O Verão Árabe: guerra civil e intervenção internacional na Líbia ...

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Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 51, p. 57-79, jan./jun. 2012 Disponível em: <hĴp://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 57 O Verão Árabe: guerra civil e intervenção internacional na Líbia, Síria e Iêmen Paulo Fagundes Visentini * Isadora Steěens Fernanda Lopes Silva Raul Cavedon Nunes Mariana Chaise ** Resumo A eclosão da Primavera Árabe em 2011 foi caracterizada pelo discurso globalizado como uma mobilização popular espontânea em busca da liberdade. Tal manifestação teria sido reprimida, sem sucesso, e teria sido iniciada a transição à democracia, com apoio ocidental. Contudo, tratava-se de Revoluções Coloridas de Mudança de Regime, com apoio norte-americano, para remover aliados incômodos e desgastados. Mas a Primavera deu lugar a um tórrido Verão Árabe, com guerras civis sangrentas na Líbia, na Síria e no Iêmen. Palavras-chave: Primavera Árabe. Guerras civis. Líbia. Iêmen. Síria. A Primavera Árabe é ameaçada, não apenas por adversários ainda muitas vezes no poder, mas também por “amigos” que se querem solidários, sempre prontos a ajudar nanceira e economicamente os movimentos de libertação árabes, sempre lhes impondo condições muitas vezes difíceis de suportar. A Primavera precisa de tempo. É preciso dar ao tempo o tempo de realizar as coisas. Alexandre Roche Em 2011, mais uma vez, o Oriente Médio surpreendeu o mundo, como havia feito em 2001, com os atentados terroristas de 11 de setembro e a invasão americana do Afeganistão. Ou em 1991, com a derrota de Saddam Hussein, o início do processo de paz Israel-OLP e o surgimento de novos Estados de população muçulmana na Ásia Central e no Cáucaso, como decorrência da implosão da União soviética. O desencadeamento de uma nova onda de revoltas pacícas ou violentas do Marrocos ao Golfo Árabe pareceu despertar a atenção mundial, desinteressada após uma década de es- * Professor Titular de Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. (E-mail: [email protected]). ** Graduandos de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Bolsistas de Iniciação Cientíca do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Interna- cionais – NERINT/UFRGS.

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O Verão Árabe: guerra civile intervenção internacional

na Líbia, Síria e Iêmen

Paulo Fagundes Visentini*

Isadora Ste ensFernanda Lopes SilvaRaul Cavedon Nunes

Mariana Chaise**

ResumoA eclosão da Primavera Árabe em 2011 foi caracterizada pelo discurso globalizado como uma mobilização popular espontânea em busca da liberdade. Tal manifestação teria sido reprimida, sem sucesso, e teria sido iniciada a transição à democracia, com apoio ocidental. Contudo, tratava-se de Revoluções Coloridas de Mudança de Regime, com apoio norte-americano, para remover aliados incômodos e desgastados. Mas a Primavera deu lugar a um tórrido Verão Árabe, com guerras civis sangrentas na Líbia, na Síria e no Iêmen.

Palavras-chave: Primavera Árabe. Guerras civis. Líbia. Iêmen. Síria.

A Primavera Árabe é ameaçada, não apenas por adversários ainda muitas vezes no poder, mas também por “amigos” que se querem solidários, sempre prontos a ajudar Þ nanceira e economicamente os movimentos de libertação árabes, sempre lhes impondo condições muitas vezes difíceis de suportar. A Primavera precisa de tempo. É preciso dar ao tempo o tempo de realizar as coisas.

Alexandre Roche

Em 2011, mais uma vez, o Oriente Médio surpreendeu o mundo, como havia feito em 2001, com os atentados terroristas de 11 de setembro e a invasão americana do Afeganistão. Ou em 1991, com a derrota de Saddam Hussein, o início do processo de paz Israel-OLP e o surgimento de novos Estados de população muçulmana na Ásia Central e no Cáucaso, como decorrência da implosão da União soviética. O desencadeamento de uma nova onda de revoltas pacíÞ cas ou violentas do Marrocos ao Golfo Árabe pareceu despertar a atenção mundial, desinteressada após uma década de es-

* Professor Titular de Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. (E-mail: [email protected]).

** Graduandos de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Bolsistas de Iniciação CientíÞ ca do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Interna-cionais – NERINT/UFRGS.

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tagnação do conß ito israelense-palestino, de violência banalizada e, aparen-temente, sem sentido, da Guerra ao Terrorismo e do vaivém da situação iraniana.

A inesperada Primavera Árabe abalou ou derrubou velhas oligar-quias autoritárias que estavam no poder há décadas – tanto monarquias tradicionais como repúblicas modernizadoras. O público, os estudiosos e os políticos se perguntam: enÞ m, a democracia começa a ser implantada na região, como a mídia aÞ rmou, ou se trata de mais uma explosão de ira, cujo reß uxo deixaria tudo igual a antes? Ou elas, caso fossem bem sucedidas, dariam lugar ao caos, com a Al-Qaeda ganhando terreno, ou a regimes islâmicos radicais, ameaçando Israel, os Estados Unidos e o mercado ener-gético? AÞ nal, todos os regimes ameaçados, exceto o do Irã, eram aliados do Ocidente.

Alguns acreditam em movimentos supostamente desencadeados com o emprego espontâneo das novas tecnologias da comunicação e infor-mação nas mãos de uma nova “sociedade civil global”, composta por jovens. Nesse caso, a inß uência dos EUA estaria se reaÞ rmando na região, na sequência da eliminação de Bin Laden, da retirada do Iraque e do início do desengajamento militar no Afeganistão (com a “missão cumprida”). É interessante observar que, em seu famoso discurso em apoio à Primavera Árabe, Obama não mencionou as petromonarquias senão de passagem. Qual a relação entre esses acontecimentos? As sociedades árabes e muçul-manas são realmente “atrasadas” e voltadas ao passado?

Todavia, a “Primavera Árabe” deu lugar, nos meses seguintes, a um “Verão Árabe”, pois, em alguns países, ocorreram guerras civis incon-clusas (Iêmen e Síria), apesar da pressão internacional, e outro sofreu uma intervenção da OTAN (Líbia). Nem tudo foi, portanto, tão pacíÞ co nem tão espontâneo como o discurso globalizado apregoava. Países frágeis e estraté-gicos tiveram uma evolução confusa e sem resultados conclusivos até o presente (Síria e Iêmen). Outro, pouco conhecido, detentor de imensos recur-sos petrolíferos mas quase despovoado e governado ao longo de mais de quatro décadas por um líder “excêntrico” e errático, sofreu uma interven-ção das grandes potências para mudar o regime, já que os revoltosos não tinha força para tanto.

A Primavera Árabe, como, em 1848, a Primavera dos Povos da Euro-pa, representa um movimento geral, com bases comuns em toda a região e relacionado à crise econômica mundial, mas que em cada país encontra formas e contradições especíÞ cas. Trata-se da única região do mundo onde não há um processo de integração econômica amplo nem um Estado pivô capaz de liderá-lo. Mas ela é afetada pela renovada geopolítica do petróleo, pelo jogo das potências em crise do Atlântico Norte (com menos dinheiro e muitas armas) e as emergentes do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e Áfri-ca do Sul), que projetam sua inß uência político-econômica para a região.

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Golpe fracassado, Guerra Civil e intervenção da OTAN na Líbia1

Em fevereiro de 2011, na esteira da Primavera Árabe, houve manifes-tações e um levante armado na cidade de Bengazi, no leste da Líbia, em cuja direção se encontravam elementos dissidentes da própria cúpula do re-gime. Mas o golpe não teve sucesso, e KadaÞ organizou o contra-ataque, enquanto a mídia ocidental qualiÞ cava o levante de “manifestação pacíÞ ca” brutalmente reprimida. O que estava por trás desse inesperado aconteci-mento, uma vez que KadaÞ mantinha excelentes relações com os americanos e europeus (até então era chamado de “líder” líbio, e depois de “ditador”)?

Os regimes isolados sempre têm, vistos de fora, uma aparência sóli-da, mas a Líbia é um país dividido entre clãs (“tribos”). O autoritarismo do regime, o dinheiro do petróleo, os confrontos externos e o isolamento perma-nente o mantiveram unido. Após o bloqueio internacional, entretanto, desde Þ ns dos anos 1990, KadaÞ iniciou a normalização com as potências ocidentais, ao apoiar a guerra ao terrorismo de Bush2 e também entregar agentes executores do atentado de Lockerbie para julgamento. Ele próprio, porém, o mandante, foi poupado. KadaÞ sempre usou um estilo mutável, ora como dirigente máximo, ora como um inspirador sem cargo oÞ cial, mas, como disse um diplomata britânico, “nem uma abelha zunia sem sua aprovação”.

Ao normalizar as relações, ele iniciou um processo de privatização amplo e concedeu grande parte do petróleo a empresas estrangeiras. A população passou a sofrer, como nos países vizinhos, aumentos de preços e crescente desemprego. A população tem crescido muito e cursado univer-sidades, mas não encontra emprego. Houve, assim, certa perda de apoio e um encorajamento aos grupos do leste para se revoltar. Não se tratou de protestos pacíÞ cos, mas de um levante armado, sobre o qual o regime logo perdeu o controle. Ele havia debilitado o exército para evitar algum golpe ou algum general rival, daí ter-se apoiado em milícias, enquanto militares passavam a revoltosos.

A Líbia é um ator importante no cenário internacional por sua geo-graÞ a e geologia, uma vez que possui imensas reservas de gás natural e de petróleo. O país é o quarto maior em termos territoriais (1,7 milhões de km2) e possui o maior Índice de Desenvolvimento Humano da África. O ní-vel de educação é também elevado, com 89% de adultos alfabetizados. Ademais, a Líbia é um país de renda média alta, possuindo uma renda per capita de USD 17,068. Num índice de 64%, os líbios estavam, em 2010, satisfeitos com seu padrão de vida. Apesar desse cenário aparentemente favorável, a revolta tomou fôlego por fatores diversos: pelo hiato entre

1 Com a colaboração de Raul Cavedon Nunes e Mariana Chaise.2 KadaÞ tivera de reprimir levantes de fundamentalistas islâmicos estrangeiros nos anos

1990.

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a retórica democrática do regime e o poder autocrático, pela crescente corrupção no seio do Estado, pela sistemática violação dos direitos huma-nos, pela infraestrutura estatal de saúde sucateada, pela aß uência dos lu-cros do petróleo para uma única classe privilegiada ou ainda pelos elevados níveis de desemprego.

As primeiras fagulhas de revolta já eram sentidas em janeiro de 2011, enquanto, nas ruas do Egito, da Tunísia e da Argélia, assistia-se às primeiras revoltas. Em 16 de janeiro, em meio a relatos de agitação na cida-de líbia de al-Bayda, KadaÞ condenou os levantes na vizinha Tunísia e a deposição de seu aliado Ben Ali. No mesmo dia, o site Youtube e redes sociais foram bloqueados na Líbia, como forma de conter possíveis levan-tes. Em 29 de janeiro, porém, KadaÞ reposicionou-se em apoio à população tunisiana, aÞ rmando que não se pode ir contra a vontade do povo, adver-tindo, porém, que tinha medo de a revolução ser desviada por interesses estrangeiros.

Em 17 de fevereiro, houve o “dia da fúria”, com agitações nas cidades de Bengazi, Ajdabiya e Darnah, Zintan. Nas ruas, os manifestantes gritavam: “a Líbia é livre, e o coronel pode sair”. Os protestos foram arti-culados com o envio de mensagens por SMS para assinantes de telefonia móvel, as quais diziam: “Da juventude líbia até todos aqueles que estão tentados a tocar nas quatro linhas vermelhas: venha e nos encontre em qualquer praça ou rua na Líbia”. Os protestos, a partir de então, cresceram, e houve repressão aos manifestantes, que também estavam armados. Os rebeldes tomaram as cidades de Aydabiya e de Bengazi. Seifal Islam KadaÞ – Þ lho do líder líbio – aÞ rmava que a imprensa exagerava no número de mortos e que “a revolução feita por meio do Facebook foi criada por pes-soas de fora do país”. Em 26 de fevereiro, foi anunciada a formação de um governo de oposição. Abdul NafaMoussa, general das Forças Armadas Líbias, pediu que estas se voltassem contra KadaÞ e “marchassem em dire-ção a Trípoli”.

Em março, protestos violentos e bombardeios ao porto de Brega e a diversas cidades e instalações alarmam organizações internacionais e go-vernos estrangeiros. Em 2 de março, o Conselho Nacional Líbio, que reunia as forças anti-kadaÞ stas, pediu aos governos de outros países que promo-vessem um ataque aéreo aos “mercenários”.

Os grupos rebeldes que representaram a oposição ao governo eram formados por elementos provenientes da população líbia, por um contin-gente de soldados proÞ ssionais que desertou das Forças Armadas, e por diplomatas líbios que se retiraram do serviço público. Em 20 de fevereiro de 2011, no início da guerra civil que se estenderia até outubro, as forças anti-KadaÞ anunciaram, na cidade de Bengazi, a formação do Conselho Nacional de Transição da Líbia, a “face política da revolução”, o qual se de-clarou, em 5 de maio, “o único órgão legítimo representando o povo e o Es-tado líbio”, apelando aos demais países por seu reconhecimento como tal.

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Liderado pelo ex-ministro da justiça, Mustafa Abdul Jalil,3 o Conselho de Transição é um órgão unicameral composto por 33 membros, represen-tantes de diferentes clãs líbios. Sua existência seria transitória, permane-cendo em vigor até a realização das eleições que estabelecessem um novo Parlamento, sendo seu objetivo “reconstruir o Estado democrático da Líbia”. Assim, em 17 de março, a resolução 1973 do Conselho de Segurança foi aprovada por 10 votos e 5 abstenções, impondo uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia; Reino Unido, França, Estados Unidos, Canadá e Itália iniciaram seus ataques. Em 19 de março, a OTAN iniciou bombardeios. Tal campanha foi o principal motivo para, em meados de março, o avanço das forças kadaÞ stas ter sido interrompido.

Entre 20 e 21 de março, União Africana, Liga Árabe, Rússia, China, Venezuela, Cuba, Bolívia, Brasil, Índia, Turquia e África do Sul pediram pelo Þ m dos bombardeios, enquanto Putin comparava as intervenções às cruzadas medievais. Na verdade, a Resolução da ONU foi usada não para deter a violência, mas para justiÞ car o apoio direto da OTAN aos rebeldes, particularmente pela França e pela Inglaterra, que enviaram forças espe-ciais, armas e reuniram mercenários e tropas de outros países contra KadaÞ . A guerra civil dava lugar a uma intervenção externa, com bandeiras monár-quicas líbias sendo exibidas ao lado de francesas, britânicas e americanas.

O envolvimento ocidental no conß ito foi direto. A União Europeia, a Liga Árabe e os Estados Unidos pediram o Þ m da violência ainda em fevereiro, enquanto era formado o Conselho Nacional de Transição (CNT). Ao mesmo tempo em que os rebeldes recuavam a Þ m de estabelecer uma nova linha de resistência à leste de Brega, o G-8 reuniu-se para elaborar uma possível intervenção no país, sem, porém, chegar a um acordo. Robert Mugabe – presidente do Zimbábue – manifestou apoio a KadaÞ .

A Resolução 1973 tomou como base os comunicados da Organização da Conferência Islâmica (8 de março) e do Conselho de Paz e Segurança da União Africana (10 de março), além da decisão do Conselho da Liga dos Estados Árabes (12 de março), que reivindicavam uma zona de exclusão aérea no país – contra os votos de Síria e Argélia – e áreas de segurança para a população civil e estrangeira na Líbia. Houve a designação, pelo Secretário Geral da ONU, de um enviado especial para mediar o conß ito no país, e a criação do Comitê de Alto Nível para a Líbia em encontro do Conselho de Paz e Segurança da União Africana.

Dia 19 de março iniciou a operação Amanhecer da Odisseia, quando França, Estados Unidos e Reino Unido bombardearam instalações civis e militares do governo líbio. Em abril, após divergências internas, a OTAN assumiu a direção da intervenção militar. Neste mês, houve intensiÞ cação dos ataques da OTAN e certo recuo por parte dos EUA e de alguns Estados europeus quanto ao seu apoio militar. A ação foi impulsionada, desde então, quase que exclusivamente pela França e pela Grã-Bretanha. Como

3 Seria interessante questionar quão mais democrático do que KadaÞ seria seu ministro da “justiça”.

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retaliação, KadaÞ deixou que os emigrantes africanos ilegais usassem o território líbio para ingressar na Europa em frágeis embarcações, gerando uma crise, enquanto denunciava que a Al-Qaeda estava por trás dos levantes, o que prejudicaria o Ocidente caso ele caísse.

O presidente da África do Sul, Jacob Zuma, em visita a Trípoli, criti-cou a presença da OTAN, alegando que esta diÞ cultava a atuação da União Africana para a resolução pacíÞ ca do conß ito. Em junho, conforme a Reso-lução do Conselho de Segurança da ONU, dinheiro líbio era congelado, enquanto a OTAN declarava que não sairia da Líbia até a queda de KadaÞ , e os rebeldes rejeitavam as eleições ofertadas por ele. Rússia e Turquia Þ zeram propostas de mediação para uma transição política; a União Afri-cana aprovou, em julho, um novo plano de paz para a Líbia, enquanto o congresso norte-americano debatia a legalidade da intervenção militar que já durava três meses e deveria custar US$ 1,1 bilhão.

Entre abril e julho ocorreram intensas batalhas nas cidades de Brega, Misrata, Bengazi, Kotla, Ras Lanuf, Kufra, Yafran, Zintan, Trípoli, entre outras, além do bombardeio de instalações petrolíferas. Tratava-se de uma guerra de movimento, com veículos leves e rápidos, envolvendo choques de milícias de algumas centenas de homens nas cidades. Em meio a tais conß itos, diversas propostas de paz e de cessar-fogo foram feitas pela União Africana, com apoio de diversos países; em inúmeros momentos, porém, KadaÞ aÞ rmou que não aceitaria um cessar-fogo que tivesse como pré-condição sua rendição, sendo este o objetivo primeiro dos rebeldes e da OTAN. Em 16 de maio, o Tribunal Penal Internacional pediu a prisão de KadaÞ por crimes contra a humanidade, ao passo que advogados franceses, em 29 de maio, anunciaram que entrariam com ações contra Nicolas Sarkozy e a OTAN pelos mesmos crimes. Em 14 de julho, a Human Rights Watch acusou os rebeldes de saquearem, queimarem casas e abusarem de civis: “Em quatro cidades tomadas pelos rebeldes nas montanhas Nafusa ao lon-go do mês passado, rebeldes e simpatizantes daniÞ caram propriedades, queimaram casas, saquearam hospitais, casas e lojas, e espancaram alguns indivíduos acusados de terem apoiado as forças do governo”.4 Mahmoud Jibril, presidente do conselho executivo do Conselho Nacional de Transi-ção, aÞ rmou que as acusações seriam investigadas.

Em agosto, a tomada e retomada de diversas cidades, ora pelos re-beldes, ora pelo governo, continuou, assim como a escalada de violência no conß ito líbio. Em 21 de agosto, iniciou a batalha pela capital, Trípoli, sob pedidos de KadaÞ de que a população “lutasse até a última gota de sangue”. A cidade foi tomada pelos rebeldes. Em 25 de agosto, iniciou o avanço sobre Sirte, último reduto pró-KadaÞ . Em 2 de setembro, após o reconhecimento do novo regime por diversos países, este anunciou os pra-zos para a realização das eleições: oito meses para a assembleia constituinte e vinte meses para as eleições gerais. Em 8 de setembro, o ministro interino

4 Disponível em: <h p://www.hrw.org/news/2011/07/13/libya-opposition-forces-should-protect-civilians-and-hospitals>. Acesso em: 26 fev. 2012.

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da Saúde, NajiBarakat, ofereceu uma primeira estimativa do número de mortos ao longo da Guerra Civil Líbia: pelo menos 30.000 pessoas foram mortas, 50.000 foram feridas e 4.000 permaneciam desaparecidas. Apesar dos números não conÞ rmados, é um fato que os bombardeios destruíram importantes infraestruturas civis. Entre 16 e 20 de setembro, o novo regime foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas e pela União Africana.

Outubro foi o último mês da resistência kadaÞ sta. Em 20 de outubro, o Conselho Nacional de Transição capturou combatentes em Sirte, dando Þ m a um cerco de mais de dois meses e extinguindo o último reduto signi-Þ cativo de tropas leais ao líder deposto. Muammar KadaÞ também foi capturado e assassinado, num ato Þ lmado.5 Em 23 de outubro, Mustafa Abdel Jalil, líder do Conselho de Transição, declarou a libertação da Líbia após oito meses de levantes contra Muammar KadaÞ . Jalil prometeu defen-der a lei islâmica, anunciando à multidão: “Nós, como uma nação islâmica, tomamos a Sharia como fonte de legislação, assim, qualquer lei que contra-diz os princípios do Islã é legalmente anulada”.6 A poligamia foi restabe-lecida oÞ cialmente.

As circunstâncias da morte do ex-líder e de seu Þ lho, Mutassim, per-manecem bastante obscuras, havendo diversos depoimentos conß itantes de testemunhas oculares do evento. Segundo Sarah Leah Whitson, da Human Rights Watch, “descobrir como eles morreram importa, pois isso vai deÞ -nir o tom no qual a nova Líbia será dirigida: pela lei ou pela violência sumá-ria”7. Diversas organizações, incluindo as Nações Unidas, e países como os Estados Unidos e o Reino Unido pediram investigações para deÞ nir as exatas circunstâncias da morte de KadaÞ . Jalil anunciou que não se oporia a nenhum inquérito sobre o ocorrido, mas que não havia motivos para desconÞ ar do relatório oÞ cial, o qual aÞ rma morte em fogo cruzado (apesar das imagens em contrário).

O reconhecimento internacional do Conselho Nacional de Transição (CNT) como governo legítimo da Líbia e o descongelamento dos recur-sos do governo do país no exterior (boa parte dos quais seriam absorvidos por empresas que reparariam os danos) marcaram os últimos movimentos da guerra civil. O grupo de contato que coordenou as ações da OTAN se reuniu para discutir o futuro da Líbia em Paris com a presença do Secre-tário Geral da ONU, do representante do CNT e das maiores economias do mundo no início de setembro. Foi a oportunidade para a União Africana (UA) repensar sua posição de não-reconhecimento – a África do Sul não foi à Paris – do novo governo, apesar de Egito, Tunísia, Marrocos, Nigéria e Etiópia já o terem feito.

5 Aparentemente, uma “queima de arquivo”, pois as conexões estreitas de KadaÞ com os líderes europeus eram íntimas. Ele, inclusive, Þ nanciou parte da campanha eleitoral de Sarkozy.

6 Disponível em: <h p://www.islamweb.net/emainpage/index.php?page=articles&id=172553>. Acesso em: 26 fev. 2012.

7 Disponível em: <h p://www.usnews.com/news/articles/2011/10/23/libya-declared-liberated-but-qadhaÞ -death-questioned?PageNr=3>. Acesso em: 26 fev. 2012.

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A França fora o primeiro país a reconhecer, em 5 de março, o CNT como o único representante do governo líbio durante a Guerra Civil, en-viando embaixador à cidade de Bengazi, controlada pelos insurgentes. O chanceler francês, Alain Juppé, pediu na ocasião que os demais líderes da União Europeia dialogassem com a oposição líbia e seguissem o exemplo francês. O segundo país a reconhecer o CNT foi o Qatar, após Þ rmar acordo com os rebeldes para que as exportações de petróleo para os países do Golfo partissem de territórios administrados pelo Conselho. Cuba e os países sul-americanos da ALBA (Aliança Bolivariana para as Américas) adotaram posições contrárias ao CNT e à sua representação na AGNU. O mesmo ocorreu com a maioria dos países da SADC (Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral), mais Quênia e Guiné Equatorial. Em 3 de setembro, o Ministro de Assuntos Exteriores de Cuba declarou: “Cuba não reconhece o Conselho Nacional de Transição nem nenhuma autoridade provisória e somente irá reconhecer um governo que for estabelecido legiti-mamente e sem intervenção estrangeira”, mostrando-se crítico à interven-ção da OTAN.

Em seu discurso “inaugural”, em 23 de outubro, Mustafa Abdel Jalil anunciou que a Sharia (lei islâmica) seria a única fonte de legislação do novo governo. De tal maneira, a lei do casamento, que proíbe a poligamia e garante direitos às mulheres, e a lei do divórcio, que permite o mesmo – ambas instituídas por KadaÞ –, seriam anuladas. Muitos setores do país, em especial as mulheres, e países apoiadores da CNT alarmaram-se com tal declaração. No mesmo pronunciamento, Jalil prestou homenagem ao Conselho de Cooperação do Golfo, à Liga Árabe e à União Europeia. Decla-rou ainda que a OTAN havia desempenhado sua tarefa com “eÞ ciência e proÞ ssionalismo”.

Em 22 de novembro, o anúncio da composição do novo governo foi alvo de críticas, principalmente em Bengazi, aÞ rmando os críticos que o leste do país não estava bem representado. Inclusive, durante o conß ito, ocorreu o assassinato do líder de um dos grupos rebeldes por rivais, e quando Trípoli caiu, cada facção passou a controlar um distrito da cidade, sacudida por confrontos, saques e atos de violência contra populares e membros do antigo regime.

Na era da informação, o conß ito permanece envolto em mistério. KadaÞ havia, recentemente, cancelado a compra de caças franceses Rafalle; intentava transferir grandes somas dos bancos franceses e ingleses para a China (devido à crise bancária europeia) e estava redistribuindo contratos de petróleo (para os EUA, Brasil e países asiáticos), em detrimento de gru-pos europeus, que sempre desrespeitaram o embargo e compraram petróleo líbio subfaturado. Além disso, com a forte crise de liquidez e competição ener-gética, os europeus viram uma presa fácil numa vasta, rica e despovoada nação, governada por um líder autista e desgastado por quatro décadas no poder. E não perderam a oportunidade de implantar um regime aliado, que forneceu contratos de petróleo e reconstrução das estruturas (por eles

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destruídas) aos “amigos que libertaram a Líbia”. Também cabe destacar a necessidade de deslocar bases ocidentais do incerto Egito e de manter a China longe da região. Quem mais perde, porém, é a África, que recebia grandes investimentos líbios para o desenvolvimento. E foi justamente a extrapolação da Resolução da ONU que levou a China e a Rússia a não permitirem que a mesma política fosse aplicada à Síria.

Os confrontos na Síria e sua dimensão internacional8

A presidência da Síria, desde a morte de Hafez al-Assad, em junho de 2000, é exercida por seu Þ lho, Bashar al-Assad. Bashar foi eleito graças a sua indicação pelo partido Baas para a sucessão, legitimada através de um referendo, o qual concorreu sem opositores e, segundo o próprio governo, obteve mais de 97% dos votos. Sua presidência foi marcada pela realização de algumas reformas econômicas liberalizantes, por uma lenta abertura diplomática e pela persistência do autoritarismo político.

Durante a presidência de George W. Bush, a Síria foi incluída na lista de Estados componentes do Eixo do Mal, tendo enfrentado acusações por parte dos Estados Unidos de desenvolver armas de destruição em massa e oferecer auxílio a fugitivos iraquianos. Suas relações com o Hamas, o Hezbollah, a Jihad Islâmica e outros grupos palestinos radicais resultou na imposição de uma série de sanções por parte do governo norte-americano, entre elas a proibição de exportações de alguns produtos para a Síria.

Nos últimos cinco anos, ocorreu o restabelecimento de relações com diversos países, inclusive com os Estados Unidos e a União Europeia. A vi-sita do presidente francês Nicolas Sarkozy, em julho de 2008, abriu o cami-nho para o diálogo sobre a paciÞ cação do Oriente Médio e o cessar do isolamento diplomático do país. Em 2010, contudo, houve novas sanções por parte dos Estados Unidos, as quais estão sendo reforçadas diante dos confrontos entre o governo e as forças de oposição que se desenvolve no país atualmente.

A economia síria, quase totalmente gerida pelo Estado, foi liberali-zada nos anos Bashar al-Assad. Foram eliminados alguns subsídios e criados incentivos para o investimento estrangeiro. Em 2011, foram comple-tados dois anos do início das operações da Bolsa de Valores de Damasco. Novos bancos privados foram abertos, e houve crescimento do setor. Exis-tem, contudo, diversos fatores que comprometem a manutenção do cresci-mento econômico do país no longo prazo e que se relacionam fortemente com a conjuntura atual de manifestações no país. Entre eles estão a pres-são demográÞ ca, o aumento da demanda por energia e a dependência eco-nômica das rendas geradas pela exportação de petróleo.

8 Com a colaboração de Fernanda Lopes Silva.

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Em 2008, a Síria e o Líbano estabeleceram, pela primeira vez, rela-ções diplomáticas. O evento mais marcante da última década nas relações sírio-libanesas, contudo, ocorreu em 2005, quando foi feita a retirada de 14 mil soldados sírios do Líbano. Essa presença militar iniciara com o pedido de auxílio feito à Síria pelo governo libanês, que enfrentava pesados reve-ses na guerra civil ocorrida nos anos 1970. A forte pressão internacional pela saída das forças estrangeiras, intensiÞ cada pela ação do Conselho de Segurança da ONU, intensiÞ ca-se após o assassinato do ex-primeiro minis-tro libanês RaÞ k Hariri, pelo qual integrantes do Hezbollah são responsabi-lizados. Além disso, o conß ito com Israel, em 2006, intensiÞ cou o ß uxo de refugiados libaneses para a Síria.

O Þ m da ocupação israelense das Colinas de Golã, um dos eixos da política externa de Bashar al-Assad, permanece como um impasse nas negociações com Israel. Conversas entre oÞ ciais sírios e israelenses vinham sendo mediadas pela Turquia, com a expectativa de normalizar as relações entre os dois países. No decênio 2001-2011, dois ataques israelenses foram feitos à Síria. Em 2003, Israel atacou uma suposta sede de treinamento terrorista da Jihad Islâmica próxima a Damasco, em retaliação por um ataque feito a um restaurante em Haifa. Posteriormente, Israel realizou um ataque aéreo a Al-Kibar, pela suspeita de que a Síria estaria construindo um reator nuclear com auxílio norte-coreano. A ofensiva, conhecida como Operation Orchard, foi efetuada em setembro de 2007, supostamente com o apoio dos Estados Unidos. Bashar al-Assad alegou que o ataque havia sido perpetrado contra um complexo militar vazio em construção.

Em março de 2011, protestos eclodem em Da’ra, no sul do país, pedindo o Þ m do estado de emergência, a legalização dos partidos políticos e o expurgo de oÞ ciais corruptos do governo. A demanda pela abertura do regime remete aos primeiros anos do governo de Bashar al-Assad, quando ativistas políticos e membros da sociedade civil lançaram a Declaração dos 99 e a Declaração de Damasco que, entre outras reivindicações, clamavam por democracia no país.

Várias cidades foram palco de manifestações, incluindo a capital, Damasco, e a segunda maior cidade, Aleppo, tradicional reduto de movi-mentos islâmicos. Conforme a crise se alastrava pelo norte do país, o Exér-cito continha os manifestantes e tanques eram utilizados nas principais zonas de conß ito, com o país caminhando para uma guerra civil. Diante disso, o governo tentou, simultaneamente, fazer algumas concessões e miti-gar a insatisfação popular. O estado de emergência, em vigor nos últimos 48 anos, foi suspenso oÞ cialmente em abril, e o conselho de ministros foi dissolvido a pedido do presidente Assad. Adel Safar foi nomeado primeiro--ministro, e seu gabinete tomou posse em 14 de abril. Entretanto, o presi-dente não aÞ rmou ter a intenção de afastar-se do poder até o Þ m do seu mandato, alegando estar enfrentando gangues terroristas armadas e acu-sando parte da comunidade internacional de insuß ar esses grupos contra a autoridade nacional e conspirar contra o país.

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Os Estados Unidos e a União Europeia reforçaram sanções à Síria, as quais incluem o congelamento de ativos de oÞ ciais do governo e o embargo de armas. China e Rússia vêm tentando vetar qualquer iniciativa no âmbito das Nações Unidas que envolva a imposição de sanções. Desertores do exército que se juntaram aos manifestantes e militantes armados vindos do exterior alteraram o perÞ l das manifestações, gerando uma luta armada, segundo foi reconhecido pela própria oposição.

Parte da oposição se reuniu em Istambul e articulou-se em uma coalizão, o Conselho Nacional Sírio. Os insurgentes formaram uma milícia, o Exército Sírio Livre, composto por soldados que abandonaram o exército nacional. Declarações contra o uso da violência e de “métodos terroristas” pelas forças de oposição foram feitas pelo Ministério de Relações Exteriores da Rússia. O maior ataque feito pelo grupo até o momento foi contra uma base militar próxima a Damasco. Apenas a Líbia reconheceu o grupo como governo legítimo da Síria até o momento, mas os Estados Unidos já o consi-deram como representante legítimo da população.

Diante dos acontecimentos, dezenas de milhares de sírios buscaram refúgio na Turquia. A ONU estima que tenha havido 5 mil mortes desde o início das manifestações, mas as restrições à cobertura da mídia interna-cional no país tornam difícil a veriÞ cação das cifras lançadas por grupos de direitos humanos.

Há uma atmosfera de incerteza acerca do desfecho dos eventos na Sí-ria, e como eles afetarão as relações bilaterais com Israel e a paz no Oriente Médio, bem como a conÞ guração das alianças sírias com os grupos palesti-nos. O Þ m da relativa estabilidade na Síria acaba frustrando a expectativa israelense de Þ rmar acordos com o país antes da resolução da questão pales-tina. A presença dos monitores da Liga Árabe, chegados em 26 de dezembro passado, a princípio, parece não ter arrefecido as tensões internas no país.

Os múltiplos enfrentamentos no Iêmen e a ambiguidade internacional9

O Iêmen é um país montanhoso situado ao norte, com populações majoritariamente rurais e isoladas, com limitadas comunicações internas, e predominantemente desértico ao sul. Apenas 30% da população é urbana, e a maioria dos rurais se encontra em 35 mil aldeias, a maioria de acesso difícil. A superfície geral é de apenas meio milhão de km2 e a população de 25 milhões (18 no norte, com alto crescimento, e 7 no sul), boa parte dela tendo que trabalhar no exterior e remeter dinheiro para as famílias. O sul, que era socialista, é mais urbano e destribalizado, enquanto o norte é mais rural e as linhagens clânicas ainda são dominantes. Desde o Þ m da Guerra Iraque-Kuwait em 1990-91, mas especialmente depois da Guerra ao Ter-rorismo da administração Bush, o Iêmen tem sido um forte aliado dos EUA.

9 Com a colaboração de Isadora Ste ens.

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Ali Abdullah Saleh era presidente do Iêmen do Norte desde 1978, e, com a uniÞ cação entre Norte e Sul, em 1990 tornou-se o primeiro Presi-dente da República do Iêmen. Em mais de 30 anos de governo, o presidente Saleh enfrentou diversos desaÞ os à estabilidade do país, a começar pela guerra civil que estourou em 1994, causada pela tentativa do Sul de voltar a ser um Estado independente. Além do separatismo sulista, ainda forte, o governo combateu nos últimos anos o grupo terrorista Al-Qaeda e os re-beldes Houtis, de conÞ ssão xiita, no norte do país. O Iêmen é um dos países mais pobres do Mundo Árabe, com cerca de 42% da população vivendo com menos de US$2 por dia (UNDP, 2011), e enfrenta problemas como corrupção, desemprego e subnutrição.

O presidente Saleh procurou conciliar as diversas tribos e partidos políticos por meio de um esquema de lealdade, pela qual distribui rendas e favores entre tais grupos. Além dos benefícios distribuídos regionalmente, esse sistema inclui a partilha de posições no governo e no exército, o qual é composto de unidades que funcionam horizontalmente, cujos comandos pertencem aos familiares de Saleh e aos chefes tribais. O governo central também busca manter-se afastado de assuntos locais. Assim, apesar de o Iêmen ser considerado a primeira democracia do Oriente Médio, o sistema político funciona por meio de uma troca entre os grupos de poder, na qual Saleh fornece recursos econômicos e certa autonomia para os diversos gru-pos de interesse do país e em troca recebe apoio e ausência de real oposição dos mesmos.

Esse sistema de compra de lealdades tem-se mantido graças às ren-das petrolíferas. O Iêmen possui uma economia altamente dependente do petróleo, cujas rendas correspondem a 92% das exportações, número preo-cupante, dado que a produção tem decaído à medida que os poços se esgotam. O país falhou nas tentativas de diversiÞ cação da economia, dei-xando-a suscetível a mudanças bruscas dos preços do petróleo. O desem-prego atinge cerca de 16% da população, taxa ainda maior entre os jovens. Além disso, a alta taxa de crescimento populacional, estimada em 3% no censo de 2004, agrava a escassez de água e a fome que assolam o país.

Assim, parte da população se volta para atividades ilícitas, como a pirataria e o tráÞ co de armas, de pessoas e de drogas. O tráÞ co de armas acontece frequentemente por intermédio de membros corruptos do alto escalão do governo, ou até mesmo de oÞ ciais do exército, que se apro-veitam de sua posição privilegiada. As armas são em grande parte direcio-nadas aos piratas somalis, cujas práticas tendem a prejudicar o transporte marítimo no Golfo de Aden, causando problemas à exploração de petróleo o -shore e à pesca no próprio Iêmen. Além disso, o mercado interno tam-bém é importante, embora os dados variem muito. O Small Arms Survey 2007, que reconhece os iemenitas como uma das sociedades mais armadas do mundo, analisa os resultados divergentes de diversos estudos e coloca a estimativa de porte de armas dentro de uma larga margem de 32 a 90% da população.

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Além dos problemas citados, a ameaça mais grave ao governo de Saleh, até as revoltas de 2011, vinha sendo a guerra civil contra os rebel-des houtis do Norte. Caracterizados como terroristas por Saleh, perante a mídia internacional, os houtis fazem parte da seita xiita Zaydi e alegam sofrer discriminação do governo central. O movimento começou em 2003, com manifestações não violentas na província setentrional de Saada. Porém, quando os houtis acusaram o governo de agir a serviço de interes-ses americanos, Saleh interrompeu negociações e começou a prender os manifestantes, o que levou a uma reação violenta e à guerra. O conß ito devastou a região, e estima-se que 350.000 pessoas foram deslocadas como consequência. Desde então, a disputa tem altos e baixos, com momentos de trégua e tentativas de negociação intercaladas por lutas violentas. Em 2009, a Arábia Saudita entrou diretamente no conß ito quando os rebeldes penetraram seu território. Os sauditas têm interesse em conter os xiitas houtis, especialmente em virtude de sua rivalidade com o Irã. Em fevereiro de 2010, os sauditas se retiraram e foi assinada uma trégua entre o governo de Saleh e os rebeldes, iniciando mais um período de relativa paz no conß ito, embora os confrontos não tenham cessado completamente.

Ao contrário do que acontece com os rebeldes houtis, o separatismo no sul do país é majoritariamente não violento desde a guerra civil de 1994. Na ocasião, os líderes sulistas consideravam que sua inß uência era limitada na política central – como ainda o consideram hoje. Os interesses da população da região sul estavam sendo ignorados por um governo fortemente dominado pelos antigos políticos do norte, sob o pretexto de que a população nortista era maior. Além disso, a descoberta signiÞ cativa de petróleo no sul impulsionou o separatismo iemenita, considerando que a uniÞ cação havia sido feita no contexto de sérios problemas econômicos impostos pelo corte de ajuda soviética que o Iêmen do Sul antes recebia. Após a derrota de 1994, o separatismo sulista, embora sempre existente, tomou novo fôlego como movimento político em 2007, quando antigos membros do exército do Sul protestaram por receberem pensões consideradas baixas demais.

Um terceiro sério problema de segurança para o Iêmen é a forte pre-sença da Al-Qaeda na região. O governo foi acusado pelos Estados Unidos de lidar com o grupo de forma leniente e de não cooperar nas investi-gações do ataque suicida à embarcação americana USS Cole em Aden. Saleh percebeu a necessidade de uma mudança no tratamento dado à Al--Qaeda após atentados de 2001, para evitar problemas ainda maiores nas relações com os EUA, e passou a combater os militantes islâmicos, recebendo em troca auxílio Þ nanceiro e treinamento americanos. Porém, dois aconte-cimentos relevantes para o fortalecimento da Al-Qaeda devem ser destaca-dos. Em 2006, aconteceu a fuga de mais de 20 terroristas experientes de uma prisão iemenita, que voltaram a contribuir para a organização. Em 2009, as sucursais do Iêmen e da Arábia Saudita se uniram para formar a Al-Qaeda na Península Árabe, que opera do Iêmen. Assim, apesar da luta contra o terrorismo, a Al-Qaeda vem unindo esforços e se fortalecendo no país.

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Os protestos no Iêmen começaram em janeiro de 2011, inspirados pela Revolução na Tunísia. Os manifestantes exigiam a saída do presidente Ali Abdullah Saleh, democracia e melhores condições econômicas. Após diversas manifestações não violentas, o presidente buscou uma solução política para os protestos, oferecendo concessões. Saleh prometeu que nem ele ou seu Þ lho, Ahmed Ali Saleh, comandante da Guarda Republicana, iriam participar das próximas eleições em 2013; e que iria congelar o processo de mudanças constitucionais, evitando a eliminação dos limites do mandato presidencial. Adiaria, igualmente, as eleições parlamentares previstas para abril para permitir que uma reforma política fosse feita. Milhares de manifestantes, porém, demonstraram desconÞ ança em relação às promessas de Saleh, e saíram às ruas no dia seguinte para pedir a saída do presidente, enquanto manifestantes pró-Saleh alegavam que ele havia atendido aos pedidos da oposição.

No Þ nal de fevereiro, iniciou uma forte repressão aos protestos, com dois estudantes mortos em frente à Universidade de Sanaa, cujos portões tornaram-se um dos pontos de encontro mais importantes da revolta. Pró-governistas atiraram nos manifestantes, quebrando o que até então tinha sido uma ocupação pacíÞ ca da frente da universidade. A partir de então, tornou-se frequente a presença de ataques por atiradores sem farda pró-governo, que se posicionam em telhados de casas próximas às manifestações para atingir os presentes. No dia 18 de março, um episódio desse tipo causou a morte de cerca de 45 pessoas e uma escalada de violência e a comoção de toda a população iemenita. A crise política conse-quente do episódio gerou diversas demissões do governo, inclusive do embaixador do Iêmen à ONU. Chefes tribais também passaram a se mani-festar como favoráveis às manifestações, inclusive o General Ali Mohsen al-Ahmar, considerado um dos homens mais poderosos do país. Assim, a situação se encaminhava para a de guerra civil, com confrontos entre as tropas leais a Saleh e os líderes tribais e desertores do exército que lutam contra elas, com ativistas desarmados frequentemente pegos no fogo-cru-zado.

Os Estados Unidos, que inicialmente defendiam a permanência no poder de seu parceiro contra o terrorismo, passou a uma posição favo-rável à retirada de Saleh. Em abril, circularam rumores de que os EUA estavam mudando sua posição, o que se provou verdadeiro nos meses subsequentes. Os EUA temiam que o vácuo político fosse favorável à Al--Qaeda, e, na medida em que perceberam a queda de Saleh como inevi-tável, buscaram aproximar-se dos manifestantes. A União Europeia e a ONU também pediram que Saleh se afastasse.

Saleh, respondendo à pressão, aÞ rmou diversas vezes que estaria disposto a sair; porém, apenas por meio de eleições e garantia de um gover-no que considerasse estável. No entanto, por três vezes ele retrocedeu, no último momento, na decisão de assinar um acordo no âmbito do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), composto de países árabes da região, que

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busca uma solução pacíÞ ca para a crise. Segundo o acordo, Saleh deixaria o governo e em troca não seria julgado por crimes de guerra. A oposição iemenita não concordou com os termos do acordo, pedindo que Saleh fosse julgado pela repressão violenta das manifestações e acusando o presidente de adiar a assinatura do acordo para ganhar tempo para combater a revolta.

No dia 3 de junho, a mesquita onde Saleh estava foi atingida por um míssil, e ele sofreu graves queimaduras, viajando para a Arábia Saudita para receber tratamento médico. Sua ausência prolongada gerou a expec-tativa na oposição de que ele permanecesse por lá, porém seus familiares e tropas leais continuaram lutando no Iêmen. Formalmente, a autoridade passou para o vice-presidente, Abd al-Rab Mansur al-Hadi, também o candidato mais provável do Congresso Geral do Povo (GPC), partido de Saleh, no caso de uma transição forçada. Se o governo conseguir adiar as eleições até 2013, o candidato mais provável é Ahmed Saleh, pois ele terá completado 40 anos, idade mínima para a presidência, segundo a Cons-tituição. Saleh acabou retornando ao país no dia 23 de setembro e retoman-do a autoridade, com a situação ainda mais violenta e precária.

A instabilidade política deixou um vácuo de poder que podia agra-var os problemas já existentes dos rebeldes houtis, do separatismo do sul do país e do fortalecimento da Al-Qaeda. O governo dedicou seus maiores esforços às manifestações na capital, Sanaa, e arredores, mas, enquanto isso, os houtis obtinham o controle de boa parte da fronteira com a Arábia Saudita, os separatistas do sul controlavam as principais estradas da região, e a Al-Qaeda tomava cidades costeiras também no sul do país. Dia 19 de maio, a tomada da capital provinciana Zanjibar pelos militantes islâmicos provocou críticas da oposição, que acusam Saleh de permitir que a Al--Qaeda se apoderasse da região para sustentar sua alegação de que, sem ele, o grupo dominaria o país, buscando assim apoio internacional para perma-necer no poder. Além disso, disputas entre as próprias tribos pelo poder podiam acontecer.

O conß ito entre sunitas salaÞ stas e rebeldes xiitas houtis no norte do país se assemelha a uma guerra civil, e a frágil situação atual agrava a pobreza no país, com preços de alimentos subindo, altas taxas de desnu-trição e falta de suprimentos e de lugares nos hospitais. Serviços básicos essenciais estão interrompidos. Dia 21 de outubro, a Resolução número 2014 do Conselho de Segurança foi aprovada, condenando a repressão como crime humanitário. A Resolução se mostrou, porém, contraditória: ao mesmo tempo em que apoiava o acordo proposto pelo CCG, ela atendia também às demandas da jornalista Karman e outros ativistas, alegando que os responsáveis pelos crimes de guerra deveriam ser julgados. No dia 7 de novembro, o ministro das Relações Exteriores francês chegou a declarar que sanções contra o Iêmen seriam discutidas no âmbito da União Europeia em breve, indicando que a permanência de Saleh no poder era vista como inviável pelos países europeus.

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Finalmente, no dia 23 de novembro, Saleh assinou o acordo do Conse-lho de Cooperação do Golfo (CCG) para deixar o poder. Seus poderes foram imediatamente transferidos para o vice-presidente, Abd-Rabbu Mansour Hadi, que Þ cou encarregado de formar um governo com a opo-sição e convocar eleições presidenciais, que estão marcadas para o dia 21 de fevereiro de 2012. Hadi nomeou como primeiro-ministro Mohammed Basindwa, que atuou como ministro das Relações Exteriores do Iêmen nos anos 1990, e depois passou à oposição. A missão de Basindwa, agora, é conciliar os interesses dos grupos do país e formar o governo de transição. Os ativistas nas ruas aÞ rmaram que vão seguir com os protestos, até que todas suas demandas sejam atingidas, inclusive a de julgar Saleh por seus crimes na repressão das manifestações.

Não existe uma alternativa clara a Saleh. Apesar da Revolução Rosa (a cor adotada pelos manifestantes) estar logrando um dos seus objetivos, a oposição iemenita é altamente armada e dividida em interesses distintos, sem grandes chances de chegar a um consenso, o que faz o Ocidente vaci-lar. A existência de diversos chefes tribais com seus próprios exércitos parti-culares representa um obstáculo para a centralização do poder. Mesmo a Joint Meeting Parties (JMP), a maior coalizão de oposição, não possui a legitimidade popular e o consenso necessários para um governo. Dentro de três meses acontecerão as eleições presidenciais, e até lá a oposição preci-sará organizar-se para apresentar candidatos com apoio popular e capazes de lidar com as diÞ culdades políticas, econômicas e sociais que o Iêmen enfrentará nos próximos anos.

A estratégia de Regime Change das Revoluções Coloridas:faca de dois gumes

Como foi mostrado antes, há raízes populares sólidas nos levantes árabes, fruto do choque entre a mudança social modernizadora e democra-tizante e os regimes autoritários e desgastados. Muitos pagaram (e ainda pagam) com a vida a luta por suas ideias ou suas necessidades materiais. Um aspecto da máxima relevância, porém, levantado pela Primavera Árabe é a utilização explícita da estratégia de Mudança de Regime (Regime Change) das chamadas “Revoluções Coloridas”, um novo elemento das relações internacionais. É, basicamente, uma estratégia de mobilização para provocar uma mudança pacíÞ ca de regimes políticos desgastados, que se tornaram indesejáveis às grandes potências. Elas tiveram início como forma de derrubar os regimes comunistas do leste europeu (não mais apoiados por Gorbachev), especialmente na Alemanha Oriental e na Tchecoslováquia (Revolução de Veludo). Gradativamente, elas ganharam nova dimensão com a difusão da internet, da telefonia celular e das redes sociais.

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Posteriormente, a estratégia foi empregada com sucesso na Sérvia, em 2000 (Revolução Bulldozer); na Geórgia, em 2003 (Revolução Rosa); na Ucrânia, em 2004 (Revolução Laranja); no Líbano (Revolução Cedro) e no Quirguistão (Revolução Tulipa), em 2005. Mas na China, na Venezuela, no Irã (Verde), na Rússia, na Bielorússia, em Mianmar e no Zimbábue, entre outros, ela (ainda) não atingiu seus objetivos. Finalmente, chegou aos paí-ses árabes em 2011. Pode-se pensar que se trata de uma forma espontânea de luta política, possibilitada pela tecnologia da informação. Mas chama atenção que os slogans, os logos, a adoção de uma cor ou ß or padrão (com um kit completo que inclui camisetas, bandeiras, faixas e balões, que lem-bram as convenções partidárias dos EUA) e uma conexão comum com a grande mídia global possuem um padrão incrivelmente idêntico. Assim, como dizia o presidente norte-americano Franklin Roosevelt, “em política nada acontece por acidente. Se alguma coisa acontece, você pode ter certeza que foi planejado”.

Não existe prática sem teoria. Segundo os professores G. Sussman e S. Krader, da Portland State University/EUA, “as Revoluções Coloridas não são espontâneas, mas resultado de uma vasta planiÞ cação. Os Estados Unidos, em particular, e seus aliados exerceram nos Estados pós-comu-nistas uma impressionante gama de pressões e utilizaram Þ nanciamentos e tecnologias a serviço de ‘apoio à democracia’”.10 O teórico da nova téc-nica de mudança de regime é o politólogo norte-americano Gene Sharp, professor emérito de Ciência Política na Universidade de Massachuse s e pesquisador na de Harvard, que publicou a obra From Dictatorship to Democracy, disponível em 25 idiomas, inclusive em árabe.

Mas qual a razão para os EUA instigarem a derrubada de um velho regime amigo, ou tentarem direcionar um movimento que deseja fazê--lo? Em política, não há aliados permanentes, e alguns do Oriente Médio estavam perigosamente desgastados (lembrando-se de jamais repetir o erro de apoiar o Xá do Irã até o Þ m) enquanto outros reorientavam sua polí-tica e suas alianças, no contexto do desgaste da hegemonia americana. Para executar tal ação, nada melhor do que as Revoluções Coloridas, com seu método doce e sedutor de desestabilizar regimes odiosos (até ontem “respeitáveis”). Partindo do efeito surpresa, jovens idealistas lideram a “sociedade civil” e varrem os velhos, corruptos e ditatoriais, numa catarse apoteótica transmitida ao vivo, com imagens bem escolhidas.

Além do já exposto anteriormente, Mubarak colaborou na aproxi-mação entre Síria e Líbano, condenou a execução de Saddam Hussein e mantinha relações “geladas” com Barack Obama. A estratégia é perigosa, porque os EUA podem Þ car sem alternativas (Iêmen e petromonarquias) ou gerar oposição (Síria). Após anunciar a retirada do Iraque e a morte de Bin Laden, entretanto, o apoio à Primavera Árabe (com o retumbante

10 SUSSMAN, G.; KRADER, S. Template Revolutions: Marketing U.S. Regime Change in Eastern Europe. Westminster Papers in Communication and Culture. London, University of Westminster, v. 5, n. 3, 2008. p. 97.

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discurso em que Obama mencionou até um Estado palestino nas fronteiras de 1967 – depois recuou) permitiu obter a simpatia da massa árabe, que era antiamericana e antiocidental. O apoio à derrubada de ditadores odiosos por meio de jovens pró-americanos, instruídos, não violentos e munidos de novas tecnologias foi uma vitória. Muitos dos líderes foram formados nos EUA ou por organizações por ele Þ nanciadas. Chama atenção que ninguém queimou uma bandeira americana ou gritou slogans anti-imperialistas, apesar de Washington haver sustentado Mubarak no poder por 30 anos, e o medo era dos “islamitas”, que sempre Þ zeram oposição a ele.

Um dos resultados das revoltas, assim, foi afastar o antiamerica-nismo da cólera popular e de conter a Irmandade Muçulmana, numa operação de baixo custo econômico e político. Passou o tempo dos méto-dos violentos e grosseiros, como o que derrubou Mossadeg no Irã em 1953 e gerou um nacionalismo antiamericano persistente. Mais ainda, para os Estados Unidos, democracia está associada a economia de mercado, capitalismo. Como lembrou o megaÞ nancista George Soros, a sociedade aberta é acompanhada de economia aberta, com os mercados integrados à globalização, e o sindicalismo egípcio demonstrou estar previamente coop-tado pela central sindical americana AFL-CIO. Dessa forma, o resultado (parcial) da revolta é contraditório, anunciando futuros desdobramentos. A impressionante massa de pessoas que se levantou para lutar pela me-lhoria de suas condições de vida aceitará uma agenda apenas política de democracia (com limites) sem conquistas econômicas?

A primeira edição foi de 1993, redigida para os dissidentes de Mianmar e Tailândia. Sharp foi um dos criadores da Albert Einstein Institution, organização destinada a estudar a metodologia da resistência não-violenta. Robert Helvey, ex-coronel das forças armadas dos EUA, se encarregou de difundir essa estratégia política pelo mundo com a Þ na-lidade de desestabilizar regimes indesejáveis. Além dessa, outras institui-ções trabalham na mesma direção: USAID, National Endowement for Democracy (NED), International Republican Institute (IRI), National Democratic Institute for International A airs (NDI), Freedom House, Open Society Institute e, last but not the least, a Fundação Soros, uma das mais ativas.11 É preciso ressaltar, no entanto, que os europeus também são extremamente ativos nesta área, tanto através de fundações tradicionais e respeitáveis (que se ocupam apenas de estudos e da formação de opinião) como as ONGs, que são atuantes na linha de frente da luta política.

Essas organizações despenderam previamente milhões de dólares nos países afetados pelas Revoluções Coloridas, como se pode observar nos seus próprios sites. A metodologia empregada é ministrar cursos sobre democracia, direitos humanos, governança e outros temas correlatos, bem como selecionar ciberdissidentes e prepará-los para a ação política pacíÞ ca. Os instrumentos de “luta” são o Skype, o Facebook, o Twi er, a

11 BENSAADA, Ahmed. Arabesque Américaine. Le rôle des États-Unis dans les révoltes de la rue arabe. Montréal: Michel Brûlé, 2011. p. 27.

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Internet e o celular, sendo que o último teve um papel fundamental para a mobilização de massa, já que os demais ainda são acessíveis apenas a uma elite globalizada.

Na Jordânia, o ciberdissidente Oraib Al-Rantawi foi Þ nanciado pela NDI; no Iêmen, a jornalista Tawakel Karman recebeu apoio da NED e da ONG Women Journalists without Chains; na Argélia, a Coordenação Nacional pela Mudança Democrática recebeu recursos da NED e do sindicalismo norte-americano; e, na Síria, Tal Al-Mallouin, uma blogueira de 20 anos, que teve papel ativo no início do movimento, fez uma viagem de prepa-ração no exterior. Na Líbia, o Facebook chamou à manifestação não-violen-ta, que degenerou em confrontos em Bengazi, instrumentalizados por dissi-dentes do regime (o terrorista responsável pelo atentado de Lockerbie, entregue por KadaÞ , era natural dessa cidade). Um desses grupos era a Frente Nacional de Salvação da Líbia, criada pelo Sudão em 1981 (quando era aliado dos EUA) e recebeu Þ nanciamento saudita, francês e da CIA, tendo realizado um congresso nos Estados Unidos em 2007. Desde 2005, 10 mil egípcios participaram de programas e estágios sobre Democracia e Governança, Þ nanciados pela USAID e organizados pela NDI, pela IRI e por mais 28 organizações.12

Está, realmente, nascendo um novo Oriente Médio?

Como foi visto, a principal base da revolta na região é a moderni-zação em curso, como argumenta Emmanuel Todd, que tende à alfabeti-zação, redução da natalidade e democratização, embora esse último conceito tenha um signiÞ cado distinto ao do mundo anglo-saxônico. Vinte anos antes, Alexandre Roche sinalizava na mesma direção:

Com certeza, o radicalismo muçulmano, a miséria das gran-des massas muçulmanas dos vales do Nilo, Tigre e Eufrates, da Turquia, África e Ásia, somados à intolerância religiosa judia e às intrigas de políticas frustradas, podem retardar o processo de integração do Oriente Médio. Mas após as gran-des guerras, a tendência é a da consolidação de uma paz pragmática e moderada, talvez reacionária como a Europa moderna nascida da Santa Aliança. Contendo nela as pre-missas de transformações sucessivas que se farão, inevita-velmente, sob o peso da economia e da demograÞ a.13

Mas pouca coisa realmente mudou ainda, pois houve mais a saída de personagens detestados do que uma transformação de regime na Tuní-sia e no Egito, enquanto a situação permanece bloqueada no Marrocos,

12 BENSAADA, op. cit., p. 77.13 ROCHE, Alexandre. O Oriente Médio e as relações diplomáticas internacionais. In:

VISENTINI, Paulo G. F. (Org.). A grande crise: a nova (des)ordem internacional dos anos 80 aos 90. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 210.

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na Argélia, na Jordânia, no Líbano, no Irã e nas petromonarquias. A Ásia Central parece mais próxima do tipo de “democracia” praticada na Rússia de Putin, enquanto o Iraque e o Afeganistão se mostram bastante instáveis. Há um vizinho que talvez esteja encaminhando-se para a perda quase total da governabilidade, que é o Paquistão. A Síria e o Iêmen vivem guerras civis de base comunitária, com diversas forças apoiando o regime, num equilíbrio instável e sem uma solução estabilizadora à vista.

A única mudança profunda ocorrida, ou Revolução, foi a da Líbia, que melhor poderia ser considerada como Contra-Revolução (com inter-venção externa), pois restaurou um modelo social mais atrasado, sem a velha monarquia como elemento legitimador e mediadora entre os diversos clãs. Os revoltosos estavam sendo derrotados, e foi necessária a intervenção militar da França e da Inglaterra para obter a vitória de grupos minoritários e divididos. A situação futura no país é absolutamente imprevisível.

Na região há uma sociedade emergente que busca melhores condi-ções de vida e uma democracia não apenas política, com uma mudança social e econômica. Mas há espaço, igualmente, para, em médio prazo, se manifestarem tendências obscurantistas como reação à presença ocidental e à época de incertezas que se inicia. Todavia, é inegável que os Estados Unidos “orientaram” o processo de mudanças políticas e estão lançando uma nova agenda para a região. Trata-se, contudo, de um país em crise e que está procurando manter o Oriente Médio e a África Centro-Norte (com o Deserto do Saara no centro) sob sua inß uência, mas a um custo mais baixo. O Atlântico Sul, com seu novo petróleo, e a Ásia são as novas prioridades para Washington.

A geopolítica do Oriente Médio não mudou muito até 1991, quando ocorreu o Þ m da URSS e o consequente surgimento da Ásia Central e do Cáucaso e sua incorporação ao que Þ cou conhecido como o Grande Oriente Médio. Agora há um mundo novo, e a região não é mais simplesmente o ponto geográÞ co de contato entre três continentes, mas uma zona desor-ganizada, rica em petróleo e estratégica, em direção à qual potências gran-des e médias do entorno projetam seus interesses. Ali o que está em jogo é o desenvolvimento asiático, os interesses europeus e a inß uência americana.

Velhas alianças estão em desgaste, como no caso da Turquia, que almeja o papel de potência regional. Irã e Israel também disputam o pa-pel de potência regional, e para os EUA Israel representa, muitas vezes, mais um problema regional do que um aliado útil. Mas o papel do lobby judaico nas eleições americanas perpetua uma indeÞ nição que somente se agrava com o passar do tempo. Outro ponto que merece destaque é a discreta rivalidade entre os Estados Unidos e a Europa, potencializada pela crise econômica de ambos. Muitas das ações de Washington têm sido uma resposta para impedir o retorno de um “novo colonialismo” europeu na região.

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Por Þ m, a emergência dos Estados que compõe o BRICS e sua proje-ção para o Oriente Médio e a África, que cresceu durante a Guerra ao ter-rorismo, parece ter despertado os estrategistas americanos. Depois de encarar com desprezo a ascensão dos BRICS por mais de uma década, parece que há, no Oriente Médio e na África, um jogo de poder e uma dis-puta de formas de governança que podem pesar no equilíbrio mundial. E uma guerra de maiores proporções não pode ser descartada. Mas é preciso levar em conta o comportamento das populações locais, que pas-sam por profundas transformações, pois nem tudo será decidido na base das conspirações e da grande diplomacia.

Recebido em fevereiro de 2012.Aprovado em março de 2012.

The Arab Summer: Civil War and the international intervention in Libya, Syria, and Yemen

AbstractThe outbreak of the Arab Spring in 2011 has been characterized by the globalized discourse as a spontaneous popular mobilization in search for freedom. This demonstration would have been repressed, unsuccessfully, and would have initiated the transition to democracy, with Western support. However, these were the Colorful Revolutions of Regime Change, with (the) North American support in order to remove unwelcome and worn out allies. Nevertheless the Spring gave rise to a torrid Arab Summer with bloody civil wars in Libya, Syria and Yemen.

Keywords: Arab Spring. Civil wars. Libya. Yemen. Syria.

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