses, ou 4.800

    x 365 anos humanos (1.752.000 anos). Somando-se as duraes de todas as

    idades, obtm-se o valor de 12.000 anos dos deuses:

    Este conjunto das quatro idades, cujo total doze mil (anos dos deuses),

    chamado idade dos devas.

    Saibam que um total de mil idades dos devas constitui um dia de Brahman, e

    que a noite tem a mesma durao.

    Os que sabem que o dia sagrado de Brahman termina com mil idades dos

    devas, e que a noite tem a mesma durao, conhecem realmente o dia e a

    noite.

    Ou seja, uma idade dos devas corresponde a 12.000 anos dos deuses, ou

    4.380.000 anos humanos. O dia de Brahman teria uma durao mil vezes

    maior, ou seja, 4 bilhes e 380 milhes de anos terrestres.

    O dia de Brahman o perodo durante o qual o deus absoluto est desperto, ativo, ou seja, o perodo durante o qual existem as coisas do

    universo. A noite de Brahman o perodo de inatividade, de trevas.

  • 31

    Nenhuma outra tradio da Antigidade conseguiu imaginar duraes de

    tempo to longas quanto as do Cdigo de Manu. A tradio judaica, por

    exemplo, admitiu que o universo havia sido criado por Deus h apenas alguns

    milhares de anos. Somente no sculo XX a cincia ocidental comeou a

    avaliar a durao do universo em bilhes de anos.

    O Cdigo de Manu prossegue descrevendo de forma bastante abstrata e

    filosfica a produo dos cinco elementos bsicos do universo: ter, fogo, ar,

    gua e terra. Eles so precedidos, no entanto, pelo pensamento. A descrio

    desses cinco elementos bsicos e o modo como eles surgem um a partir do

    outro constituem um aspecto bastante avanado do pensamento indiano

    antigo.

    Ao fim desse dia e dessa noite, quem dormia (Brahman)desperta;

    despertando, ele cria o pensamento (manas), que existe e no existe.

    Movida pelo desejo de criar, a mente se modifica gerando o ter; ele dotado

    da qualidade da vibrao.

    Do ter, modificado por sua vez, nasce o vento puro e poderoso, que carrega

    todos os aromas; ele dotado de tangibilidade.

    Do vento, transformado, procede a luz brilhante, que ilumina e dissipa as

    trevas; ela tem a qualidade da cor.

    Da luz, modificada, nasce a gua, que tem a qualidade do sabor; da gua

    nasce a terra, que tem por qualidade o odor. Eis o princpio da criao.

    A idade dos devas, antes descrita, com seus doze mil anos, multiplicada por

    setenta e um, forma o perodo de um Manu.

    Inumerveis so os perodos dos Manus, e a criao e a dissoluo do

    mundo. O Ser supremo os repete sempre, por brincadeira.

    O universo, como um todo, repete-se portanto indefinidamente. Mas, em

    cada uma de suas fases de existncia, em cada dia de Brahman, ocorrem

    muitos ciclos menores. Em cada um desses ciclos, a humanidade criada e

    passa por uma decadncia em quatro fases, que se assemelham s quatro

    idades da mitologia grega:

    Na Krita-yuga, a justia e a verdade so completas, com seus quatro ps; e

    nenhum proveito obtido pelos homens injustamente.

    Nas outras (idades), pelos proveitos ilcitos, a justia perde sucessivamente

    seus ps; e pelo roubo, pela mentira e pela falsidade, o mrito diminui a cada

    vez em um quarto.

  • 32

    Na idade Krita, os homens, sem doenas, sempre obtm o que desejam e

    vivem 400 anos; mas na idade Trita e nas seguintes [Dvapara, Kali], sua

    existncia diminui em um quarto.

    A durao da vida dos mortais, declarada no Veda, os poderes e as

    recompensas pelas aes rituais, dependem da idade em que este mundo se

    encontra.

    Existem leis corretas para a idade Krita, outras na Trita ena Dvapara, e

    outras ainda na idade Kali, conforme se deterioram essas idades.

    Na Krita-yuga, o essencial a ao correta; na Trita, o conhecimento; na

    Dvapara, o sacrifcio; na Kali, somente a bondade tem valor.

    Assim como na mitologia grega, tambm o Cdigo de Manu ir indicar

    que vivemos atualmente na quarta era da humanidade a mais decadente, a Kali-yuga ou idade negra.

    A idia de uma decadncia da humanidade, como j foi indicado,

    bastante comum, quase universal. No entanto, a idia de enormes ciclos do

    universo uma concepo original indiana. De onde ela saiu?

    O Cdigo de Manu no d nenhuma indicao, mas o prprio nome

    utilizado para as eras (Yuga) permite descobrir a origem dessas idias. A palavra yuga um termo tcnico utilizado pela antiga astronomia indiana. Ela significa conjuno de astros. Cada planeta, visto da Terra, se move pelo cu estrelado com uma velocidade diferente. Quando dois planetas so

    vistos em posies prximas, no cu, chama-se isso de conjuno. Podem tambm ocorrer conjunes de trs ou mais planetas ao mesmo tempo. claro

    que elas so muito raras e demoram muito para acontecer.

    A partir desses estudos, os astrnomos indianos conceberam que todos os

    planetas foram criados juntos, no mesmo lugar; e quando se reunirem

    novamente, todos ao mesmo tempo, o universo voltar ao seu princpio.

    Portanto, a durao do universo seria o tempo necessrio para que ocorresse

    uma grande conjuno (mah-yuga). A partir dos dados existentes sobre os movimentos dos planetas, foram feitos clculos que indicaram enormes

    duraes, semelhantes s indicadas no Cdigo de Manu. Essa parece ter sido a

    justificativa da durao do dia de Brahman.

  • 33

    2.7 A INTERPRETAO CRTICA DOS MITOS

    Como se pode ver, esses mitos esto em um nvel de elaborao racional

    muito avanado. Continuam a ser mitos, pois descrevem aes de seres

    sobrenaturais que produzem o universo. Mas no podem ser considerados

    meros mitos. Por isso, estamos lhes dando o nome de mitos filosficos.

    Xenfanes de Clofon,

    filsofo que criticou os mitos.

    Em princpio, o pensamento mtico poderia

    ter se sofisticado sempre, indefinidamente, sem

    deixar de ser o que era: um pensamento religioso.

    No entanto, em torno do quinto sculo antes da

    era crist, ocorreu tanto na Grcia quanto na ndia

    uma crtica religio tradicional e uma tendncia

    ao surgimento de um pensamento totalmente

    independente da religio: a filosofia.

    Na Grcia, um importante representante da

    corrente intelectual que criticou os mitos foi

    Xenfanes de Clofon (576 a 480 a.C.). Ele

    aponta que os deuses da mitologia grega tinham

    muitos defeitos morais: eram injustos, vingativos,

    adlteros, ciumentos, etc.; alm disso, eram

    semelhantes aos homens, j que tinham corpo,

    voz, roupas e nada disso era compatvel com a idia de um deus. Xenfanes ridiculariza esse tipo

    de concepo:

    Os mortais consideram que os deuses tiveram nascimento, e que possuem

    roupas e vozes e corpos como os seus.

    Os Etopes [africanos] dizem que seus deuses possuem narizes achatados e

    que so negros; e os Trcios que os seus possuem olhos azuis e cabelo

    vermelho.

    Se os bois, cavalos e lees tivessem mos e pudessem pintar e produzir as

    obras que os homens realizam, os cavalos pintariam figuras de deuses

    semelhantes a cavalos, os bois semelhantes a bois, e lhes atribuiriam os

    corpos que eles prprios tm.

    Ou seja: Xenfanes considera a mitologia como uma criao da

    imaginao humana, que projeta sobre os deuses aquilo que conhece sobre os

    prprios homens. Pelo contrrio, ele considera que existe uma concepo

    verdadeira muito mais elevada: H um deus acima de todos os deuses e homens; nem sua forma nem seu pensamento se assemelham aos dos

    mortais.

  • 34

    A crtica mitologia mais popular no leva, necessariamente, negao da

    religio. Mas certamente levou ao seu enfraquecimento, entre as pessoas mais

    cultas.

    Como veremos mais adiante, alguns filsofos gregos, como Demcrito e

    Epicuro, negaram a prpria existncia de deuses sobrenaturais.

    Desenvolveram uma teoria atomista, na qual tudo o que existe formado por

    tomos. Nessa sua viso, no existem espritos imateriais e poderiam existir

    certos deuses, mas formados de tomos e portanto materiais, que depois se dissolveriam como qualquer outra coisa. Os mitos, por isso, no tinham valor

    e precisavam ser substitudos por um conhecimento racional do mundo algo como nossa idia de cincia.

    medida que se enfraqueceu a crena nos mitos, surgiram entre os

    filsofos gregos vrias interpretaes para eles. Alguns pensadores, como

    Crisipo, interpretaram os mitos como alegorias, como representaes

    simblicas de outra coisa: fenmenos fsicos ou celestes, ou mesmo

    ensinamentos ticos, representados sob a forma de mitos. Outros, como

    Evmero, supuseram que os mitos eram histrias de antigos reis e heris, que

    a tradio havia divinizado, transformando fatos antigos, reais, em histrias

    exageradas e fabulosas, de seres sobrenaturais.

    Essa queda da crena dos mitos levou a dois desenvolvimentos

    importantes, na filosofia grega. Por um lado, ao desenvolvimento de

    interpretaes simblicas dos mitos e tentativa de extrair deles ensinamentos

    filosficos gerais. Por outro lado, ao desenvolvimento de concepes

    filosficas que substitussem os mitos e que permitissem compreender o

    universo e sua origem, sem a interveno de deuses.

  • 35

    CAPTULO 3 - O PENSAMENTO FILOSFICO E A

    ORIGEM DO UNIVERSO

    3.1 O PROBLEMA DO

    CONHECIMENTO DO INCIO DE TUDO

    A filosofia surge quando a tradio

    religiosa e mitolgica colocada em dvida.

    Um dos mais belos textos da antiga tradio

    indiana, o Nasadasiyasukta do Rig-veda (composto cerca de 10 sculos antes da era

    crist) uma especulao crtica sobre o

    incio do universo. Inicialmente, de forma

    bastante obscura, ele fala sobre o que

    poderia ter existido antes de todas as outras

    coisas:

    Pginas do "Rig Veda".

    Ento ho havia nem o ser nem o no-ser;

    no havia o domnio do ar, nem o cu alm dele.

    O que estava recoberto? onde? em que receptculo?

    Existia um abismo de guas profundas?

    Ento no havia morte, nem havia imortalidade;

    nem havia distino entre dia e noite.

    Aquele Um respirava sem vento, por si prprio.

    Nada diferente dele; o qu, alm dele?

    Havia trevas ocultas em trevas,

    tudo isso era um ondular indistinto.

    Aquilo existia envolto no vazio;

    pelo poder de seu ardor, aquilo cresceu e se manifestou.

    Nele surgiu primeiramente o desejo,

    a semente primordial da mente.

    A unio do ser ao no-ser foi descoberta pelos sbios

    que refletiram sobre o que contemplaram em seus coraes.

  • 36

    O raio se estendeu atravs deles.

    O que estava embaixo, e o que estava acima?

    Havia inseminadores, havia poderes,

    autonomia embaixo e energia alm.

    Depois, no final do hino, o seu autor apresenta a questo bsica: como se

    pode conhecer o que havia no incio de tudo? Ele coloca em dvida que os

    prprios deuses, ou mesmo o deus supremo, possam saber isso:

    Quem realmente sabe, quem poderia dizer

    de onde brotou, de onde provm esta criao?

    Os deuses so posteriores sua produo.

    Quem sabe ento de onde ela surgiu?

    De onde brotou esta criao,

    se ela foi feita ou no o foi,

    ele que a observa do mais alto dos cus,

    ele realmente o sabe, ou talvez nem ele o saiba.

    Tentar interpretar todo esse hino exigiria um enorme nmero de pginas.

    Ele busca compreender o incio absoluto de tudo. Aquilo de onde tudo vem,

    no era nada do que conhecemos, e s pode, por isso, ser descrito atravs de

    smbolos ou de paradoxos: era uma unidade, que respirava sem que existisse o

    vento (ou ar); no havia o ser, nem o no-ser; no havia morte, nem

    imortalidade. No existiam os opostos que podemos conhecer pelo nosso

    pensamento. Como, ento, conhecer esse princpio? Os deuses no

    presenciaram esse incio, pois surgiram depois dele; por isso, nem eles podem

    nos ensinar isso. No nos adianta procurar textos sagrados, revelaes

    religiosas.

    No entanto, h algo de positivo nesse hino: A unio do ser ao no-ser foi descoberta pelos sbios que refletiram sobre o que contemplaram em seus

    coraes. Ou seja: existe um processo de conhecimento que pode chegar quilo que est, aparentemente, fora do alcance dos prprios deuses. Os sbios

    descobriram essa unio do ser ao no-ser voltando-se para dentro de si prprios, isto , pela meditao.

  • 37

    Tanto na Grcia quanto na ndia, surgem concepes filosficas diferentes da

    tradio mitolgica; mas os caminhos seguidos so muito diferentes. A

    filosofia grega se baseia principalmente na razo, no pensamento, em

    raciocnios lgicos, cujo modelo fundamental a matemtica. No pensamento

    indiano, h um processo de conhecimento no racional, direto, uma viso da verdade, pela meditao.

    3.2 OS PR-SOCRTICOS E A BUSCA DO PRINCPIO UNIVERSAL,

    NA GRCIA

    Entre os sculos IX e VI antes da era crist, o mundo grego passou por

    uma profunda transformao. Ocorreu uma ampla mudana poltica, social,

    religiosa e cultural, envolvendo mltiplos fatores que no so ainda totalmente

    compreendidos. Por um lado, o contato comercial e cultural muito intenso com outros povos, nesse perodo, trouxe ao mundo grego uma variedade de

    idias que passaram a ser confrontadas com o pensamento tradicional. Isso

    envolveu a entrada de novas concepes religiosas, polticas, filosficas,

    cientficas (por exemplo, na matemtica e astronomia). O surgimento de uma

    classe econmica poderosa, atravs do comrcio, enfraqueceu a antiga

    aristocracia. Surgiram novos valores, e uma sociedade mais aberta, pessoas

    mais confiantes em seu prprio poder individual, com um enfraquecimento de

    toda a tradio cultural e do respeito pelos mitos, pela religio, pela autoridade

    antiga.

    Scrates, um dos

    mais importantes

    filsofos da

    histria.

    Em meio a todo esse amplo processo cultural, que

    envolveu uma crtica racional dos mitos (j apontada no

    captulo 2), houve tambm o aparecimento de algo novo: o

    despertar da filosofia como algo novo, independente, que

    procurava fundamentar-se apenas no pensamento, na razo.

    Costuma-se dividir a filosofia grega em dois perodos:

    antes e depois de Scrates. Os filsofos anteriores a Scrates

    (os chamados pr-socrticos) escreveram muitas obras que, no entanto, no foram conservadas. Tudo o que se sabe

    sobre eles indireto, baseado em pequenos trechos de seus

    escritos que foram citados por outros autores posteriores (os

    fragmentos dos pr-socrticos) e em descries feitas por autores posteriores a Scrates (os testemunhos, ou doxografia). Diante do pequeno nmero de informaes sobre esses pensadores, qualquer tentativa de descrever seu

    pensamento ser apenas uma tentativa, uma reconstruo, que pode ser at razovel, mas nunca ser definitiva ou

    segura. Fala-se e escreve-se muito sobre Pitgoras,

    Herclito, Tales e outros dos pr-socrticos; mas pouco se

    sabe, realmente, sobre o que eles ensinaram.

  • 38

    Apesar disso, no podemos deixar de fazer um breve estudo sobre o

    pensamento cosmolgico dos pr-socrticos.

    Tales, Anaximandro e Anaxmenes so trs dos primeiros filsofos pr-

    socrticos. Todos eles so da mesma cidade (Mileto) e do mesmo perodo

    (sculo VI antes da era crist). Eles possuem um ponto em comum: ensinavam

    que todas as coisas se originam em uma nica matria primordial, que seria o

    princpio (em grego, arqu ). A idia bsica pode ser esclarecida por meio de uma comparao. Suponhamos que s existisse argila no mundo, e que a

    partir dessa argila fossem continuamente modelados diferentes tipos de

    objetos, que depois fossem desmanchados, para depois fazer outros objetos

    com a mesma argila. Essa argila seria o arqu o princpio de tudo e tambm o fim de tudo. Dois sculos depois, essa idia foi assim descrita por

    Aristteles:

    A maioria dos primeiros filsofos pensava que os princpios de todas as

    coisas eram certos princpios materiais. Eles declararam que o elemento e

    primeiro princpio das coisas que existem era uma substncia que continuava

    sempre a existir mas mudava suas qualidades, sendo a fonte original de todas

    as coisas que existem, a partir da qual uma coisa surge e na qual ela

    finalmente se decompe. Por esta razo, eles consideravam que no existe um

    surgimento ou desaparecimento absoluto, tomando como base que essa

    natureza sempre preservada. Pois deveria existir alguma substncia

    natural ou uma, ou mais de uma a partir da qual as outras coisas surgem, mas que se conserva.

    Trs dos primeiros filsofos pr-socrticos, na sequncia: Tales, Anaximandro e

    Anaxmenes.

  • 39

    Aqui se encontram os germes das idias que utilizamos at hoje, de elementos

    da matria e de conservao da matria. Essas idias no surgiram da

    observao e do experimento, e sim a partir do pensamento e de analogias.

    Os diferentes filsofos pr-socrticos no concordaram entre si a respeito

    do nmero e do tipo de elemento ou princpio de todas as coisas materiais.

    Tales afirmava que esse princpio era a gua. De onde ele tirou essa idia?

    No sabemos. Segundo Aristteles, que a principal fonte de que dispomos

    para falar sobre Tales, ele se baseou em duas coisas: primeiro, que todos os

    seres vivos precisam de umidade para viver; segundo, que a origem dos seres

    vivos a umidade, pois os animais nascem do smen, que um lquido, e as

    sementes no germinam sem umidade. Assim, a gua seria aquilo de onde se

    origina a vida e que necessria para manter todos os seres vivos.

    3.3 O PENSAMENTO DE ANAXIMANDRO: A ORIGEM A PARTIR

    DO APEIRON

    Anaximandro foi outro filsofo pr-socrtico, pouco posterior a Tales e

    que pode ter sido seu discpulo. H mais informaes sobre ele do que sobre

    Tales, mas tambm difcil compreender seu pensamento. De acordo com o

    que se diz sobre ele, Anaximandro ensinava que o princpio e elemento de

    tudo era o indefinido (peiron, em grego), que no era a gua, nem o ar, ou qualquer coisa de conhecido e palpvel. Todas as coisas viriam do peiron

    e retornariam a ele, ao serem destrudas.

    Mas o que significa esse peiron? H muita discusso sobre isso. A palavra pode ser traduzida como infinito ou como indefinido ou como ilimitado. um termo abstrato, talvez inventado pelo prprio Anaximandro. possvel que ele quisesse indicar, com essa palavra, um tipo de matria que

    no corresponde a nada de definido, mas que pode assumir a aparncia de

    todos os tipos de substncias que conhecemos. Talvez essa idia fosse um

    passo adiante, um novo grau de abstrao, a partir da idia de Tales. Ao invs

    de admitir que uma substncia conhecida (a gua) pudesse se transformar em

    todas as outras, Anaximandro parece ter imaginado uma substncia

    desconhecida, talvez at impossvel de ser observada, que pudesse servir de

    origem para todas as outras. A partir desse perion, que no quente nem frio,

    surgiriam o calor e o frio; a partir do peiron, que no duro nem mole,

    surgiriam as substncias duras e moles.

    A justificativa pode ter sido a seguinte: para cada tipo de coisa que

    existe, pode-se pensar em outra coisa diametralmente oposta, com as

    propriedades contrrias. Por exemplo: o fogo totalmente oposto gua e

    difcil imaginar como um deles pudesse sair do outro. Assim, a matria

    primordial se que ela existe e se que ela de um nico tipo no deve

  • 40

    ser nem gua, nem fogo, nem qualquer coisa definida que possua

    caractersticas prprias, mas algo indefinido, de onde podem sair todos os

    opostos.

    Essa substncia primordial, o peiron, seria indestrutvel, ou imortal: ela no deixa de existir quando a partir dele se formam as diferentes substncias e

    coisas do universo, mas continuaria a existir dentro delas, tendo apenas

    adquirido uma nova aparncia. Essa idia elimina, portanto, a possibilidade de

    um incio absoluto de tudo: o peiron no tem incio, ele sempre existiu. Pelo

    contrrio, o universo provm do peiron, e pode no ser eterno. Talvez

    Anaximandro tivesse concebido a possibilidade de diversos mundos,

    formando-se a partir da destruio do anterior; mas no se sabe com certeza se

    ele de fato defendeu essa idia.

    O peiron seria infinito, preenchendo todo o espao. No existiria

    nenhum lugar vazio ou com outro tipo de substncia. O peiron existiria

    dentro de tudo o que conhecemos.

    Os filsofos ps-socrticos que descreveram o pensamento de

    Anaximandro lhe atribuem a idia de que os opostos provm da separao a

    partir do peiron. Isso no quer dizer que o peiron fosse uma mistura de

    opostos: ele uma substncia nica. Talvez uma boa comparao fosse a

    seguinte: suponhamos que exista uma grande extenso de areia, totalmente

    plana, sem altos nem baixos. Pode-se fazer um buraco nessa areia, mas, para

    isso, a areia tirada do buraco precisa ser colocada em algum lugar e vai

    produzir um monte, de volume equivalente ao do buraco. O buraco e o monte

    podem ser considerados como opostos, que no existiam antes, mas que

    passam a existir ao mesmo tempo, a partir de algo que no tinha nem buracos

    nem montes.

    a partir do peiron que se forma o mundo. Anaximandro parece ter sido

    o primeiro pensador grego a propor uma teoria racional pela qual o mundo se

    forma a partir de uma matria que existe por si mesma, e na qual no existe a

    interveno de deuses ou outros seres sobrenaturais.

    Anaximandro apresenta uma

    certa viso do universo que ainda

    bastante primitiva. A Terra, para

    ele, ainda no esfrica: um

    cilindro, com dimetro trs vezes

    maior do que a altura. O mundo

    habitado estaria em uma das

    superfcies planas do cilindro. Essa

    viso no muito diferente da de

  • 41

    um disco, que j foi indicada, e que

    existia j na poca de Homero. No

    entanto, surge um elemento

    interessante, em Anaximandro. Ele

    no vai propor que existe algo

    debaixo da Terra que a sustenta,

    como os pensadores anteriores. Ele

    vai dizer que a Terra est no centro

    de tudo, e que por isso fica em

    equilbrio, no podendo se mover

    nem para um lado, nem para o

    outro. O cu deixa, portanto, de

    ser

    Para Anaximandro a Terra era um cilindro com

    dimetro trs vezes maior que a altura.

    imaginado como uma simples cpula acima da superfcie da Terra, e passa a

    ser pensado como algo que a cerca por todos os lados: uma esfera. Esse um

    grande avano, para a poca.

    Em cada momento, o conhecimento sobre o universo vai se modificando, e da

    mesma forma mudam as explicaes dadas sobre a sua origem. Algumas

    mudanas de viso sobre o universo so radicais e profundas. Anaximandro,

    ao contrrio de outros pensadores anteriores, coloca claramente a viso de

    algo infinito e ilimitado, enquanto que a viso mais imediata do mundo a de

    que ele finito, e que termina logo ali, no cu. Mas o que existe depois do cu? E depois? E depois? ... Pensar sobre o que est alm de tudo o que se

    conhece um passo de enorme importncia, tpico da Filosofia.

    Anaximandro imaginou que, a partir do peiron eterno, separaram-se as

    origens do quente e do frio. A parte fria (que talvez fosse um tipo de bruma ou

    umidade) se concentrou no centro de tudo, formando a Terra, envolvida por

    ar; e, em torno do ar, teria se formado uma espcie de casca, cercada por uma

    esfera de fogo. Depois, ela se rompe, quebrando-se em certos crculos, que

    formam o Sol, a Lua e as estrelas. Segundo Anaximandro, inicialmente, toda a

    Terra era uma massa mida; mas o calor do Sol secou uma parte, que se

    tornou a terra slida; a umidade que sobrou se tornou o mar; e os vapores que

    saram da Terra pelo calor do Sol produziram ventos, que colocaram os astros

    em movimento.

    Aqui, pode-se ver que Anaximandro tenta justificar vrios aspectos do

    universo que conhecemos a partir de explicaes que se baseiam em

    fenmenos conhecidos: o calor do Sol pode realmente secar uma regio

    alagada, pode produzir vapores, etc. claro que no acreditamos, hoje em dia,

    que os ventos possam movimentar os astros celestes; mas, para a poca, essa

    no era uma idia absurda, e preciso avaliar cada concepo dentro de seu

    prprio tempo.

  • 42

    Isso tudo o que se pode dizer sobre o pensamento cosmognico de

    Anaximandro, a partir das poucas informaes que restaram de sua poca. Por

    um lado, seu pensamento pode ser considerado como muito primitivo,

    comparado com aquilo que qualquer criana atual sabe sobre o universo. Por

    outro lado, sob o ponto de vista de sua poca, trata-se de uma tentativa

    extremamente ousada e admirvel de explicar racionalmente aquilo que se

    conhecia sobre o mundo, deixando de lado toda a tradio mitolgica.

    3.4 ANAXMENES E A IMPORTNCIA DO AR

    Aps Anaximandro, outro filsofo importante foi Anaxmenes, da

    mesma cidade de Mileto. Para ele, o princpio material de todas as coisas era o

    ar. Ao se tornar mais rarefeito, ele se tornaria fogo; ao se tornar mais denso,

    produziria nuvens, depois gua, terra e rochas. O frio e o calor no seriam

    poderes independentes, mas associados ao estado do ar: o ar, ao se condensar,

    produziria o frio; e, ao se rarefazer, produziria calor. Todos os materiais e

    todas as coisas viriam, portanto, do ar. Esse ar, para Anaximandro, um

    elemento que est sempre se movendo, ou seja, um princpio dinmico. O ar

    no teria sido produzido por nenhum deus, mas todos os deuses teriam vindo

    do ar, isto , ele seria a origem at mesmo dos deuses.

    De onde Anaxmenes tirou essa idia? Novamente, no se sabe. Pode ser

    que a grande importncia que ele d ao ar venha da observao daquilo que

    chamamos mudanas de estado: o fogo parece ser apenas um ar muito quente; e, como o vapor d'gua transparente, as nuvens e a gua parecem se

    formar a partir do prprio ar.

    Por outro lado, ele parece tambm ter chamado a ateno para a

    importncia do ar nos seres vivos: o animal que impedido de respirar morre.

    O ar seria, assim, essencial para a vida. Ele parece ter identificado a alma com

    um tipo de ar interno. Essa uma idia que aparece, a nvel mitolgico, em

    muitas civilizaes. Por exemplo: Tupana d a

    vida ao primeiro homem, feito

    do barro, soprando sobre ele,

    exatamente como na Bblia. O

    alento ou respirao, em grego,

    se chama pneuma (da vem pneumonia, uma doena do pulmo, que o rgo da

    respirao). No pensamento

    indiano antigo, a fora vital

    chamada prna, que tambm o nome dado

    respirao.

    Para Anaxmenes, a Terra um disco achatado e

    fino, que flutua no ar, assim como o sol.

  • 43

    Para Anaxmenes, a Terra

    um disco achatado, muito

    fino, que flutua cercado pelo

    ar. Ela no cai apenas por ser

    muito fina e grande, por isso

    fica pairando, como uma folha

    no ar. Tambm os astros

    celestes Sol, Lua, etc. seriam discos finos, de fogo,

    que tambm flutuariam no ar.

    Por isso, seus movimentos

    seriam produzidos tambm

    pelo ar.

    Anaxmenes no parece ter produzido uma teoria sobre a origem do universo.

    Mas representa tambm a tradio que tentava encontrar um princpio material

    de todas as coisas, e explicar os fenmenos do universo sem utilizar

    concepes religiosas.

    impossvel apresentar aqui todas as concepes importantes que

    surgiram entre os gregos. necessrio, no entanto, mencionar ainda

    Empdocles, da cidade de Acragas, e os atomistas.

    3.5 OS QUATRO ELEMENTOS DE EMPDOCLES

  • 44

    Empdocles, filsofo atomista

    grego.

    Empdocles viveu no sculo V antes da

    era crist. Ele considerado o primeiro filsofo

    grego a apresentar a concepo dos quatro

    elementos materiais (terra, gua, ar e fogo).

    Esses quatro elementos so descritos como

    sendo as razes de todas as coisas. So associados a quatro divindades: Zeus (fogo),

    Hera (ar), Aidoneus ou Hades (terra) e Nestis

    (gua).

    O universo, para Empdocles, cclico:

    h momentos em que as razes brotam a partir de uma unidade, e constituem todas as

    coisas; e h outros momentos em que elas se

    renem, e formam uma unidade novamente,

    desaparecendo todas as coisas. Essa alternncia

    ocorreria devido ao domnio do dio ou do

    Amor. No existe um incio absoluto do

    universo, mas apenas diferentes estados que se

    alternam.

    Segundo Empdocles, os elementos ou

    razes de todas as coisas se unem em diferentes propores, e formam os animais, as

    plantas e todas as outras coisas. Ele d um

    interessante exemplo: os artesos, misturando

    diversos pigmentos em diferentes propores,

    so capazes de

    criar todas as cores e assim representar rvores, pessoas, pssaros, peixes e at

    deuses. Da mesma forma, a mistura das quatro razes poderia produzir todas as coisas conhecidas.

    Os elementos, em si, no so destrudos nem criados; apenas se unem e

    separam. Em um certo sentido, portanto, no existe nem nascimento nem

    morte: aquilo que realmente existe, existe sempre, mudando apenas suas

    combinaes e sua aparncia.

    Em cada ciclo do universo, haveria uma fase de destruio de todas as coisas.

    Empdocles descreve um tipo de turbilho ou redemoinho, no qual todas as

    coisas iriam se misturando e se unindo entre si, pela fora do Amor, at que se

    eliminassem todas as separaes. A partir da unio, por sua vez, surgiria a

    separao, quando o poder da Luta ou do dio fosse a mais forte. Inicialmente

    se separaria o ar, a partir da