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867 ISBN: 978-85-68242-99-5 EIXO TEMÁTICO: ( ) Ambiente Construído e Sustentabilidade ( ) Arquitetura da Paisagem ( ) Cidade, Paisagem e Ambiente ( ) Cidades Inteligentes e Sustentáveis ( ) Engenharia de Tráfego, Acessibilidade e Mobilidade Urbana ( ) Meio Ambiente e Saneamento (X) Patrimônio Histórico: Temporalidade e Intervenções ( ) Projetos, Intervenções e Requalificações na Cidade Contemporânea O Urbanismo Ambiental Hermenêutico como ferramenta de caracterização cronotópica: A reconstituição da fazenda Serra Negra em Botucatu Hermeneutic Environmental Urbanism as a cronopos characterization tool: Reconstitution of the Serra Negra farm in Botucatu El Urbanismo Ambiental Hermenéutico como herramienta de caracterización cronotópica: La reconstitución de la hacienda Serra Negra en Botucatu Beatriz Leite Antunes Mestranda em Arquitetura e Urbanismo, UNESP, Brasil [email protected] Rosio Fernández Baca Salcedo Professora Doutora, UNESP, Brasil. [email protected]

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ISBN: 978-85-68242-99-5

EIXO TEMÁTICO: ( ) Ambiente Construído e Sustentabilidade ( ) Arquitetura da Paisagem ( ) Cidade, Paisagem e Ambiente ( ) Cidades Inteligentes e Sustentáveis ( ) Engenharia de Tráfego, Acessibilidade e Mobilidade Urbana ( ) Meio Ambiente e Saneamento (X) Patrimônio Histórico: Temporalidade e Intervenções ( ) Projetos, Intervenções e Requalificações na Cidade Contemporânea

O Urbanismo Ambiental Hermenêutico como ferramenta de caracterização cronotópica: A reconstituição da fazenda Serra Negra em

Botucatu

Hermeneutic Environmental Urbanism as a cronopos characterization tool: Reconstitution of the Serra Negra farm in Botucatu

El Urbanismo Ambiental Hermenéutico como herramienta de caracterización cronotópica:

La reconstitución de la hacienda Serra Negra en Botucatu

Beatriz Leite Antunes Mestranda em Arquitetura e Urbanismo, UNESP, Brasil

[email protected]

Rosio Fernández Baca Salcedo

Professora Doutora, UNESP, Brasil. [email protected]

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RESUMO A fazenda Serra Negra foi um exemplar de grande produção cafeeira dado o prestígio de seu proprietário (Conde Serra Negra) e ao longo de sua vida útil sofreu influência de diversos agentes. O patrimônio edificado agroindustrial do estado de São Paulo, após o declínio da produção cafeeira, foram gradativamente sendo apagados do território paulista, mas permanecem vivos na memória dos agentes sociais que foram imprescindíveis para a consolidação dessa história. Neste contexto, o objetivo é identificar as dimensões físicas, sociais e simbólicas da gênese da Fazenda Serra Negra, nos anos de 1888 à 1914, bem como do contexto político, histórico, econômico e social no qual estava inserida a fazenda. O método estabelecido por Zárate (2014): Urbanismo Ambiental Hermenêutico pressupõe que as dimensões físicas, sociais e simbólicas, somadas à relação com o contexto (histórico, social e econômico) no qual o lugar está inserido, são determinantes para a construção do cronotopo. O resultado foi obtido por meio da pesquisa em fontes iconográficas, arquivísticas, e bibliográficas e refletem como os costumes da nova sociedade republicana, por meio do café vão definir o partido arquitetônico utilizado em Botucatu. PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio Agroindustrial. Gênese. Fazendas. Urbanismo Ambiental Hermenêutico

ABSTRACT

The Serra Negra farm was an example of great coffee production given the prestige of its owner (Count Serra Negra)

and throughout its useful life was influenced by several agents. The agroindustrial heritage of the state of São Paulo,

after the decline of coffee production, were gradually being erased from São Paulo territory, but remain alive in the

memory of the social agents that were indispensable for the consolidation of this history. In this context, the objective

is to identify the physical, social and symbolic dimensions of the genesis of Serra Negra Farm, at the years of 1888 to

1914, as well as the political, historical, economic and social context in which it was inserted. farm. The method

established by Zárate (2014): Hermeneutic Environmental Urbanism, which assumes that the physical, social and

symbolic dimensions, added to the relationship with the context (historical, social and economic) in which the place is

inserted, are crucial for the construction of the chronotope.The result was obtained through research in iconographic,

archival and bibliographic sources and reflect how the customs of the new republican society, through coffee will

define the architectural party used in Botucatu.

KEYWORDS: Agroindustrial Heritage. Genesis. Farms. Hermeneutic Environmental Urbanism

RESUMEN

La hacienda Serra Negra fue un ejemplo de gran producción de café dado el prestigio de su señor (Conde Serra Negra)

y durante toda su vida fue influenciada por varios agentes. El patrimonio construido agroindustrial del estado de São

Paulo, después de la disminución de la producción de café, se desaparecido gradualmente del territorio de São Paulo,

pero permanecen vivos en la memoria de los agentes sociales que fueron esenciales para la consolidación de esta

historia. En este contexto, el objetivo es identificar las dimensiones físicas, sociales y simbólicas de la génesis de la

hacienda Serra Negra, em los años de 1888 a 1914, así como el contexto político, histórico, económico y social en el

que se insertó. El método establecido por Zárate (2014): Urbanismo ambiental hermenéutico presupone que las

dimensiones físicas, sociales y simbólicas, sumadas a la relación con el contexto (histórico, social y económico) en el

que se inserta el lugar, son cruciales para la construcción del cronotopo. El resultado se obtuvo a través de la

investigación en fuentes iconográficas, de archivo y bibliográficas y reflejan cómo las costumbres de la nueva sociedad

republicana a través del café definirán la fiesta arquitectónica utilizada en Botucatu.

PALABRAS CLAVE: Patrimonio Agroindustrial. Génesis. Haciendas. Urbanismo Ambiental Hermeneutico

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1. INTRODUÇÃO

O processo de formação das cidades no interior de São Paulo esteve intimamente relacionado

com o campo. As atividades econômicas desenvolvidas, em sua maioria, eram agrícolas, até a

chegada do café. A economia cafeeira foi responsável por ampliar as fronteiras, reafirmar novos

valores, abrir as portas para a ferrovia e para a industrialização do estado, sendo ela responsável

pela urbanização dessas novas cidades. A produção arquitetônica do período reflete os avanços

da paisagem que abandona o estilo caipira/vernáculo e paulatinamente incorpora o caráter

industrial da produção, beneficiamento e comercialização do café.

A cafeicultura marca a trajetória de diversas regiões no Estado, sendo assim, este trabalho têm

ênfase para os Sertões de Botucatu, vide sua extensa abrangência territorial1 que ultrapassa os

impactos geográficos e torna-se um polo para o qual a historiografia de diversas cidades de São

Paulo convergem suas memórias.

Com a chegada do café, em 1870, as terras passam a ser exploradas definitivamente, o café

impulsionou a atividade urbana no território, chamando atenção de grandes produtores do

Estado, como a família Conceição – herdeiros do Barão de Serra Negra. Os irmãos, João Baptista

Rocha, Manoel Ernesto e Júlio, no início da década de 1880, dominaram quase completamente

a faixa de terras entre os rios Lavapés e Capivara, desde a cidade de Botucatu até sua confluência

(PIZA, 2015, p. 311). Com indícios da chegada da Ferrovia, Manoel Ernesto da Conceição

estabelece sua propriedade em 1888, chamando-a de Villa Vitória dada a sua proximidade com

a Estação Vitória. Devido ao prestígio de seu proprietário, a fazenda foi registrada pelo pintor

Italiano Antonio Ferrigno, que nos concede, embora pictórico, um cenário daquilo que pode ser

considerado o auge da produção cafeeira na fazenda.

As edificações mantiveram-se em uso até a queda da produção cafeeira, a partir de 1929, que

paulatinamente desmobilizaram a estrutura da propriedade. A fazenda Serra Negra, como hoje

é conhecida, reflete o abandono e esquecimento que esse patrimônio localizado no meio rural

sofreram com o tempo. O Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS, 2017),

atribui o abandono das paisagens rurais à alterações demográficas, culturais, estruturais e

ambientais. Em Botucatu, as alterações demográficas revelam-se com o êxodo rural e pressões

de desenvolvimento de empresas sucroalcooleiras; as culturais relacionadas ao estigma que o

saber-fazer tradicional possui em detrimento de práticas “modernas” somado ao apagamento

das raízes caipiras que a população não toma propriedade, fazem com que o patrimônio

agroindustrial esteja desocupado, sem uso e esteja progressivamente fadado à ruína.

Segundo a Carta de Veneza (ICOMOS, 1964), preservar é revelar os valores históricos e estéticos

do monumento, mas a conservação de um monumento só é favorecida por sua destinação útil

a sociedade. Os vestígios arquitetônicos da produção cafeeira são reveladores de valores

patrimoniais, que são capazes de fornecer um conhecimento dos atributos e valores tangíveis e

intangíveis das paisagens rurais, sendo a premissa necessária promover uma conservação

sustentável destas áreas a fim de garantir a transmissão de significados culturais às gerações

futuras (ICOMOS, 2017).

Entretanto, os vestígios atuais já foram severamente modificados ao longo do tempo e não há

registros de como esse patrimônio foi no auge de sua produção cafeeira, ou seja, no período em

1Ressalta-se que no momento de sua criação (1855), a vila de Botucatu abrigava os atuais municípios de: Águas de Santa Bárbara, Anhembi, Avaré, Bofete, Botucatu, Lençóis Paulista, Pardinho, Pratânia e São Manuel (IGC, 2011, p. 35-180).

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que o Conde Serra Negra vivia na fazenda. Como reconstituir esses aspectos, de forma a levar

em consideração a arquitetura, mas também os principais agentes sociais e suas respectivas

memórias à respeito do espaço? O Urbanismo Ambiental Hermenêutico (UAH), proposto por

Marcelo Zárate, tem como objetivo propor um modelo de visão ou cidade análoga, que orienta

ações projetuais de maneira interdisciplinar a fim de revelar o código genético do lugar, ou seja,

remete-nos a condição de que cada lugar urbano é único e possuí suas próprias características,

atividades sociais distintas e que devem ser estudadas separadamente (ZÁRATE, 2015, p. 164).

Para Zárate, as ações projetuais sobre o lugar devem promover o equilíbrio, levando o diálogo

entre a população, o saber técnico-científico, e a percepção daqueles que tomam decisões sobre

o lugar. Para tanto, o método UAH, revela valores outrora expostos por Mikhail Mikhailovich

Bahktin, Paul Ricoeur, e nas teorias Josep Muntañola. Estes autores exploram a relação do

diálogo, da contextualização tempo-espaço e da arquitetura dialógica que visualiza o lugar não

como um texto isolado, mas resultado da interferência de seu contexto histórico urbano social,

político, cultural, econômico e ambiental (SALCEDO et al, 2015). O conceito de cronotópos, nada

mais é do que uma sincronia entre as alterações físicas e sociais ocorridas nesse lugar em um

determinado período, representados pelas novas narrativas históricas da arquitetura do lugar,

fazendo com que, possamos conhecer os modos de vida e as formas de como habitamos o

mundo no decorrer de nossa história (PAMPANA, 2016, p. 5). Zárate (2014, p.8) traz justamente

a relação dialógica para o urbanismo, ao promover o diálogo interdisciplinar para a

interpretação da dimensão projetual do ambiente construído, levando em consideração três

dimensões essenciais: física, social e simbólica.

A dimensão física ou espacial é a dimensão material (natural e construído) das manifestações

do ambiente sociocultural em seu processo de apropriação e transformação do território

(SILVEIRA, 2018, p. 39). A dimensão social é uma organização funcional das práticas sociais, no

qual as pessoas desenvolvem-se da forma com que relacionam com um cenário em específico

(SILVEIRA, 2018, p.40). A dimensão simbólica são expressões verbais e escritas, construções de

valores, significados, representações e expectativas sociais, aquilo que se interpreta do que se

interpreta do lugar (ZARATE, 2014, p.14).

2. OBJETIVO

Identificar as dimensões físicas, sociais e simbólicas da gênese da Fazenda Serra Negra de

propriedade do Conde de Serra Negra (1888-1914), bem como o contexto político, histórico,

econômico e social no qual estava inserida a fazenda, a fim de reconstituir em uma implantação

tais aspectos desse cronotopo.

3. METODOLOGIA

Para a aplicação do método UAH, o trabalho será realizado em 3 etapas. A primeira se valerá da caracterização do contexto, a segunda da identificação das dimensões físicas, sociais e simbólicas e por fim, a reconstituição da gênese da fazenda Serra Negra. A caracterização do contexto histórico, político, urbano e econômico da Fazenda Serra Negra se

valerá de coleta de dados em instituições públicas ou cartórios pertencentes ao município de

Botucatu, bem como um embasamento teórico que abordem o modo de viver paulista, a

arquitetura eclética e a formação do patrimônio religioso no interior de São Paulo.

Para a identificação dos aspectos físicos, utiliza-se de levantamento métrico e fotográfico do

exemplar estudo, bem como uma pesquisa iconográfica, buscando vestígios do que foi a

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arquitetura em seu auge nos quadros de Antonio Ferigno, por volta de 1896-1905. Todas as

considerações realizadas, tem como base a pesquisa bibliográfica acerca da arquitetura das

fazendas e da arquitetura eclética realizada nos palacetes urbanos.

A dimensão social remete-se à identificação dos principais atores sociais que atuaram na

fazenda. Esse aspecto se vale das pesquisas realizadas em jornais que citem o Conde ou a

Condessa, bem como suas propriedades, usa-se também da análise iconográfica para identificar

o perfil dos trabalhadores e textos que abordem a vida dos proprietários no ambiente rural e

eventualmente no espaço urbano.

A dimensão simbólica será analisada a partir da perspectiva dos proprietários, segundo relatos

documentados. O simbolismo do lugar está relacionado com as expectativas dos grupos sociais

acerca desse lugar, são expressões verbais e escritas, construções de valores, significados, aquilo

que se interpreta do que se interpreta do lugar (ZARATE, 2014, p. 14)

4. RESULTADOS

4.1 ANÁLISE DO CONTEXTO: O CAFÉ COMO ALAVANCA DO DESENVOLVIMENTO REPUBLICANO

NO INTERIOR DE SÃO PAULO.

A região ocupada por Botucatu é proveniente de uma congruência de caminhos que

necessariamente acabavam passando por esse território, sejam eles caminhos de socorro,

religiosos ou militares. É fator determinante que a paisagem escolhida como base para tais fins,

seja dotada de acessos, transporte, facilidade em conseguir alimentos, água, e permitir grandes

visuais para segurança (MICHELIN, 2010, p. 24-25). Com tantos predicados, a cidade acaba

atraindo tropeiros vindos de Franca, Itapetininga e um grande contingente do Sul de Minas

Gerais. Botucatu carrega o posto de “boca de sertão”, dada sua localização privilegiada nesses

caminhos.

O histórico de doação, ocupação, e consolidação do território botucatuense será marcada por

conflitos de terra, perseguições políticas ligadas à revolta liberal, embates entre colonizadores

e nativos, e do banditismo. Desde então a arquitetura residencial é utilizada como forma de

demarcar sua propriedade, Donato cita acerca do conflito entre um tropeiro mineiro e um

poderoso capitão vindo de Itapetininga nas terras de Botucatu (DONATO, 1985, p. 55): “Sucedeu

que o tropeiro voltou e posseou quanto pode. Fez casa, curral e lavoura. Chamou, da terra natal,

parentes e amigos, seguidores da política conservadora”. De início as propriedades usavam a

terra para criação e venda de porcos (GHIRARDELLO, 2002, p. 171). Era uma arquitetura de

influência luso-mineira, escolhiam terrenos próximos à cursos de água, estruturas autônomas

de madeira que se assentam sobre muros de pedra que se ajustam ao terreno, cômodos orbitais

entorno de salas de receber, porões com altura elevada ora fechados com pedra, ora com pau-

a-pique. Apesar da relativa alteração econômica e social que irá acontecer no final do século

XIX, essas características advindas do “saber fazer mineiro” irão perdurar no espaço, mesmo

com a chegada tardia do café em Botucatu por volta de 1870.

A cafeicultura paulista amarra-se em três grandes pilares: a titulação das terras do sertão, que

estavam sendo incorporadas à economia imperial; o desenvolvimento de conhecimentos

específicos e tecnológicos para lastrear a evolução do complexo agroindustrial; e a garantia, sem

traumas da substituição da mão-de-obra escrava pela de trabalhadores assalariados, imigrantes

europeus (MICHELIN, 2010, p. 36). Em Botucatu, a cafeicultura paulista adquire ainda mais um

pilar: o tipo de solo. Uma vez transposto o Tietê, as plantações de café estão cada vez mais

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acentuadas à margem da cuesta, aproveitando-se de uma variedade original frutos da terra

roxa, o café amarelo (ou café Botucatu) (MONBEIG, 1984, p. 171). Aliado à isso, as ferrovias

avançam o território paulista, para transportar o café, fonte principal do recurso financeiro dos

avanços, era de interesse proteger as fronteiras e transpor geograficamente as barreiras

geográficas que os sertões apresentavam. A Sorocabana estabelece-se primeiramente em uma

área rural afastada, chegando em 1888 às terras de Antônio Monteiro (PIZA, 2015, p. 311) e

somente em 1889 à área urbana, com uma estação ferroviária eclética que levará os trilhos até

a região de São Manuel. Estes fatores irão alterar à sociedade que agora relaciona-se com um

novo governo, por isso será retratada no trabalho como a sociedade republicana.

A tradição local é deixada de lado, e a sociedade republicana busca nas tradições francesas e

inglesas, seus meios materiais de distinção social (CARVALHO, 2008, p. 133). Pela primeira vez,

desde o início da colonização da América pelos portugueses, as elites paulistas dispuseram nas

moradias de luxo equivalente ou superior às famílias nobres do Rio de Janeiro (SETUBAL, 2004,

p. 146) e é através da arquitetura que estas alterações ficam ainda mais evidentes.

As fazendas deixam de ter características simples e assumem caráter de verdadeiras empresas

agroindustriais. Maquinários movidos à vapor, substituição de técnicas construtivas, aumento

de funcionários, soluções em ferro, vidro, são novas esculturas que vão compor esse cenário de

produção cafeeira. A casa-sede é a concordância de todas essas inovações: a Taipa será

substituída por tijolos, os alpendres irão se disseminar em praticamente todas as casas, adornos

de ferro, o porão se dissemina como elemento fundamental das casas seguindo um código de

posturas e sanitarista, que tinham como objetivo fazer da residência um ambiente saudável e

livre de doenças também o vento e o sol, são elementos essenciais para as casas (BENINCASA,

2007, p. 222-230).

Com o acúmulo da produção excedente, próximo à década de 1930 a crise cafeeira era eminente

no Estado de São Paulo inteiro, vindo pelo Vale do Paraíba, a dificuldade atingiu as grandes

produtoras do “ouro verde”. Com o êxodo rural avançando ao longo das décadas, somado ao

apelo urbano dos edifícios ecléticos instalados no conjunto urbano, diversos desses sítios

históricos acabam sendo abandonados e poucos perduram até hoje no espaço. Em Botucatu, os

vestígios arquitetônicos desse patrimônio rural foram demolidos, com exceção de algumas

casas-sede que adquiriram caráter de ruínas entre paisagens naturais ou intervindas pela cultura

sucroalcooleira, e que só são percebidos entre os caminhos realizados pelos moradores entre

uma cidade e outra. A seguir serão detalhados os aspectos da fazenda que são capazes de

reconstruir a sua gênese.

4.2 IDENTIFICAÇÃO DAS DIMENSÕES SOCIAIS, FÍSICAS E SIMBÓLICAS DA GÊNESE DA FAZENDA

SERRA NEGRA

Através das obras de Antonio Ferrigno e da releitura de intervenções ocorridas ao longo do

tempo na fazenda, pode-se chegar à gênese de sua implantação. De origem Italiana, o artista

parte para o Brasil em 1893 e fixa residência em São Paulo. Rapidamente passa a receber

encomendas de fazendeiros, entre as quais se destacam a série de 12 telas sobre o cultivo do

café, que reproduzem a vida e os costumes do interior paulista, feita para o conde de Serra

Negra. Dentre elas, 4 em particular se destacam por levarem em seu título o nome da fazenda,

ou do proprietário. São Pinturas realizadas em óleo sobre tela e são verdadeiras obras

reveladoras da primeira conformação da fazenda.

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4.2.1 DIMENSÃO SOCIAL: PROPRIETÁRIOS, IMIGRANTES E TRABALHADORES LIVRES

O proprietário da Fazenda Serra Negra era Manoel Ernesto da Conceição, Conde Serra Negra,

sua família estava composta pela sua esposa, Maria Justina de Souza Resende e seus 9 filhos, 4

meninos e 5 meninas. Manoel Ernesto da Conceição (figura 1), nasceu em Piracicaba (SP) filho

de Francisco José da Conceição – Barão de Serra Negra, casou-se com Maria Justina de Sousa

Resende – filha do Barão de Valença. Recebeu o título de Conde Romano de Serra Negra pela

Santa Sé. Atraído pela ideia de implantação da ferrovia Sorocabana, Manoel Ernesto,

juntamente com seus irmãos resolvem investir na cidade de Botucatu, desde as terras entre os

rios Lavapés e Capivara. Em 1888, a estação ferroviária posiciona-se em terras de Antônio

Monteiro, o que influencia o conde na compra as terras de Antônio Soares de Barros que faziam

divisa com tal propriedade (PIZA, 2015, p. 312).

Figura 1: Retrato do Conde Serra Negra à esquerda e Guido Zanotto à direita

Fonte: Acervo Museu Histórico Pedagógico de Botucatu (MuHP)

Interessou-se ativamente pela propaganda e divulgação do café paulista na Europa, No início do

século XX, o Conde seria convidado a participar da Exposição de Lyon de Paris, no qual o café

era a grande joia do país. O contato com Paris rendeu a construção de uma torre de torrefação

própria localizada na cidade, juntamente com a inauguração do “Café São Paulo” inaugurado

em 1902 (PUPO, 2001, p. 166). Maria Justina, mulher culta e inteligente, participava ativamente

contra a crise do café, participou de exposições em Paris, Londres e Gant. Em 1909, Manoel

recebe o título de Chevalier du Mérite Agricole pelas mãos do governo francês em honra às obras

prestadas à economia cafeeira brasileira (TARASANTCHI, 2005, p.26).

Em 1915, há relatos de que já viviam em Paris, onde ali tiveram 3 propriedades (SÃO PAULO,

1915, p. 1). Após sua morte, em 1923 na cidade de São Paulo, a Condessa dedicou-se à escrita,

enviando artigos regularmente para o jornal O Estado de São Paulo (TARASANTCHI, 2005, p.22).

Em uma de suas declarações a Condessa fala sobre sua dedicação à vida escrita: “Sou mãe de

oito filhos. Porém já estão todos casados. Enviuvando, achei que devia procurar uma ocupação.

Encontrei-a: a história e os pobres, que dividem o meu tempo em duas partes, absorvendo-as

inteiramente” (SERRA NEGRA, 1956, p. 8).

Para a edificação da estrutura da fazenda construída em Botucatu, a presença dos imigrantes já

se torna evidente. Guido Zanotto (figura 1), imigrante italiano que já possuía certo estudo, é

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convidado à coordenar os trabalhos de construção da fazenda. Posteriormente, com a fazenda

já consolidada, Zanotto assume as funções administrativas e a Venda da Fazenda, até que se

muda para o espaço urbano. (PIZA, 2015, p. 312). A figura do imigrante também aparece no

retrato de Ferrigno, Fazenda da Baronesa (1898), nele um grupo de pessoas aparece cortando

uma densa vegetação com seus utensílios de trabalho em mãos (figura 2), figuras

majoritariamente brancas à caminho do seu trabalho na lavoura, trajados com roupas simples.

Figura 2: Seleção de Quadros da coleção: A fazenda da Baronesa – A esquerda a presença dos imigrantes e à

direita dos trabalhadores livres.

Fonte: Antonio Ferrigno – Óleo sobre tela (76x121cm) – Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br

Na sequência, de quadro com semelhante nome (figura 2), o pintor retrata mulheres negras

carregando cestas de palha sobre a cabeça próximas à um monjolo. Como nessa época o

beneficiamento dos grãos já era feita de forma mecanizada, tudo indica que o monjolo era para

subsistência dos próprios trabalhadores que tinham uma certa independência na vida fora o

trabalho. Essa figura revela os valores pictóricos de Ferrigno, de valores comerciais, a fim de

retratar um cenário bucólico que as fazendas detinham.

A baixa produção em 1920, não desanimou a produção do Conde Serra Negra, que investiu ainda

mais seu patrimônio na divulgação do café com o intuito de salvar essa crise. Com o falecimento

do Conde, em 1923, as terras foram divididas metade em propriedade da Condessa, e a outra

metade dividida entre seus 9 filhos. Essa segmentação das terras fez com que as terras ficassem

sem uma administração bem definida, principalmente com a mudança da Condessa para a

cidade de São Paulo. Aa fazenda acaba abandonada e pouco a pouco, com o desenvolvimento

urbano de Botucatu, sem uso. Em 1990 as terras produtivas para cana de açúcar da Usina de

São Manuel avançam a zona rural de Botucatu e encontram esse sítio histórico abandonado. A

Usina de São Manoel é um ator social que atualmente impacta no espaço, pois através de sua

percepção comercial de avanço da cultura de cana-de-açúcar atua em 11 municípios, onde são

administrados 47.000 hectares do produto2.

4.2.2 Dimensão Física: Arquitetura

Relacionando a configuração atual, com os mapas do Instituto Geográfico e Cartográfico (IGC)

(figura 5), pode-se notar uma certa fidelidade nas obras de Ferrigno no que se refere às

dimensões físicas da fazenda Serra Negra. A implantação da fazenda acontece em um terreno

acidentado, nos quais as curvas de nível seguem para um córrego que corta a propriedade e um

2 http://www.saomanoel.com.br/

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vasto lago. A escolha do terreno para implantação da fazenda próxima à um curso d’água mostra

a intenção de utilizá-la como força motriz.

O quadro “Fazenda Victoria” (1896) revela a presença da ferrovia conforme o contexto histórico

já nos informava ser um fator decisivo para a compra da propriedade (figura 3). Em um dos

planos do quadro é possível observar uma densa camada de vegetação, que funcionaria tanto

como isolamento, quanto quebra-vento3. Adiante observa-se um vasto lago, cercado por casas

de arquitetura simples ao redor, que pode-se associar à casa dos colonos. Ao fundo, a casa-sede

com um jardim fronteiro e uma edificação à lateral direita, provavelmente a casa do

administrador, separadas por um muro do restante das edificações.

Figura 3: Quadros Fazenda Victoria e série Fazenda da Baronesa respectivamente

Fonte: Antonio Ferrigno – Óleo sobre tela (200x110cm) – Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br

3A vegetação quebra-vento é utilizada nas plantações de café como uma barreira física para as intempéries, visto que à incidência de vento pode causar danos mecânicos às folhas, ramos, favorecendo a infecção por fungos e bactérias (MESQUITA, 2016, p. 44)

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Aparece no quadro a Fazenda da Baronesa (1896), um estábulo simples afastado para adiante

da casa de máquinas (figura 4), retratada com fumaça saindo de seu interior, indicando presença

de maquinários a vapor. Neste quadro também aparecem mais unidades de casas de colonos,

que ficariam dispostas onde no outro quadro está um vasto gramado. De acordo com Benincasa

(2007, p.594) a descrição das colônias bate com as casas retratadas no quadro, as colônias são

formadas por fileiras de casas pequenas, com telhado em duas águas, geralmente geminadas.

O casarão se impõe arquitetonicamente aos demais edifícios, com traços neoclássicos e

simétricos a fachada da residência possuis uma platibanda que encerrava o telhado. Atualmente

a planta se conforma em “U” característica semelhante a região de ocupação mais antiga pela

cafeicultura da Sorocabana (BENINCASA, 2007, p. 481). A arquitetura se assenta no aclive do

terreno, uma característica remanescente dos mineiros que ali passaram por essa terra. A

presença do porão confere imponência à casa, provavelmente reteve usos administrativos,

alguns dormitórios de empregados, e depósito de grãos.

Os cômodos sofreram alteração de uso com o acréscimo do alpendre frontal e de acesso lateral.

A sala de estar à frente da edificação, fica um pouco deslocada, o que leva a crer que um dos

quartos laterais agregou o uso de vestíbulo. Ademais os quartos abrem circulação diretamente

para as salas de jantar e estar. Apesar da planta em “U” ser característica das casas instaladas

juntamente à Sorocabana, a presença tardia dos cômodos de banho no interior das residências,

associados à sutil diferença nos telhados, bem como a presença de esquadrias que não

concordam com as originais à sua construção, nos levam a questionar se os banheiros da ala

esquerda estavam presentes desde à origem da fazenda. Como a arquitetura retratada pelo

pintor assemelha-se à um volume retangular, este será levado em consideração como

pertencente à sua gênese.

Com a compra das terras pela Usina de São Manoel, a arquitetura retratada pelo artista, acaba

desaparecendo entre as plantações de Cana de Açúcar. As cartas topográficas do IGC revelam

que algumas edificações ainda permaneciam no terreno (figura 5). Apesar de não demolir as

construções mais significativas, o abandono das terras fez com que chegássemos ao cronotópo

atual (figura 6), onde na paisagem restam apenas a casa-sede (com algumas alterações físicas

significativas), a tulha, o estábulo, e vestígios do que seriam os jardins com repuxos de água, o

pomar, os terreiros de café e o lago.

Figura 5: Carta topográfica Instituto Geográfico Cartográfico (IGC) – escala 1:100000 e Implantação atual da

fazenda respectivamente

Fonte: http://datageo.ambiente.sp.gov.br e elaboração por Beatriz L. Antunes

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4.2.3 DIMENSÃO SIMBÓLICA: RECOMEÇO E SÍMBOLO DE PODER

Os resultados acerca da dimensão simbólica revelam os valores pessoais dos grupos sociais

(proprietários, imigrantes e trabalhadores), com relação a dimensão física que o sítio histórico

da Fazenda Serra Negra revela. Vale ressaltar, que diversos elementos arquitetônicos não são

utilizados por acaso, eles são reveladores de valores que os diferentes grupos sociais carregam.

A título de exemplo, para os proprietários, a fazenda simbolizava um grande investimento no

qual a sua principal renda se valeria da quantidade de café que se poderia produzir. Para tanto,

era necessário que toda a área cultivável fosse ocupada com a plantação de café, e somente as

áreas remotas, geralmente próximas aos cursos de água seriam destinadas para as colônias, que

se dispunham em linhas retas para também ocupar menor parte do terreno (conforme itens 5,

6 e 9 da figura 8) Figura 7: Implantação da gênese da Fazenda Serra Negra

Fonte: Elaborado por Beatriz L. Antunes

Figura 8: Aproximação da implantação e respectiva legenda

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Fonte: Elaborado por Beatriz L. Antunes

O muro que separa as edificações segue tendências burguesas do final do século XIX, de

separação do ambiente privado e aristocrático da família do fazendeiro, daquele do mundo do

trabalho, onde circulavam os trabalhadores, cujo proprietário prezava por manter afastado das

mulheres da casa (BENINCASA, 2007, p. 471).

Para uma figura de posses, como o Conde Serra Negra, viagens à Europa eram constantes,

somado à isso, o fato de um imigrante italiano, Guido Zanotto, ter sido responsável pelo início

da construção da residência, alguns traços dessa influência aparecem na arquitetura do casarão,

são novos programas inspirados pela Paris de Hausman (LEMOS, 1933, p. 38). A substituição de

uma escada fronteiriça pelo alpendre, revela a alteração de hábitos retratada por Setubal (2004,

p. 39), o gosto pela apreciação da paisagem, da abertura das casas para o exterior (BENINCASA,

2007, p. 496), além de ser um ponto estratégico de observação do proprietário para a lavoura,

tal elemento se disseminou pelas fazendas construídas ao longo do século XIX. De todos os

legados culturais pelo território paulista, as diversas formas de arquitetura doméstica,

propiciaram um amplo e diversificado conjunto arquitetônico, e talvez sejam as que mais

marcaram a transformação dos costumes locais (SETUBAL, 2004, p. 39), a arquitetura era a

forma que o proprietário detinha de ostentar às suas propriedades.

Outro fator determinante era a questão de gênero, existiam espaços destinados para o uso

comum femininos ou masculinos. As salas de visitas, os jardins e pomares eram espaços

relacionados à proprietária e suas filhas, e eram estritamente proibitiva para os trabalhadores

da lavoura (BENINCASA, 2010, p. 10). Os jardins possuíam desenhos inspirados no paisagismo

Francês e eram de cuidado da senhora, o pomar localizado ao fundo da casa, garantia a Condessa

maior privacidade em relação aos funcionários que circulavam para manutenção de sua própria

casa, era tido como uma atividade de lazer. A sala de visitas era usada como ostentação da

posição social da Condessa, era densamente decorada com peças de louça, cristais, mármores

e dos trabalhos manuais das mulheres da casa, que utilizam as superfícies para expor suas obras

em renda e crochê que de forma alguma estão desobrigadas de apresentar “muita variedade e

perfeição”, a sala é equipada com a infra-estrutura necessária para que a mulher apresente

publicamente habilidades no campo da conversação, da música e da literatura (CARVALHO,

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2008, p. 156). A sala de Jantar e os escritórios eram espaços masculinos, onde o proprietário

realizava negócios, era frequente o uso de móveis robustos, confeccionados em madeira nobre,

não polidas (CARVALHO, 2008, p. 127); apenas o Conde tinha contato com o administrador e

também com a capital, sendo que por muitas vezes deixava a família na fazenda e fazia longas

viagens pela Europa.

Para o imigrante, como o caso de Guido Zanotto, a fazenda representava uma condição de

ascensão social, um passo para uma vida melhor para si e para sua família. Trabalhou como

pedreiro, carroceiro, empreiteiro, carpinteiro e ferreiro. Após conseguir capital suficiente, ele se

muda para a cidade e se torna negociante, construindo imóveis de aluguel (PIZA, 2015, p. 311).

De fato, ele aparece nos almanaques da cidade (MAGALHÃES, 1920, p. 123), como um dos

principais nomes de maquinas de beneficiamento de arroz e café, com propriedade na Vila dos

Lavradores. A partir da vida estabelecida na fazenda, Zanotto foi membro da sociedade italiana

e responsável pela instalação da primeira rádio de Botucatu, e do Botucatu Tênis Clube.

Atualmente, as expectativas e memória que atuam sobre o espaço são dos antigos moradores e

trabalhadores, visto que, com a divisão de terras a família se distanciou muito da propriedade.

Além disso, para a Usina de São Manoel, a preservação desse sítio implica em terras que não

puderam ser cultiváveis e apesar de preservá-la não se pode negar que ela simbolize um

empecilho para a empresa. Durante sua atuação no território estudado, a preservação da

arquitetura cafeeira pode se dever ao fato da imponência de sua arquitetura e possíveis estudos

de tombamento, mas além disso, o fato de um curso de água cortar a paisagem faz com que a

empresa, preocupada com valores sustentáveis, respeite uma área de preservação ambiental

que engloba a fazenda e a vegetação nativa.

5. CONCLUSÃO

A fazenda serra negra, como se encontra hoje, é o reflexo das dimensões que a envolve. Nenhum

elemento de fato é desconexo dessa narratividade na qual ela está inserida. O contexto histórico

da formação do patrimônio de Botucatu, revelam valores da gênese de ocupação das

propriedades rurais, como o fato de os primeiros posseiros virem em grande quantidade do Sul

de Minas Gerais. Esses ocupantes irão influenciar as primeiras fazendas, e seu partido

arquitetônico irá perdurar fortemente no espaço, mesmo com o abandono das técnicas. Dada a

sua posição geográfica, as terras roxas de Botucatu irão influenciar no contexto econômico que

envolve as compras da terra da atual fazenda. O café atraiu fatores que foram apontados no

estudo, como por exemplo: A presença de imigrantes, a chegada da Estrada de Ferro Sorocabana

e a mecanização do processo de beneficiamento do café. Além desses fatores, as diversas

alterações que ocorreram no final do século XIX com a sociedade paulista influenciaram

diretamente nas dimensões da fazenda Serra Negra: A intensificação das viagens dos

proprietários de fazenda à Europa; os códigos de postura e higiene que irão nortear as

construções e o avanço dos centros urbanos e da arquitetura Eclética (técnicas tijoleiras, casas

alpendradas, e uso de elementos de ferro e vidro) e o requinte atribuído ao interior das

moradias. Já a dimensão social revela a importância tanto do Conde Serra Negra, quanto de sua

esposa, que constroem um patrimônio revelador de valores europeus, dada a sua vasta estadia

em terras francesas. Além dos proprietários, os trabalhadores (imigrantes ou escravos libertos)

mostraram-se presentes desde a sua construção, e foram responsáveis pela maior ocupação das

terras, como é possível perceber através da dimensão física. A implantação da gênese da

fazenda (figura 7), mostra que a dimensão física faz correspondências diretas às dimensões

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sociais, simbólicas e ao contexto, como por exemplo: o afastamento do núcleo residencial do

núcleo de trabalho; a escolha do posicionamento dos pomares; o caráter bucólico do alpendre

e do lago; a presença de elementos neoclássicos na fachada da casa-sede; a implantação da casa

sob meia encosta; entre outros. Além disso, a implantação também revela o caráter industrial

que a fazenda possuía no auge de sua produção, a quantidade de casas de colonos representa

a grande quantidade de trabalhadores, além dos grandes terreiros, casas de máquinas

mecanizadas, e do apelo arquitetônico que essas edificações exerciam no espaço. A dimensão

social ainda revelou que a fazenda simbolizou para os proprietários, uma forma de ostentar seu

poderio enquanto alta produção cafeeira ocorria em Botucatu, o Conde esperava vasto

reconhecimento pelas suas divulgações pelas diversas exposições mundiais no qual passou.

Assim como para os imigrantes, a fazenda simbolizava a porta de entrada para uma nova vida,

que depois irá consolidar-se no espaço urbano, uma forma de ascensão social e melhoria de

vida, em relação ao seu país de origem.

As dimensões sociais, físicas e simbólicas da gênese da fazenda Serra Negra, mostram que os

fatores determinantes para aquele lugar vão muito além dos proprietários que compraram as

terras e, efetivamente, pouco tempo passavam nas casas; ou da arquitetura eclética que se

dissemina em conjunto com a ferrovia pelo interior do estado. Os vestígios que hoje se

encontram no espaço são produto de uma somatória de valores, expectativas, e atores sociais

que atuaram em um determinado lugar em determinado recorte temporal. A revelação da

gênese ou primeiro cronotopo baseado na evidencia um axioma proposto pela carta de Veneza:

a conservação de um monumento está intimamente relacionado com sua destinação útil à

sociedade. O abandono das atividades cafeeiras paulatinamente corroborou para a deterioração

desse patrimônio que corresponde à gênese do desenvolvimento econômico do Estado de São

Paulo. No caso da fazenda Serra Negra, o abandono da família e a compra das terras por uma

empresa sucroalcooleira são agravantes que seriam fatídicos no espaço se apenas os aspectos

físicos e sociais fossem determinantes do lugar, mas os aspectos simbólicos, ou seja, a memória

da população, sobretudo dos trabalhadores que viam a fazenda como um instrumento

fundamental para uma nova vida no Brasil, foi o que realmente mantiveram esse edifício em

conservado.

AGRADECIMENTOS

Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

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