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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC / SP CLÁUDIO ALVAREZ FERREIRA O VINHO DAS ALMAS: XAMANISMO E CRISTIANISMO NO SANTO DAIME MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO SÃO PAULO 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC / SP

CLÁUDIO ALVAREZ FERREIRA

O VINHO DAS ALMAS: XAMANISMO E CRISTIANISMO NO SANTO DAIME

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

SÃO PAULO

2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC / SP

CLÁUDIO ALVAREZ FERREIRA

O VINHO DAS ALMAS: XAMANISMO E CRISTIANISMO NO SANTO DAIME

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

SÃO PAULO

2008

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião sob orientação do Prof. Doutor Edin Sued Abumanssur

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BANCA EXAMINADORA

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À Vanessa, companheira de todos os momentos, e à Tainá, Inaê e Theo, razões de nossas vidas.

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AGRADECIMENTOS

A Deus.

A minha esposa e filhos pelo amor que me dá forças.

Aos meus pais pelo apoio material.

Ao programa de Ciências da Religião da PUC-SP, seus professores e

funcionários, pela estrutura e conhecimentos necessários para a realização

desse trabalho.

À Capes pela bolsa de estudo.

Ao Professor Edin Sued Abumanssur, meu orientador, pela fundamental

orientação e pela tranqüilidade com que conduziu esse processo.

Ao Professor Ênio José da Costa Brito pelas inestimáveis contribuições

que enriqueceram essa pesquisa.

À Ada Maria pela acolhida e paciência.

A Fábio Pedalino Costa, Suzana Pedalino Costa e a todos os irmãos da

Igreja Céu do Gamarra pela disponibilidade e abertura para a realização da

pesquisa de campo.

À Marcela e Ana Carolina pela ajuda técnica crucial.

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RESUMO

O movimento religioso brasileiro, conhecido como Santo Daime, nasceu

na periferia de Rio Branco, estado do Acre, durante a década de 30, do século

XX. Fundado pelo maranhense Raimundo Irineu Serra, esse movimento

religioso tem como eixo central de sua ritualística a ingestão de uma bebida

sagrada conhecida como Santo Daime. Em decorrência de suas peculiaridades

e pela sua expansão pelo Brasil e pelo mundo, o Santo Daime se destacou no

cenário religioso nacional e internacional. Durante seu processo de formação,

foram sendo fundidas e reelaboradas matrizes religiosas das mais diversas,

como o cristianismo, o xamanismo amazônico, correntes esotéricas, o

espiritismo kardecista e as religiões afro-brasileiras. Considerando a matriz

xamânica como a mais importante, boa parte dos trabalhos acadêmicos sobre

o tema interpreta o Santo Daime como um movimento xamânico, levando em

conta as experiências extáticas dos participantes dos rituais daimistas, as

lideranças comparadas aos xamãs e os processos de cura com a bebida

sagrada. Entretanto, o que se observa, considerando-se o conjunto doutrinário

e de símbolos daimistas, é que existe um eixo central cristão que norteia todo

processo de reelaboração simbólica na constituição do Santo Daime. Portanto,

mais que um movimento xamânico, o Santo Daime é um movimento cristão,

estabelecendo uma forma muito peculiar de seguir os princípios do

cristianismo, profundamente influenciada pelas práticas e símbolos do

catolicismo popular brasileiro. Neste sentido, o Daime de Guarda, uma

categoria particular de utilização privada da bebida sagrada, se aproxima

amplamente do culto doméstico aos santos nas práticas católicas populares do

Brasil.

Palavras chaves : Santo Daime, cristianismo, xamanismo, Daime de Guarda

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ABSTRACT

The Brazilian religious movement known as the Santo Daime, was born at the

suburb of Rio Branco, state of Acre, during the 1930`s. Its founding father was

Raimundo Irineu Serra, from the state of Maranhão. This religious movement

has its ritual’s foundation stone in the ingestion of a sacred beverage known as

Santo Daime. Because of its peculiarities and for its expansion around Brazil

and the world, the Santo Daime stood out nationally and internationally in the

religious scenery. During its formation process, various religious sources had

been melted and reelaborated, such as: Christianism, amazon xamanism,

esoteric currents, the kardecist spiritism and african-brazilian religions.

Considering the xamanic source as the most important, most of the academic

papers regards The Santo Daime religion as a xamanic movement, taking into

account ecstatic experiences of participants in the Santo Daime rituals, leaders

being compared to xamans and the healings attributed to the sacrate beverage.

However, what has been observed, considering the doctrinary assemblage and

the daimistic symbols, is that there is a central Christian axis which guides all

the symbolic reelaboration that constitutes the Santo Daime. Therefore, even

more than a xamanic movement, the Santo Daime is a Christian movement,

stablishing a much more peculiar way of following the Christian principies,

deeply influenced by the praxis and symbols from the Brazilian popular

Catholicism. In this direction, The Daime de Guarda, a particular category of the

holy beverage’s private usage, approaches copiously the domestic saints’ cult

in the Catholic popular praxis in Brazil.

Key-words: Santo Daime, christianism, xamanism, Daime de Guarda.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................... 07

Capítulo I – Da floresta para a montanha........... ................................... 12

1.1 A floresta.................................................................................... 12

1.2 A montanha................................................................................ 37

Capítulo II – Xamanismo Juramidam.................. .................................... 45

Capítulo III – Cristianismo Juramidam.............. ...................................... 74

Capítulo IV – Daime de Guarda, o santo de casa..... .............................. 115

Conclusão.......................................... ........................................................ 135

Bibliografia....................................... .......................................................... 139

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INTRODUÇÃO

O movimento religioso e místico conhecido no Brasil como Santo Daime surgiu

nos anos 30, do século XX, na periferia de Rio Branco, estado do Acre.

Organizando-se a partir das visões de seu fundador, Raimundo Irineu Serra, ou

Mestre Irineu para seus seguidores, esse movimento religioso tem como eixo central

de sua ritualística e experiência mística a ingestão de uma bebida psicoativa

conhecida como Santo Daime1.

Essa doutrina religiosa incorporou e reelaborou, no seu processo de formação,

diversos elementos, como o xamanismo amazônico, o espiritismo kardecista,

aspectos mágicos das religiões afro-brasileiras e movimentos esotéricos

contemporâneos de diversas naturezas, sobre uma estrutura fundamentalmente

cristã.

Portanto, o Santo Daime é uma manifestação religiosa essencialmente brasileira,

marcada por um profundo polimorfismo religioso e por uma singularidade especial

que é a bebida sagrada, via de acesso ao auto-conhecimento e ao desenvolvimento

espiritual.

Nas últimas décadas essa doutrina se espalhou pelo Brasil e pelo mundo, com a

fundação de núcleos em todos os estados da federação e em países da Europa,

Américas e Ásia. Esse fato acabou trazendo uma grande relevância para o Santo

Daime, que saiu dos seus limites amazônicos iniciais para se tornar objeto da

atenção de um número cada vez maior de pessoas em âmbito global.

Na sua estrutura ritualística, o movimento religioso apresenta um conjunto

peculiar de rituais em que os participantes cantam e bailam2 ou permanecem

sentados em silêncio3, sempre utilizando uma vestimenta própria conhecida como

1 A bebida, considerada sagrada pelos membros do movimento religioso, é produzida a partir das folhas do arbusto Psychotria viridis e do cipó Banisteriopsis caapi, conhecidos, respectivamente, como rainha e jagube pelos daimistas. A utilização dessa bebida por grupos indígenas amazônicos é milenar e recebe outras denominações como dapa, caapi e yagé. Seu nome em quíchua é o mais difundido: ayahuasca. O princípio ativo encontrado é o DMT, dimetiltriptamina. Sobre os aspectos químicos e farmacológicos da bebida ler O Uso Ritual da Ayahuasca, organizado por Beatriz LABATE e Wladimir Sena ARAÚJO. 2 Os cânticos são chamados de hinos e o bailado, como é conhecido pelos daimistas, constitui-se nos passos específicos que os participantes fazem na maioria dos rituais, conhecidos como trabalhos de hinário. Normalmente, são dois passos para um lado e dois para o outro, sempre mantendo um lugar determinado em uma fila alinhada por tamanho, com homens e mulheres separados de cada lado do local de culto. 3 Os trabalhos de concentração, diferentemente dos trabalhos de hinário, são feitos em silêncio e com os participantes sentados. O objetivo é permitir um mergulho individual mais profundo.

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farda. Além desses rituais, normalmente realizados em lugares específicos,

chamados de igreja ou salão, existe o feitio, que é o trabalho de preparação da

bebida sagrada.

Um aspecto extremamente interessante do Santo Daime é o seu conjunto de

versos musicados conhecidos como hinos. Os hinos se constituem no receptáculo

doutrinário do movimento religioso, já que não existem outros veículos reconhecidos

pelos daimistas como legítimos difusores da doutrina. Eles conduzem os rituais e

são o eixo norteador da experiência extática4. Existe, porém, um elemento

fundamental no conjunto de hinários daimistas, que lhe garante um estatuto de

verdade incontestável para o adepto da religião. Os hinos não são compostos, como

qualquer música, mas recebidos pelos daimistas, portanto, ganham, assim, um

caráter sagrado. Sebastião Mota de Melo, um dos maiores expoentes do movimento

religioso, para explicar como se dá esse processo, afirma:

Todos aqueles que estiverem me escutando, estas palavras que estão vindo pelos hinos, não é nossa, carnal. Isso vem como se diz, que sai da minha boca e transmite em ti. O hino é uma coisa que entra na consciência da pessoa pela intuição ou por voz, de conformidade. O hino vem, mas não é a matéria que está trazendo aquilo. É o Eu de lá que está mandando para o Eu interno. Se o Eu interno está desenvolvido, logo ele recebe. Se não, ele ainda está muito enterrado, não saiu da sepultura, o Eu interno ainda não está ouvindo nada, está mouco5.

Exatamente por suas peculiaridades doutrinárias e ritualísticas, bem como por

sua crescente relevância no universo religioso brasileiro, essa pesquisa busca uma

compreensão mais aprofundada do movimento daimista. Pretendemos é mostrar

que, diferentemente do que propõe boa parte das produções acadêmicas sobre o

tema, o Santo Daime não é exatamente um movimento xamânico. Incorpora e

reelabora alguns elementos do xamanismo amazônico, mas é fundamentalmente

uma manifestação religiosa que tem como seu eixo doutrinário central o cristianismo,

dialogando com grande intensidade com o catolicismo popular6. Essa aproximação

4 Durante os rituais com o Santo Daime são percebidas em muitos participantes alterações motoras e sensoriais. Para os membros do movimento religioso essas experiências são entendidas como momentos em que o indivíduo se encontra em contato com realidades extra-materiais e não como uma simples alteração de consciência ou uma criação da mente humana. Dessa forma, essas vivências são interpretadas como extáticas, sendo a bebida sagrada o veículo para o êxtase religioso daimista. 5 Fernando de La Roque COUTO, Santos e Xamãs, p. 87. 6 A utilização das expressões cristianismo e catolicismo no desenrolar da dissertação tem uma razão. Quando se menciona o cristianismo a relevância está no conjunto de valores e bases éticas e morais da religião cristã. Por

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cria a possibilidade de se pensar em um Cristianismo Juramidam, ou seja, uma

forma muito peculiar de se vivenciar a experiência de ser cristão, nascida das

revelações de um seringueiro maranhense.

Para realizar esse mergulho no universo religioso daimista, recorreu-se à

bibliografia existente e a uma pesquisa de campo realizada na igreja Céu do

Gamarra, localizada na zona rural do município de Baependi, no sul do estado de

Minas Gerais. Foram realizadas entrevistas e tiradas fotos para se construir e

aprofundar a análise da categoria do Daime de Guarda, elemento presente nas

práticas cotidianas e privadas dos daimistas, com o qual será aberto um campo de

aproximação com as práticas devocionais domésticas do catolicismo popular.

Dessa forma, a dissertação se divide em quatro capítulos. O primeiro é

fundamentalmente um capítulo histórico, em que se levantam alguns aspectos

relevantes do processo de construção do movimento religioso e se apresenta um

breve relato da fundação da igreja onde foi realizada a pesquisa de campo. O

objetivo é buscar alguns elementos que esclareçam as matrizes culturais que

fundamentaram o movimento daimista e sua dinâmica de construção. Em relação à

história da igreja Céu do Gamarra, o interesse está na forma como o movimento

religioso vai se difundindo e novas igrejas vão se formando. Trata-se de um aspecto

importante para a compreensão do Santo Daime.

No segundo capítulo, é feita uma análise das produções acadêmicas que

sustentam a interpretação do Santo Daime como um movimento xamânico. São

levantados os principais tópicos da argumentação desses trabalhos, na tentativa de

perceber a profunda influência que o xamanismo tem nas práticas daimistas.

Pretende-se com isso estabelecer uma perspectiva que permita um diálogo com um

diferente ponto de vista, já que, apesar da ampla defesa que idéia do xamanismo

daimista encontra no meio acadêmico, a proposta é entender o Santo Daime a partir

de um outro olhar.

No terceiro capítulo, o objetivo é ressaltar o cristianismo como a principal matriz

religiosa daimista, embora não exclusiva, identificando-o como o eixo central em

torno do qual foram sendo incorporados e reelaborados os múltiplos elementos que

compõem o movimento religioso. Não se trata de negar a influência do xamanismo,

outro lado, a expressão catolicismo, particularmente na sua vertente popular, enfatiza o conjunto de crenças e práticas dessas manifestações religiosas.

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mas perceber a importância do cristianismo, particularmente através das

manifestações do catolicismo popular, como o principal arcabouço doutrinário e

simbólico do Santo Daime.

Por fim, no quarto e último capítulo, é analisada a categoria do Daime de

Guarda, estabelecendo um paralelo direto com as práticas devocionais domésticas

do catolicismo popular. A idéia é estreitar o diálogo entre o movimento daimista e as

experiências religiosas tradicionais do povo brasileiro. O Daime de Guarda é

entendido como o elemento que toma o lugar, para o daimista, do santo de casa do

católico nas intermediações privadas com o sagrado.

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CAPÍTULO I

Da floresta para a montanha

1.1 – A Floresta

Foi no interior da floresta onde nasceu o Santo Daime, mas o responsável por

sua difusão tinha suas raízes muito longe dali. Raimundo Irineu Serra nasceu em

São Vicente Ferrer, município que conta hoje com 18 mil habitantes, localizado a

280 quilômetros de São Luís, na região conhecida como Baixada Maranhense.

Lugar pobre, onde a principal atividade econômica era e ainda é a pecuária

extensiva e a lavoura familiar de mandioca, arroz e milho, São Vicente Ferrer tem,

atualmente, mais da metade de sua população vivendo na zona rural, espalhada em

pequenas comunidades e povoados. Foi em um desses povoados, conhecido como

Santa Teresa, localizado a 20 minutos de carro da sede do município, que, no final

do século XIX, em 15 de dezembro de 1892, veio ao mundo Raimundo Irineu Serra.

Nascido em uma família ainda numerosa no município, mas pobre como a

maioria das famílias na região, Raimundo Irineu Serra partiu dali ainda jovem.

Existem várias versões sobre a partida de sua cidade natal. Beatriz LABATE, em

uma pesquisa de campo que buscou resgatar as matrizes culturais maranhenses

que se encontram nas raízes do movimento religioso, coletou o seguinte relato de

Eugênio Serra, 68 anos, morador do mesmo lugarejo onde nasceu Raimundo Irineu

Serra e neto de uma de suas irmãs:

Paulo [irmão da mãe de Irineu] mandou ele tirar uma palha pros cavalos comer. Porque o Paulo criou ele, sabe? O pai do Irineu não dava conta, então o tio que era o responsável. O preto foi, mas reclamando, né? Aí o Paulo puxou a orelha dele e deu-lhe uma bronca. Naquela época ninguém respondia pra tio, hoje é que tá essa loucura de não respeitar ninguém. Irineu não gostou e foi-se embora7.

São conhecidas ainda duas outras versões sobre a partida de Raimundo

Irineu Serra na bibliografia pesquisada. Em uma delas, ele teria se envolvido em

uma briga depois de ter bebido muito em uma festa de bambaê (folguedo tradicional

7 Beatriz LABATE, O Uso Ritual da Ayahuasca, p. 308.

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da região) e, por conta disso, teria levado uma surra deste tio que o criou.

Inconformado, Raimundo Irineu Serra teria arrumado sua trouxa e partido para tentar

a vida em outro lugar. Na segunda versão, a questão seria um caso amoroso, em

que Raimundo Irineu Serra, depois de se apaixonar por uma prima mais velha, levou

uma surra da mãe, que desaprovava o relacionamento. Desgostoso e com muita

raiva, seguiu os conselhos de seu tio Paulo, que lhe sugeriu conhecer melhor o

mundo, pois ainda era muito jovem para se casar e nada entendia da vida. Dessa

forma, ele teria arrumado suas coisas e partido de sua terra natal.

Em depoimento do Sr. José das Neves coletado por Fernando de La Roque

COUTO, a versão do casamento e do conselho do tio é confirmada:

No tempo de novo, ele já não tinha mais pai, era só a mãe e o tio. Um dia o tio dele perguntou: Irineu, tu quer casar? Ele disse: quero. Olha, meu filho, eu vou te dar um conselho, não casa agora não, vai dar uma volta no mundo e depois tu te casa. Ele gostava muito desse tio e disse: vou-me embora para o Amazonas. Quando ele chegou aqui, foi parar no Peru para cortar seringa com conterrâneos dele, Antônio Costa e André Costa8.

Portanto, é impulsionado por problemas pessoais e em busca de novas

alternativas econômicas, que Raimundo Irineu Serra parte, no início do século XX,

para a região amazônica, na onda da exploração do látex. Entretanto, para um

entendimento mais profundo do movimento religioso do Santo Daime é importante

também se perceber o que ele carregava em sua bagagem, além das razões que o

levaram a mergulhar na floresta.

Em sua pesquisa de campo em São Vicente Ferrer, Beatriz LABATE abre

novas perspectivas para a análise das matrizes culturais que Raimundo Irineu Serra

levou do Maranhão para a floresta amazônica e se encontram nas raízes da

construção do movimento religioso daimista. Esse é um importante passo para uma

compreensão do Santo Daime como uma manifestação religiosa profundamente

marcada, por um lado, pela pluralidade, na fusão de diferentes formas de

relacionamento com o sagrado, e, por outro, pela flexibilidade, caracterizada pelas

incontáveis reelaborações simbólicas processadas no seu interior.

Beatriz LABATE, inicialmente, questiona uma visão exposta em alguns dos

trabalhos pioneiros sobre o Santo Daime, que afirmam que Raimundo Irineu Serra 8 Fernando de La Roque COUTO, Santos e Xamãs, pp. 45-46.

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teria sido influenciado, nas suas origens, pela religiosidade afro-brasileira a partir de

seus desdobramentos maranhenses, particularmente o tambor de mina, nome dado

aos cultos de possessão de origem africana praticados em terreiros no estado do

Maranhão. Dessa forma, um dos alicerces de sustentação do movimento daimista

estaria profundamente assentado do outro lado do Atlântico.

Vera FRÓES aponta em sua pesquisa pioneira essa influência das matrizes

religiosas afro-brasileiras na construção do movimento daimista quando afirma que:

Informantes do Alto Santo afirmam que o Mestre Irineu travou conhecimento no Maranhão com a famosa Casa das Minas, centro tradicional de preservação da cultura e da religiosidade africana no Brasil9.

Seguindo essa mesma linha de análise, está Alberto GROISMAN, que

reafirma a tese da influência das religiões afro-brasileiras nas raízes culturais

religiosas de Raimundo Irineu Serra. Segundo o pesquisador:

Sua família original estava ligada a estes cultos [afro-brasileiros], ocupando inclusive altas posições hierárquicas. Podemos partir da premissa que Mestre Irineu chega ao Acre já imbuído de um sentimento de profunda religiosidade, alimentado pelas concepções do espiritualismo afro10.

Entretanto, para LABATE, essa influência da religiosidade afro-brasileira na

matriz cultural maranhense de Raimundo Irineu Serra não seria tão marcante.

Segundo a autora, o estabelecimento de terreiros de culto afro-brasileiros na região

de origem do fundador do movimento daimista somente se processou após sua

partida:

O tambor de mina permaneceu confinado à cidade de São Luís até aproximadamente a virada do século XIX para o século XX, quando começou então a se espalhar para outros estados e para o interior do próprio estado. As referências mais antigas à fundação de casas de tambor de mina em cidades da Baixada Maranhense remontam à década de 1930, muito tempo depois da partida de Irineu11.

9 Vera FRÓES, Santo Daime, cultura amazônica, p. 36. 10 Alberto GROISMAN, “Eu Venho da Floresta”:ecletismo e praxis xamânica daimista no “Céu do Mapiá”, p. 35. 11 Beatriz LABATE, op. cit., p. 314.

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Durante as entrevistas em São Vicente Ferrer com familiares e conterrâneos

de Raimundo Irineu Serra, tampouco foram identificados indícios da participação

dele ou de qualquer pessoa próxima em terreiros de cultos afro-brasileiros na região.

Entretanto, foram colhidos relatos sobre um possível envolvimento de Raimundo

Irineu Serra em um folguedo característico da cultura negra do Maranhão, conhecido

como tambor de crioula. Dança de roda realizada ao som de tambores de tronco, o

tambor de crioula é uma manifestação profana. O que LABATE sugere é que a

participação de Irineu como exímio tocador de tambor neste folguedo, pode ter sido

interpretada erroneamente como participação em terreiros de tambor de mina.

Portanto, a matriz religiosa africana provavelmente não assumiu um lugar tão

relevante quanto o sugerido em algumas pesquisas na construção das raízes

religiosas de Raimundo Irineu Serra.

As evidências apontam para outra direção. Para LABATE, existem duas

matrizes culturais que se destacam na formação do universo religioso de Raimundo

Irineu Serra em terras maranhenses. Seriam elas a pajelança e o catolicismo

popular.

A pajelança, segundo LABATE, é uma vertente típica da religiosidade popular

maranhense, que congrega elementos do catolicismo popular, das culturas

indígenas, do tambor de mina e da medicina rústica cabocla do Maranhão. Também

conhecida como cura ou linha de pena e maracá, essa manifestação religiosa tem

como elemento central de sua ritualística a prática curativa de doenças e aflições,

através de um transe de possessão, no desenrolar de um ritual característico, com

invocação de diversas entidades espirituais e defumação com tabaco. Ligada a

algumas outras manifestações difundidas no Norte e Nordeste do país como o

catimbó, a jurema, o toré e as práticas terapêuticas populares da região, a pajelança

já dá sinais de sua presença na Baixada Maranhense desde meados do século

XIX12.

São muitos os elementos constituintes do simbolismo daimista que remetem

às origens maranhenses da pajelança e embasam essa tese. O termo “Doutrina”,

comumente usado pelo daimista para se referir ao movimento religioso ou a sua

estrutura doutrinária, também é encontrado no simbolismo da pajelança maranhense

com significado similar. O emprego de expressões típicas para indicar momentos ou 12 Beatriz LABATE, op. cit., pp. 315 e 316.

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condições específicas do ritual daimista, como “balanço” e “firmeza”, e a utilização

do maracá também são identificados em ambas as manifestações com grande

afinidade de sentido. Algumas entidades espirituais, como “Currupipipiraguá”, são

compartilhadas pelos dois universos simbólicos, além de recursos estilísticos que

estão presentes tanto nos hinos daimistas como nas cantigas da pajelança, como

por exemplo: “eu vim beirando a terra \ eu vim beirando o mar”. Completando esse

quadro, LABATE ressalta a importância da devoção a Nossa Senhora da Conceição

que se manifesta como um dos elementos simbólicos mais importantes no Santo

Daime e na tradição da pajelança cabocla maranhense. Elemento, inclusive, que

também pertence à outra matriz religiosa que se encontra na base da formação do

universo conceitual de Raimundo Irineu Serra: o catolicismo popular13.

É no processo histórico de construção da cultura nacional, que o cristianismo

se cristaliza como um dos alicerces centrais da religiosidade brasileira.

Principalmente no universo rural, o cristianismo no Brasil, introduzido na forma de

catolicismo, ganha contornos próprios, com desdobramentos que se estendem para

muito além dos mecanismos de controle da estrutura institucional católica, fundindo-

se profundamente com a cultura do povo brasileiro. Portanto, considerando-se as

evidências históricas, é possível concluir que as raízes culturais maranhenses de

Raimundo Irineu Serra estariam fortemente fincadas nas entranhas do catolicismo

popular brasileiro.

Em sua pesquisa de campo, LABATE identificou a mãe do fundador do

movimento daimista como “muito católica”14, fato que criou um ambiente doméstico

amplamente influenciado pelo simbolismo e pelas práticas do catolicismo.

Entretanto, a pesquisadora vai mais longe e procura reforçar essa aproximação

apontando elementos presentes no Santo Daime que remetem ao universo

simbólico de algumas tradições de festejos do catolicismo popular brasileiro, como a

festa do Divino Espírito Santo e o baile de São Gonçalo.

Uma das mais antigas manifestações da religiosidade popular brasileira, a

Festa do Divino Espírito Santo pode ser encontrada em quase todo o país. No

Maranhão, provavelmente chegou com os colonos açorianos a partir do séc. XVII e

acabou por se tornar uma das mais importantes expressões da cultura negra

13 Beatriz LABATE, op. cit., pp. 318 a 324. 14 Ibid., p. 325.

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maranhense, mantendo uma marcante relação com as manifestações religiosas

afro-brasileiras, na forma dos terreiros de tambor de mina. Esse festejo religioso

constitui uma data de destaque no calendário de festas sacras do catolicismo

popular brasileiro e existem indícios de sua presença em São Vicente Ferrer desde o

final do século XIX. Apesar de não existirem relatos da participação de Raimundo

Irineu Serra nas festas do Divino Espírito Santo em sua terra natal, LABATE coletou

depoimentos que dão conta de sua atuação em um folguedo realizado como

diversão após os festejos em homenagem à terceira pessoa da Santíssima

Trindade, conhecido como bambaê de caixa15.

No conjunto de práticas e símbolos daimistas podem ser identificados alguns

elementos que sugerem uma conexão com essa manifestação do catolicismo

popular brasileiro, como, por exemplo, um simbolismo compartilhado por ambas as

manifestações religiosas ligado aos temas “império” e “reinado”. No folguedo, essas

são as expressões que designam o conjunto de crianças, em torno do qual gira a

festa, enquanto, no Santo Daime, tais termos estão presentes em hinos, na idéia de

“Império Juramidam”16 e dando nome às plantações de rainha, chamadas de

“reinado”. Da mesma forma, podem ser percebidas significativas conexões no

conjunto das tradições musicais. Além do fato da música ser um elemento central

tanto na festa do Divino, como na maioria dos rituais daimistas17, existem claras

semelhanças temáticas, na estrutura poética, no estilo e na musicalidade das

cantigas levadas pelas Caixeiras do Divino18 e nos hinos do Santo Daime19.

Outra manifestação do catolicismo popular brasileiro que, segundo LABATE,

pode ser vista como influente nas raízes culturais de Raimundo Irineu Serra é a festa

de São Gonçalo. Presente na Baixada Maranhense desde meados do século XIX, a

festa de São Gonçalo consiste em um festejo religioso, realizado na forma de uma

representação, de cerca de duas horas, em que casais, devidamente paramentados,

15 Beatriz LABATE, op. cit., p. 325. 16 No movimento daimista, Raimundo Irineu Serra é identificado como “Chefe Império Juramidam”, o que, no simbolismo do Santo Daime, significa ser o comandante de um império celestial a ser concretizado na Terra através daqueles que seguirem seus ensinamentos, o “Império Juramidam”. 17 O movimento religioso do Santo Daime é profundamente marcado pela música, que se apresenta impregnada pelo sagrado, já que é recebida do “astral” para servir de veículo das “santas doutrinas” expressas nos hinos. Boa parte dos rituais, como os trabalhos de hinário, têm a música como um dos elementos centrais. 18 As Caixeiras do Divino são mulheres que tocam tradicionais tambores de madeira ou zinco encourado, enquanto entoam cantigas durante todas as etapas da Festa do Divino. 19 Beatriz LABATE, op. cit., pp. 324 a 331.

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realizam uma dança característica e recitam versos em louvor do santo, geralmente

em pagamento de promessa de algum devoto.

Os rituais daimistas e a festa de São Gonçalo se aproximam em aspectos

interessantes. Primeiro, é significativo o fato da dança ritual dos trabalhos espirituais

daimistas, assim como os passos realizados nos festejos de São Gonçalo, serem

conhecidos como “bailado”. Da mesma forma, a disposição arquitetônica dos

barracões onde se realizam as festas para o santo é muito parecida com as igrejas

mais tradicionais do movimento daimista. Outro ponto marcante diz respeito à

indumentária ritual. Em ambas as manifestações, as roupas utilizadas são

chamadas de “farda”, ternos brancos para os homens e os vestidos, também

brancos, para as mulheres. Além disso, ambas as manifestações compartilham as

coroas e as fitas coloridas que compõem as duas fardas femininas20. Musicalmente

também podem ser percebidas semelhanças, principalmente, rítmicas entre os hinos

daimistas e as músicas tradicionais que acompanham os festejos de São Gonçalo21.

Portanto, é possível identificar claramente alguns indícios que demonstram a

presença dessas manifestações do catolicismo popular na construção do movimento

daimista. É importante ressaltar, entretanto, que não se trata de descartar outras

influências na constituição das raízes culturais de Raimundo Irineu Serra. Pelo

contrário, as evidências apontam para uma raiz profusamente espalhada e fincada

em matrizes bastante heterogêneas. A participação da religiosidade afro-brasileira,

mesmo não tendo o relevo sugerido por alguns trabalhos, assume um lugar de

destaque, principalmente considerando-se a estreita relação entre o tambor de mina

e as manifestações do catolicismo popular maranhense. No entanto, não se pode

descartar a importância central, o papel de eixo norteador e aglutinador que o

catolicismo popular exerce na constituição do universo conceitual e simbólico do

fundador do movimento daimista.

Partindo de São Vicente Ferrer, Raimundo Irineu Serra teria passado por São

Luís, Manaus e finalmente chegou ao Acre, com vinte anos de idade, em 1912. A

20 No movimento daimista existem dois tipos de farda: a branca, composta de terno branco e gravata azul, para os homens, e saia pliçada branca, saiote pliçado verde, coroa e fitas coloridas, para as mulheres; e a farda azul, composta de camisa social branca, calça azul e gravata azul, para os homens, e saia pliçada azul e camisa branca para as mulheres. Em ambas as fardas, é fixada no peito uma estrela de seis pontas. A farda branca é utilizada para os trabalhos festivos de hinários ditos oficiais, enquanto a azul se destina para os outros tipos de trabalhos espirituais. 21 Beatriz LABATE, op. cit., pp. 331 a 334.

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região ainda vivia a explosão da exploração do látex e o estado, recentemente

incorporado à Bolívia, abria-se em oportunidades para esse negro que já se

destacava pela elevada estatura e pela vontade de vencer na vida.

Desembarcou inicialmente em Xapuri, onde residiu por dois anos.

Posteriormente trabalhou três anos nos seringais de Brasiléia e mais três anos em

Sena Madureira, engajando-se na Comissão de Limites, instituição federal

encarregada de delimitar as fronteiras do Brasil com seus vizinhos, Peru e Bolívia.

Foi neste período que os caminhos do jovem maranhense, Raimundo Irineu Serra,

cruzaram com a bebida sagrada amazônica ayahuasca, encontro que mudou a vida

dele e de muita gente.

Existem diferentes versões para o seu encontro com a ayahuasca. Vera

FRÓES afirma que o contato inicial se deu da seguinte maneira:

No processo de aprendizagem da utilização da ayahuasca com índios peruanos, mestre Irineu aprendeu a reconhecer o cipó jagube, a folha chacrona (rainha) na floresta e a preparar a bebida, tendo como companheiros de iniciação, André Costa e Antônio Costa, este último um conhecido curandeiro da região de Brasiléia, que teria fundado ali o primeiro centro esotérico de utilização da ayahuasca no Acre22.

Entretanto, outros autores apontam para direções diversas. Fernando de La

Roque COUTO coleta relatos de uma versão em que Antônio e André Costa,

conterrâneos de Raimundo Irineu Serra, levam o fundador do movimento daimista

para conhecer a ayahuasca com um conhecido vegetalista23 peruano chamado

Crescêncio Pizango. Informado inicialmente se tratar de coisa do Diabo, Raimundo

Irineu Serra chegou com a expectativa de passar por experiências negativas, mas,

quando começou a enxergar cruzes para todos os lados, percebeu que se tratava de

algo ligado à luz e não às trevas. Durante essas primeiras sessões com a

ayahuasca, as experiências iam se multiplicando, desde viagens astrais às cidades

por onde tinha passado, até contatos com um guardião espiritual da bebida

ayahuasca que lhe informava ser ele recebedor, em futuro próximo, de

22 Vera FRÓES, op. cit., p. 32. 23Curandeiro tradicional das zonas periféricas urbanas das cidades amazônicas do Peru e da Bolívia. Os vegetalistas tradicionalmente utilizam a ayahuasca como um dos ingredientes principais de suas sessões de cura.

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conhecimentos elevadíssimos. Foi quando surgiu a “mulher” que mudaria os rumos

dessa história24.

Para esse ponto todas as versões convergem. Segundo as pesquisas que

analisaram o surgimento do Santo Daime, os relatos coletados sobre os

acontecimentos desse período falam de uma entidade espiritual feminina que

acompanha Raimundo Irineu Serra desde o Maranhão. Essa entidade começa a se

manifestar durante suas experiências extáticas e acaba entregando a ele a missão

de fundar o movimento religioso daimista.

A respeito desse encontro, COUTO apresenta o depoimento de Raimundo

Gomes, antigo daimista:

Ele se preparou e ela se apresentou como uma entidade espiritual, soberana, dizendo que tinha uma missão para entregar a ele, mas que não era para ele enricar. Ele ia sofrer e trabalhar muito, mas não esperasse receber nenhuma recompensa material, só espiritual25.

Descrevendo esse mesmo episódio, Vera FRÓES expõe um relato que se

tornou o mais conhecido entre os daimistas:

Ele tomou o Daime e de onde estava deitado ficava fitando a lua. Lá vem, lá vem, lá vem e a lua ficou bem pertinho dele. Agora dentro da lua ele avistava sentada em uma poltrona, uma senhora divina mesmo. Aí então ela falou para ele: “quem é que tu achas que eu sou?” Ele olhou e disse: “para mim a senhora é uma Deusa Universal”. Ela falou: “tu tem coragem de me chamar de Satanás, isso e aquilo outro?” Ele respondeu: “não, a senhora é uma Deusa Universal”. Ela ainda falou: “tu achas que o que tu está vendo agora, alguém já viu?” O mestre Irineu refletiu e achou que alguém já podia ter visto, tantos que faziam a bebida, que ele podia estar vendo o resto. A senhora então disse: “O que você está vendo agora, nunca ninguém jamais viu, só tu. E eu vou te entregar esse mundo para tu governar. Agora tu vai se preparar, porque eu não vou te entregar agora. Vai ter uma preparação para ver se você tem merecer verdadeiramente. Você vai passar oito dias comendo só macaxeira cozida insossa, com água e mais nada. Também não pode ver mulher, nem uma saia de mulher a mil metros de distância26.

Esse é um momento emblemático na história do movimento daimista. É a sua

gênese, quando começa a emergir da floresta o Santo Daime. E é também um

momento que evidencia o caráter fluido e inexoravelmente marcado pela

24 Fernando de La Roque COUTO, op. cit., pp. 46 a 48. 25 Ibid. p. 49. 26 Vera FRÓES, op. cit., pp. 33 e 34.

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reelaboração de elementos pertencentes a diferentes matrizes, na construção dessa

manifestação religiosa. A entidade feminina, que se tornou um divisor de águas na

história de Raimundo Irineu Serra, é identificada como Nossa Senhora da

Conceição, uma das mais importantes manifestações da Virgem27. Portanto, o

simbolismo católico assume um papel central para o movimento daimista, servindo

de eixo de aglutinação para as outras matrizes religiosas que se fundem na

construção de sua estrutura simbólica e ritualística. Entretanto, é exatamente Nossa

Senhora da Conceição, esse ícone do catolicismo, que conduz o inexperiente

maranhense para o interior da floresta, para mergulhá-lo nos mistérios dessa bebida

sagrada milenar, uma iniciação interpretada pela maioria dos trabalhos acadêmicos

sobre o tema como xamânica. Dessa forma, foi sob a sombra das árvores que a Mãe

do Cristo, utilizando o universo de práticas ancestrais do xamanismo amazônico,

iniciou um seringueiro negro como o grande semeador do replantio das “santas

doutrinas” que um dia seu filho tinha espalhado aos quatro cantos.

Raimundo Irineu Serra passou o tempo determinado para seu aprendizado

inicial recluso na floresta, como determinado pelas esferas superiores. Só se

alimentava de mandioca sem sal e passava quase o tempo todo em estado extático,

vivenciando um aprendizado que não se consegue no banco da escola. Passou por

provações espirituais, enfrentou e conheceu entidades extra-materiais, aprendeu os

segredos ocultos da mata e do mundo, da bebida sagrada e das dimensões astrais

que lhe impunham agora uma missão. Uma dura jornada se abria pela frente, em

que ganhos pessoais e riqueza material não seriam encontrados nesse trajeto.

Depois dessa primeira etapa, vencidos os primeiros obstáculos, Raimundo Irineu

Serra iniciou os longos anos de trabalho com o Santo Daime, que acabaram por

transformá-lo em Mestre Irineu, o Mestre Império Juramidam.

Muitos são os aspectos que aproximam a iniciação de Raimundo Irineu Serra

de um rito de passagem xamânico. O fato de ter sido escolhido, o jejum e as

interdições, as experiências extáticas se estabelecendo como um processo de

aprendizagem de segredos imateriais e, finalmente, o surgimento de um novo ser

27 A lua é um símbolo profundamente ligado a Nossa Senhora da Conceição. Eem todas as imagens dessa manifestação de Maria sua presença é obrigatória. Nos relatos dos êxtases místicos de Raimundo Irineu Serra, a entidade espiritual feminina, identificada com Nossa Senhora da Conceição, aparece dentro da lua. Dessa forma, a lua acaba se tornando importantíssima no simbolismo daimista presente em diversos hinos, inclusive no primeiro hino de Raimundo Irineu Serra, Lua Branca, em que é exposta toda a sua devoção à Virgem Maria.

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iniciado. Todos são elementos que remetem à iniciação dos tradicionais curadores

indígenas. Segundo COUTO:

Observamos que esse preparo corresponderia à fase de separação, proposta por Van Gennep para os ritos de passagem. Ele faz uma dieta, se afastando da rotina de todos os dias, para viver durante o período da dieta, a fase seguinte de margem. Nessa fase, ele é iniciado, iluminado, se reintegrando na fase seguinte (reintegração) com um novo status, em razão das revelações que lhe foram entregues, entre elas a patente de Mestre do Império Juramidam28.

A ruptura com o passado estava feita e era necessário trilhar seu próprio

caminho. O resultado foi o afastamento de Raimundo Irineu Serra dos seus antigos

companheiros. Antônio e André Costa fundaram o Centro de Regeneração e Fé

(CRF), em Brasiléia, na década de 1920, primeiro centro a utilizar a ayahuasca com

uma estrutura ritual definida em um contexto urbano na Amazônia brasileira.

Entretanto, a missão do fundador do movimento religioso já estava traçada e ele se

muda para Rio Branco, onde, em 1930, inicia os trabalhos espirituais do Santo

Daime. FRÓES cita o depoimento do Sr. José das Neves, presente na primeira

sessão do novo movimento religioso:

Foi no dia 26 de maio de 1930 que comecei este trabalho com ele e trabalhamos até o falecimento dele, 41 anos e 41 dias. Naquele tempo, não havia farda e esse trabalho foi de concentração. Eram três pessoas. Já faz muito tempo. O nosso trabalho começou como uma aula. Ajunta quatro ou cinco meninos, faz uma sala e vai ensinando e vai chegando mais crianças, chega um ponto que tem 50 ou 100 alunos. Vai afinando, vai purificando os ensinos cada dia que passa. O professor vai indicando como é, o aluno vai aprendendo a carta do ABC. Naquele tempo era o começo de tudo. De 1935 a 1940 é que o Mestre vai desenvolvendo e recebendo os valores da doutrina, os hinos, a música que vem do astral, não é nada inventado29.

Como fica explícito no depoimento anterior, o Santo Daime passou por um

processo de construção gradual, uma aprendizagem realizada e incorporada no

desenrolar dos primeiros trabalhos espirituais, que lentamente foi estruturando o

ritual e a doutrina, criando o movimento religioso daimista. Dessa forma, os

elementos constitutivos do Santo Daime ganham status de revelação, criando uma

base ritualística e doutrinária como eixo central, mas aberta e dinâmica para futuras

reelaborações e incorporações.

28 Fernando de La Roque COUTO, op. cit., p. 50. 29 Vera FRÓES, op. cit., p.37.

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Na periferia de Rio Branco, Raimundo Irineu Serra se instalou inicialmente em

um bairro rural chamado Vila Ivonete, hoje incorporado à periferia da cidade. Os

trabalhos espirituais, no começo ainda restritos a um pequeno grupo, foram,

gradualmente, sendo conhecidos, principalmente pelos propalados poderes de cura

física, psíquica e espiritual da sagrada bebida consumida durante os rituais, que

começava a ser identificada pelo nome de Santo Daime.

As relações políticas de Raimundo Irineu Serra foram se ampliando no

mesmo passo que sua fama crescia, em Rio Branco, como grande curador.

Destacam-se os laços de amizade que envolvem o fundador do movimento daimista

e políticos importantes da época, como o governador Guiomar dos Santos e o

Coronel Fontenele de Castro. Entretanto, Raimundo Irineu Serra ainda continuava

levando uma vida humilde junto do pequeno grupo que o acompanhava, onde se

destacavam nomes, como o do Sr. Antônio Gomes, da Sra. Maria Marques, do Sr.

João Pereira e do Sr. Germano Guilherme, cujos hinários, mais tarde, ficarão

bastante conhecidos entre os seguidores do movimento30.

Entretanto, em 1945, Raimundo Irineu Serra recebeu, do então senador da

república, Guiomar dos Santos, uma considerável propriedade de terra na periferia

de Rio Branco, no local conhecido como Colônia Custódio Freire. Lá, construiu sua

casa, edificou uma bela e ampla igreja e fundou o Centro de Iluminação Cristã Luz

Universal, também conhecido como o Alto Santo. Nas novas instalações o

movimento cresceu em número de adeptos, chegando a ter entre 500 a 600 filiados.

É de grande relevância a forma como Raimundo Irineu Serra lidou com a

posse dessa propriedade rural. Assentando mais de quarenta famílias, Raimundo

Irineu Serra passa a liderar não só um movimento religioso, mas também uma

comunidade, organizada por ele nos princípios do compadrio e do trabalho coletivo,

muito caros à cultura rural brasileira. Segundo a pesquisadora Sandra GOULART,

são essas relações fundamentalmente comunitárias que estruturam o núcleo inicial

daimista. Característica marcante da sociedade rural brasileira, as relações de

compadrio e o trabalho coletivo ganham contornos próprios inseridos em um

contexto onde a liderança carismática de Raimundo Irineu Serra assumiu um papel

30 Antônio Gomes, Maria Damião, João Pereira e Germano Guilherme, pelo papel que tiveram nos primeiros anos de existência do movimento religioso, têm hinários amplamente reconhecidos, tanto pela corrente iniciada por Sebastião Mota de Melo, quanto pelo Alto Santo.

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central e aglutinador. Em depoimento de uma antiga daimista, a Sra. Cecília Gomes,

GOULART identifica os elementos dessas relações presentes já nos primeiros

momentos:

No começo era pouquinha gente (...) Algumas famílias que moravam encostado ao padrinho Irineu. Muitos já conheciam ele. Moravam ali pertinho, na Vila Ivonete. Tinham suas colônias. O Mestre também, tinha lá o roçado dele. Às vezes alguns deles trabalhavam juntos. Era tudo vizinho, compadre né, tinham de se ajudar (...) Daí, o padrinho Irineu já tinha aquela sabedoria. Um chegava, ia lá, pedia conselho. Às vezes pedia para ele consultar com o Daime, outras vezes não. Mas, o Mestre sempre atendia. Aí, a coisa foi se espalhando31.

Entretanto, esse trabalho coletivo, que se intensificou na Colônia Custódio

Freire e foi percebido como herança das relações sociais tradicionais do universo

rural brasileiro, pode ser entendido também de outra forma. Criar uma comunidade

que se sustentou nos princípios cristãos da irmandade foi concretizar um

fundamento doutrinário do movimento daimista. Portanto, a inspiração para

Raimundo Irineu Serra organizar sua comunidade baseada nas relações

comunitárias pode ter sido tanto resultado da sua bagagem cultural, enraizada no

mundo do homem do campo, como de uma tentativa de colocar na prática princípios

cristãos que alicerçam o Santo Daime, tais como igualdade e caridade.

Este foi um período de expansão que dinamizou a construção do movimento

daimista e cada vez mais evidenciou seu caráter eclético no estabelecimento de

suas estruturas simbólicas e rituais. É relevante o fato observado por COUTO:

É interessante notar que, na casa do Mestre Irineu, existe um certificado de filiação ao Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento, cuja sede é em São Paulo, e um outro certificado, da mesma entidade, concedendo-lhe honrarias em 195532.

Também é nesta fase que passa a fazer parte do grupo de seguidores de

Raimundo Irineu Serra um seringueiro amazonense de nome Sebastião Mota de

Melo, que marcou profundamente a história do movimento daimista, tornando-se

líder de uma de suas mais expressivas vertentes. Nascido em Eirunepé, em 1920,

por muitos trabalhou na exploração do látex no interior da floresta amazônica.

31 Sandra GOULART, Raízes Culturais do Santo Daime, p. 145. 32 Fernando de La Roque COUTO, op. cit., p. 58.

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Diferente de Raimundo Irineu Serra, Sebastião Mota de Melo teve contato, antes de

conhecer o Santo Daime, com a tradição espírita. Segundo Vera FRÓES:

Durante um ano nas matas do rio Juruá, o padrinho Sebastião aprendeu com mestre Osvaldo a realizar trabalhos com banca espírita, mesa e atuação, recebendo o médium cirurgião Dr. Bezerra de Menezes. Conforme o caso das pessoas que chegavam doentes para o mestre Osvaldo, ele despachava para o padrinho Sebastião fazer a cura33.

Suas experiências extra-sensoriais tiveram início já na juventude, quando lhe

foi revelado o seu futuro casamento com Rita Gregório. Quando se encontraram

pela primeira vez, anos mais tarde, Sebastião Mota de Melo já sabia que iria se

casar com essa potiguar, que também participou, com sua família do fluxo migratório

do látex. O casamento rendeu doze filhos e a possibilidade da família deixar o

Amazonas e se mudar para Rio Branco. A mudança feita em busca de melhores

condições de vida, também razões espirituais. Sebastião Mota de Melo seguiu as

instruções de mestre Osvaldo, seu guia espiritual, que recomendou a mudança para

a cidade, com o objetivo de se desenvolver espiritualmente, já que sua

aprendizagem na floresta havia acabado. Se desenham, assim, os caminhos que

levariam esse outro seringueiro ao encontro da bebida sagrada que, assim como

ele, saiu da floresta para a periferia da capital do Acre.

Em 1959, Sebastião Mota de Melo e sua família deixaram o seringal Adélia,

no rio Purus, e se instalaram em Rio Branco, na colocação onde já viviam alguns

irmãos de Rita Gregório, conhecida como Colônia Cinco Mil, nome dado devido ao

valor pago pelos lotes vendidos por cinco mil cruzeiros. Lá, a vida corria dura, com

muito trabalho no roçado junto com os cunhados e as sessões espíritas mais

restritas ao ambiente familiar, até Sebastião Mota de Melo ser acometido por uma

misteriosa doença.

Os médicos não sabiam dizer que mal afligia Sebastião Mota de Melo, que

por muito tempo sofreu com constantes sensações de engasgo, desconforto no

esôfago e uma desagradável baba viscosa. Procurou médicos e centros espíritas,

mas nada resolveu seu problema, sequer diagnosticado com precisão. E foi ouvindo

falar de Raimundo Irineu Serra, que já tinha uma fama de curador consolidada em

33 Vera FRÓES, op.cit., p. 52.

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Rio Branco, que Sebastião Mota de Melo procurou o Santo Daime em busca do fim

do seu calvário pessoal.

Em 1965, muito doente, Sebastião Mota de Melo fez seu primeiro trabalho

espiritual com o Santo Daime. Foi um divisor de águas na sua vida, uma experiência

extática que determinou definitivamente os rumos de sua história. Durante o

trabalho, Sebastião Mota de Melo desmaiou e viu, a partir de uma perspectiva

externa ao seu próprio corpo, ele ser destrinchado por uma equipe de médicos

espirituais, que retiraram de dentro de seu fígado, aí os relatos variam, bichinhos,

três ovos com larvas ensangüentadas, ou lagartas34. Depois do esqueleto ter sido

separado de seu invólucro de carne, órgãos e músculos, o corpo foi recomposto e

costurado, com os médicos informando que daquele mal Sebastião Mota de Melo

não sofreria mais. E, realmente, depois desse dia ele nunca mais sentiu nenhum

sintoma da doença misteriosa que tanto sofrimento havia lhe trazido. Mas a cura não

se processou exclusivamente no plano material. A partir daquela experiência, surgia

um novo homem, que começou a trilhar os caminhos do auto-conhecimento na

escola espiritual de Raimundo Irineu Serra. Como ele mesmo declarou:

Recebi minha saúde pelo Santo Daime, fui pela vida e recebi a vida. No Daime está a minha vida e a vida de todo aquele que busca. Buscando e sabendo o que está buscando, já achou a sua vida... Quem busca o Daime, busca a si mesmo, encontra-se com o seu Eu Superior que é Deus e para se ver Deus é preciso se ter uma educação. Respeitar desde os pequenos até os mais velhos, se não usar isso não pode dizer Eu Sou,35 porque Eu Sou é Deus e Deus é perfeito36.

E, assim como no caso de Raimundo Irineu Serra, alguns autores identificam

na entrada de Sebastião Mota de Melo no movimento religioso daimista uma

iniciação xamânica. A mudança para o Acre resultado de uma ordem vinda de

planos extra-materiais através de mestre Osvaldo, a doença desconhecida e

incurável por meios convencionais, a cura espiritual e o nascimento de um novo

homem que passa a trilhar um caminho em busca de conhecimentos superiores,

34 As três versões encontram-se, respectivamente, em Fernando de La Roque COUTO, Alberto GROISMAN e Vera FRÓES. 35 Essa é uma expressão que tem um significado simbólico muito forte entre os seguidores de Sebastião Mota de Melo. Com o hino Sou Eu ele legitima sua posição de liderança no grupo de seguidores de Raimundo Irineu Serra. 36 Vera FRÓES, op. cit., p. 55.

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acabando por se tornar um grande curador e líder espiritual. São todos elementos

que remetem à tradição de iniciação dos xamãs.

Passando a freqüentar na Colônia Custódio Freire, o Centro de Iluminação

Cristã Luz Universal, o Alto Santo, Sebastião Mota de Melo rapidamente começou a

se destacar entre os seguidores de Raimundo Irineu Serra. Recebeu a licença para

dirigir trabalhos espirituais e fazer o próprio Daime, na Colônia Cinco Mil, garantindo

sempre metade de tudo o que produzisse para o Alto Santo. Nesse período,

começou a receber um hinário que legitimou sua posição de destaque, projetando-o

como uma liderança de peso, abaixo do líder e fundador do movimento religioso,

com quem, inclusive, sempre manteve as melhores relações. Os hinos, como

inspiração divina, assumem um valor de verdade incontestável para o daimista.

Portanto, sendo reconhecido pelas lideranças e pelo grupo como autêntico, o hino

se torna um norteador de condutas e princípios. No hino Sou Eu, Sebastião Mota de

Melo afirma sua posição de liderança, como fica evidente na primeira e na quinta

estrofe do hino:

Sou eu, sou eu, sou eu

Eu posso afirmar

O mestre me chamou

Para eu me declarar

(...)

Meus irmãos, vou lhes dizer

Para todos aprenderem

Que debaixo da minha ordem

É que agora eu quero ver37

Enquanto Raimundo Irineu Serra era vivo, as tensões mais sérias nas

relações internas do grupo e o ciúme, que surgia em relação ao destaque que

estava tendo Sebastião Mota de Melo, um novato se comparado aos fardados mais

antigos do Alto Santo, ficaram sob o controle da autoridade incontestável de Mestre

Irineu. Mas, após sua morte, em 1971, a sucessão da liderança do Alto Santo gerou

o primeiro grande cisma no movimento religioso e um estremecimento nas relações

comunitárias, que começaram a se desestruturar em decorrência da ausência da

37 Sebastião Mota de Melo, O Justiceiro, hino 28.

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força catalisadora do líder falecido. Segundo o depoimento da Sra. Peregrina Gomes

Serra, viúva de Raimundo Irineu Serra:

Muitas vezes eu disse para ele que, quando ele morresse, não ia ficar aqui não. Porque mesmo com ele aqui a confusão já era grande, principalmente em tempo de broca de roçado. Lá vem fulano se queixar que um outro entrou no terreno dele. Ninguém tinha terreno demarcado aqui. Depois que ele foi embora, todo mundo ficou querendo ser dono das terras. Teve briga na justiça e tudo o mais38.

Quem assumiu a frente do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal foi o Sr.

Leôncio Gomes, filho de Antônio Gomes, um dos mais destacados daimistas da

primeira geração, e tio materno da viúva de Raimundo Irineu Serra, a Sra. Peregrina

Gomes Serra. A liderança de Leôncio Gomes foi mantida até sua morte, em 1981.

Entretanto, ela não teve o apoio unânime de todos os membros da irmandade

religiosa. Sebastião Mota de Melo, que contava com a simpatia de muitos fardados,

continuou freqüentando o Alto Santo, mas fazendo alguns trabalhos e o Daime na

Colônia Cinco Mil. Mas, em 1974, a dissidência se concretizou.

Segundo Vera FRÓES, a ruptura ocorreu devido ao fato do Sr. Leôncio ter se

negado a utilizar o Daime preparado por Sebastião Mota de Melo na Colônia Cinco

Mil, defendendo o monopólio do feitio da bebida sagrada para os feitores oficiais do

Alto Santo39. Já para COUTO, a situação foi diferente. O Sr.Leôncio tentou ficar com

todo o Daime produzido na Cinco Mil e, depois de um desentendimento com

Sebastião Mota de Melo em relação a como lidar com as investidas repressoras das

autoridades, que começavam a visar o movimento religioso em expansão na

periferia de Rio Branco, a separação definitiva foi inevitável40.

Entretanto, para ambos os autores, o hino Levanto essa Bandeira, de

Sebastião Mota de Melo, garante a legitimidade dessa ruptura, respaldando a cisão

com sua aura de revelação. Exatamente no momento mais crítico da crise de

relacionamento entre as duas lideranças, o hino é recebido e percebido como sinal

da direção a ser tomada. Sebastião Mota de Melo optou por levantar essa nova

bandeira, iniciar a história do seu povo, primeiramente edificando uma igreja na

Colônia Cinco Mil com sua família e os fardados, que, simpáticos a sua liderança,

38 Fernando de La Roque COUTO, op. cit., p. 65. 39 Vera FRÓES, op. cit., p. 56. 40 Fernando de La Roque COUTO, op. cit., p. 94.

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acompanharam-nos. E essa história ainda foi longe. O povo do Padrinho Sebastião

se multiplicou e se espalhou, levando o Daime para o mundo.

Na Cinco Mil, a experiência fundamentada nas relações de mutirão,

estabelecidas por Raimundo Irineu Serra na Colônia Custódio Freire, aprofundou-se.

As 45 famílias, que a partir de 1976, se reuniram em torno do uso ritual do Santo

Daime e da liderança de Sebastião Mota de Melo, se mobilizaram para se estruturar

de forma essencialmente comunitária, como resposta aos preceitos morais e aos

valores, fundamentalmente cristãos, que alicerçam o movimento religioso. Foram

unidas 25 colônias, gerando uma propriedade única de 380 hectares gerida em

bases igualitárias. Segundo Daniel Lopes, presente desde os primeiros momentos

da nova empreitada:

Formar uma comunidade foi uma conseqüência do trabalho espiritual. Não podia haver um trabalho onde de noite éramos irmãos e no dia seguinte agíamos como vizinhos, eu tenho o meu terreno e você tem os seus animais, que não atravesse os seus animais no meu terreno41.

A propriedade passou a ser comunitária e o trabalho organizado de forma que

os seus frutos eram partilhados entre todos. Alguns venderam todos os seus bens e

entregaram os recursos para serem investidos a partir das necessidades comuns,

em uma mudança radical de perspectiva, motivada, fundamentalmente, por um

imperativo doutrinário. Era um passo significativo na concretização de uma forma

absolutamente revolucionária de relação social e era também a materialização do

princípio cristão da igualdade. Estabelecida a comunidade, foi necessário criar duas

estâncias de relacionamentos, como mostra esse fragmento de um documento de

circulação interna da Colônia Cinco Mil:

A irmandade refere-se à participação de todas as pessoas que freqüentam os trabalhos espirituais com o Santo Daime, sem que haja envolvimento econômico e social dentro da experiência comunitária. A comunidade pertence aos que de livre e espontânea vontade despojaram-se de seus bens pessoais participando de todos os bens da comunidade. A irmandade é o primeiro passo para se tomar conhecimento da Doutrina. A comunidade é a prática viva dos ensinamentos da Doutrina42.

41 Vera FRÓES, op. cit., p. 67. 42 Ibid., p. 68.

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Os trabalhos espirituais e, principalmente as curas, chamaram a atenção para

a Colônia Cinco Mil e Sebastião Mota de Melo, que passaram a ser conhecidos em

toda Rio Branco. Muitos procuravam a solução para seus males físicos e espirituais,

enquanto alguns estavam em busca de um caminho que conduzisse ao sagrado.

Mas outros tantos chegaram atraídos pela proposta comunitária, como alternativa de

fuga dos grilhões do sistema capitalista. Chegaram de outras regiões do Brasil e de

países vizinhos, motivados pelo espírito aventureiro muito comum nas décadas de

sessenta e setenta do século passado, e acabaram ficando, dinamizando a

comunidade e abrindo as portas para o mundo. Agora era só uma questão de tempo

para o Santo Daime sair de seus limites amazônicos originais.

Institucionalmente, organizou-se o Centro Eclético de Fluente Luz Universal

Raimundo Irineu Serra, o CEFLURIS, pessoa jurídica que personificava a Colônia

Cinco Mil como entidade religiosa e filantrópica, fundada em março de 1978.

Atualmente é a instituição responsável pelo controle de uma série de igrejas e

pontos espalhados pelo Brasil e pelo mundo ligados à linha de Sebastião Mota de

Melo. Em seus estatutos, o CEFLURIS estabelece sua linha de trabalho espiritual na

tradição criada por Raimundo Irineu Serra, evidenciando a matriz básica cristã que

se constitui o eixo aglutinador do movimento daimista, mas ao mesmo tempo,

reforçando o seu aspecto plural. Além disso, demonstra sua preocupação com a

possibilidade de comercialização do Santo Daime, a atenção especial para com a

questão da cura e reforça a importância da prática comunitária, como fica claro nos

seguintes itens estatutários que estabelecem os principais objetivos da instituição:

1- Cultivar a doutrina implantada pelo eminente Mestre Imperador Raimundo Irineu Serra, tendo como princípio básico e fundamental o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo.

2- Adorar a Deus em espírito e verdade, sob o ritual específico do Ecletismo Evolutivo.

3- Preservar seu divino Sacramento de heresias e falsos princípios, coibindo sua profanação e comercialização.

4- Proporcionar sessões especiais aos que buscam o socorro espiritual para sanar seus males físicos e/ou psíquicos.

5- Propiciar o bem estar de seus membros, incrementando o sistema comunitário cooperativista.

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Entretanto, as condições materiais estavam se deteriorando na Colônia Cinco

Mil. Apesar do trabalho coletivo, a produtividade das terras, já muito desgastadas na

periferia de Rio Branco, caía sensivelmente, o que, somado ao aumento constante

no custo de vida na cidade, obrigou Sebastião Mota de Melo a tomar uma medida

drástica, o retorno para a floresta. O ano era 1980 e, com a autorização do INCRA,

boa parte da comunidade toma o rumo do Amazonas para estabelecer o seringal Rio

do Ouro, no município de Boca do Acre. Nas palavras de Sebastião Mota de Melo,

citadas por FRÓES:

Daqui vou me mudando, porque já me acho cansado de tanta luta aqui e os pastos já estão tão mal divididos que se planta uma coisa não dá mais, não tem aquele rendimento. Os próprios campos já estão acabados com carrapicho, coisa dura. Não se tem dinheiro para botar um trator e virar a terra e as condições de vida cada vez mais difíceis, o preço das coisas cada vez mais alto. Não dá pra mim não. Vou tratar da seringa, ela já está na mata, ta trancada, mas se tratar de zelar dela, vai dando o que comer. Aqui não dá mais43.

Evidentemente que não era uma empreitada fácil. As dificuldades se

multiplicavam já nos primeiros movimentos da mudança. As estradas de terra, sem

infra-estrutura ou grandes opções de transporte público, cortando a floresta, por si

só já representavam um obstáculo. Para fazer o deslocamento de todas as famílias

foi utilizado um caminhão adquirido com a venda de algumas glebas de terra da

Colônia Cinco Mil. Mas eram constantes os problemas e sua capacidade de carga

não era suficiente para levar tudo de todos. Portanto, muita gente acabou chegando

a pé com a bagagem nas costas. Outra enorme dificuldade foi a construção da

estrutura para receber a comunidade. Foi necessário derrubar a mata, construir as

casas, a escola para as crianças, preparar os roçados e as colocações de

seringueiras, tudo com recursos próprios, sem financiamento ou ajuda institucional.

As distâncias eram outra questão complicada. O seringal Rio do Ouro, nome dado

em decorrência da cor dourada das águas do igarapé que cortava a região, ficava

muito longe da sede do município, o que representava uma dificuldade a mais,

principalmente se for considerado o problema de assistência médica, questão

importante em um processo de ocupação da mata virgem, onde as pessoas acabam

se expondo a doenças, como a malária, e a acidentes.

43 Vera FRÓES, op. cit., p. 61.

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Mas, apesar de todas as barreiras, a mudança se concretizou e a

comunidade acabou se instalando no seio da floresta. Mas essa transferência não é

resultado, exclusivamente, das necessidades materiais do grupo. Existe também

uma motivação espiritual. No movimento religioso do Santo Daime a natureza é

sacralizada. A beberagem sagrada vem da floresta e foi nela que se processou a

iniciação de Raimundo Irineu Serra. Era na lua que Nossa Senhora da Conceição

estava. Dessa forma, é um ponto central na doutrina daimista a importância da

natureza como manifestação do transcendente. No hinário de Mestre Irineu existem

várias menções a esta questão, como na primeira estrofe do hino Sol, Lua, Estrela:

Sol, lua, estrela

A terra, o vento e o mar

É a luz do firmamento

É só a quem eu devo amar44

A floresta, em particular, é vista como um local especial, onde a ligação com o

divino é mais forte. Sob a copa das árvores existe um conhecimento que desvela

Deus, como esclarece o fundador do movimento religioso no hino De Longe, que na

primeira estrofe, fala de uma jornada do mar para a floresta em busca de seus

poderes:

De longe, eu venho de longe

Das ondas do Mar Sagrado

Para eu conhecer os poderes

Da floresta e Deus amar45

Em entrevista ao jornal Folha do Acre, em 30 de setembro de 1983, Alfredo

Gregório de Melo, filho e sucessor de Sebastião Mota de Melo na liderança espiritual

da comunidade, afirma sobre a questão:

Daí é que vem a nossa maior razão de procurar largar os vícios, os maus costumes, aquilo que é ligado à fábrica e que nós não podemos produzir lá na mata. Por que se não, nós vamos sofrer com essa decisão do Daime, chamando seus filhos para a floresta. É o Daime, se fosse nós, talvez não acontecesse, mas é o Daime que é da

44 Raimundo Irineu Serra, O Cruzeiro, hino 29. 45 Ibid., hino 110.

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floresta e chama para a floresta, porque ele é o caminho e, naturalmente, vai nos deixar exatamente aonde não vai pegar fogo46.

Portanto, quando a comunidade, sob a liderança de Sebastião Mota de Melo,

transferiu-se para o seringal Rio do Ouro, buscava, além de uma alternativa para as

dificuldades materiais, um caminho de aprimoramento espiritual. A natureza e a

floresta, como uma de suas manifestações mais esplendorosas, abrem as portas

para o divino. Alfredo Gregório de Melo, em seu hinário, O Cruzeirinho, aponta para

essa realidade:

(...)

O jardim é a floresta

Que o nosso Pai criou

Feliz serão aqueles

Que souber dar o seu valor

Estou na terra, estou na terra

Eu devo consagrar

Os seres dominantes

O sol, a lua, o vento e o mar

As estrelas do Universo

E toda a floresta

Nos daí Vosso conforto

E alegrai a nossa festa47

A afirmação da sacralidade da natureza e da necessidade de se viver em

maior contato com ela garantiu ao movimento daimista um caráter ecológico

bastante peculiar. Apesar de ter uma certa sintonia com as tendências

contemporâneas de conscientização sobre a importância da preservação dos

recursos naturais, os princípios preservacionistas do Santo Daime não se assentam

em fundamentos exclusivamente materiais. Conservar a natureza, para o daimista,

não se limita a uma necessidade economicamente importante ou crucial para a

sobrevivência humana no planeta Terra. É, antes de mais nada, uma questão

46 Fernando de La Roque COUTO, op. Cit., p. 109. 47 Alfredo Gregório de Melo, O Cruzeirinho, hino 9.

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espiritual. A natureza ser sagrada, permitindo uma maior proximidade com Deus,

transforma-a em um lugar especialíssimo. O local ideal para se viver, evidentemente,

de forma sustentável:

Trata-se de um movimento religioso ecológico que não deve ser entendido como uma fuga para mundos imaginários, pelo contrário, trata-se de uma entrada para dentro da floresta com o intuito de colonizá-la e preservá-la, além de uma entrada para dentro de si mesmo48.

Simbolicamente, a instalação da comunidade no interior da floresta ganha um

significado peculiar que remete, mais uma vez, ao universo religioso católico. É

neste ambiente, mais perto do transcendente, que será possível a construção da

Nova Jerusalém. A esperança bíblica da edificação da cidade santa se concretizaria

reelaborada no interior da Amazônia, estruturada em torno da beberagem sagrada

milenar do Santo Daime. Sebastião Mota de Melo finaliza seu hinário, O Justiceiro,

com um total de 156 hinos, em 1978. Entretanto, exatamente quando começa a se

processar a mudança para a floresta, ele recebe um outro hinário menor, com 26

hinos, que vai traduzir, em sons e versos divinos, a saga para a construção dessa

nova comunidade. Significativamente, o hinário recebe o nome de Nova Jerusalém.

Segundo COUTO:

No caso específico do Padrinho Sebastião, está a construção da Nova Jerusalém Amazônica, a salvação espiritual através da ereção de um mundo novo, o paraíso edênico, onde a comunidade afirma sua ordem interna, vivendo o paraíso neste mundo, atendendo ao chamado espiritual do Daime (que é parte da natureza: cipó e folha; e parte cultura: Império Juramidam)49

Mas o mergulho no mundo verde não parou em Boca do Acre. Em 1982,

quando a infra-estrutura da comunidade começava a se completar, com vinte e duas

colocações de seringa, somando um total de doze mil e quinhentas seringueiras

exploradas, produzindo anualmente quinze toneladas de látex, com casas para as

duzentas e quinze pessoas assentadas e as bases materiais para uma vida um

pouco melhor, uma nova mudança se anunciou. Durante os trâmites burocráticos

para a obtenção da documentação definitiva do assentamento, o INCRA esbarrou na

possibilidade, talvez forjada, das terras pertencerem a uma gleba muito maior de 48 Fernando de La Roque COUTO, op. cit., p. 113. 49 Ibid., p. 113.

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propriedade de uma empresa de fora da região, a Agropecuária Paraná. Esta, por

sua vez, iniciou um processo de reintegração de posse da área.

Apesar de todo trabalho despendido, da energia e recursos gastos e da falta

de indenização, Sebastião Mota de Melo decidiu, em 1983, partir com seu povo

ainda mais para o interior da floresta. Agora o destino seria o igarapé Mapiá,

afluente do rio Purus, no município de Pauini, Amazonas. Distante de qualquer

núcleo urbano, tendo como único meio de acesso pequenos barcos, em jornadas

que poderiam se estender por dois dias pelo labirinto verde dos cursos d’água

amazônicos, o novo assentamento se mostrou um desafio muito maior que o

anterior, mas mesmo assim, Sebastião Mota de Melo e seus seguidores iniciaram os

trabalhos para erguer a Nova Jerusalém daimista.

Os primeiros anos foram duríssimos. Os obstáculos pareciam intransponíveis,

afinal, tratava-se de construir toda a infra-estrutura para comportar e sustentar

dezenas de famílias, no meio da floresta amazônica, contando, exclusivamente, com

parcos recursos próprios e a força de vontade de cada um que se engajou nesta

empreitada, ao mesmo tempo, ecológica e espiritual. As dificuldades para a

construção das edificações, para a obtenção de alimentos e para o estabelecimento

das bases extrativistas do látex, além das constantes epidemias de malária, eram

questões materiais, que se somavam aos problemas gerados nas teias de

relacionamentos tecidas na comunidade e aos desafios impostos pelo caminho

espiritual, que eram sentidos individualmente pelos membros da irmandade. Mas

apesar das dificuldades, o sonho e a esperança de viver uma nova realidade davam

força para os seguidores de Sebastião Mota de Melo. Em pesquisa de campo,

realizada na comunidade, que passa a ser conhecida como Céu do Mapiá, realizada

no início da década de 90, Alberto GROISMAN identifica a experiência comunitária

vivenciada pelos membros do grupo:

No que se refere à infra-estrutura de reprodução social, ou seja, produção, distribuição e consumo de produtos alimentícios, a comunidade utiliza-se de procedimentos regulados por uma síntese entre os métodos tradicionais utilizados nos seringais (ou armazéns gerais), e concepções distributivas, consideradas pelo grupo como essencialmente “cristãs”, pontuadas pelo regime de partilha de bens e produtos de primeira necessidade, alimentos, moradia e serviços de saúde50.

50 Alberto GROISMAN, Eu Venho da Floresta, p. 20.

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Entretanto, um novo tempo despontava no horizonte. Ainda na época da

Colônia Cinco Mil, os trabalhos espirituais e a experiência comunitária liderados por

Sebastião Mota de Melo atraíram não só pessoas de Rio Branco e suas redondezas,

como também muita gente de longe, na maioria mochileiros e aventureiros que se

embrenhavam Brasil adentro em busca de descobertas. Esses se tornaram a ponte

para a saída do Santo Daime de seus limites amazônicos e abriram as portas para

sua difusão mundial.

Esse fato mudou sensivelmente a situação do assentamento no igarapé

Mapiá. Com o passar do tempo e a difusão do Santo Daime para além da floresta,

um novo e constante afluxo de recursos humanos e financeiros começou a fluir para

a comunidade e, conseqüentemente, a melhorar a situação extremamente difícil dos

primeiros anos. O Céu do Mapiá passou a ser visto como um ponto de referência

para os milhares de daimistas da linha de Sebastião Mota de Melo espalhados pelos

quatro cantos do globo, afinal, o lugar representa para muitos a concretização da

Nova Jerusalém. Segundo GROISMAN:

No campo simbólico, o Céu do Mapiá ocupa atualmente a posição de centro irradiador da Doutrina do Santo Daime, por isso assume o papel de “destino sagrado” para os membros do CEFLURIS. Ir ao Céu do Mapiá significa uma oportunidade fundamental para o desenvolvimento espiritual de cada um. Considerado por alguns membros da Doutrina como a Nova Jerusalém materializada, o Céu é o local de maior concentração simbólica do grupo, é “onde tudo acontece”51.

Dessa forma, processou-se gradualmente uma transformação considerável,

no que diz respeito às condições de vida dos integrantes da comunidade. Depois de

24 anos, a vila cresceu e passou a contar com a possibilidade de acesso à internet,

com estabelecimentos comerciais e pousadas, realidade inimaginável nos

duríssimos primeiros anos de mergulho na floresta. Mas o preço pago foi

considerável, se forem levados em conta os princípios comunitários que

fundamentaram os primeiros momentos da existência do grupo e que se

51 Alberto GROISMAN, op. cit., p. 22.

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enfraqueceram sensivelmente com todas essas mudanças. O progresso material

talvez tenha saído caro demais para o desenvolvimento espiritual da irmandade52.

Mas é também nessa esteira de difusão do Santo Daime, na linha de

Sebastião Mota de Melo, que a beberagem sagrada vai sair da floresta e acabar por

subir as encostas da Serra da Mantiqueira, em Minas Gerais.

1.2 – A Montanha

A chegada de pessoas de fora da região amazônica à igreja de Sebastião

Mota de Melo foi o principal fator que permitiu a fundação de novos núcleos

daimistas em outros estados brasileiros e em diversos países. Entre os primeiros

que escolheram trilhar os caminhos da floresta e mais tarde fundaram igrejas, que

foram as grandes responsáveis pela difusão do Santo Daime fora da região

amazônica, está Paulo Roberto Souza e Silva, que chegou em 1976 e fundou a

igreja Céu do Mar, no bairro nobre de São Conrado, no Rio de Janeiro. Em 1978, foi

a vez de Marco Imperial, posteriormente comandante da igreja Rainha do Mar, em

Pedra de Guaratiba, também na cidade do Rio de Janeiro. Fernando de La Roque

Couto chegou em 1979 e fundou mais tarde a igreja Céu do Planalto, em Brasília. O

último dessa primeira geração de comandantes de igrejas difusoras, Alex Polari de

Alverga, chegou em 1980 e fundou depois a igreja Céu da Montanha, em Visconde

de Mauá, no estado do Rio de Janeiro.

A partir dessa primeira geração de igrejas fora da Amazônia, começaram a

surgir novos núcleos. É exatamente nessa segunda geração que se encontra a

igreja Céu do Gamarra, o CEFLUGG, Centro Eclético de Fluente Luz Universal

Germano Guilherme, fundada no final da década de 80, por Fábio Pedalino Costa e

Suzana Pedalino Costa, no município de Baependi, Minas Gerais.

Tudo começou na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Suzana

Pedalino Costa conheceu o Santo Daime, primeiro através das letras, com a obra de

Alex Polari de Alverga, O Livro das Mirações, que narra a experiência do autor com

a bebida sagrada sob a direção espiritual de Sebastião Mota de Melo. O encanto

52 O interesse pelo movimento religioso cresceu muito nos últimos anos, o que gerou uma série de reportagens sobre o tema, sendo a última uma matéria da revista SUPERINTERESSANTE, de março de 2007 em que aparecem alguns dados sobre as condições materiais e a infra-estrutura da vila Céu do Mapiá.

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imediato levou-a a procurar uma forma de vivenciar aquela outra realidade. A busca

iria até o fim e aos confins do Brasil se necessário, sendo a intenção partir para o

Acre. Entretanto, não foi preciso nem sair do bairro em que moravam, São Conrado.

Fábio Pedalino Costa descobriu, em uma conversa informal com amigos, que na

cidade do Rio de Janeiro existia uma igreja do Santo Daime e que ela ficava

exatamente em São Conrado.

Era novembro de 1985, quando Suzana Pedalino Costa e Fábio Pedalino

Costa conheceram a igreja Céu do Mar, ainda nos momentos iniciais de sua história.

E já no primeiro trabalho espiritual com o Santo Daime, Fábio Pedalino Costa

passou por uma fortíssima experiência extática, que determinou de maneira

inequívoca o futuro desse jovem carioca de classe média. Em pouco tempo estaria

largando sua promissora carreira de advogado para se dedicar a fundar uma igreja

do Santo Daime no interior de Minas Gerais.

O envolvimento do casal foi imediato. Presentes em todos os rituais, nos

momentos de confraternização ou de trabalhos comunitários da irmandade, em

cinco meses estavam fardados e fazendo parte oficialmente do grupo sob a direção

espiritual do psicólogo carioca Paulo Roberto Souza e Silva, fundador e comandante

da igreja Céu do Mar. A empatia com o movimento religioso, suas práticas e

princípios doutrinários foi total e instantânea. O estudo dos hinários e a

internalização dos preceitos aconteceram de forma quase natural. A vida da família,

o jovem casal tinha dois filhos pequenos, passou a ser norteada pela orientação

religiosa que ecoava da floresta a partir dos cânticos e da bebida sacralizada do

Santo Daime.

Os dois ainda davam seus primeiros passos no movimento religioso, quando

a igreja Céu do Mar recebeu a visita de Sebastião Mota de Melo e sua família. Era a

primeira vez que o velho seringueiro saía da sombra das matas amazônicas. A idade

avançada e problemas de saúde obrigaram o líder espiritual do Céu do Mapiá a

buscar recursos na cidade grande. A condição de Padrinho Sebastião possibilitou o

seu acesso às facilidades do mundo moderno, o que, de outra forma, não existiria

para o seringueiro Sebastião.

A igreja ainda estava nos seus primórdios, uma pequena choupana sobre

uma elevação, encastelada na Floresta da Tijuca, avistando o mar de cima do

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maciço montanhoso. Eram poucos os fardados engajados e muito serviço a fazer

para preparar a infra-estrutura para receber Sebastião Mota de Melo e sua

numerosa família. Foi necessário construir as casas que iriam receber os visitantes,

o que foi feito através de mutirões, em que os homens se encarregavam do trabalho

pesado de edificação, enquanto as mulheres cuidavam da alimentação do grupo.

Eram em dias assim, cansativos e prazerosos, que se consolidavam os laços

comunitários, fundamentais para os princípios daimistas, entre pessoas de classe

média urbana, que nada carregavam da experiência comunitária tradicional do

homem do campo.

Com pouco tempo de fardados na igreja Céu do Mar, coube ao casal cuidar

do bem-estar de Sebastião Mota de Melo, que não estava bem de saúde, e

encontrava-se com seus familiares em um sítio de um membro da irmandade na

periferia da cidade do Rio de Janeiro. Era preciso ficar inteiramente disponível para

qualquer necessidade dos visitantes, o que significava um tremendo sacrifício, que

exigiu dos dois abandonarem suas obrigações cotidianas e o cuidado com os filhos

pequenos, para se dedicarem à missão. Entretanto, foi uma experiência

extremamente importante na trajetória de Fábio e Suzana Pedalino Costa.

Entendiam a possibilidade de servir de forma tão próxima esse expoente do

movimento daimista como uma verdadeira honra. E, durante esses momentos que

passaram juntos, uma verdadeira amizade acabou por se construir entre eles.

Um detalhe interessante desse encontro com Sebastião Mota de Melo foi seu

comportamento. Segundo Suzana Pedalino Costa, ele demonstrou estar

extremamente acanhado diante da deferência com a qual estava sendo tratado no

Rio de Janeiro. Apesar de sua liderança religiosa na comunidade Céu do Mapiá, lá

ele ainda era o mesmo velho seringueiro de sempre, mas, no Rio de Janeiro, ele era

o Padrinho Sebastião. Como era a primeira vez que vinha para o sudeste, Sebastião

Mota de Melo não estava acostumado com esse tratamento especial, mantendo-se

sempre tímido, mas normalmente alegre e espontâneo, o que permitiu uma

aproximação muito grande com o casal destacado para cuidar de seu bem-estar.

O tempo foi passando e os laços foram se estreitando, sempre com a

participação assídua da família Pedalino em todas as atividades da igreja. Até que,

após uma oração de domingo, Sebastião Mota de Melo convidou o casal para um

trabalho espiritual especial, em que, nas palavras de Suzana Pedalino Costa: “o

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Padrinho convidou a gente para conhecer sua casa, mas não a casa da terra, no

Mapiá, mas a do astral”. O trabalho foi feito especialmente para os dois, somente

com nove pessoas escolhidas para dar suporte ao ritual. Foi servido um copo grande

e cheio, em uma quantidade reservada somente para situações muito especiais.

Segundo o depoimento de Suzana Pedalino Costa, quando o estado extático de

consciência se instalou, ambos passaram pelas mesmas experiências, sempre sob o

comando e coordenação de Sebastião Mota de Melo, que também vivenciava o

mesmo êxtase místico. Para Suzana era São João que estava presente, mostrando

toda a história do Santo Daime e o que o futuro reservava para o Rio de Janeiro,

quando ela viu ondas enormes inundando toda a cidade. O trabalho durou horas,

estendendo-se do início da noite até as quatro horas da manhã. No final, Sebastião

Mota de Melo se encontrou reservadamente com o casal, quando foi travada a

seguinte conversa, narrada por Suzana Pedalino Costa:

O Padrinho perguntou se a gente tinha visto o que ele mostrou. E, apontando para uma grande pedra que tem lá no Céu do Mar, ele disse: “vai bater aqui, minha filha, as ondas vão bater aqui. Então eu quero que vocês vão embora, porque vocês têm uma missão que é fundar uma igreja longe daqui e eu estou dando isso a vocês53.

Era uma decisão difícil, principalmente porque a idéia inicial de Sebastião

Mota de Melo era que a igreja fosse fundada em Boca do Acre. Por isso deixou que

ambos fossem para casa pensar sobre o assunto. Entretanto, saindo desse

encontro, Suzana Pedalino Costa sofreu uma queda e quebrou o pé, sendo obrigada

a engessá-lo.

No dia seguinte, convalescendo em casa, o casal recebeu a visita de

Sebastião Mota de Melo e sua esposa, Rita Gregório de Melo. Assim que chegou, o

líder espiritual do Céu do Mapiá perguntou a Suzana Pedalino Costa se ela tinha

visto quem colocara o pé em sua frente, derrubando-a. Diante da resposta negativa,

ele afirmou que tinha visto e mais do que nunca queria a partida deles do Rio de

Janeiro. Mas a resistência ainda era grande, diante da idéia de trocar uma vida

relativamente confortável na selva de pedra, pelas dificuldades da floresta

amazônica. No entanto, o peso da liderança espiritual de Sebastião Mota de Melo e

53 Entrevista realizada em maio de 2008, em Caxambu, MG.

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sua insistente argumentação acabou convencendo o casal a abraçar aquela causa.

Seriam, portanto, os fundadores de uma nova igreja do Santo Daime.

Entretanto, o casal Pedalino Costa apelou por uma saída menos traumática.

Ao invés de Boca do Acre, o sul de Minas Gerais, onde já tinham uma propriedade e

que ficava mais próximo da família de ambos, a qual, evidentemente, encarava de

forma extremamente negativa a idéia de se abandonar uma promissora carreira de

advogado pelas incertezas materiais de um líder religioso. Sensível aos apelos,

Sebastião Mota de Melo aprovou a idéia, mas colocou a condição deles terem que ir

até o Céu do Mapiá para pegarem pessoalmente o Santo Daime que seria fornecido

para darem início aos trabalhos espirituais.

Foi uma viagem que marcou a vida da família Pedalino Costa para sempre.

Eram ainda jovens, ambos com menos de trinta anos, e novos no movimento

religioso. Portanto, era tudo muito diferente e difícil, principalmente se for levada em

conta a distância entre a vida urbana carioca e o cotidiano de uma comunidade

religiosa de seringueiros no coração da floresta amazônica. Mas os obstáculos

materiais não eram, nem de longe, as maiores dificuldades. Na verdade, estavam

mergulhando em uma jornada de iniciação com o Santo Daime, sob a direção

espiritual de Sebastião Mota de Melo, o que inevitavelmente exigiu uma série de

provas, ainda que sutis, para que ambos mostrassem serem capazes de enfrentar

os desafios da missão que se descortinava. Para tanto, foi feita uma verdadeira

maratona de trabalhos espirituais, em que eram consumidas grandes quantidades

de Santo Daime, incluindo um feitio especial para a produção daquele que seria

utilizado na fundação da nova igreja. As experiências extáticas e o aprendizado

sobre os segredos da bebida sagrada e de sua doutrina se multiplicaram, permitindo

que das sombras da mata emergissem os novos iniciados, com cabedal suficiente

para fundarem e liderarem uma igreja daimista.

Depois de quarenta dias no Céu do Mapiá, Fábio e Suzana Pedalino Costa

retornam com oitenta litros de Daime, provisoriamente para Cambuquira, onde já

tinham uma propriedade e iniciaram os primeiros trabalhos espirituais em um espaço

improvisado na casa onde moravam. Os primeiros foram realizados, na maioria das

vezes, pelo casal e os filhos. Era rara a presença de um ou outro fardado do Céu do

Mar. Somente após algum tempo, começaram a chegar pessoas comprometidas

com o ponto que se abria.

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Mas as dificuldades eram enormes. Primeiramente, existia o problema da falta

de apoio para a condução do ponto. A igreja a qual estavam filiados até então, o

Céu do Mar, não lhes garantia muita ajuda. A saída de uma família jovem e

engajada para a fundação de um novo núcleo daimista normalmente é vista como

uma dissidência negativa, que divide forças, ao invés de ser percebida como um

processo de difusão do movimento religioso. Portanto, as portas da igreja de origem

do casal estavam se fechando. Uma das questões mais complicadas era a obtenção

do Santo Daime, que chegava remetido da Colônia Cinco Mil, em repetidas

epopéias. A inexistência de matéria-prima para a confecção da bebida sagrada fora

da floresta amazônica obrigava as nascentes igrejas do restante do país a

permanecerem dependentes da produção de feitios locais ou da extração realizada

pelos mateiros do cipó e da folha para a alquimia daimista. A falta de experiência na

direção de uma igreja era outro fator complicador, principalmente no que diz respeito

à administração das intricadas, e muitas vezes conflitantes, teias de relações sociais

estabelecidas dentro de uma irmandade religiosa.

Entretanto, o caminho ia sendo trilhado. A presença de Alfredo Gregório de

Melo, sucessor de Sebastião Mota de Melo, e de Alex Polari de Alverga, dirigente da

igreja Céu da Montanha, em diversos trabalhos espirituais era um sinal positivo, que

demonstrava um significativo apoio em relação ao desempenho da duríssima missão

deixada pelo velho seringueiro para o casal Pedalino Costa. Mas esse era ainda o

primeiro passo. A idéia era transferir a igreja, o mais rápido possível, para o

município de Baependi, onde se localizavam as terras adquiridas pelo casal com o

objetivo de fundarem ali sua comunidade. Elas ficavam em um vale de difícil acesso,

incrustado nos contrafortes mineiros da Serra da Mantiqueira, um local que já havia

sido identificado por Sebastião Mota de Melo, em suas visões, como sendo aquele

reservado para a edificação do primeiro núcleo daimista do sul de Minas Gerais.

Com esforços redobrados e buscando alternativas econômicas que pudessem

substituir os rendimentos de advogado no Rio de Janeiro, Fábio e Suzana Pedalino

Costa finalmente inauguraram, em 13 de setembro de 1987, a nova igreja, ainda em

um lugar provisório próximo ao centro da cidade. O ponto de Cambuquira dos

primeiros anos se transformou na igreja de Baependi. A estrutura era uma

construção muito simples e os trabalhos começaram com poucas pessoas, mas o

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tempo foi passando e gradualmente foi se formando um pequeno núcleo de fardados

engajados nos esforços espirituais do grupo.

Entretanto, ainda faltava chegar ao lugar definitivo. Alguns anos antes Fábio

Pedalino Costa havia adquirido uma fazenda em um bonito vale, localizado a trinta

quilômetros da sede do município de Baependi. A beleza do lugar e o fato de

Sebastião Mota de Melo tê-lo visto em uma viagem astral, atestando sua

singularidade, acabaram transformando o vale do Gamarra no local almejado para o

nascimento da Nova Jerusalém das montanhas54. Apesar das dificuldades de

acesso e da falta de recursos, juntando forças foi possível construir, depois de dois

anos de enormes esforços para a concretização do sonho da sede definitiva, a igreja

Céu do Gamarra, o CEFLUGG, Centro Eclético de Fluente Luz Universal Germano

Guilherme, no vale do Gamarra55.

Evidentemente, os problemas não acabaram com a construção da sede

definitiva. Em primeiro lugar, existe a questão da mobilização de um contingente de

adeptos, imbuídos de um espírito de comunidade e envolvidos com os propósitos

espirituais da igreja. Mesmo depois de anos de existência, atualmente o conjunto de

fardados residentes na região e ativamente participantes das atividades e rituais do

Céu do Gamarra não é superior a trinta pessoas. Segundo Suzana Pedalino Costa,

esse fato é decorrência de duas razões: primeiramente, é conseqüência do excesso

de desconfiança do mineiro, principalmente da zona rural e das pequenas cidades,

fazendo com que a maioria absoluta dos membros ativos da igreja seja de fora do

município, normalmente oriunda de grandes centros. Essa resistência ao novo

também acabou se refletindo nas barreiras impostas aos recém-chegados

moradores daimistas da cidade e nas eventuais perseguições sofridas pelo grupo

por parte das autoridades locais. A outra razão apontada para explicar o número

reduzido de fardados são os constantes conflitos pessoais, muitas vezes envolvendo

disputas de poder, que geram desligamentos individuais ou dissidências coletivas,

vistas de forma extremamente negativa. “Muitos já passaram, mas poucos foram os

que ficaram”, nas palavras de Fábio Pedalino Costa. 54 É recorrente nas conversas com os membros da igreja Céu do Gamarra a utilização do simbolismo da Nova Jerusalém. Se o Céu do Mapiá é a Nova Jerusalém da floresta, o Céu do Gamarra será a Nova Jerusalém das montanhas, para os fardados da casa. 55 Edward MacRAE, em sua obra, Guiado Pela Lua, identifica a igreja Céu do Gamarra como uma das primeiras igrejas fundadas fora da floresta amazônica. Entretanto, o autor aponta o local de localização desse núcleo daimista em Caxambu, município vizinho. Na verdade, a igreja se encontra em Baependi, no vale do Gamarra. No entanto, Fábio e Suzana Pedalino Costa, seus dirigentes, residem em Caxambu.

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Outra grande dificuldade encontrada é a construção da infra-estrutura junto da

área da igreja, que possa abrigar e sustentar materialmente o grupo. Como em todo

núcleo daimista, existe muito forte, entre os fardados do Céu do Gamarra, a idéia da

construção de uma comunidade que resida na natureza, no caso, as montanhas da

Mantiqueira. Afinal, uma Nova Jerusalém sem moradores não tem sentido. No

entanto, para isso, é fundamental uma estrutura em que possam residir as diversas

famílias e, principalmente, atividades produtivas que garantam o sustento de todas

essas pessoas. Para quem cresceu e se preparou para a vida nos grandes centros

urbanos, é uma mudança radical, exigindo alguns sacrifícios e muita dedicação.

Mas, apesar de todos os obstáculos, a igreja Céu do Gamarra segue sua

trajetória e começa a se expandir para além dos limites originais, com uma igreja

filiada em Varginha, cidade próxima, e um ponto em São Carlos, estado de São

Paulo. Hoje em dia, é uma das grandes referências, no que diz respeito ao

movimento daimista na linha de Sebastião Mota de Melo, no sul de Minas Gerais,

mesmo não estando vinculada ao CEFLURIS56.

Percorrida essa jornada, que começou nas roças da Baixada Maranhense,

fincou suas raízes na floresta amazônica e terminou subindo as montanhas de

Minas Gerais, o próximo passo é iniciar uma discussão sobre as matrizes religiosas

que constituíram o movimento religioso do Santo Daime, primeiramente analisando a

produção acadêmica que o percebe como um movimento xamânico.

56 A não filiação ao CEFLURIS não é resultado de nenhuma discordância doutrinária ou ritual, e, muito menos, por conta de algum desentendimento ou questionamento com relação à direção de Fábio Pedalino Costa. Pelo contrário, a igreja não sofre nenhuma perseguição por parte do CEFLURIS e é vista como legítima, já que dada por Sebastião Mota de Melo. A questão é exatamente pelo fato do Céu do Gamarra ser auto-suficiente na produção do Santo Daime, não dependendo, portanto, do CEFLURIS para a obtenção da bebida sagrada.

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CAPÍTULO II

Xamanismo Juramidam

Com suas raízes profundamente enterradas nas culturas ameríndias e

caboclas amazônicas, o Santo Daime tradicionalmente é visto como um movimento

xamânico. Tendo como focos de análise a ingestão da beberagem sagrada e os

desdobramentos das práticas rituais daimistas, a academia gerou uma série de

análises que enquadra este movimento religioso no universo das tradições milenares

classificadas como xamanismo.

Um dos primeiros estudos sobre o tema a utilizar o enfoque do xamanismo é

de Fernando de La Roque COUTO. Intitulada Santos e Xamãs, sua dissertação de

mestrado busca as matrizes ameríndias na constituição do movimento religioso

daimista. COUTO identifica o xamanismo como uma das heranças mais marcantes

na construção da cultura cabocla amazônica e ressalta o processo de cristianização

da pajelança e de indianização do cristianismo:

Se, por um lado, observamos a “cristianização” da pajelança indígena com a inclusão de orações cristãs e santos na categoria de espíritos familiares, por outro lado, o novo ritual formado apresenta elementos que “indianizam” o cristianismo, representado aqui pela sua vertente católica, como o uso de maracás, o bailado nos rituais e nomes como Tucum, Currupipipiraguá, Marachimbé, Titango, Tituma e Tarumim, que denotam a influência indígena, além do consumo ritualístico da ayahuasca57.

Segundo COUTO, podem ser identificados os pontos de conexão entre o

xamanismo e o movimento religioso do Santo Daime a partir de três características:

a iniciação através de ritos de passagem, o vôo extático xamânico e as curas

daimistas que se processam no interior das práticas rituais com o Santo Daime.

Como descritas anteriormente, as iniciações do fundador da doutrina,

Raimundo Irineu Serra, o Mestre Irineu, e de Sebastião Mota de Melo, o Padrinho

Sebastião, podem ser vistas como iniciações xamânicas, marcadas por experiências

de morte e renascimento e pela transmissão de segredos e instruções por entidades

57 Fernando de La Roque COUTO, Santos e Xamãs, p. 16.

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espirituais. Segundo o autor, é através dessas iniciações que se processa a

transformação de ambos em xamãs58.

COUTO se baseia em Mircea ELIADE para identificar alguns dos traços

marcantes do xamanismo, estabelecendo, assim, o paralelo com o movimento

religioso daimista. Para ELIADE, uma das características mais distintivas de um

xamã é sua iniciação em contato com seres de outros planos existenciais, dando

início a uma nova fase na vida do iniciado:

Vimos que uma das formas mais correntes de designação do futuro xamã, é o encontro com um ser divino ou semi-divino que lhe aparece durante um sonho, uma enfermidade ou outra circunstância qualquer, que lhe revela que ele foi escolhido e o incita, dali em diante, a uma nova ordem de vida59.

De Raimundo Irineu Serra para Mestre Irineu e de Sebastião Mota de Melo

para Padrinho Sebastião. Essa metamorfose engendrada no processo de iniciação

xamânica gerou grandes curadores de fama reconhecida, como se observou nas

descrições anteriores das trajetórias de vida desses expoentes daimistas. Além de

terem passado por uma iniciação, o fato de terem se tornado curadores identifica

Mestre Irineu e Padrinho Sebastião como xamãs. Mircea ELIADE sustenta este

paralelo: “Como em todas as partes, a função essencial e rigorosamente pessoal do

xamã sul-americano continua sendo a cura”60.

Através de seu hinário, Raimundo Irineu Serra se identifica como curador, que

se utiliza da ajuda de seres de outros planos, como os xamãs, para alcançar os

resultados terapêuticos esperados. Este fato fica claro na última estrofe do hino As

Estrelas, do hinário O Cruzeiro:

Os caboclos já chegaram

De braços nus e pés no chão

Eles trazem remédios bons

Para curar os cristãos61

58 Fernando de La Roque COUTO, op. cit., p. 194. 59 Mircea ELIADE, El Chamanismo y las Técnicas Arcaicas del Extasis, p.72. 60 Ibid., p. 262. 61 Raimundo Irineu Serra, O Cruzeiro, hino 75.

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Portanto, os caboclos são as entidades espirituais que trazem a solução para

as doenças e entregam-na para Raimundo Irineu Serra e para quem mais se

dispuser a conhecê-las. Na dinâmica de reelaborações daimistas, o caboclo, do

simbolismo umbandista, acaba fazendo as vezes dos seres extra-materiais que

viabilizam os processos de cura xamânicos.

Não somente a cura, mas os mecanismos que processam a cura daimista, a

identificam com a cura xamânica. Segundo COUTO, tanto a cura xamânica como a

cura no movimento daimista se baseiam em um processo catártico e

psicoterapêutico:

Em termos psicanalíticos, ele (aquele que busca a cura através da doutrina do Santo Daime) tem que ab-reagir, vivendo e revivendo intensamente a situação inicial que está na origem da sua perturbação, para poder superá-la definitivamente. Nesse sentido, é bom lembrar que a cura nesse sistema tem função catártica e ab-reativa e é análoga à cura xamanística apontada por Lévi-Strauss, onde o xamã é um ab-reator profissional e a abreação o momento decisivo da cura xamanística, que seria a contrapartida da psicanálise62.

Dessa forma, a cura no movimento religioso daimista ganha contornos da

cura xamânica, com os hinos norteando a experiência extática e terapêutica,

revificando o mito social e, portanto, substituindo o discurso do xamã.

O autor ainda identifica algumas práticas e experiências rituais daimistas com

práticas e experiências xamânicas. Segundo COUTO, os vôos extáticos xamânicos

podem ser percebidos nos relatos e descrições das mirações, presentes em hinos e

depoimentos de daimistas, que descrevem viagens por lugares deste e de outros

mundos. Nas palavras desse autor “o fiel vai ao reino dos céus, viaja até ele”63.

A esse respeito, ELIADE fornece mais este elemento indicativo como fica

explicitado nesta observação sobre os xamãs esquimós:

... suas capacidades extáticas permitem-lhes empreender qualquer viagem em espírito, a qualquer região cósmica. Tomam sempre a precaução de se fazer atar por cordas, de modo que possam viajar em espírito, de outro modo seriam arrebatados pelos ares e desapareceriam de verdade64.

62 Fernando de La Rocque COUTO, op. cit., p. 179. 63 Ibid., p. 198. 64 Mircea ELIADE, op. cit, p. 235.

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Em depoimento dado a Vera Fróes e Saulo Petean, Padrinho Sebastião

afirma seu controle sobre as técnicas de vôo extático, que podem ser comparadas

às técnicas xamânicas:

Eu passei quarenta anos sem sair do chão, sem voar, sem andar por cima das águas, sem nada. Depois de quarenta anos, chegou também um Buda e começou a falar comigo e eu também comecei a falar o que estava passando. Depois, eu voei com o mundo todo, eu andei por todo o território da Floresta e corri os astrais todos, se eu com essas ervas, eu recebi coisas que eu nunca esperava na minha vida de ter conhecimento e com elas eu cheguei a esse conhecimento65.

Em outro hino, Raimundo Irineu Serra cita uma viagem extática que teria

realizado com a ajuda de uma entidade espiritual, no caso uma Senhora, como

aparece na quarta, quinta e sexta estrofes do hino Ia Guiado pela Lua:

Aí eu botei os olhos

Aí vem uma canoa

Feita de ouro e prata

E uma senhora na proa

Quando Ela chegou

Mandou eu embarcar

Ela disse para mim:

- Nós vamos viajar

Nós vamos viajar

Para um ponto destinado

Deus e a Virgem Mãe

Quem vai ao nosso lado66

É importante ressaltar a presença de entidades espirituais. No depoimento de

Sebastião Mota de Melo, um Buda; e no hino de Raimundo Irineu Serra, uma

Senhora, que conduzem os respectivos daimistas a suas viagens extáticas. Esta é

mais uma das características do vôo xamânico, como explicita ELIADE:

65 Fernando de La Roque COUTO, Santos e Xamãs, p. 198. 66 Raimundo Irineu Serra, O Cruzeiro, hino 84.

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A parte dos Deuses e seres sobrenaturais aos quais se dirigem as rezas e se oferecem sacrifícios, existem os “especialistas do sagrado”, homens capazes de “ver” os espíritos, de subir ao céu e descer aos infernos, combater os demônios, a enfermidade e a morte.67

Um aspecto interessante das experiências extáticas do vôo xamânico são as

lutas realizadas nos planos espirituais pelos xamãs. Esses especialistas do êxtase

confrontam espíritos, outros especialistas e demônios com o objetivo de alcançar a

cura e manter a segurança da comunidade. ELIADE, sobre essa questão afirma:

Os xamãs têm papel essencial na defesa da integridade física da comunidade. São os campeões anti-demoníacos por excelência, combatem os demônios, assim como enfermidades e os bruxos da magia negra68.

Este elemento peculiar do vôo extático xamânico também pode ser

identificado nas experiências religiosas daimistas. A descrição de batalhas

realizadas em planos astrais aparece em diversos hinos e se constitui em um dos

símbolos mais importantes na relação do daimista com as realidades extra-

sensoriais69.

Raimundo Irineu Serra descreve em seu hino A Batalha um desses embates

espirituais:

Entrei numa batalha

Vi meu corpo esmorecer

Temos que vencer

Com o poder do senhor Deus

O Divino Pai Eterno

E a Virgem da Conceição

Todo mundo levantou

Com suas armas na mão

A Virgem Mãe com

67 Mircea ELIADE, op. cit. p. 398. 68 Ibid. p. 387. 69 O daimista usa uma vestimenta própria identificada como farda e se percebe pertencendo a um exército, o Exército de Juramidam, inclusive sendo muito recorrente a expressão Companhia da Rainha da Floresta.

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O poder que vós me deu

Me dá força e me dá luz

Não me deixa derrubar70

No hinário de Sebastião Mota de Melo, O Justiceiro, também podem ser

encontradas menções à estrutura militar simbólica relacionada a batalhas nos planos

imateriais. Um exemplo é a primeira estrofe do hino Procurando um General:

O mestre levanta o braço

No meio dos seus irmãos

Procurando um general

Para comandar seu batalhão71

Durante a pesquisa de campo na Igreja Céu do Gamarra puderam ser

observadas uma série de situações e diálogos em que se evidenciou essa

simbologia militar entre os daimistas, inclusive em situações do cotidiano e em

trabalhos relativos à igreja. Um bom exemplo é a rígida disciplina implantada durante

os feitios, em que dois turnos se revezam 12 horas por dia em jornadas de trabalho

duríssimas, necessárias para a vitória na “batalha” que se constitui a confecção do

Santo Daime.

A “batalha” pode ser entendida em duplo sentido, um é a luta travada no

plano astral para que o andamento do feitio corra de forma adequada. Essa batalha

se processa de forma sutil e imperceptível para aqueles que não vivenciam o feitio

de forma plena. Mas em conversas com fardados da igreja Céu do Gamarra são

encontrados relatos de experiências extáticas durante feitios em que se evidencia a

“batalha” travada em planos extra-materiais em relação ao preparo da beberagem

sagrada. Inúmeros são os relatos de mirações em que foram vistas entidades

espirituais, presentes nos locais de feitio, envolvidas em disputas relativas ao bom

andamento do processo de confecção da bebida. Um segundo sentido para a

expressão “batalha” seria aquela travada no plano material. Essa claramente

perceptível por qualquer observador externo, pois o preparo do Santo Daime exige

enorme esforço físico e concentração daqueles que o confeccionam. O trabalho é

70 Raimundo Irineu Serra, O Cruzeiro, hino 115. 71 Sebastião Mota de Melo, O Justiceiro, hino 13.

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ininterrupto durante dias, quando se revezam duas equipes de aproximadamente 5

pessoas, que realizam atividades constantes que vão da manipulação de panelas de

cerca de 50 quilos até o trabalho com a fornalha, que atinge temperaturas

altíssimas. A disciplina na organização das atividades e o estabelecimento do

controle do tempo são questões encaradas como parte da ordem, vista,

simbolicamente, como militar, necessária para o bom andamento do feitio.

Outro elemento revelador do simbolismo militar no universo daimista foram

expressões como “comando”, “oficial”, “soldado”, utilizadas de forma descontraída

em conversas informais, observadas entre os fardados da igreja Céu do Gamarra.

Entretanto, COUTO percebe uma limitação nesse paralelo entre o movimento

religioso do Santo Daime e o xamanismo. Fundamentalmente, o xamanismo é um

fenômeno individual. Como esclarece Ioan LEWIS, a palavra xamã vem da língua

dos tungue, povo constituído por pastores de rena da Sibéria, que significa “alguém

que está excitado, comovido ou elevado,(...) uma pessoa de qualquer sexo, que

dominou os espíritos”72.

Porém, as práticas religiosas daimistas são essencialmente coletivas. Para

resolver essa questão, COUTO estabelece uma categoria nova para o tipo de

xamanismo encontrado no movimento daimista: o “xamanismo coletivo”. Nas

palavras do autor, o xamanismo coletivo pode ser entendido da seguinte forma:

(...) a instituição do xamanismo tem aqui uma forma específica, que denominamos ‘xamanismo coletivo’. Os membros desse sistema religioso são aprendizes de xamã ou xamãs em potencial. Embora existam os comandantes do batalhão (xamãs mais experientes), a atividade xamânica não é exclusividade de alguns iniciados. A prática ritual é, de certa forma, o aprendizado dessa arte do êxtase e, à parte a vocação xamânica, todos, através da participação no ritual, podem manifestar essa qualidade latente da natureza humana. A coletividade do culto pode, através da técnica de concentração e acesso aos cânticos (principal ferramenta para as viagens extáticas), ‘voar’ pelo astral com características do xamã viajante, ou servir como aparelho para recepção de seres, com características do xamã possesso.73

Dessa forma, COUTO consegue consolidar sua visão de um movimento

daimista xamânico, em que as práticas e experiências xamânicas podem ser

compartilhadas por um grande número de daimistas. Uma “escola de xamãs” estaria 72 Ioan LEWIS, Êxtase Religioso, p.58. 73 Fernando de La Roque COUTO, op. cit., p. 222.

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aberta a todos os neófitos que tivessem o interesse de se introduzirem nos mistérios

do xamanismo Juramidam.

Outro autor que caminha por essa vertente, buscando enquadrar o

movimento religioso daimista na qualidade de movimento xamânico é Edward

MacRAE, na sua obra Guiado pela Lua.

MacRAE inicia sua análise classificando a bebida sagrada utilizada pelos

daimistas, o Santo Daime, como um enteógeno74:

Prefiro enteógeno, derivada de entheos, palavra do grego antigo que significa literalmente “deus dentro” e era utilizada para descrever o estado em que alguém se encontra quando inspirado ou possuído por um deus que entrou em seu corpo. Era aplicada aos transes proféticos, à paixão erótica e à criação artística, assim como aos ritos religiosos onde estados místicos eram experienciados através da ingestão de substâncias que partilhavam de essência divina. Portanto, enteógeno significa aquilo que leva alguém a ter o divino dentro de si75.

Com essa definição, o autor já estabelece um primeiro paralelo entre o

movimento religioso daimista e o xamanismo, pois os xamãs entram em contato com

uma realidade extra-sensorial ligada a um universo de entidades espirituais ou

sagradas através de determinadas técnicas ou da ingestão de substâncias que

podem ser classificadas como enteógenos. Como esclarece MacRAE, os estados

alterados de consciência em que mergulha o xamã durante suas experiências

místicas “podem ocorrer espontaneamente, ou são introduzidos através de técnicas

de meditação, exercícios de respiração, jejuns ou pela ingestão de substâncias

psicoativas”.76

As práticas rituais com o Santo Daime estão profundamente impregnadas de

experiências em que o daimista entra em contato com esta dimensão imaterial,

como já foi relatado anteriormente na relação com o vôo xamânico. Nos hinários

desse movimento religioso, são inúmeros os relatos dessa relação direta com o

“astral”, expressão utilizada pelos seguidores da doutrina daimista para designar as

realidades extra-sensoriais. Um exemplo claro pode ser encontrado no hino Eu

74 Enteógeno ou enteogênico é um neologismo que vem do inglês: entheogen ou entheogenic, tendo sido proposto no ano de 1973 por Carl Puck e seu grupo de estudiosos helenistas como sendo o termo apropriado para descrever estados xamânicos ou de possessão extática induzidas pela ingestão de substâncias alteradoras de consciência. 75 Edward MacRAE, Ia Guiado pela Lua, p.16. 76 Ibid., p.18.

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Tomo Esta Bebida, de Raimundo Irineu Serra, em que ele relata o encontro com as

entidades espirituais Virgem Maria, Pai Eterno e Jesus Cristo, a partir da ingestão

ritual do Santo Daime:

Eu tomo esta bebida

Que tem poder inacreditável

Ela mostra todos nós

Aqui dentro da verdade

Subi, subi, subi

Subi foi com alegria

Quando cheguei nas alturas

Encontrei com a Virgem Maria

Subi, subi, subi

Subi foi com amor

Encontrei com o Pai Eterno

E Jesus Cristo Redentor

Subi, subi, subi

Conforme os meus ensinos

Viva o Pai Eterno

E viva todos Seres Divinos77

Continuando a desenvolver o paralelo entre o xamanismo e o movimento

daimista, MacRAE esclarece que um dos principais enteógenos utilizados pelos

xamãs amazônicos é a bebida preparada a partir do cipó Banisteriopsis caapi e da

folha Psychotria viridis, com suas diversas denominações dependendo da cultura

onde é utilizada e chamada pelos daimistas de Santo Daime78.

Outro ponto de conexão identificado pelo autor se encontra ligado às práticas

tradicionais do xamanismo amazônico que se transformaram na região como

resultado dos processos ocorridos em décadas passadas, como a urbanização, a

atividade missionária, a economia da borracha e a chegada de imigrantes de origem

77 Raimundo Irineu Serra, O Cruzeiro, hino 124. 78 A expressão Daime, segundo os adeptos, vem a partir do verbo dar, no sentido de dar a luz, o amor, a fé etc.

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européia e africana. Segundo MacRAE, surge nas periferias dos centros urbanos

amazônicos a figura do curandeiro mestiço, conhecido como vegetalista. Estes

xamãs mestiços preservaram muitos dos antigos conhecimentos indígenas sobre

plantas, seu uso e sua relação com o mundo espiritual. A origem dos conhecimentos

e do poder de cura dos vegetalistas estaria nos espíritos de certas plantas, que

seriam os verdadeiros guias e professores desses curadores. Entre essas plantas,

conhecidas como “doutoras”, as mais utilizadas na região amazônica seriam aquelas

envolvidas na confecção da ayahuasca, sendo esta bebida, portanto, o professor

vegetal mais importante para os vegetalistas da região. Segundo MacRAE:

Esse xamanismo mestiço é herdeiro direto do xamanismo indígena, cujos segredos foram aprendidos pelos seringueiros, que viviam isolados da sociedade ocidental e tinham de se valer dos conhecimentos médicos dos indígenas. O principal trabalho desses xamãs é voltado para a cura, incluindo-se aí a manipulação de forças espirituais para o alívio de problemas financeiros e emocionais79.

A iniciação do vegetalista, ou do xamã mestiço, para MacRAE, segue o

padrão da iniciação xamânica, ou seja, o neófito pode ser chamado por um sonho ou

visão. Outras vezes, o indivíduo pode ser escolhido, através de critérios muitas

vezes secretos, por um vegetalista mais velho, que o treina a partir de exercícios,

técnicas e provas que devem ser cumpridas até o ponto de ser considerado pronto

para exercer as atividades de curador a partir do trabalho com as plantas

professoras. No caso específico do vegetalismo, deslocado do contexto tribal original

do xamanismo, não existe, muitas vezes, a necessidade inicial da aceitação da

comunidade e, em alguns casos, a escolha pode ser individual, de forma que o

neófito pode buscar os ensinamentos diretamente das plantas e de seus espíritos80.

É exatamente em relação ao processo de iniciação do fundador do

movimento religioso daimista, Raimundo Irineu Serra, que MacRAE identifica um

outro ponto de conexão com o xamanismo amazônico, na sua vertente vegetalista.

Segundo o autor, “Mestre Irineu parece ter se submetido ao processo tradicional de

iniciação e desenvolvimento xamânico já descrito para ayahuasqueros e vegetalistas

da Amazônia”81.

79 Edward MacRAE,op. cit., p.30. 80 Ibid., p.32. 81 Ibid, p. 62.

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Pode-se confirmar essa observação remetendo-se à iniciação de Mestre

Irineu, em que encontram-se traços da figura do vegetalista, apresentando suas

plantas professoras através da ayahuasca e todo processo posterior de introdução

nos mistérios dessa “doutora”. É importante ressaltar que Raimundo Irineu Serra,

iniciando seus trabalhos espirituais na periferia de Rio Branco, tornou-se um grande

curador, utilizando como elemento central de suas práticas terapêuticas a ingestão

do Santo Daime. Ele se aproxima, portanto, da categoria de vegetalista, utilizando

como professor vegetal essa bebida sacralizada.

Finalmente, MacRAE se utiliza da categoria criada por Fernando de La Roque

COUTO, o xamanismo coletivo. Assim como COUTO, MacRAE percebe a

necessidade de se basear nesse conceito pelo fato do movimento daimista ser

coletivo, enquanto o xamanismo se apresenta como um fenômeno tradicionalmente

individual. Segundo o autor:

Embora os trabalhos da seita mantenham-se dentro dos parâmetros das tradições xamânicas, vale retomar a observação, feita por Couto, de que aqui desenvolve-se o que ele denomina de “xamanismo coletivo”. Embora o comando dos trabalhos seja exercido por xamãs mais experientes, a atividade xamânica não é exclusividade de alguns iniciados, e todos os participantes desse sistema religioso são considerados aprendizes de xamã ou mesmo xamãs em potencial. A prática ritual é de certa forma um aprendizado dessa arte e, à parte a vocação xamânica, todos os que participam do ritual podem manifestar essa qualidade, considerada latente na natureza humana82.

Clodomir Monteiro da SILVA é outro autor que trabalha com a relação entre o

movimento religioso daimista e o xamanismo. Em sua dissertação de mestrado, O

Palácio de Juramidam, o autor afirma que o transe extático, identificado com o vôo

xamânico, resultado da ingestão da beberagem sagrada do Santo Daime, é um

estado atípico de consciência e percepção responsável pela construção social de

uma realidade própria. Dessa forma, não pode ser entendido como simples liberação

de tensões, sublimação de pulsões libidinosas, simples manifestações imaginárias

ou psicopatológicas, sem força social83.

Segundo SILVA:

82 Edward MacRAE, op. cit., p.130. 83 Clodomir Monteiro da SILVA, O Palácio de Juramidam, p. 48.

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Os grupos que consomem o Santo Daime ou Ayahuasca, Iagê, etc., tendem a formar verdadeiros sistemas culturais. Neste caso as condutas mágico-religiosas passam a fazer parte do dia-a-dia, sendo práticas, costumes e rotinas que definem um modelo ou projeto de vida84. Portanto, as experiências extáticas, inseridas no contexto ritual, estão

integradas com os aspectos econômicos e sociais do ambiente em que existem,

estruturando um mapeamento da realidade e construindo um projeto de ordem

social. A partir da decodificação das chamadas mirações85, essas experiências criam

uma visão de mundo própria86.

Neste sentido é importante observar o hino de Raimundo Irineu Serra,

Palmatória, em que é estabelecido um princípio muito claro de ordenamento social

fundamentado na fidelidade absoluta aos membros participantes da doutrina,

identificados como uma irmandade:

Porque todos não cumprem Com o dever e obrigação Conhecer esta verdade Para chamar meu irmão Na presença todos são Na ausência aqui deixou Não se lembram da firmeza E da palavra que jurou Não cumprindo este dever Está fora da união Não são firmes a meu Deus E nem leal ao meu irmão Só existe é fingimento Fraqueza no coração Não são firmes a meu Deus E nem unidos ao meu irmão87

Ou, ainda, como observado no hino O que é que você vai fazer?, de

Sebastião Mota de Melo, onde se estabelecem princípios valorativos de conduta

cotidiana para os membros do movimento daimista, ressaltando-se a importância da

humildade:

84 Clodomir Monteiro da SILVA, op. cit., p. 57. 85 Visões resultantes dos estados alterados de consciência gerados pela ingestão do Santo Daime no contexto ritual. 86 Clodomir Monterio da SILVA, op. cit., p. 64. 87 Raimundo Irineu Serra, O Cruzeiro, hino 22.

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Ninguém queira ser grande É preciso se humilhar Se faça pequenininho Para entrar no celestial88 É importante se levar em conta uma categoria criada por SILVA para

identificar determinados grupos consumidores de ayahuasca, particularmente

aqueles que se percebem como daimistas, entendidos como membros de um

movimento xamânico, que seriam os Sistemas de Juramidam:

São os centros ligados a uma mesma narrativa mítica primordial. A organização do culto e estrutura das colônias não se diferem acentuadamente. O panteão é o mesmo, a linha das entidades que entregam os hinários harmonizam-se em torno de uma única hierofania cósmica e Juramidam, o próprio Deus manifestado em carne na pessoa de Raimundo Irineu Serra89. Dentro desses Sistemas de Juramidam, outro aspecto que estabelece um

paralelo com o xamanismo diz respeito ao estabelecimento das lideranças,

identificadas claramente como xamãs. A sagração dessas lideranças, assim como

no caso dos xamãs tradicionais, não passa exclusivamente por uma escolha pessoal

daquele que busca esta posição. O estabelecimento desses líderes depende de uma

série de circunstâncias, como a estrutura do grupo, a confirmação das qualidades

especiais do pretendente e a ascendência política junto à irmandade. A rede de

relações do futuro líder é importantíssima neste processo, extrapolando até mesmo

os limites da comunidade. Dessa forma, é sempre o grupo que legitima o

pretendente e essa legitimação passa, principalmente, pela necessidade de um

estágio de evolução superior, confirmado por exames realizados ocultamente

durante os transes extáticos ou vôos xamânicos90.

Esta confirmação a partir das forças superiores, como elemento de

legitimação das lideranças, pode ser percebida com clareza no hino Quando tu

estiver doente, recebido por Sebastião Mota de Melo:

Eu já te entreguei Agora vou realizar Se fizeres como eu te mando Nunca hás de fracassar

88 Sebastião Mota de Melo, O Justiceiro, hino 21. 89 Clodomir Monteiro da SILVA, op. cit., p. 61. 90 Ibid., p. 66.

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Tu já viste o meu brilho E já sabes quem eu sou Agora eu te convido Para ires aonde estou91

Para SILVA, a possibilidade dos vôos xamânicos está diretamente ligada a

um processo de limpeza e purificação caracterizado por uma vivência constante e

cotidiana que é determinada pelo quadro de valores estabelecido na estrutura

doutrinária do movimento daimista92. Essa purificação individual se manifesta

durante o primeiro momento do ritual, identificado pelo autor como a “estase” e, sem

passar por ela, o participante dos rituais daimistas não consegue chegar às fases

posteriores. Durante a “estase”, o daimista vai se sensibilizando através do canto, do

bailado ou da concentração e sentindo os primeiros efeitos da ingestão do Santo

Daime.

Portanto, essa etapa inicial de ordenação com os fluxos vibratórios mais sutis

é a preparação para a segunda etapa identificada como “êxtase 1”. Essa segunda

fase do ritual, vista pelo daimista como a chegada da “força”93, é caracterizada pelo

início dos estados alterados de consciência, que podem se manifestar a partir de

sensações físicas, como mal-estar, alterações visuais e motoras, desmaios ou até a

sensação de morte e renascimento. Neste ponto é fundamental ressaltar o paralelo

com o xamanismo, em que as experiências de morte e renascimento são

constantes94.

Por fim, na terceira etapa identificada por SILVA como “êxtase 2”, ocorre o

vôo xamânico propriamente dito. O daimista, durante o ritual, faz viagens para

lugares distantes ou para outros planos existenciais. É profundamente marcado por

sensações agradáveis, encontros com seres resplandecentes ou demoníacos, visita

locais paradisíacos ou infernais. Essa experiência extática é denominada pelos

daimistas como a miração95.

Entretanto, não é todo participante dos Sistemas de Juramidam que tem

condições de passar por essas experiências extáticas. Assim como o xamã, que

91 Sebastião Mota de Melo, O Justiceiro, hino 22. 92 Importante ressaltar que esse quadro de valores é estabelecido e transmitido fundamentalmente pelo conjunto de hinários presentes no movimento religioso. 93 A força é identificada como os efeitos de alteração da consciência gerados pela ingestão do Santo Daime. 94 Clodomir Monteiro da SILVA, op. cit., p. 79. 95 Ibid., p. 81.

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deve vivenciar um longo processo de preparo para controlar as técnicas de êxtase, o

daimista deve ter o “merecimento”96 para ter as mirações. Como está determinado

pelo hino Vamos meus irmãos, de Sebastião Mota de Melo:

O Mestre me disse

Que faltava uma quantia

Para me mostrar os primores

Conforme eu merecia97

Ou, então, em outro hino de Sebastião Mota de Melo, Nos três eu te procurei:

Meu irmão fiquei sabendo

Que o Mestre tem poder

Entrega os seus primores

Àquele que merecer98

Exemplos das experiências extáticas daimistas que podem ser comparadas

com as vivências xamânicas podem ser encontrados em diversos hinos. O hino

Papai Velho, de Raimundo Irineu Serra, descreve um momento que se identifica

com a experiência de morte e renascimento xamânicos:

Reduzi meu corpo em pó

O meu espírito entre flores

Sou eu, sou eu, sou eu

Filho do Rei de Amor99

Esse outro hino de Sebastião Mota de Melo, Minha mãe me levou nas alturas,

descreve uma viagem xamânica em que o vôo se faz tanto nas alturas celestiais,

como nas dimensões mais densas, onde acontecem provações:

A minha Mãe me levou lá nas alturas

96 No movimento religioso daimista o merecimento passa não só pelo preparo, mas principalmente por uma vida cotidiana de acordo com os preceitos valorativos da doutrina. 97 Sebastião Mota de Melo, O Justiceiro, hino 24. 98 Sebastião Mota de Melo, O Justiceiro, hino 25. 99 Raimundo Irineu Serra, O Cruzeiro, hino 33.

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Para mim receber meu galardão

Depois me trouxe cá na baixeza

Para mim receber o meu perdão100

Finalmente, SILVA identifica uma distinção entre o que ele denomina de

transe xamânico individual e transe xamânico coletivo. O primeiro teria como

exemplo as iniciações de Raimundo Irineu Serra e de Sebastião Mota de Melo,

enquanto o transe xamânico coletivo seria resultado do processo ritual em que

diversos participantes passariam por experiências extáticas conduzidas pelos

hinários e ordenadas a partir de uma estrutura doutrinária comum. Segundo SILVA:

Por se tratar de uma estrutura ritual que admite a existência desse grupo adiantado [daimistas com condições efetivas de realizar as experiências extáticas de vôo xamânico], cujos componentes comunicam-se entre si durante as sessões exotéricas procurando estabelecer e sustentar uma corrente espiritual, sugerimos uma distinção entre transe xamânico individual e transe xamânico coletivo. No primeiro caso as visões e, especialmente a “chegada da força e do tempo” ocorrem independente da influência dos demais, mesmo em ausência deles. No segundo as manifestações concorrem para uma harmonização de todos, no estabelecimento de uma corrente. Essas últimas caracterizam sessões específicas como a concentração, trabalho de mesa, de cura, etc101.

Outra estudiosa que enfoca a relação entre o Santo Daime e o xamanismo é

Arneide Bandeira CEMIN. A autora defende a idéia de que o movimento daimista faz

parte de um complexo mais amplo que seria o “xamanismo ayahuasquero”. O

conjunto de práticas que tem como elemento central a utilização da ayahuasca para

fins terapêuticos e espirituais, milenar na região amazônica, é entendida por CEMIN

como “contido em outro, definido como ‘xamanismo’, cujas práticas foram

identificadas na Ásia, nas Américas do Norte e Central, bem como na América do

Sul, incluindo o Brasil”102.

Dessa forma, o “xamanismo ayahuasquero” se constitui no conjunto de

práticas xamânicas inseridas nos complexos culturais amazônicos que têm a

ayahuasca como elemento central de seus ritos, mitos e crenças. O Santo Daime,

assim como outros movimentos religiosos que utilizam a ayahuasca como elemento

central de sua ritualística, como a Barquinha e a União do Vegetal, são herdeiros

100 Sebastião Mota de Melo, O Justiceiro, hino 29. 101 Clodomir Monteiro da SILVA, op. cit., p. 85. 102 Arneide Bandeira CEMIN, O Poder do Santo Daime;ordem, xamanismo e dádiva, p. 48.

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diretos dessa tradição que vem da floresta e se estabelece nas periferias das

cidades em expansão na região amazônica. Dessa forma, o movimento daimista

seria um movimento xamânico, tendo como elemento distintivo principal o vôo

xamânico. Ou seja, dentro do universo daimista são as experiências extáticas dos

participantes dos ritos, identificadas com o vôo dos xamãs, que garante o caráter

xamânico do Santo Daime e sua inclusão na categoria de “xamanismo

ayahuasquero”. Nas palavras da autora:

Nosso argumento é que o sistema daimista é parte da tradição xamânica ayahuasquera que chamamos também de “cultura da floresta”. Sendo portanto, “xamanismo ayahuasquero” dado a centralidade da bebida para a realização da técnica, bem como, a própria técnica de preparo e de consumo da bebida. Por força de nossos dados etnográficos elegemos como traço característico do fenômeno xamânico o tipo de “estado alterado de consciência” que o rito dos subsistemas que investigamos se propõem a produzir: o vôo extático103.

Um exemplo claro de descrição de um vôo extático, com todas as suas

características, como o encontro com seres divinais, provações com espíritos

perigosos, ida a lugares fantásticos, pode ser encontrado no hino Eu fiz uma viagem,

de Antônio Gomes:

Eu fiz uma viagem

Que meu Mestre me mandou

A Sempre Virgem Maria

Foi que me acompanhou

Perguntou se eu tinha coragem

De cair dentro do mar

Quando eu disse que tinha

Ela mandou eu pular

Preparei-me e pulei

Com amor no coração

Do mundo eu me desprendi

Eu vou morrer na solidão

103 Ibid., p. 50.

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Meu Mestre me deu conforto

E Jesus Cristo Redentor

Quando eu senti ao meu lado

Uma força superior

Segui minha viagem

Pavor nenhum senti

Terminando a viagem

Quando eu cheguei não vi

Quando eu fui abrindo os olhos

Vi as luzes clarear

Estava dentro de um salão

Junto com meu General

Aí tinha um trapaceiro

Querendo me conduzir

Eu disse a meu General

E Ele não quis consentir

Ele foi me abraçando

Para com Ele eu seguir

Meu General me segurou

Disse este veio foi pra aqui

Eu digo aos meus irmãos

Que todos nós podemos crer

Que dentro do Poder Divino

Tem tudo para nós ver104

É importante ressaltar que as experiências extáticas no Santo Daime são

interpretadas como as mirações, os momentos especiais durante os rituais, quando

o participante entra em contato direto com as realidades imateriais.

104 Antônio GOMES, hino 26.

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Além desse aspecto ritual e extático do vôo mágico, CEMIN aprofunda ainda

mais a identificação do Santo Daime como um sistema xamânico afirmando que

toda construção simbólica do mundo extra-material daimista é constituída dentro de

um complexo cultural baseado fundamentalmente no xamanismo, já que “no

‘Sistema Juramidam’, a lógica do ‘outro mundo’ é essencialmente xamânica”105.

Portanto, o movimento daimista é visto como uma das ramificações do xamanismo

ayahuasquero.

Alberto GROISMAN é outro pesquisador que analisa o movimento religioso

do Santo Daime identificando uma práxis xamânica daimista. Em sua dissertação de

mestrado Eu Venho da Floresta: ecletismo e práxis xamânica daimista no Céu do

Mapiá, o autor faz uma análise sobre o conceito de xamanismo e percebe o Santo

Daime não como um movimento xamânico, mas, sim, profundamente marcado por

uma “práxis xamânica” construída dentro de um contexto pluricultural reconhecido

como eclético.

Para GROISMAN, as práticas xamânicas se constituem como um elemento

central no movimento religioso do Santo Daime. Mais precisamente, os daimistas

são identificados como membros de um universo cultural particular que “consagram

o xamanismo como fonte amalgamadora da organização grupal”106.

O autor utiliza o conceito de enteógeno ao se referir à beberagem sagrada do

Santo Daime utilizada em um contexto ritual, criticando uma visão que a define como

um alucinógeno e fiel ao conceito de substâncias sagradas alteradoras de

consciência que conduzem o indivíduo a planos extra-materiais. Dessa forma,

GROISMAN explicita a existência de práticas xamânicas que utilizam essas

substâncias como condutoras para outras realidades, já que, segundo sua pesquisa:

No que se refere às substâncias de uso sagrado, gostaria de aprofundar, no momento, um aspecto: a denominação “alucinógeno” deturpa sobremaneira o verdadeiro significado destas substâncias tanto no âmbito da vida nativa, quanto a partir de minhas observações. Primeiro porque na dimensão simbólica que envolve o uso destas substâncias quase invariavelmente, podemos constatar que cada cultura que institui seu uso admite que seus efeitos estão ligados a um acesso a outras dimensões existentes, e não à produção aleatória de fantasias ou imagens irreais, do ponto de vista cosmológico107.

105 Arneide Bandeira CEMIN, op. cit., p. 108. 106 Alberto GROISMAN, Eu Venho da Floresta: ecletismo e práxis xamânica daimista no Céu do Mapiá, p. 43. 107 Alberto GROISMAN, op. cit., p. 58.

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A partir dessa definição, GROISMAN estabelece o conceito de xamanismo

desenvolvido por diversos autores buscando estabelecer parâmetros de

aproximação entre as práticas xamânicas e o movimento religioso do Santo Daime.

O primeiro autor analisado por GROISMAN é Mircea Eliade, esclarecendo os

parâmetros básicos para a definição das práticas xamânicas. GROISMAN, explicita

que, segundo este autor, as manifestações xamânicas se iniciam a partir de um

distúrbio psíquico ou físico daquele que irá se tornar xamã. O indivíduo passa por

um processo de transformação profunda de hábitos e de personalidade, identificada

como uma morte e um renascimento simbólicos, inclusive com experiências que

podem se manifestar como uma saída do corpo e o desmembramento do mesmo,

seguido de sua reconstituição com o sentido de um renascimento, agora como um

xamã108.

É evidente a semelhança com o primeiro contato de Sebastião Mota de Melo

com o Santo Daime. Acometido por uma doença desconhecida e aparentemente

incurável, viu-se, durante um ritual do Santo Daime, com seu corpo desmembrado e

logo após reconstituído. A partir dessa experiência, Sebastião Mota de Melo se inicia

no movimento religioso do Santo Daime, vindo a se tornar um dos seus principais

expoentes, identificado como um xamã daimista.

Outro aspecto fundamental para Eliade é que o xamanismo se constitui

fundamentalmente como um conjunto de técnicas de êxtase, estruturadas

basicamente pelo vôo xamânico, em que o xamã realiza viagens por dimensões

identificadas com o mundo espiritual comunicando-se com os mortos, demônios,

espíritos da natureza e divindades109.

As viagens por planos não materiais já foram amplamente demonstradas

como uma das características mais marcantes dos rituais daimistas, através das

descrições de alguns hinos, dentre os quais pode-se observar o hino A Barquinha,

de Sebastião Mota de Melo, em que é descrita uma viagem ascendente dentro de

uma embarcação mística e o encontro com entidades espirituais:

A barquinha vem seguindo

108 Ibid. , p.71. 109 Alberto GROISMAN, op. cit., p 72.

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Vem na minha direção

O povo que eu vejo nela

É da Virgem da Conceição

A Rainha nos mandou

Para todos nós formar

E louvar o filho dela

No dia que Ele chegar

Vou seguindo, eu vou seguindo

Vou na mesma embarcação

Vou seguir com a Rainha

E o Império Juramidam

Vou subindo, eu vou subindo

Até onde eu posso ir

Encontrar com Jesus Cristo

Que é a flor deste jardim110

Por fim, Eliade define o xamã como um dirigente da vida religiosa do grupo ao

qual pertence. Controlando as técnicas de êxtase, o xamã concentra em si as

funções de interpretador e definidor dos rumos e do destino das vivências espirituais

daqueles que orbitam ao seu redor111.

Mais um paralelo pode ser traçado com as práticas daimistas. Os padrinhos e

madrinhas112 nas igrejas que dirigem, sem falar no próprio Mestre Irineu, assumem a

função de dirigentes espirituais do grupo ao qual pertencem, reunindo não só as

funções de organizadores dos rituais, mas também da própria vida cotidiana

daqueles que pertencem a suas respectivas igrejas.

Outro autor analisado por GROISMAN é Michael Harner, que define o xamã

como o indivíduo que entra em contato com o mundo dos espíritos através de um

estado de transe. Detalhe importante em relação à visão de Harner é que este autor

110 Sebastião Mota de MELO, O Justiceiro, hino 10. 111 Alberto GROISMAN, op. cit., p. 73. 112 Lideranças que se constituem no movimento religioso daimista, em suas diversas vertentes, e que normalmente assumem o comando de alguma igreja ou daimistas mais antigos, que recebem esta denominação como forma de respeito. É interessante observar que essas expressões remetem aos antigos laços de compadrio das sociedades camponesas brasileiras.

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não identifica uma determinação de valores nas práticas xamânicas, ou seja, a

qualificação e a atuação do xamã estariam para além da visão dualista bem X mal.

Portanto, o xamã pode realizar atividades, em relação ao mundo espiritual, tanto

para ajudar como para prejudicar outras pessoas113.

Janet Siskind, Gerald Weiss e Henry Munn, citados por GROISMAN,

identificam o xamanismo fundamentalmente como práticas terapêuticas tradicionais.

Segundo esses autores o xamã, através de suas técnicas próprias de êxtase, entra

no mundo do sonho de seus pacientes, busca espíritos perdidos para reconduzi-los

aos seus corpos enfermos e recebe de entidades espirituais as chaves para a cura

das doenças dos membros de suas comunidades114.

O hino, As Estrelas, de Raimundo Irineu Serra, já citado em sua última estrofe

anteriormente, descreve uma viagem aos planos não materiais e a obtenção das

técnicas de cura através de entidades espirituais depois de serem ultrapassados

obstáculos e provações, se enquadrando exatamente nas características das

práticas xamânicas descritas por esses autores:

As estrelas já chegaram

Para dizer o nome seu

Sou eu, sou eu, sou eu

Sou eu um filho seu

As estrelas me levaram

Para correr o mundo inteiro

Pra conhecer esta verdade

Para poder ser verdadeiro

Eu subi serra de espinhos

Pisando em pontas agudas

As estrelas me disseram

No mundo se cura tudo

As estrelas me disseram

Ouve muito e fala pouco

113 Alberto GROISMAN, op. cit., p. 73. 114 Ibid., p. 74.

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Para eu poder compreender

E conversar com meus caboclos

Os caboclos já chegaram

De braços nus e pés no chão

Eles trazem remédios bons

Para curar os cristãos115

Portanto, a partir das análises feitas por GROISMAN, ele acaba por definir o

xamanismo da seguinte forma:

Considerando estas premissas, podemos então considerar o xamanismo um sistema complexo de conhecimento acerca do mundo, cuja definição está submetida pelas diferentes manifestações que assume nos grupos em que aparece como foco subjetivo do destino e do contato com forças invisíveis da existência, cuja complexidade está testemunhada pela extensa discussão, (...) e que exemplifica significativamente sua relevância para o conhecimento antropológico e vinculado a possibilidade de trânsito e tradução do contato entre as forças objetivas do social (o mundo visível) e as forças subjetivas da imponderabilidade (o mundo invisível)116.

GROISMAN ainda esclarece sobre as duas possibilidades de se entender o

xamanismo: a estrutural-funcionalista e a visão holística. A primeira entende o

xamanismo como um conjunto de práticas individuais, voltado para a cura e o

contato com o mundo espiritual; já a segunda, buscando um referencial mais amplo,

percebe o xamanismo como um sistema complexo de caráter religioso. Dessa forma,

para GROISMAN:

Na primeira abordagem, o xamanismo é identificado a partir da existência de xamãs, de sua performance e das características pessoais de sua legitimação. A segunda remete para as representações cosmológicas das sociedades e sua operacionalização no processo ritual dos grupos envolvidos, onde o xamã é um agente do contato com o mundo espiritual117.

Daí o papel do xamã não se limitar exclusivamente ao processo de cura,

assumindo funções muito mais amplas e complexas, como a previsão de eventos, a

115 Raimundo Irineu Serra, O Cruzeiro, hino 75. 116 Alberto GROISMAN, op. cit., p. 78. 117 Alberto GROISMAN, op. cit., p. 79.

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resolução de conflitos, a manutenção da tradição oral e a legitimação do poder

temporal118.

O que GROISMAN acaba por realizar é uma análise do movimento religioso

do Santo Daime inserido nesta dupla leitura sobre o xamanismo. Logo, no

movimento daimista existem lideranças que podem ser vistas como xamãs, pois

atuam como curadores utilizando técnicas próprias de êxtase a partir da ingestão do

Santo Daime e se estabelecem como agentes amalgamadores da existência grupal.

A partir de Raimundo Irineu Serra, passando por Sebastião Mota de Melo, indo até

outros padrinhos e madrinhas ou determinados fardados de destaque, podem ser

encontrados indivíduos que se enquadram na categoria de xamãs, pois assumem,

alguns deles, além do papel de curadores, a função de norteadores e

interpretadores dos rumos a serem seguidos pelo grupo, com suas performances e

legitimação dependendo do conjunto de daimistas que os cercam.

No entanto, o movimento religioso daimista faz parte de um universo cultural

mais amplo que o xamanismo. Identificado como “eclético” por GROISMAN, o Santo

Daime extrapola os limites do xamanismo e incorpora elementos culturais diversos,

imprimindo uma dinâmica religiosa própria não exclusivamente xamânica. O que se

pode encontrar é uma práxis xamânica no Santo Daime e não um movimento

xamânico.

Baseado nos conceitos de xamanismo, GROISMAN define a práxis xamânica

como:

(...) o trânsito do xamã pela realidade simbólica e ritual dos grupos onde atua. O xamã não é apenas um indivíduo que possui um poder emanado do mundo dos espíritos e com o qual ocupa uma função social. Na verdade, seu poder nasce de um conjunto de fatores que integrados com a leitura social lhe conferem prestígio e legitimidade e proporciona ao grupo vencer, pelo menos simbolicamente, as dificuldades gerais de sua existência119.

Dessa forma, GROISMAN identifica uma práxis xamânica daimista baseada

exatamente nessa categorização. Ou seja, no movimento religioso do Santo Daime

encontram-se algumas lideranças que, juntamente com a estrutura doutrinária,

mantém a coesão grupal, servindo de alicerce de sustentação para a vida religiosa e

118 Ibid., p. 83 119 Alberto GROISMAN, op .cit., p. 81.

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cotidiana dos daimistas. Sustentação esta que se fundamenta em um éthos

xamânico daimista, caracterizado pela capacidade de contatar, transitar e interpretar

o mundo espiritual120.

Entretanto, apesar da existência dessa práxis xamânica daimista, o

xamanismo se constitui, sob a ótica desse pesquisador, em mais um dos diversos

complexos culturais que fundamentam a constituição do movimento religioso.

Portanto, para ele, o Santo Daime não é exatamente um movimento xamânico, na

medida em que não possui o xamanismo como elemento único e central na

construção de seu universo cultural. Nas palavras de GROISMAN, o xamanismo é:

(...) um sistema de conhecimento que abrange a totalidade das dimensões do social. Embora influenciado pela tradição xamânica do uso da ayahuasca, o Santo Daime institucionaliza o uso da bebida num contexto em que as práticas xamânicas são reelaboradas como parte do repertório ritual e da cosmologia e não como um sistema de conhecimento total121.

Fica evidenciado, portanto, que existem elementos claros aproximando o

movimento religioso do Santo Daime e o xamanismo e suas práticas. Os rituais

daimistas são profundamente marcados por experiências extáticas com traços dos

elementos do vôo xamânico. Existem adeptos que podem ser vistos como xamãs,

por suas atuações como curadores, controladores das técnicas de êxtase e suas

posições centrais de lideranças religiosas dentro dos grupos daimistas. As iniciações

dos dois maiores expoentes do movimento religioso, Raimundo Irineu Serra e

Sebastião Mota de Melo, podem ser entendidas como iniciações xamânicas. Além

disso, é inegável o fato de serem encontrados processos de cura, tendo a

beberagem sagrada do Santo Daime como elemento de mediação, algo muito

próximo da cura xamânica.

Entretanto, algumas questões devem ser observadas sobre esse paralelo

entre o movimento religioso daimista e o xamanismo.

Primeiramente, o xamanismo não se assenta em um conjunto de valores e de

crenças que se baseiam, obrigatoriamente, na dualidade entre o bem e o mal. Assim

como suas práticas não se estruturam objetivando o desenvolvimento espiritual

daquele que as utiliza. Portanto, o xamã não está, necessariamente, em busca de 120 Ibid., p. 83. 121 Ibid., p. 131.

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ser uma pessoa melhor ou obrigado a se enquadrar em preceitos morais

estabelecidos. Ao contrário, o Santo Daime é essencialmente baseado no

cristianismo, logo, preso a princípios que norteiam de forma clara o comportamento

do daimista, que tem, por sua vez, no desenvolvimento espiritual, uma de suas

grandes obrigações.

Nesse sentido, GROISMAN afirma:

A “revelação” [resultante da vivência dentro do movimento religioso] desta dimensão espiritual da existência modifica a visão de mundo do sujeito que a experiência o faz reinterpretar, fazer um “balanço” de sua vida à luz dos novos significados com os quais faz suas escolhas comportamentais, tendo em vista sempre que sua “missão” é chegar mais perto da divindade, ou seja, percorrer todos os passos para que possa agir somente sob a orientação de seu “Eu Superior”122.

Segundo Vera FRÓES:

Harmonia, Amor, Verdade e Justiça são os requisitos básicos para ingressar no império de Juramidam, são valores que não levam em conta a perspectiva da vida material e decorrem de uma visão cristã fundamentada na ressurreição do ser humano através de Jesus Cristo123.

Inclusive, a base moral cristã é o fundamento do desenvolvimento espiritual

do daimista, que, por sua vez, constitui-se no único caminho possível para se

alcançar o “merecimento”. Essa categoria, profundamente ligada às raízes cristãs do

movimento, é a chave para aquele que participa do ritual ter acesso às experiências

extáticas identificadas com a práxis xamânica. Para GROISMAN:

(...) o xamã ascende a outras dimensões de sua vida pelo seu valor pessoal e pela outorga de poderes sobrenaturais a poucos, enquanto que os daimistas só admitem a elevação e a outorga na coletivização da identidade pessoal em forma de caridade124.

Portanto, o Santo Daime tem na coletividade, que opta por seguir um

aprendizado baseado nos valores cristãos, um dos seus elementos centrais. O que

remete a uma outra questão relevante em relação à definição do movimento

daimista como xamânico, já que alguns autores entendem o xamanismo como 122 Alberto GROISMAN, op. cit., p. 111. 123 Vera FRÓES, Santo Daime, cultura amazônica, p. 47. 124 Alberto GROISMAN, op.cit., p. 231.

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sendo essencialmente individual. Ou seja, trata-se de um indivíduo que controla as

técnicas de êxtase, viaja por dimensões espirituais, combate demônios, entra em

contato com divindades e cura seus pacientes, servindo de alicerce para as práticas

religiosas de seu grupo. Dessa forma, algo essencialmente individual e não coletivo.

Como já foi descrito, COUTO propõe uma nova categoria para resolver essa

questão o “xamanismo coletivo”, sendo o movimento daimista, para ele, uma “escola

de xamãs”. Mas, apesar de propor uma solução para a problemática em torno do

individual/coletivo, essa nova categoria esbarra em algumas imprecisões.

Primeiramente, é importante ressaltar que no movimento religioso somente alguns

indivíduos conseguem alcançar a posição de grandes curadores e controlar as

técnicas de êxtase a ponto de poderem ser identificados como xamãs. Ou seja,

mesmo sendo um ritual coletivo, somente alguns poucos indivíduos podem ser

vistos como xamãs. Já foi mencionado anteriormente a questão do “merecimento”,

que se baseia na obediência aos preceitos cristãos que regem o grupo e que

separa, entre os daimistas, aqueles que alcançam o grau de desenvolvimento

necessário para vivenciar e controlar as experiências extáticas xamânicas.

Por outro lado, a noção de “escola de xamãs” também pode ser questionada.

Uma escola passa obrigatoriamente por um objetivo de formação daqueles que a

procuram voluntariamente. Portanto, uma “escola de xamãs” transformaria em

especialistas do êxtase todos aqueles que a buscassem125. Entretanto, este não é o

caso do movimento religioso daimista. O Santo Daime é uma escola de

desenvolvimento espiritual, onde aqueles que a buscam procuram por um caminho

de condução ao divino. Eventualmente, um ou outro daimista, por “merecimento” e

conseqüência desta busca por um desenvolvimento espiritual, pode se tornar um

grande curador e controlador das técnicas de êxtase, logo, um xamã daimista.

Nas entrevistas realizadas na pesquisa de campo entre os fardados da igreja

Céu do Gamarra, nenhum dos entrevistados evidenciou qualquer intenção de virar

um xamã ou ter procurado o movimento religioso com esse intuito.

Ligado a este princípio de desenvolvimento espiritual e balizado por valores

cristãos, pode-se encontrar no hino Preleção, de Antônio Gomes, uma relação de

ações que devem ser colocadas em prática pelo daimista em vista do objetivo

125 É importante ressaltar que normalmente um indivíduo não escolhe ser xamã. Essa não é uma decisão pessoal, o mais comum é a pessoa ser escolhida por designios desconhecidos dos reles mortais.

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central de sua “missão aqui na Terra”, que é seguir as “Santas Doutrinas” e se

aperfeiçoar espiritualmente:

Eu vou mostrar os meus irmãos

Para virem apreciar

Escutar a preleção

Que eu agora mando dar

(...)

Eu vim para este mundo

Foi meu Pai que me mandou

Para mim viver aqui

Como Mestre Ensinador

A Rainha minha Mãe

Foi quem veio me ensinar

Eu perdoar os meus irmãos

Para meu Pai me perdoar

(...)

Eu digo aos meus irmãos

Que nós devemos seguir

Para ser bem feliz

É preciso se unir

(...)

Sempre eu digo aos meus irmãos

Mas não querem acreditar

Que somos filhos de Deus

E não podemos se julgar

Aconselho aos meus irmãos

Que sejam atenciosos

Que os filhos do Pai Eterno

Não podem ser orgulhosos

Eu digo aos meus irmãos

Que eu não vim para enganar

Quem zombar desta verdade

É para ver o corpo tombar

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Foi meu Pai quem me mandou

Eu aqui para ensinar

Quem quiser seguir comigo

É preciso se humilhar126

Dessa forma, é importante ressaltar que a aproximação entre o movimento

daimista e o xamanismo é uma abordagem interessante e riquíssima para análise,

entretanto, é necessário buscar um olhar diferente. Um olhar que persiga um

entendimento sobre a dinâmica de constituição do Santo Daime, evidenciando os

diferentes universos culturais que se recombinam, ao encalço dos alicerces

simbólicos que estruturam a visão de mundo do povo de Juramidam, como

pertencentes ao universo cristão.

126 Antônio Gomes, hino 2.

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CAPÍTULO III

Cristianismo Juramidam

Olhar o Santo Daime, buscando entender a dinâmica de construção do

movimento e os diferentes universos culturais que o compõem exige, inicialmente,

uma análise da conjuntura mais ampla do campo religioso brasileiro, que serve de

pano de fundo para a constituição do movimento daimista.

Apesar de historicamente o Brasil ter vivido um processo de construção

nacional em que o encontro de diferentes culturas foi um dos traços mais marcantes,

nas últimas décadas o universo do sagrado no Brasil vem vivendo uma realidade

bastante peculiar. Sob a influencia dos novos ares da modernidade, assiste-se a

uma potencialização da dinâmica do campo religioso, que, segundo Ênio José da

Costa BRITO, “é um espaço de permanentes trocas de produção, usos simbólicos e

materiais pelos personagens que dele fazem parte”127.

Nas palavras da historiadora Maria Lúcia MONTES:

Fluidez do campo religioso, baixo grau de institucionalização das igrejas, proliferação de seitas, fragmentação de crenças e práticas devocionais, seu rearranjo constante ao sabor das inclinações pessoais ou das vicissitudes da vida íntima de cada um: esses seriam os sinais que revelariam a face da modernidade – ou seria da pós-modernidade? - enfim se deixando entrever no campo religioso brasileiro.128

Portanto, regido pela batuta da pós-modernidade, o campo religioso brasileiro

ganha um caráter extremamente movediço, que contribui ainda mais para a sua

tendência histórica da interpenetração e reinterpretação de universos culturais

distintos. Ao mesmo tempo, em que as instituições religiosas tradicionais assistem

ao crescente enfraquecimento de sua hegemonia, a oferta de bens simbólicos se

amplia, com a multiplicação das opções geradas no mercado da salvação. Opções

que se estruturam em um campo religioso flexível e aberto à interação, que se

molda como o movimento das marés, presas ao seu eterno fluxo e refluxo,

recombinando os grãos de areia nos mais diferentes rearranjos.

127 Ênio da Costa BRITO, Agonia de um modelo, in: SOUZA e MARTINO (orgs.), Sociologia da Religião e Mudança Social, p. 39. 128 Maria Lúcia MONTES, As figuras do sagrado entre o público e o privado, in: SCHWARCZ (org.), História da vida privada no Brasil, p. 69.

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A fluidez religiosa da pós-modernidade também apresenta, como outra de

suas facetas, a migração constante entre os crentes de diferentes credos, definida

por José J. QUEIROZ como nomadismo místico:

O caráter permanentemente migratório da Pós-Modernidade penetra no âmbito do sagrado e provoca um fenômeno que se caracteriza como nomadismo místico. Mesmo permanecendo nominalmente vinculado a alguma forma de culto, que em geral herdou do berço materno, a tendência religiosa do homem pós-moderno é um trânsito constante pela constelação religiosa, compondo, nessas inúmeras viagens, um sentido para a existência129.

Essa dinâmica permite, portanto, uma ampliação da oferta dos caminhos que

se dirigem para a salvação e o auto-aprimoramento, a partir do momento em que

quebra a hegemonia das tradicionais instituições religiosas. O crente que não se

sente mais totalmente preso a uma única tradição religiosa e se permite uma maior

flexibilidade doutrinária e ritual é o cliente em potencial para o crescente pluralismo

no mercado dos bens de salvação.

Na conjuntura dessa multiplicação de ofertas no varejo das religiões, em

sintonia com o abalo no poder hegemônico das estruturas institucionais, MONTE

ressalta o surgimento de práticas religiosas no Brasil que são frutos dessa dinâmica

peculiar do universo tupiniquim do sagrado, em que se enquadra particularmente o

movimento daimista:

De fato, algumas práticas religiosas contemporâneas no Brasil não só redescobrem formas tradicionais de devoção e culto dos tempos coloniais como também incorporam e resignificam práticas de outras religiões, de outros tempos ou de outras gentes, o que se evidencia no ressurgimento de religiosidades de fundo esotérico, na nova presença das religiões orientais, como a redescoberta e reinvenção do hinduismo, do xintoísmo e do budismo, ou na invasão de centros urbanos por religiões da floresta que se organizam em torno do culto do Santo Daime130.

Dentro do universo religioso, aquelas práticas, que se desenrolam fora das

estruturas das grandes instituições, apresentam uma natureza muito mais flexível.

Segundo Ênio José da Costa BRITO, a religiosidade popular é profundamente

dinâmica e capaz de comportar as mais diversas reinterpretações e resignificações,

129 José J. QUEIROZ, Interfaces com o sagrado, p.17. 130 Maria Lúcia MONTE, op. cit., p.169.

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pois “estamos diante de um processo social e cultural que dá possibilidade às

pessoas enquanto coletividade de criar e recriar suas representações e suas

práticas correspondentes”131. Portanto, a religiosidade popular tem um dinamismo

próprio marcado pela fluidez e pelo polimorfismo, que foge, oscilando entre a

reprodução e a resistência, do controle das instituições que se pretendem

hegemônicas nas intermediações com o transcendente.

Como pano de fundo para a elaboração da teia de resignificações simbólicas

da religiosidade popular brasileira na construção do movimento daimista está o

encontro da floresta com a periferia urbana, do caboclo e do índio amazônicos com

o nordestino. É nesta conjuntura histórica específica, a da ocupação da região

amazônica pelo movimento de expansão econômica da borracha e seu posterior

refluxo, que nasce o Santo Daime. Criou-se, portanto, uma enorme fronteira entre

universos culturais distintos, que levou a um processo de interpenetração, facilitado

pela dinâmica própria da religiosidade popular.

Dessa forma, é inserido neste caldeirão cultural do campo do sagrado

brasileiro, temperado pela fluidez das práticas religiosas forjadas fora das estruturas

institucionais, que o Santo Daime foi constituído. Combinam-se e se interpenetram,

nesta construção permanente, elementos do cristianismo, das manifestações

religiosas afro-brasileiras, do espiritismo kardecista, de correntes esotéricas e das

práticas xamânicas indígenas tradicionais da Amazônia. Essa diversidade de

matrizes culturais, que estrutura a edificação do movimento religioso, garante ao

Santo Daime um processo extremamente dinâmico de reelaboração de significados

simbólicos que pode ser entendido a partir de diferentes olhares.

Tradicionalmente o movimento daimista é visto como sincrético, como

defende Walter DIAS, que ressalta seu polimorfismo e sua elasticidade simbólica:

O culto ao Santo Daime (ou Santas Doutrinas) foi criado por Raimundo Irineu Serra (Mestre Irineu) e constituiu-se a partir de um vigoroso movimento sincrético, pertinente ao seu avanço das matas em direção às cidades. Com linguagem metafórica, abre espaço para a ambigüidade de sentido, tanto na elaboração, como na interpretação das formas e códigos de representação cultural. Caracteriza-se pela flexibilidade, fluidez e mobilidade de formas simbólicas. Sua condição de existência é a abertura para a fusão de diferentes e, por vezes, até antagônicas crenças e concepções religiosas.132

131 Ênio da Costa BRITO, A cultura popular e o sagrado, in: QUEIROZ (org.), Interfaces do sagrado, p. 105. 132 Walter DIAS, O Império de Juramidam nas batalhas do astral, p. 45.

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É importante ressaltar, nas observações de DIAS, o caráter essencialmente

dinâmico do movimento daimista, que tem como um de seus pilares estruturantes a

bricolagem cultural permanente dos diferentes universos que compõem o campo

religioso brasileiro.

Já MacRAE observa o caráter sincrético do movimento daimista como sendo

uma conseqüência de suas raízes xamânicas. A incorporação de elementos distintos

na construção do movimento daimista seria resultado da inexistência de uma

ortodoxia no xamanismo:

(...) o caráter não-dogmático e interrogador do xamanismo facilita a incorporação progressiva de novos modelos nos seus quadros conceituais tradicionais. Assim sendo, em resposta a uma realidade sociocultural, foram introduzidas importantes mudanças conceituais e práticas. A principal delas talvez tenha sido a ênfase dada a elementos de origem cristã, incorporando seu panteão e, mais importante, sua ética133.

Incorporando uma outra conceituação para entender a construção do

movimento religioso do Santo Daime, Clodomir MONTEIRO utiliza a expressão

“reinterpretação” dos significados oriundos dos diversos universos culturais

constitutivos do Santo Daime. O autor insere sua análise no contexto particular que

congrega as fronteiras amazônicas e a periferia dos centros urbanos da região. Com

a migração nordestina para a floresta amazônica, a partir do final do séc. XIX, passa

a ser processada uma reinterpretação dos significados simbólicos em interação, que

resignifica e recria os universos culturais em contato: o rústico nordestino, o caboclo

amazônico e o ameríndio134.

Um exemplo desse processo de “reinterpretação” na construção do

movimento religioso daimista é apontado por MONTEIRO:

(...) Outro traço que identifica os Sistemas de Juramidam diz respeito à preparação, indicação e legitimação de seus mestres ou padrinhos. Trata-se de combinação da figura do pajé indígena, do sacerdote católico e a figura do guia espiritual dos cultos populares afro-brasileiros. Constatamos assim o fenômeno da reinterpretação no próprio processo de legitimação de seus líderes135.

133 Edward MaCRAE, op. cit., p. 140. 134 Clodomir MONTEIRO, op. cit., p.21. 135 Ibid., p. 65.

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Outra autora que trabalha com a idéia de reinterpretação é Sandra GOULART

que afirma o surgimento do Santo Daime em um contexto de redefinição das

tradicionais festas aos santos e das velhas práticas de solidariedade das culturas

que se fundem nas periferias dos centros urbanos em expansão na região

amazônica. Segundo ela, no movimento religioso daimista, apesar da incorporação

de muitos elementos, “não se trata apenas de simples referências a uma época

remota, mas da reinterpretação de uma tradição”136.

Em um interessante depoimento de uma antiga daimista, a senhora Percília

Ribeiro, apresentado por GOULART, pode-se perceber como as tradicionais festas

aos santos católicos são reinterpretadas, garantindo ao movimento daimista um

calendário litúrgico137 e uma forma própria de ritual:

De início, a gente só tomava o Daime e se concentrava. No final, tinham as palestras, quem viu, o que mirou (...) Nessa época não tinha bailado, nada. Porque ninguém ainda tinha hinário. Não dava pra bailar (...) O Mestre só tinha alguns hinos. Depois, os outros foram recebendo. Mas, ainda era pouca gente. Então, o primeiro hinário nós cantamos nove hinos. Cinco do Mestre, dois do seu Germano, dois do seu João Pereira. Repetia três vezes cada hino e, quando acabava, começava tudo de novo. Foi a noite inteira. Esse primeiro hinário foi na casa da Maria Damião. Era dia de São João. Ela gostava de comemorar São João. Aí, foi na casa dela. Desde então a gente passou a fazer hinário nesse dia (...) Esse primeiro hinário foi até de manhã. Lá pelas onze horas da noite nós fizemos um intervalo. Aí, muita pamonha, bolo de macaxeira, chá, caiçuma... Era pouca gente, mas aquela fartura!138

Ao mesmo tempo, em que o calendário litúrgico das festas populares dos

santos católicos oferece a base para o calendário litúrgico daimista, as antigas

práticas do compadrio e do mutirão garantem a estrutura de organização social do

grupo daimista original, como fica claro no seguinte relato exposto por GOULART:

136 Sandra GOULART, As Raízes Culturais do Santo Daime, p. 148. 137 É importante ressaltar que as principais comemorações religiosas no Santo Daime, os chamados Trabalhos Oficiais, realizados com a vestimenta mais elaborada do ritual daimista, a farda branca, são realizadas nos dias reservados pelo calendário litúrgico católico para a comemoração das festas dos santos, como são exemplos os Trabalhos de São José, Santo Antônio, São João, São Paulo e São Pedro, Nossa Senhora Aparecida e da Conceição. 138 Sandra GOULART, op. cit., p. 148.

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No começo era pouquinha gente (...) Algumas famílias que moravam encostado no padrinho Irineu139. Muitos já conheciam ele. Moravam ali pertinho, tinham suas colônias. O padrinho Irineu também tinha lá o roçado dele. Era tudo vizinho, compadre, tinham de se ajudar. O mestre foi reunindo todo esse povo, foi ensinando a gente se ajudar, a trabalhar junto a terra. Porque a gente tava numa situação que precisava se ajudar mesmo. O trabalho foi ficando mais organizado. Quando era época de colheita ou de derrubada, o padrinho Irineu juntava todo mundo e, cada dia, a gente ia trabalhar nas terras de um. Foi assim que começou a comunidade, a irmandade do Santo Daime, com os vizinhos trabalhando junto, cada um ajudando seu irmão140.

Um exemplo esclarecedor do processo de reinterpretação simbólica que se

processa no interior do movimento religioso daimista se passa com as figuras dos

encantados. Seres mágicos que habitam o universo cultural do caboclo amazônico,

os encantados estão diretamente ligados aos elementos da natureza, como a

floresta, os rios, animais, e não se encontram, originalmente, orientados a partir de

uma leitura dicotômica de bem e mal. Ou seja, podem ser maléficos ou protetores,

dependendo dos objetivos e de como são abordados ou contatados.

Entretanto, é possível identificar no campo simbólico daimista entidades

espirituais similares aos encantados, só que reinterpretadas dentro de uma lógica

de oposição entre bem e mal, como esclarece Leandro OKAMOTO:

Os encantados existentes na crença dos seringueiros não desaparecem, mas passam a operar segundo uma outra lógica, que atua sobre a base moral que distingue as noções de bem e mal. Esta é uma característica marcante no culto do Santo Daime, ao assimilar novos elementos como os caboclos, encantados, preto-velhos etc., esses elementos passam todos a operar, simbolicamente, sob a ação dessa mesma lógica, em outras palavras, podemos dizer que a figura dos encantados não desaparece do imaginário daimista, como indicam vários hinos, no entanto, diferem-se da classificação tradicional desses seres que os vê como ambíguos e perigosos141.

Nos primeiros hinos de Raimundo Irineu Serra aparecem inúmeras entidades

espirituais diretamente ligadas à natureza que compõem o complexo cultural do

caboclo amazônico. A peculiaridade se encontra no fato dessas entidades

espirituais terem sido reordenadas em um universo simbólico em que a antítese

139 Raimundo Irineu Serra era comumente identificado por seus primeiros seguidores como padrinho Irineu, título que, no universo rústico do homem do campo brasileiro, designa as tradicionais lideranças religiosas leigas. 140 Sandra GOULART, O contexto de surgimento do culto do Santo Daime: formação da comunidade e do calendário ritual, in: LABATE (org.), O Uso Ritual da Ayahuasca, p. 319. 141 Leandro OKAMOTO, Marachimbé chegou foi para apurar, p. 28.

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entre o bem e o mal é fator fundante. Um exemplo claro aparece no hino Formosa,

em que se louva um ser extra-material claramente benéfico e protetor, identificado

com a água:

Formosa, formosa, formosa

É bem formosa

Formosa, é bem formosa

Tarumim, tu sois formosa

Formosa, é bem formosa

Formosa, formosa, formosa

É bem formosa

Tarumim, estou com sede

Tarumim, tu me dá água

Tarumim, tu sois Mãe D’água

Tarumim, tu sois formosa

Formosa, formosa é bem formosa142

Fernando COUTO segue a mesma linha de análise, ressaltando a

recombinação de diferentes matrizes culturais processada no encontro da floresta

com as cidades em expansão na região amazônica. Segundo ele, “podemos dizer

que o encontro do sacerdote católico com o pajé indígena e o pai de santo do

espiritismo popular forma a base dessa doutrina: a doutrina do Santo Daime”.143

Já Alberto GROISMAN utiliza o conceito de ecletismo. Segundo o autor, este

elemento garante uma dinâmica própria para a construção permanente da doutrina

daimista, pois “o ecletismo que envolve a ‘Doutrina’ dinamiza o processo ritual e

abre espaço para que concepções espirituais diversas, inclusive o xamanismo,

manifestem-se no seu interior”.144. Portanto, a estruturação do movimento daimista

é um processo dinâmico e constante, aberto para a incorporação de novos

elementos, que vão se somando e se reinterpretando simbolicamente no desenrolar

do tempo, inseridos em diferentes conjunturas sociais.

142 Raimundo Irineu Serra, O Cruzeiro, hino 4. 143 Fernando COUTO, op. cit., p.17. 144 Alberto GROISMAN, Eu Venho da Floresta: ecletismo e práxis xamânica daimista no “Céu do Mapiá”, p.234.

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Na discussão da categoria de ecletismo, GROISMAN coloca em cheque o

conceito de um processo sincrético na elaboração do movimento daimista, pois “a

idéia de sincretismo pode indicar uma rejeição de uma linha mestra de aglutinação

de concepções espirituais diferentes”145. Um eixo central dinâmico e aberto aos

diversos universos culturais que compõe o campo religioso brasileiro. Dessa forma,

para o autor, o ecletismo se constitui em um processo de reinterpretação simbólica

contínuo, em que diferentes significados se combinam permanentemente,

estabelecendo os parâmetros para a construção de uma visão de mundo daimista.

Um dado importante é que a expressão ecletismo pode ser encontrada no

estatuto do CEFLURIS e no nome das organizações religiosas que compõem o

universo daimista originado na corrente de Sebastião Mota de Melo146. Esse fato

indica a presença marcante dos princípios da fluidez e abertura, que caracterizam o

ecletismo, na bagagem simbólica daimista. No segundo artigo do estatuto do

CEFLURIS, publicado no Diário Oficial em 30 de março de 1978, aparece a

seguinte obrigação para os membros da instituição: “Adorar a Deus em espírito e

em verdade, sob o ritual específico do Ecletismo Evolutivo”.

Vera FRÓES esclarece o conceito de ecletismo evolutivo baseado no

princípio de abertura para múltiplas reinterpretações a partir de um eixo central

norteador:

O estatuto do CEFLURIS esclarece que a linha do centro é a mesma implantada pelo mestre Irineu, fundamentada no ritual do Ecletismo Evolutivo, ou seja, várias correntes religiosas que se interpenetram tendo como ponto de partida o cristianismo147.

Outro trabalho que ressalta elementos presentes no simbolismo daimista que

reforçam a idéia de um movimento religioso aberto e dinâmico dentro dos princípios

do ecletismo é No mundo se cura tudo. Interpretações sobre a “cura espiritual” no

Santo Daime, de Maria Cristina PELÁEZ. O argumento se centra na expressão

“centro livre”, termo comumente utilizado pelos daimistas para se referirem aos

centros de culto, normalmente aparecendo com dois significados: o local de culto é

145 Aberto GROISMAN, op. cit.,p.233. 146 O CEFLURIS, Centro Eclético de Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra, e a instituição religiosa, objeto de estudo dessa pesquisa, denominada CEFLUGG, Centro Eclético de Fluente Luz Universal Germano Guilherme, são exemplos. 147 Vera FRÓES, op. cit., p. 59.

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aberto para qualquer um que se dispuser a participar do ritual e o movimento

religioso daimista não está fechado a novas influências. Portanto, em relação ao

segundo significado, constata-se mais uma vez a presença dos princípios da

flexibilidade nas estruturas constitutivas do movimento daimista. A expressão centro

livre e todos os significados a ela imputados pelos daimistas se revestem ainda

mais de uma aura de legitimidade quando se considera que o termo dá título ao

hino 39, Centro Livre, de Raimundo Irineu Serra.

Logo, é nesse caleidoscópio religioso, fluido, dinâmico, aberto, que marca tão

profundamente o campo da religiosidade popular brasileira, que se combinam e se

reinterpretam elementos religiosos pertencentes às matrizes indígenas, afro-

brasileiras, kardecistas, esotéricas e do catolicismo popular para a construção do

movimento religioso do Santo Daime.

Como já debatido anteriormente, a influência das matrizes indígenas é

marcante quando se leva em conta a presença dos elementos do xamanismo no

desenrolar dos rituais daimistas, como o vôo, a cura e as lideranças xamânicas.

Além desse fato, é importante ressaltar a presença, na bagagem simbólica daimista,

de entidades espirituais oriundas do universo cultural indígena e caboclo, como

Barum, Marum, B.G., Princesa Soloína, Cires Beija-Mar, entre outras148.

A presença de correntes esotéricas pode ser percebida em alguns aspectos

do ritual e do conjunto de valores do povo de Juramidam. Raimundo Irineu Serra

era filiado ao Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento, centro de estudos

dedicado ao conhecimento de diferentes escolas espiritualistas, cujo lema,

Harmonia, Amor, Verdade e Justiça, constitui-se em um dos parâmetros

norteadores da ação cotidiana do daimista. Outros fatores relevantes são a

utilização de algumas orações do Círculo durante os rituais do Santo Daime e o

trabalho de Cruzes, um ritual de cura muito reservado e pouco realizado, que

também é uma herança dessa escola esotérica.

Nesta dinâmica fluida e aberta para constantes incorporações, o movimento

daimista continua elaborando novas resignificações de elementos simbólicos

ligados ao universo das culturas orientais. Fábio Pedalino Costa, dirigente da igreja

Céu do Gamarra, anuncia essa influência em seu hino Linha do Oriente:

148 Todas as denominações das entidades mencionadas aparecem no hinário O Cruzeiro, de Raimundo Irineu Serra.

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Chegou a Linha do Oriente

Com o meu São Tomé

Moisés, Mahatma Ghandhi

E toda Corte Oriental149

E ainda cita a presença de entidades espirituais de religiões orientais no hino

O Mestre é a raiz:

Meu Mestre é a raiz

E o Padrinho o tronco principal

E nós somos rama

Hare árvore de luz

Krishna flor nesta doutrina

Está aqui para nos libertar

Da prisão do julgamento

Do preconceito e da razão

Em relação às matrizes afro-brasileiras e espírita, o que se percebe no Santo

Daime é a existência de um conjunto de práticas e crenças que pertencem a um

universo simbólico compartilhado por essas tradições. Observa-se, por exemplo, a

crença na reencarnação, exposta no hino Só eu cantei na barra, de Raimundo

Irineu Serra:

Só eu cantei na barra

Que fiz estremecer

Se tu queres vida eu te dou

Que ninguém não quer morrer

A morte é muito simples

Assim eu vou te dizer

Eu comparo a morte

É igualmente ao nascer

149 Fábio Pedalino Costa, Iniciação, hino 6.

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Depois que desencarna

Firmeza no coração

Se Deus te der licença

Volta a outra encarnação

Na terra como no céu

É o dizer de todo mundo

Se não preparar terreno

Fica espírito vagabundo150

Outro elemento importante incorporado desse universo simbólico religioso

comum diz respeito ao contato e à incorporação de entidades espirituais presentes

em alguns trabalhos específicos. Observam-se rituais, como o Trabalho de Mesa,

que “tem a finalidade de exorcizar os maus espíritos e ‘descarrego’ de vibrações

negativas”151; ou o de São Miguel, em que são freqüentes as manifestações de

incorporação. Além desse aspecto, ritual existe um elemento simbólico marcante

que é a presença do panteão das religiões afro-brasileiras no conjunto de hinários

daimista. Essas entidades vão desde os caboclos, identificados como seres astrais

de cura no hino As Estrelas, de Raimundo Irineu Serra, já citado anteriormente, até

elementos do universo dos orixás, como demonstra o hino Linha Branca, de Suzana

Pedalino Costa, dirigente da igreja Céu do Gamarra:

Eu agradeço ao Mestre e a São João

E toda Vossa proteção que recebo em minha vida

És Iansã lá nas minhas cachoeiras

E aqui na beira-mar, és a Rainha Iemanjá

Saúdo a todos do festejo do terreiro

Do trabalho de umbanda linha branca de Oxalá

E a esta luz guia da minha cabeça

Peço que me revigore com a força da água do mar152

150 Raimundo Irineu Serra, O Cruzeiro, hino 74. 151 Vera FRÓES, op. cit., p.41. 152 Suzana Pedalino Costa, Império do Sol, hino 72.

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A relação do Santo Daime com a Umbanda se estreita principalmente na

linha do CEFLURIS, por uma série de razões, como esclarece Antônio Marques

ALVES Jr.:

Ao nos indagarmos das razões que ajudariam a explicar a afinidade sentida pelo daimista do CEFLURIS com a Umbanda verificamos o compartilhamento das mesmas matrizes, cada um ao seu modo, sistemas altamente porosos e receptivos. Ambas as religiões vivem um processo inacabado de elaboração e agregam uma diversidade de heranças próprias às religiões nascidas nas margens da cultura dominante. A expansão do Santo Daime o colocou diante de posturas religiosas da modernidade e da pós-modernidade e promoveu seu encontro com a Umbanda. Vimos que a Umbanda se encaixa nas expectativas do jovem alternativo e que sua centralidade no transe de incorporação fornecia novos instrumentos de atuação para o daimista: possibilitava a expressão dos sem-voz, estabelecia relações que permitiriam aos marginalizados se fazerem ouvir e possibilitava uma experiência cujo desregramento questionava algumas das normas estabelecidas para o comportamento ritual153.

Dois relatos interessantíssimos foram colhidos na igreja Céu do Gamarra que

ilustram bem a presença do elemento simbólico espírita/umbandista em processo

de resignificação com as práticas xamânicas tradicionais. No dia 22 de setembro de

2007 foi realizado o trabalho de comemoração de 20 anos de fundação da igreja

Céu do Gamarra. Duas semanas antes, o pai de uma das fardadas mais antigas da

igreja havia falecido, trazendo muito pesar para toda a irmandade. Durante o

trabalho, Fábio Pedalino Costa, dirigente da igreja, passou por uma experiência

extática extremamente marcante, relatada por ele mais tarde. Resolvido a ajudar o

pai falecido mencionado, Fábio Pedalino Costa, aproveitando a “força” do trabalho,

foi em busca do espírito desencarnado em questão. Acabou por encontrá-lo, meio

perdido e sem orientação, dentro dos planos astrais. A partir daí, Fábio Pedalino

Costa acompanhou um processo de integração desse espírito com outros mais

evoluídos, “enturmando-o” numa “espécie de escola”.

É interessante, portanto, perceber a combinação do elemento do vôo

xamânico, ou seja, Fábio Pedalino “viajou” pelas esferas extra-materiais para

encontrar determinado espírito, com elementos simbólicos espírita/umbandistas,

153 Antonio Marques ALVES Jr., Tambores para a Rainha da Floresta: a inserção da Umbanda no Santo Daime, p. 193.

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como a imagem de “escolas para espíritos” ou a possibilidade de ajudar o espírito a

se integrar nas esferas astrais.

Duas semanas depois, durante um outro ritual realizado pelo mesmo grupo

de fardados do Céu do Gamarra, outro acontecimento revelador. Durante o

intervalo, Fábio Pedalino Costa, condutor do trabalho, dirigiu algumas orações em

nome do falecido mencionado anteriormente. Esse fato já foi o bastante para que

Suzana Pedalino Costa, decidisse dedicar o restante do seu trabalho espiritual para

ajudar o pai desencarnado de sua “afilhada”. Dessa forma, ela relata ter vivenciado,

em uma experiência extática de excorporação, uma viagem por planos astrais ao

encontro do referido espírito. Encontrando-o, acabou por trazê-lo até o local onde se

realizava o ritual com o Santo Daime. Ali, o apresentou ao Cruzeiro154, nas palavras

dela, percebendo com grande satisfação, que ele estava bem direcionado nos

planos astrais com espíritos mais evoluídos. E mais, o que relatou com certa

emoção, também entendeu o quanto ele se encontrava surpreso e satisfeito pela

presença e participação de sua filha nos trabalhos espirituais do Santo Daime.

Portanto, esse se configura em mais um exemplo desta resignificação simbólica que

se processa no interior do movimento daimista: a experiência de excorporação do

xamã, com a conjuntura do universo espiritual espírita/umbandista.

Sobre essa questão, MONTEIRO afirma:

As doutrinas sintetizam um espiritismo-mediúnico, refletindo, porém, influências esotéricas que não admitem a incorporação e sim a eficácia da concentração e busca gnóstica do EU, uma forma de ritual católico e a noção de revelação de orientação protestante155.

Entretanto, apesar da enorme diversidade de matrizes culturais que

compõem a construção do movimento religioso daimista, é fundamental levar em

conta que, dentre todas, aquela que fornece os principais alicerces para o edifício

simbólico e moral do Santo Daime é o cristianismo, particularmente na sua vertente

do catolicismo popular. A doutrina de Juramidam se utiliza como base para a

154 O Cruzeiro utilizado como um dos símbolos centrais do movimento religioso daimista é a Cruz de Caravaca, uma cruz com dois braços transversais, sendo o superior menor que o inferior. Esse símbolo tradicional do catolicismo, utilizado desde a Idade Média e trazido para o Brasil pelos primeiros colonos, foi incorporado pela doutrina do Santo Daime desde suas origens e normalmente é visto como o sinal do retorno de Jesus Cristo na figura de Raimundo Irineu Serra, representado pelo segundo braço transversal do Cruzeiro. 155 Clodomir MONTEIRO, op. cit., p. 94.

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elaboração de uma visão de mundo daimista elementos fundantes das práticas e

crenças católicas desenvolvidas fora das estruturas eclesiásticas da Igreja Romana.

Portanto, pode-se entender o Santo Daime como um movimento religioso que se

aproxima muito do amplo e múltiplo universo do catolicismo popular. Entretanto,

para se chegar a esta conclusão, é importante utilizar, primeiramente, uma

perspectiva própria para se olhar o cristianismo e, particularmente, o catolicismo.

Pensar no cristianismo sob essa perspectiva é entendê-lo como uma religião

aberta e porosa a novas reinterpretações de seus símbolos, crenças e práticas.

Apesar da resistência a esta idéia por parte daqueles que entendem o cristianismo

como religião revelada e, portanto, como perfeita e acabada, não pode ser negado

o fato de que a própria revelação se faz historicamente, logo, presa a um contexto

cultural particular. Dessa forma, se o cristianismo se propõe a ser um caminho de

salvação universal, é inevitável uma certa flexibilidade que permita diferentes

resignificações. Somente assim é possível uma compreensão dos princípios

cristãos pelas mais diversas sociedades e culturas. Leonardo BOFF afirma sobre

essa questão que:

(...) o cristianismo puro não existe, nunca existiu e nunca pode existir. O divino sempre se dá em mediações humanas. Estas se comportam face a ele dialeticamente: constituem o divino na concreção da história (identidade), revelando-o, bem como o negam, por sua limitação intrínseca (não identidade), velando-o156.

Portanto, é na perspectiva desse sincretismo cristão, entendido como o

processo sincrético que tem o cristianismo como eixo norteador, que se constrói

uma identidade cristã. Esta, percebida por BOFF não como algo puro, mas

constituída dinamicamente dentro de um processo profundamente sincrético, pois “a

identidade cristã não é uma teoria, mas uma experiência, um caminho de vida”157.

Dessa forma, é na concretização histórica, na vivência do cotidiano, que se constrói

e se coloca na prática a identidade cristã. Mas, para tanto, é necessária uma

flexibilidade simbólica e ritual que permita a tradução desta identidade cristã para os

mais diversos contextos históricos e sociais, já que “uma religião, como o

cristianismo, conserva e enriquece sua universalidade na medida em que é capaz

156 Leonardo BOFF, Igreja: carisma e poder, p. 150. 157 Ibid.., p.164.

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de falar todas as línguas e de encarnar-se, refundindo-se, em todas as culturas

humanas”158.

Seguindo esta linha de reflexão, João Batista LIBANIO afirma que o

cristianismo:

Não é um sistema fechado. Nem uma ortodoxia dogmática. Nem um texto com sentido completo. Se é uma religião do livro, não o é, porém, de modo fundamentalista. O livro relata uma experiência fundante em torno da pessoa de Cristo. O cristianismo, ao longo da história, intenta refazer tal experiência, como um segmento, um caminho, um verdadeiro êxodo, descortinando sempre novas paisagens159.

Logo, a revelação se faz presente na matéria traduzida na forma de

linguagem, que se constitui histórica e culturalmente. Portanto, dentro de uma lógica

e de uma dinâmica que exigem uma abertura para consecutivas resignificações,

pois na revelação cristã “há um elemento transcendente (kairós divino), há uma

encarnação histórica modelar normativa (kerygma), e há interpretações sucessivas

(tradição dependente)”160.

Acontece que a religião cristã tem boa parte de seus valores já incorporados

pelo mundo ocidental contemporâneo. Portanto, a grande questão para o

cristianismo não é mais o problema da imposição e aceitação de seus valores,

crenças e rituais, mas a vivência dos valores cristãos. É na ação que se realiza o

cristão, e, fundamentalmente, na ação comunitária. Dessa forma, ser cristão não

está ligado obrigatoriamente a questões dogmáticas ou rituais, mas, sim, a uma

vivência dentro de uma perspectiva de comunidade, base fundamental da proposta

jesuânica. Para LIBANIO:

Por isso o problema para o cristianismo não é aceitar ou crer em algumas de suas verdades, mas fazê-lo segundo seu imperativo comunitário. Portanto, o problema não é crer, mas crer junto. É condição fundamental de eficácia evangélica na transformação do mundo que se viva a fé cristã em comunidade. Não se faz a salvação do mundo sozinho161.

158 Leonardo BOFF, op. cit., p. 149. 159 João Batista LIBANIO, Olhando para o Futuro, p.32. 160 Ibid.,p. 33. 161 Ibid., p. 29.

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Reforçando esse duplo sentido da flexibilidade simbólica e da salvação

comunitária do cristianismo, Juan Antonio ESTRADA afirma que “o legado cristão

para a posteridade é a da liberdade crítica a respeito das instituições e crenças

religiosas, apelando a uma experiência pessoal de Deus, individual e

comunitária”162. E é exatamente nesta vivência de Deus fora das estruturas

ortodoxas das instituições religiosas em que se processa a experiência cristã

popular.

Outro autor que trabalha com a idéia de uma identidade cristã dinâmica,

baseada fundamentalmente na vivência da proposta jesuânica, é Carlos PALACIO.

Segundo ele:

O cristianismo – e com ele a identidade cristã – só existe na sua condição concreta, história, encarnada. Da mesma forma que não existe um cristianismo puramente sociológico, tampouco existe um cristianismo quimicamente puro, espiritual, ideal. É através da encarnação da experiência cristã – encarnada e, por isso, limitada – que temos acesso ao que é cristão. A teologia poderá elaborar teoricamente a identidade cristã, mas esta, na condição histórica, nunca poderá ser totalmente transparente163.

O catolicismo e, particularmente, o catolicismo popular, como partes

integrantes do universo cristão, não fogem dessa dinâmica plural. Como bem coloca

BOFF:

O catolicismo, como se mostrou historicamente até hoje, implica coragem para a encarnação, para a assunção de elementos heterogêneos e sua refundição dentro dos critérios de seu ethos católico específico. A catolicidade como sinônimo de universalidade só é possível e realizável sob a condição de não fugir ao sincretismo, mas antes, pelo contrário, de fazê-lo o processo da produção da própria catolicidade164.

Portanto, é nessa ótica específica sobre o catolicismo que o Santo Daime se

insere. Mergulhado no universo do catolicismo popular, o movimento daimista se

apresenta como uma resignificação da mensagem e proposta jesuânica, fundida na

efervescência da religiosidade brasileira, mantendo como eixo norteador de sua

experiência e identidade religiosa os princípios e a identidade cristã.

162 Juan Antonio ESTRADA, El Cristianismo em una Sociedad Laica, p. 367. 163 Carlos PALACIO, O Cristianismo na América Latina, p. 187. 164 Leonardo BOFF, op. cit, p. 145.

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Não serão perseguidas as razões ou explicações sobre o porquê do

catolicismo popular ser o principal alicerce constituinte do movimento daimista.

Como já mencionado anteriormente, Beatriz LABATE apontou a presença

significativa do catolicismo popular na bagagem cultural trazida por Raimundo Irineu

Serra do Maranhão para o Acre. Muito mais marcante que as matrizes religiosas

afro-brasileiras, segundo a pesquisadora, foi a presença da pajelança e do

catolicismo popular no universo religioso original do fundador do Santo Daime, com

especial relevo às resignificações simbólicas estabelecidas a partir da Festa do

Divino Espírito Santo, muito marcante na região de origem de Mestre Irineu165.

Já Walter DIAS afirma que a opção pelos bens simbólicos do catolicismo

popular, em detrimento das matrizes indígenas e afro-brasileiras, fez-se dentro de

um processo legitimador do movimento daimista. Inserido na conjuntura da década

de 30, marcada pela perseguição às práticas religiosas e mágicas do xamanismo

indígena e caboclo e das manifestações afro-brasileiras, Raimundo Irineu Serra

optou por privilegiar símbolos e práticas católicas como forma de garantir maior

aceitação dentro do universo social das cidades em expansão na região amazônica

do período. Segundo o autor:

Desta forma, este novo caminho aberto por Irineu [o sincretismo com o catolicismo popular] provavelmente tinha como finalidade, por um lado, evitar as manifestações preconceituosas existentes em relação aos centros espíritas e, por outro, trilhar um caminho capaz de traduzir a experiência xamânica para as concepções religiosas do homem ocidental. (...) Ao que parece, trata-se muito mais de um artifício usado para resistir às perseguições e ao preconceito do que propriamente de uma conversão aos dogmas cristãos; muito mais uma tática de resistência cultural do que, de fato, a assimilação do cristianismo166.

É uma forma interessante de se pensar a aproximação entre o Santo Daime

e o catolicismo popular, mas que merece algumas ressalvas em relação à idéia

dessa aproximação ser uma estratégia de legitimação e de ser feita de forma

superficial. Primeiramente, essa tese da legitimação, pura e simples, ignora que o

universo cultural religioso de Raimundo Irineu Serra e de seus primeiros seguidores

é muito mais impregnado pelas práticas e símbolos do catolicismo popular, do que

pelo universo religioso afro-brasileiro. Portanto, muito mais que uma “tática de

165 Beatriz LABATE e G. PACHECO, Matrizes Maranhenses do Santo Daime, in: O Uso Ritual da Ayahuasca. 166 Walter DIAS, op. cit., pp. 69-70.

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resistência”, a adoção do catolicismo popular como matriz estruturante das práticas

daimistas seria uma tendência. Outro fato relevante é que essa aproximação nada

tem de superficial. Muito pelo contrário, como poderá ser observado no desenrolar

desta dissertação, o cristianismo, com seus princípios morais e suas bases

doutrinárias, e o catolicismo popular, com suas práticas rituais e símbolos religiosos,

constituem-se nos alicerces aglutinadores do movimento daimista.

E é neste sentido, portanto, independente das causas que levam o Santo

Daime a ter o cristianismo e seu desdobramento do catolicismo popular brasileiro

como eixos norteadores de sua experiência religiosa, que se busca identificar

alguns elementos simbólicos, doutrinários e rituais que demonstrem as diferentes

re-elaborações que o movimento religioso produziu tendo como base essas

matrizes culturais.

Sandra GOULART expõe essa aproximação de forma clara, encontrando nas

práticas do catolicismo popular uma fundamental influência para a construção do

movimento daimista. Segundo a autora, existe “uma relação de continuidade entre a

religião do Santo Daime e a antiga tradição do catolicismo popular, marcada por um

forte caráter festivo”167. Para embasar sua tese GOULART sita, inclusive, um

depoimento de uma antiga daimista, que identifica, de forma direta, o daimista como

um católico:

É, só pode ter sido dela né, da Rainha, da Virgem que o Mestre recebeu o trabalho, o bailado, tudo né. De quem mais podia ser? É por isso que o bailado é uma perfeição. Porque o bailado é uma perfeição só! Quando você vê todo mundo lá, unidinho, todos com a mesma força, o mesmo passo, a mesma marcha, é uma belezura, não é? Pois é, só podia vir dela (...) E a nossa Igreja, com o nosso bailado e tudo é a mesma que a outra Igreja, a católica. É uma religião só, né. Agora, a gente toma Daime, baila e canta hino (...) Mas, o baile no dia do santo sempre teve, é antigo. Papai era devoto e ia muito, ele contava. Depois é que parou de ter. Deixou de ser costume168.

Nesse sentido, é importante aprofundar ainda mais a análise dessa relação.

Primeiramente, os alicerces que fundamentam todo o cotidiano e a ação social do

daimista e os eixos doutrinários do movimento religioso estão enraizados nos

valores cristãos. Amor, verdade, justiça, irmandade são alguns dos princípios éticos

167 Sandra GOULART, op. cit., p. 151. 168 Ibid., p. 151.

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do cristianismo que determinam o ethos daimista. Segundo COUTO, “nas mãos do

caboclo regional, essa bebida (o Santo Daime) serve de amálgama para o

estabelecimento de uma teia mítica que vivencia o cristianismo de uma maneira

própria, em ritual de festas e significados”169.

No universo simbólico do Santo Daime os ensinamentos de Jesus Cristo são

a base para a construção de uma visão de mundo daimista. Nesse particular,

GROISMAN afirma:

(...) enquanto modelo de conduta, Jesus Cristo representa a fonte original da concepção espiritual do grupo. Cristo é considerado o “Mestre-Ensinador”, o “Salvador”, o “Redentor”. Sua “passagem” pelo plano terrestre significa para o grupo a chave da comunhão com o “Pai Eterno”, pois Cristo deixou para seus “irmãos” os ensinamentos originais, as promessas de “retorno” a Deus, ou a dimensão divina de cada ser humano170.

Para os daimistas, cristãos na sua essência, Jesus Cristo foi sacrificado para

salvar a humanidade. Era Deus feito carne, que veio à Terra ensinar com seus atos,

palavras e sofrimento. Nesse sentido, as duas primeiras estrofes do hino As

agonias de Jesus, de Alfredo Gregório e Melo, demonstram essa incorporação à

doutrina daimista desse princípio cristão:

As Agonias de Jesus

Estamos passando e vamos passar

Porque Ele aqui sofreu

Para nos abençoar

Vamos amar, vamos amar

Vamos dar gosto a este Ser

Que Ele aqui é o Divino

Dono de todo poder171

Outro hino que evidencia o papel fundante de Jesus Cristo no movimento

religioso, além de ressaltar, como o anterior, a importância do amor, um dos

169 Fernando COUTO, op. cit., p. 43. 170 Alberto GROISMAN, op. cit., p. 33. 171 Alfredo Gregório de Melo, O Cruzeirinho, hino 6.

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fundamentos dos princípios cristãos, é Chamei lá nas alturas, de Raimundo Irineu

Serra:

Chamei lá nas alturas

Para o Divino vir à Terra

Trazer a Santa Paz

Que não precisamos de guerra

Vou louvar bendito o fruto

Do Vosso ventre, Jesus

Foi quem veio a este mundo

Nos trazer a Santa Luz

Vós nos dê o Vosso pão

O Vosso Ensino Divino

Vós nos dê a Santa Luz

Para eu seguir o meu destino

Para eu seguir o meu destino

Neste mundo com certeza

Que Deus não abandona

Quem ama com firmeza172

Entretanto, a questão não é só o amor, puro e simples. O ethos daimista se

funda sobre alicerces que se aprofundam ainda mais na proposta jesuânica. A

inspiração cristã como estruturante da doutrina do Santo Daime impõe a

necessidade obrigatória do respeito total e absoluto em relação ao próximo, visto

como um igual, fundamentado no pilar central da ética cristã: “amar ao próximo

como a si mesmo”. Os hinários sempre afirmam este princípio de respeito e

igualdade, como fica claro nessas estrofes de alguns hinos de Sebastião Mota de

MELO:

Este salão dourado

É do nosso Pai verdadeiro

172 Raimundo Irineu Serra, op. cit., hino 68.

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Vamos todos se alegrar

Que todos nós somos herdeiros173

Eu amo a meu Pai

Eu amo a meus irmãos

Eu sempre me componho

E não dou alteração174

Estou aqui, estou aqui

Estou na casa do meu Pai

Mostrando a todos vocês

Que somos todos iguais175

Dessa forma, o movimento religioso daimista está em profunda sintonia com

o cristianismo, que se baseia, segundo Orlando ESPIN, em uma prática de ajuda ao

próximo e não em princípios exclusivamente dogmáticos ou doutrinários:

Em última instância, o conhecimento da doutrina ou da escritura, ou qualquer outro “talento religioso” nada significa se comparado à suprema importância do zelo compassivo e altruísta pelo próximo sofredor. Jesus identifica como seus apenas os que agiram como ele, não os que se proclamaram cristãos tão-só porque consideravam ser essa a “crença concreta”176.

No entanto, o movimento daimista avança ainda mais e busca a

concretização dessa proposta revolucionária. Existe um ideal de construção de uma

irmandade, fundamentada na igualdade, que pode ser entendida como uma re-

elaboração da proposta jesuânica de organização de um novo modelo de sociedade

baseada na solidariedade. Por quase todas as igrejas do Santo Daime encontra-se,

com tremenda força, a idéia de comunidade. Em algumas, as comunidades existem

de forma concreta; em outras, são ideais perseguidos por muitos. Assumem formas

e estruturas particulares de cada igreja, mas todas se fundamentam, aproximando-

se, menos ou mais, no princípio cristão da igualdade. Nas palavras de GROISMAN:

173 Sebastião Mota de Melo, op. cit., hino 121. 174 Ibid., hino 113. 175 Sebastião Mota de Melo, Nova Jerusalém, hino 2. 176 Orlando ESPIN, A Fé do Povo, reflexões teológicas sobre o catolicismo popular, p.71.

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Esta concepção (Jesus Cristo como parâmetro de conduta) subsidia a motivação para a construção de uma comunidade igualitária semelhante, segundo a visão grupal, a dos cristãos primitivos, tornando a forma de organização social do grupo mais um elemento no sentido de retorno a um estado de “divindade”177.

Interessante ressaltar o fato que a concretização da comunidade é um

caminho possível para a salvação. Como GROISMAN observou, a vida comunitária

aproxima o daimista do divino. Dessa forma, pode-se perceber que a existência em

comunidade é, na verdade, reflexo de uma busca maior, que é a salvação coletiva.

Ou seja, o objetivo de todo cristão é ser salvo, mas, dentro dos princípios

doutrinários do Santo Daime, chegar a esse objetivo é muito mais fácil de forma

coletiva do que individual. Esse ideal de um caminhar que pode ser realizado

coletivamente é outro elemento que aproxima o movimento daimista dos princípios

cristãos. Em um trecho do hino Santificado, de Anderson Mignac dos Santos,

membro da igreja Céu do Gamarra, pode ser observado claramente esse aspecto

importante do movimento religioso:

Você sozinho pode alcançar

Se apresentar ao seu Papai do céu

Mas com tristeza você vai lembrar

Que os irmãos também têm que chegar178

A importância da proposta comunitária é tão grande no Santo Daime que ela

ganha um lugar especial no universo simbólico daimista. A construção dessa nova

sociedade assume, no imaginário daimista, a forma da Nova Jerusalém,

demonstrando mais uma resignificação do conjunto de símbolos cristãos. É

constante a menção ao termo nas conversas entre daimistas, principalmente em

relação à principal comunidade estabelecida na linha de Sebastião Mota de Melo,

no Amazonas, o Céu do Mapiá. Essa vila, que somente é acessada por pequenas

embarcações depois de muitas horas navegando por labirintos de igarapés, é, para

muitos daimistas, o exemplo mais próximo da materialização da Nova Jerusalém,

anunciada por Sebastião Mota de Melo no hino Eu digo a meu pai:

177 Alberto GROISMAN, op. cit., p. 33. 178 Anderson Mignac dos Santos, Hinário da Nova Aliança, hino 66.

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Eu digo a meu Pai, eu digo

Eu vivo no mundo de ilusão

Eu falo e sempre venho dizendo

Este povo precisa de união

Eu peço a meu Pai, eu peço

Eu peço eu quero perceber

Eu participo aos meus irmãos

Nova Jerusalém está perto de nascer179

Se em uma dimensão mais ampla o modelo é a sociedade de iguais da

proposta jesuânica, em termos de núcleos formadores dessa sociedade o que

existe como modelo é a Sagrada Família, um dos símbolos mais caros do

cristianismo. Sobre o tema, afirma COUTO:

Analisando-se os hinários, principal “corpus semântico” desse sistema religioso, observamos que as matrizes desse sistema simbólico estão relacionadas com a constituição da família espiritual cristã, a Sagrada Família, representada pelo Deus Pai, o Deus Filho e a Virgem Maria180.

As divindades católicas são os elementos centrais do simbolismo celestial

do Santo Daime. Deus, Jesus Cristo, a Virgem Maria e os santos católicos compõe

a base do panteão daimista. São inúmeros os hinos que demonstram claramente

esse fato, como, por exemplo, essa estrofe de Eu devo pedir, de Raimundo Irineu

Serra, que determina claramente a posição de Deus na hierarquia celeste:

As estrelas pequeninas

Sua luz incandescente

Só Deus, só Deus

Só Deus onipotente181

179 Sebastião Mota de Melo, O Justiceiro, hino 153. 180 Fernando COUTO, op. cit., p. 70. 181 Raimundo Irineu Serra, op cit., hino 10.

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No universo celestial daimista Deus é onipotente e abaixo vem seu filho

Jesus Cristo. Como atesta Sebastião Mota de Melo, no hino Estou dentro da

verdade:

Estou dentro da verdade

Eu não posso negar

Junto com meu Jesus

Eu tenho que triunfar

Treme a terra e geme o mar

E tudo tem que balançar

Só não balança meu Jesus

E quem nele se firmar

Muitos querem ser sabidos

E o saber Deus é quem dá

Se não tiver conhecimento

Não pode se firmar

Meu Jesus lá nas alturas

Que tudo sabe e tudo vê

Quem não souber se firmar

Cuidado para não correr182

Destaca-se a importância que a Virgem Maria assume no simbolismo

daimista. Ela, na forma de Nossa Senhora da Conceição, foi quem entregou a

missão de fundar o movimento religioso para Raimundo Irineu Serra. Ela é a “Mãe

Criadora” e Senhora das potestades. São muitos os hinos que ressaltam sua

posição central, logo abaixo de Jesus Cristo, como o de Germano Guilherme, O mar

cresce:

O mar cresce e a terra baixa

Em diversas partes do universo

Os filhos que habitam nela

182 Sebastião Mota de Melo, op. cit., hino 37.

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Reclamam ao sair da terra

A sempre Virgem Maria

Com amor, Mãe a consolar

Que Deus é um Pai Divino

Muda para outro lugar

Ela diz para todos filhos

Para todos se conformar

Que Deus foi quem a fez

É quem pode desmanchar183

Neste pormenor, é importante ressaltar a importância da Virgem Maria na

construção do universo simbólico do catolicismo popular latino-americano. Segundo

Orlando ESPIN, diante da dificuldade de se incorporar a divindade trinitária imposta

pelos catequistas católicos, de difícil digestão para as culturas locais, as populações

ameríndias e mestiças da América Latina incorporaram fortemente o culto aos

santos e, com especial destaque, a Maria, em suas inúmeras representações. É,

dessa forma, na origem colonial que se encontram as raízes dos cultos à Virgem no

catolicismo popular latino, que, a partir dessa matriz, consolidou-se amplamente na

religiosidade do povo brasileiro. Para ESPIN:

O catolicismo popular latino salienta freqüentemente a importância de Maria. Além do Cristo crucificado, é difícil encontrar outro símbolo religioso mais convincente. Se, por um lado, não é difícil descobrir intuições “cheias de fé” por trás de devoções ao Jesus agonizante, por outro lado, parece que as crenças e práticas marianas, especialmente quando expressas em contextos latinos populares, afastam-se muito do evangelho cristão184.

Portanto, é nessa flexibilidade de significados e formas que a devoção à Mãe

de Cristo foi reelaborada no movimento religioso daimista. A Virgem é “Clara”, a

“Rainha da Floresta”, senhora do universo, protetora dos fracos e oprimidos, grande

intercessora da humanidade, entidade espiritual que se encontra na gênese do

Santo Daime e, por isso mesmo, defensora em especial dos seguidores do

movimento religioso. Essa é a nova face daimista de Nossa Senhora da Conceição.

183 Germano Guilherme, hino 36. 184 Orlando ESPIN, op. cit., p. 135.

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Neste trecho do hino Agora mesmo, de Alfredo Gregório de Melo, está

explícita a presença da Virgem na origem do Santo Daime:

Oh! Virgem Mãe, eu quero estar ao Vosso lado

Considerando todo esse povo irmão

Que a doutrina do divino nosso Pai

Há muito tempo foi entregue em Vossas Mãos185

Como intercessora em nome da humanidade, o papel de Maria fica claro

neste trecho do hino de Suzana Pedalino Costa, Minha madrinha:

Esta canção

Que eu dedico vem do coração

E peço a Deus e a Virgem Mãe

Por sua saúde e sua proteção186

Da mesma forma, a posição central da Mãe de Cristo como senhora do

universo, no simbolismo daimista, evidencia-se neste outro trecho de um hino de

Alfredo Gregório:

Oh! Santa Mãe das Mães

Em todo universo impera

Protegei a nossa família

Com minha mãe que me trouxe em matéria187

Aparecem ainda com relevância alguns santos católicos, como São João

Batista, principalmente na vertente de Sebastião Mota de Melo, São José, Santo

Antônio e São Pedro. Além do calendário litúrgico daimista ser organizado a partir

do calendário litúrgico das festas aos santos do catolicismo popular, ainda existem

os hinos que legitimam essa importância, como pode ser notado em algumas

estrofes do hino Amigo velho, de Raimundo Irineu Serra:

185 Alfredo Melo, O Cruzeirinho, hino 13. 186 Suzana Pedalino Costa, Império do Sol, hino 7. 187 Alfredo Melo, Nova Era, hino 7.

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O Patriarca São José

Todo mundo se esqueceu

Jesus filho de Maria

Com o Divino Senhor Deus

O Patriarca São José

Vós esposo de Maria

Que o Divino Pai lhe deu

Para vossa companhia

Viveram honestamente

Dentro da soberania

Jesus quando nasceu

Foi na Vossa companhia188

Entretanto, é importante notar que não existe a relação devocional entre o

santo e o crente que pode ser encontrada no catolicismo popular. No Santo Daime,

não são identificadas as práticas da promessa, as peregrinações, as romarias e as

crenças em imagens ou ícones que se apresentam como hierofanias, comuns no

catolicismo popular, a não ser como opção pessoal de cada daimista. O processo

de intermediação na relação entre o fiel e Deus não se processa, no movimento

daimista, através de um santo “amigo”, mas, sim, a partir da sua resignificação

operada no movimento religioso. É o Santo Daime, enquanto bebida sagrada, que

permite a ligação do daimista com os planos astrais, no lugar das imagens que

materializam o divino, no catolicismo popular.

Neste outro hino de Raimundo Irineu Serra, Meu divino pai, está estabelecido

em ordem hierárquica o núcleo central do panteão daimista:

Oh! Meu Divino Pai

Só por Vós devo chamar

Tantas vezes Vos ofendi

E Vós me queira perdoar

Vós me queira perdoar

188 Raimundo Irineu Serra, op. cit., hino 36.

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Que eu pequei por inocente

Porque não tinha certeza

Do Nosso Deus Onipotente

Oh! Meu Divino Pai

É Vós quem me dá a luz

Eu nunca mais hei de esquecer

Do Santo Nome de Jesus

O povo está iludido

Por completa ilusão

Porque não querem acreditar

Na Mãe de Deus da criação

A laranja é uma fruta

Redonda por Vossas mãos

Vós me entrega com certeza

E eu deixar cair no chão189

Percebe-se a presença do elemento do perdão como constituinte do

processo de salvação. Assim como na doutrina cristã, nas crenças daimistas

também existe a possibilidade da remissão dos pecados cometidos através do

arrependimento e da afirmação na tentativa de se corrigir. Entretanto, esse é um

processo absolutamente individual, que se estende pelo cotidiano da vida de cada

um, não tendo nenhum ritual específico e institucionalizado, como o sacramento da

Confissão do catolicismo romano. Mas existe um hino, cantado com enorme

solenidade durante alguns trabalhos específicos, que simboliza e resignifica o

sacramento da Confissão católica. Ou seja, na estrutura ritual daimista também

existe um momento determinado quando se faz a intermediação direta com os

planos astrais em busca do perdão pelos erros cometidos. Esse hino é cantado com

todos de pé, sem a utilização de instrumentos e sem bailado, com os participantes

portando cada um uma vela. Em algumas ocasiões o hino é repetido três vezes,

entremeado de três Pai Nosso e três Ave Maria. O hino Meu Divino Pai do Céu, de

Raimundo Irineu Serra, inclusive, é conhecido como o hino da Confissão:

189 Raimundo Irineu Serra, op. cit., hino 12.

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Meu Divino Pai do Céu

Soberano Criador

Eu sou um filho seu

Neste mundo pecador

Meu divino Pai do Céu

Meu Soberano Senhor

Perdoai as minhas culpas

Pelo Vosso Santo amor

Meu Divino Pai do Céu

Soberano Onipotente

Perdoai as minhas culpas

E Vós perdoa os inocentes

Eu confesso os meus pecados

E reconheço os crimes meus

Eu a Vós peço perdão

Ao Meu Divino Senhor Deus190

A Confissão não é o único sacramento católico que ganha sua tradução

dentro do ritual daimista. Existe o Batismo, também realizado normalmente com

pessoas muito jovens, geralmente bebês, no caso de pais daimistas, como no

catolicismo. Entretanto, o ritual é conduzido pelo dirigente da igreja ou por algum

membro mais respeitado, durante alguns momentos reservados dos ritos oficiais.

Constitui-se de algumas palavras pronunciadas com o intuito de contextualizar o

momento, acompanhadas pelos hinos, cantados por todos, especialmente

destinados à consagração do batismo e contando com a presença do Santo Daime,

ingerido pela criança batizada; da água, que lava a cabeça da criança, simbolizando

o epsódio bíblico do rio Jordão; e do sal, introduzido na boca do batizado,

representando o sal da terra.

Outro sacramento reinterpretado é a Ordenação, entendida pelos daimistas

como o fardamento. É o ritual que formaliza a adesão à doutrina e o compromisso

190 Raimundo Irineu Serra, op. cit., hino 17.

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assumido pelo indivíduo com todas as obrigações de um membro efetivo da igreja

em que se fardou. Para muitos o fardamento significa uma mudança radical de vida,

abraçar um caminho de desenvolvimento espiritual que exige uma grande

dedicação e impõem algumas restrições. Por isso, é comum alguns interpretarem o

fardamento como um sacerdócio, visto simbólicamente como o sacramento da

Ordenação. Entretanto, é importante ressaltar que não existem regras específicas e

rígidas para a condução da vida do fardado. Além das obrigações rituais, o que se

impõem é uma conduta balisada nos princípios cristãos, portanto, muito distante

das obrigações e interdições exigidas da opção pelo sacerdócio do clero católico.

O Casamento também tem seu espaço na estrutura ritual daimista,

constituindo-se em uma cerimônia simples com algumas palavras ditas pelo

dirigente do trabalho espiritual. Os casamentos observados na igreja Céu do

Gamarra, seguiram, invariavelmente, esse modelo. Durante os rituais do calendário

litúrgico considerados oficiais, os fardados se perfilam, cantando os hinos

destinados ao acontecimento, enquanto a noiva entra na igreja, se possível

conduzida pelo pai, até o local no salão onde se encontram o noivo e o dirigente do

trabalho espiritual, que, pronunciando algumas palavras adequadas ao momento,

consuma o sacramento. Um detalhe é a necessidade de ambos os noivos serem

fardados.

Portanto, como afirma MONTEIRO:

Os sacramentos são reinterpretados ou subsistem sob outros nomes. No primeiro caso encontram-se a comunhão e a confissão presentes em todas as sessões; casamento e extrema-unção são optativos. Não há crisma, o batismo e a ordenação subsistem nos ritos de iniciação, aquele seguindo o ritual católico, usando, porém, o Daime no lugar da água.191

É relevante o fato de todas essas reelaborações estarem inseridas no

desenrolar dos trabalhos oficiais. Portanto, não existem rituais específicos, mas

momentos durante os ritos mais importantes e festivos, quando são realizadas

essas cerimônias. Apesar dos princípios comuns que norteiam esses momentos

especiais, é significativa a flexibilidade da estrutura dos cerimoniais, pois existe uma

liberdade muito grande para cada condutor realizá-los de maneira bem particular.

As palavras e as formas do ritual não fazem parte de nenhum cânone daimista,

191 Clodomir MONTEIRO, op. cit., p. 92.

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ocorrendo muitas vezes de improviso ou dentro de normatizações estabelecidas por

cada igreja ou instituição, como o CEFLURIS.

Entretanto, para essas cerimônias existem hinos consagrados para cada

momento específico. Muito mais que as palavras do celebrante, são os hinos, com

seu caráter peculiar de revelação, que conferem legitimidade ritual e simbólica à

cerimônia. Nas palavras de COUTO:

A principal característica desses mantras sagrados é que eles são “recebidos” do “astral”, são mensagens trazidas por seres espirituais que os irmãos recebem como ensinamento da doutrina. Eles são psicomusicografados em vez de compostos como na música tradicional. São ordens superiores, “imperativos do pai e da mãe”, fruto da comunicação com entidades específicas192.

Dessa forma, os hinos, enquanto revelação, também têm seu lugar no

processo de resignificação do campo simbólico cristão estabelecido no movimento

daimista. No Santo Daime, os hinários são vistos como o veículo de preservação e

transmissão de um ensinamento revelado; um novo Evangelho, inspirado e

reconhecido como sagrado e receptáculo da verdade. No hino Eu canto, eu canto,

de Raimundo Irineu Serra, fica evidente essa aproximação entre os hinários, fonte

de um saber de origem divina, e a doutrina cristã:

Eu canto, eu digo

Dentro do Poder Divino

Porque Deus é quem me dá

Para trazer estes ensinos

A minha Mãe que me mandou

Trazer fé e amor

Repartir com meus irmãos

Para ser a mesma flor

Jesus Cristo me mandou

Para mim vir ensinar

Replantar Santas Doutrinas

192 Fernando COUTO, op. cit., p. 84.

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Deus te dá um bom lugar193

Logo, foram selecionados alguns hinos específicos para sacralizar

determinados momentos ou cerimônias especiais. Por exemplo, no batismo, na

corrente de Sebastião Mota, é comum cantar, entre outros, o hino Peço que vós me

ouça, com alusão clara às origens do batismo cristão, como fica evidente em sua

última estrofe:

A barca que corre no mar

Corre no meu coração

Aquele que aqui batiza

Batizou no rio de Jordão194

No casamento, o hino consagrado é o Símbolo da verdade, também de

Sebastião Mota de Melo, ressaltando virtudes como união, verdade, a família, o

amor:

O símbolo da verdade

É preciso se consagrar

Receber com firmeza

O que o nosso Pai nos dá

O símbolo da verdade

Que meu pai me entregou

O símbolo da verdade

Sempre consagra o amor

O símbolo da verdade

Ele nos traz harmonia

Repare o que está faltando

Para você e sua família

O símbolo da verdade

193 Raimundo Irineu Serra, op. cit., hino 89. 194 Sebastião Mota de Melo, op. cit. hino 145.

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Vou dizer para os meus irmãos

O símbolo da verdade

Precisa de união

O símbolo da verdade

Sempre nos traz alegria

Olhe bem para a sua casa

Veja o símbolo da Virgem Maria

A imagem de Deus é grande

Dá para todo mundo ver

Depende é de trabalhar

Para poder entender

Se preocupe consigo mesmo

E não repare para mim

Não me incomodo com ninguém

Vou seguindo o meu caminho

O símbolo da verdade

É preciso dizer

É um Deus poderoso

Ele é quem vem nos colher195

Entretanto, a resignificação mais importante no simbolismo daimista de um

sacramento católico acontece com a Eucaristia. No movimento religioso do Santo

Daime a bebida sagrada simboliza a Eucaristia durante os rituais. É o vinho da

floresta que se transforma em sangue, a hierofania engarrafada. No hino Em minha

memória, de Valdete Mota de Melo, essa reelaboração simbólica se evidencia:

Eu tomo Daime

É para ver os meus defeitos

Eu tomo Daime

É para eu me corrigir

195 Sebastião Melo, op. cit., hino 142.

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Não tomo Daime

Para me engrandecer

Porque o Grande

É Jesus está aqui

Eu tomo Daime

É para ascender minha luz

E esta luz é

Meu Jesus é quem me dá

Por isso eu devo consagrar

No coração

Que também é

Da Virgem da Conceição

Eu tomo Daime

E considero este vinho

O mesmo vinho

Que Jesus deu pra tomar

Aos seus apóstolos

E disse em minha memória

Que é para sempre

Esta luz nunca faltar196

Logo, para o daimista, o Santo Daime não é simplesmente uma bebida. É

uma manifestação do divino, uma materialização do transcendente. Portanto, fonte

de poder e conhecimento. Dessa forma, na construção das estruturas simbólicas do

imaginário daimista, a bebida hierofânica assume o papel da Eucaristia ou da

própria divindade. Para o daimista, quando ele ingere o líquido amargo servido

durante os rituais ou mesmo em sua casa, ele está bebendo o corpo e o sangue de

Cristo, o próprio divino. Numa analogia, trata-se do vinho sagrado, que é uma das

maiores manifestações do transcendente no universo simbólico do catolicismo. Em

depoimentos colhidos com membros mais antigos do movimento religioso,

MONTEIRO demonstra, através de certas expressões utilizadas, como o Santo

196 Valdete Mota de Melo, hino 14.

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Daime é identificado com esse sacramento dentro do imaginário daimista:

“comungar na igreja era uma coisa banal, secundária (...) mas o Daime é o corpo de

Cristo, o legítimo” ou ainda “ali está o verdadeiro, o consagrado, é o sangue de

Cristo, puro”197.

Mas no simbolismo daimista o Santo Daime não se limita a assumir somente

o seu significado eucarístico. A bebida é sacralizada enquanto personificação de

uma divindade. Essa essência sagrada do Santo Daime é atestada pelos hinários,

como neste hino de Sebastião Mota de Melo, Eu vivo na floresta:

Eu vivo na floresta

Eu tenho meus ensinos

Eu não me chamo Daime

Eu sou um Ser Divino

Eu sou um Ser Divino

Eu venho aqui para te ensinar

Quanto mais puxar por mim

Mais eu tenho que te dar198

Portanto, o Santo Daime ganha uma essência totalmente distinta de sua

natureza física. Ali presente não está simplesmente ayahuasca, mas um “Ser

Divino”. Como novamente é afirmado na primeira estrofe do hino Quando tu estiver

doente, de Sebastião Mota de Melo:

Quando tu estiver doente

Que o Daime for tomar

Te lembra do Ser Divino

Que tu tomou para te curar199

Em outros momentos o Santo Daime é identificado como um professor ou

com toda uma hierarquia celestial, como neste hino de Alfredo Gregório de Melo, O

Daime é o Daime:

197 Clodomir MONTEIRO, op. cit., p. 93. 198 Sebastião Mota de Melo, op. cit., hino 6. 199 Ibid., hino 22.

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O Daime é o Daime

Eu estou afirmando

É o Divino Pai Eterno

E a Rainha Soberana

O Daime é o Daime

O professor dos professores

É o Divino Pai Eterno

E seu Filho Redentor

O Daime é o Daime

O Mestre de todos ensinos

É o Divino Pai Eterno

E todos Seres Divinos

O Daime é o Daime

Eu agradeço com amor

É quem me dá a minha saúde

E revigora o meu amor

Agradeço ao Santo Daime

Agradecendo a todos os seres

E quem me manda agradecer

É o meu Pai Verdadeiro200

Em relação a esta questão, GROISMAN afirma:

Para os daimistas, a natureza do Daime não se encerra no campo das “substâncias sagradas”. O “poder” do Daime não se resume ao seu uso pura e simplesmente, mas também a sua “natureza divina”. O Daime encontra-se incluído numa rede de significados pontuada pela “divinização” daquilo que, porventura, entre em contato orgânico, ou não. Esta “divinização” é percebida a partir de um conjunto complexo de elementos que articulados pela “Doutrina” e pela tradição oral, o identificam mais propriamente como um “ser divino”, que age independentemente da vontade daqueles que o utilizam, fazendo aflorar aquelas forças que aproximam o homem da divindade201.

200 Alfredo Gregório de Melo, op. cit., hino 84. 201 Alberto GROISMAN, op. cit., p. 172.

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Nesse sentido, o Santo Daime se aproxima da figura do santo, como

receptáculo do sagrado e intermediário com o divino, inserido no imaginário do

catolicismo popular, questão que será analisada no próximo capítulo a partir do

estudo da categoria do Daime de Guarda.

Portanto, são extremamente marcantes as reelaborações construídas dentro

do movimento daimista a partir das estruturas simbólicas e sacramentais católicas.

Entretanto, as aproximações não se limitam à estrutura do ritual ou de princípios.

Até questões dogmáticas do catolicismo podem ser identificadas na doutrina do

Santo Daime. O dogma da Santíssima Trindade, por exemplo, assume uma

decodificação própria nos hinários, como pode ser observado na última estrofe do

hino Levanto essa bandeira, de Sebastião Mota de Melo:

Pai, Filho, Espírito Santo

Todos três em um só se encerra

Nós precisamos de paz

E não precisamos de guerra202

Assim como nas tradições bíblicas, que identificam a origem da humanidade

nos ancestrais míticos, Adão e Eva, nos hinários daimistas também se encontram

reelaborações deste mito de origem. Na primeira estrofe de Eu Nasci Neste Mundo,

de Alfredo Gregório de Melo, afirma-se:

Eu nasci neste mundo

Estou passando a provação

Para eu reconhecer

Que sou filho de Eva e Adão203

No entanto, no imaginário daimista, uma das reelaborações simbólicas que

mais legitima o Santo Daime como herdeiro da tradição cristã é a identificação de

Raimundo Irineu Serra, com Jesus Cristo, e de Sebastião Mota de Melo, com São

João Batista. Mestre Irineu, como pilar central do movimento religioso, está

diretamente ligado à figura de Jesus Cristo. Como afirma GROISMAN:

202 Sebastião Mota de Melo, op. Cit., hino 89. 203 Alfredo Gregório de Mel, op. cit., hino 68.

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Como reencarnação de Cristo, e transmissor de seus “ensinamentos”, Mestre Irineu representa assim, através de sua “obra”, a legítima fonte exegética do saber e do poder do daime e da “doutrina”204.

Outro autor que percebe este aspecto marcante do movimento daimista é

Clodomir MONTEIRO, para quem a figura de Mestre Irineu é vista pelos daimistas

como a encarnação do divino na forma de “Juramidam, o próprio Deus manifestado

em carne na pessoa de Raimundo Irineu Serra”205. É significativo o fato de um dos

símbolos mais importantes do Santo Daime ser o Cruzeiro. Presente em todos os

rituais e altares do movimento religioso, o Cruzeiro, com seus dois braços, é

reinterpretado no Santo Daime como o sinal do retorno de Cristo, representado pelo

braço menor, só que agora como Mestre Irineu. Em entrevista com Zé Dantas,

antigo ayahuasquero e contemporâneo de Raimundo Irineu Serra, Arneide CEMIN

identifica o Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento como a origem deste

símbolo e a marca do catolicismo no movimento:

O Cruzeiro é a Cruz de Caravaca, que nasceu nas terras do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento. Então, o Mestre Irineu usou muito esse símbolo, tomou esse símbolo como o símbolo do daime. Ele mantém aquele símbolo, bem como a maior religião do mundo que é a católica, o símbolo é a cruz, então, onde tá a cruz tá o símbolo do catolicismo206.

Seguindo nessa direção, na linha de Sebastião Mota de Melo, este expoente

daimista é identificado como um “novo São João Batista anunciando uma espécie

de ‘terceira volta de Cristo’”207. Evidentemente, nem todos os daimistas reconhecem

essa ligação entre Sebastião Mota de Melo e São João Batista. Ele é desta forma

reconhecido entre aqueles que seguem seu tronco religioso dentro do Sistema de

Juramidam.

Entretanto, essas reelaborações do panteão cristão só seriam reconhecidas

pelo movimento se legitimadas pelos hinários. Nessas estrofes de alguns hinos de

Sebastião Mota de Melo, esta questão está claramente colocada:

204 Alberto GROISMAN, op. cit., p. 34. 205 Clodomir MONTEIRO, op. cit., p. 61. 206 Arneide CEMIN, op. cit., p. 176. 207 Ibid., p. 96.

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Agora vou declarar

Como foi que se passou

No rio de Jordão

O batizado se traçou

A minha mãe é tão formosa

E a do meu Mestre também é

Ele é filho de Maria

E eu sou filho de Isabel208

O Mestre vem chegando

Vamos receber com alegria

Este é o Filho

Da sempre Virgem Maria209

No hino Parabéns para meu Mestre Irineu, de Valdete Mota de Melo,

Raimundo Irineu Serra é chamado de Rei dos Judeus, em uma menção clara a

Jesus Cristo:

Parabéns, parabéns, parabéns

Parabéns pra o meu Mestre Irineu

Parabéns, parabéns, parabéns

Parabéns para o Rei dos Judeus210

No hino Sexta-Feira, de Raimundo Irineu Serra, evidencia-se sua filiação a

Maria e José:

Sou filho, sou filho

Sou filho do poder

A minha Mãe que me trouxe aqui

Quem quiser venha aprender

Vou seguindo, vou seguindo

Os passos que Deus me dá 208 Sebastião Mota, op. cit., hino 28. 209 Ibid., hino 42. 210 Valdete Mota de Melo, op. cit., hino 10.

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A Minha Memória Divina

Eu tenho que apresentar

A Minha Mãe que me ensina

Me diz tudo que eu quiser

Sou filho desta verdade

E meu pai é São José

A Sexta-Feira Santa

Guardemos com obediência

Três antes e três depois

Para afastar toda doença211

Logicamente, aceitar a idéia de que Raimundo Irineu Serra é a reencarnação

de Jesus Cristo gera implicações teológicas intransponíveis. Como aceitar o seu

retorno sem as devidas conseqüências previstas pelas Escrituras? Sem falar na

questão da segunda morte de Cristo, na pessoa de Mestre Irineu. No entanto,

dentro do movimento religioso podem ser encontradas saídas para esses dilemas.

Em conversas informais, Fábio Pedalino Costa afirmou que não era exatamente o

caso de uma reencarnação, no conceito espírita, como o retorno do espírito de

Jesus Cristo, mas sim a presença da energia crística feita novamente matéria em

Raimundo Irineu Serra212.

Portanto, o que se percebe é que, apesar da fluidez e diversidade das

matrizes religiosas que compõem o Santo Daime, é o cristianismo e, em muitos

aspectos, o catolicismo popular que dão a estrutura básica do ethos daimista. Logo,

essa natureza daimista não se diferencia do ser cristão ou particularmente católico,

se forem levados em conta os princípios básicos de ordenação da vida cotidiana e

dos valores éticos e morais. Mesmo em questões rituais e dogmáticas, pode-se

considerar, levando em conta as reelaborações expostas anteriormente, o fato

incontestável do daimista se perceber fundamentalente como um cristão, e,

portanto, herdeiro dessa tradição iniciada há mais de dois mil anos atrás por Jesus

Cristo.

211 Raimundo Irineu Serra, op. cit., hino 104. 212 Essas conversas foram travadas durante o período da pesquisa e algumas observações relevantes anotadas para uso posterior. Já os diálogos foram informais, não tratando de nenhum tema específico.

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É exatamente inserido nesse contexto de resignificações elaboradas pelo

movimento daimista a partir das práticas do catolicismo popular que pode se

encontrar o Daime de Guarda, categoria que será analisada a seguir.

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CAPÍTULO IV

Daime de Guarda, o santo de casa

No altar repousa a garrafa solenemente cercada pelo cruzeiro, terços

católicos, objetos pessoais de alguma forma ligados à esfera do sagrado daimista,

imagens de santos e fotografias de Raimundo Irineu Serra e Sebastião Mota de

Melo. No seu interior está encerrada a bebida que, para os seguidores desse

movimento, é a mais presente manifestação do transcendente no seu universo

religioso: o Santo Daime.

Entretanto, a beberagem sagrada não se encontra na Igreja, na casa de feitio

ou em um depósito reservado para seu armazenamento, mas sim na casa de um

daimista. No movimento religioso, esse Santo Daime que é reservado para o uso

doméstico e cotidiano é conhecido como Daime de Guarda ou de Companhia.

A utilização do Daime de Guarda remonta à época de Raimundo Irineu Serra,

que já fornecia para membros de sua comunidade religiosa a beberagem sagrada

para ser utilizada no ambiente doméstico. Quem esclarece esse fato é o Sr. Luís

Mendes, antigo daimista que conviveu com o fundador do movimento religioso:

(...) o Mestre Irineu dava essa assistência (fornecia o Daime de Guarda) aos seus seguidores, Apenas ele tinha o cuidado de fazer algumas observações: primeiro esse Daime que você tem em sua casa, em sua guarda, seja guardado bem ambientado, não só pelo fato da sua conservação, que é um ambiente seco, arejado, como o cuidado maior que se tem por outros pormenores, um ambiente apropriado somente para ele e seus acessórios213.

Portanto, o uso do Daime de Guarda está presente desde as origens desse

movimento religioso. Com a expansão daimista, essa tradição foi sendo difundida e

atualmente as igrejas e comunidades do movimento adotam o Daime de Guarda.

Durante a pesquisa de campo, todos os entrevistados afirmaram ter seu Daime de

Guarda. Segundo o Sr. Luís Mendes, “é um sonho de todo daimista ter um Daime

em sua casa”.

213 Entrevista com o Sr. Luís Mendes realizada em 20 de fevereiro de 2008.

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Mas a obtenção desse privilégio tem suas interdições. O Sr. Luís Mendes

afirma que Raimundo Irineu Serra exigia o compromisso com os princípios

daimistas e retidão de caráter para a pessoa poder ter em casa a beberagem

sagrada:

(...) não era para todas as pessoas que o Mestre dava [o Daime de Guarda]. Inclusive, hoje a gente é até mal compreendido nesse particular. Porque às vezes o cara quer merecer, mas não tem como. Não faz por onde, porque não é assim não. É uma vivência, coisa experimentada, de modo que você que sai com aquele Daime, tem que estar sabendo realmente o que você está levando. Você tem que saber que você não está levando mais uma coisa qualquer não. Então não é assim: hoje toma Daime e amanhã leva um litro pra casa.214

Abordando a questão da mesma forma, Fábio Pedalino Costa, dirigente da

Igreja Céu do Gamarra, afirma:

Todo membro, não precisa ser necessariamente fardado, mas todo membro que já tem uma compreensão maior da doutrina e já quer ter um segmento nela tem o direito de ter o seu Daime de Guarda215.

É interessante observar que o critério necessário para a obtenção do Daime

de Guarda apontado por Fábio Pedalino Costa é “uma compreensão maior da

doutrina” e não simplesmente o fato de ser fardado. Dessa forma, o fator básico

para se poder ter o Daime de Guarda é o mesmo princípio do entendimento

levantado pelo Sr. Luís Mendes, para quem a pessoa que está levando a

beberagem sagrada “tem que estar sabendo realmente o que está levando”.

Portanto, espera-se do requerente compromisso e vivência, muito mais do que uma

questão institucional como o fardamento, para se ter o direito de possuir o Daime de

Guarda.

Com sua presença constante no cotidiano daimista, a beberagem sagrada

ganha um papel importantíssimo no dia-a-dia dos adeptos do movimento religioso.

A forma de sua utilização pode ser regulada pela direção da igreja ou comunidade,

mas normalmente fica a critério do daimista, que normalmente consome

quantidades reduzidas nesse uso doméstico, na maioria das vezes utilizando

214 Entrevista com o Sr. Luís Mendes, realizada em 20 de fevereiro de 2008. 215 Entrevista com o Fábio Pedalino Costa, realizada em 5 de março de 2008.

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colheres ou pequenos copos. Segundo o Sr. Luís Mendes, a idade e o peso

daquele que vai consumir e as razões para a utilização do Daime de Guarda

influenciam na quantidade a ser ingerida:

É muito relativo (a forma de utilização do Daime de Guarda). Por exemplo: a criança, dependendo da faixa de idade, é uma medida x que se dá. Um recém nascido que seja preciso é uma gota, e olhe lá, se pudesse uma gotícula de Daime seria melhor.

Da mesma forma, Fábio Pedalino Costa afirma que é o próprio daimista

quem determina a situação indicada para se utilizar o Daime de Guarda,

estabelecendo, inclusive, o quanto vai ser utilizado, já que, segundo o dirigente da

Igreja Céu do Gamarra, “todo fardado tem seu Daime de Guarda em casa, que

pode ser utilizado em caso de doença, por exemplo, se o daimista quiser”.

Portanto, o complexo ritual e simbólico que envolve a utilização do Daime de

Guarda se processa no ambiente doméstico. Fora do universo institucional das

igrejas daimistas, é no âmbito das relações privadas que se estabelece essa

interação entre o seguidor do movimento e a esfera do sagrado.

As razões que levam um daimista a utilizar seu Daime de Guarda são

múltiplas, como indicam algumas entrevistas com membros da Igreja Céu do

Gamarra:

Eu tenho meu Daime de Companhia que eu faço uso, por exemplo, quando eu tenho que trabalhar com o cipó, com as folhas. Então eu tomo esse Daime de Companhia que está sempre comigo. Mas eu também guardo um pouco para um eventual problema, se eu me machucar muito sério, ou então se for picado por uma cobra. Enfim, a gente sempre espera que não vá acontecer nada, mas se acontecer eu tenho meu Daime de Companhia, que é uma espécie de kit de pronto-socorro. Então qualquer coisa eu sei que está lá, se eu ficar doente, como eu já tive várias vezes, uma gripe, uma virose. Sempre recorri ao meu Daime de Companhia quando não tinha trabalho, quando não tinha sessão. Então eu recorria ao meu Daime de Companhia, que ele tá ali do meu lado pra isso, pra poder me auxiliar quando eu precisar, quando não tiver pra onde correr216.

É interessante perceber que, para o Sr. Vinícius Varella, o Daime de Guarda

pode ser utilizado para uma série de objetivos, que vão da ajuda para o trabalho

216 Entrevista com o Sr. Vinícius Varella, membro atuante da Igreja Céu do Gamarra, realizada em setembro de 2007.

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com o jagube e a rainha até picada de cobra, passando pela cura de uma simples

gripe. O que é importante ressaltar é exatamente essa visão recorrente entre os

daimistas de que o Daime de Guarda pode servir para ajudar em quase tudo. Como

o Sr. Vinícius Varella bem definiu, é um “kit de pronto-socorro” para se ter em casa.

Durante outra entrevista, foi colhido o seguinte relato:

Eu uso o Daime de Guarda em caso de doença, no caso de alguma aflição espiritual, alguma perturbação, alguma coisa que possa chegar. Mas geralmente é mais pra doença mesmo, é pra caso de doença, em caso de ajuda mesmo. Só pra isso mesmo. Fora isso eu só uso o Daime nas sessões217.

E mais um depoimento esclarecendo uma nova razão para a utilização do

Daime de Guarda:

Eu uso o Daime de Guarda quando estou na peia, naqueles dias que a gente nem consegue sair da cama, nem nada. Ou quando estou muito bravo, também. A gente toma um pouquinho para acalmar218.

Dessa forma, além dos motivos apontados anteriormente, como ajuda para o

trabalho, picada de cobras e cura de doenças, o daimista também busca no seu

Daime de Guarda a resposta para determinadas “aflições espirituais” ou “alguma

perturbação”, além de um estado psicológico mais equilibrado. Portanto, as razões

para a utilização do Daime de Guarda atravessam todo espectro de problemas que

afligem o ser humano, começando pela cura das doenças físicas, passando pela

resolução dos distúrbios emocionais e psicológicos, chegando à superação das

aflições espirituais.

Entretanto, existe um outro aspecto da utilização do Daime de Guarda que

está relacionado com uma dimensão mais ampla do universo daimista, além das

questões e problemas pessoais. Segundo o Sr. Luís Mendes, ao Daime de Guarda:

Você recorre, você pode se recorrer. É uma proteção mais próxima que você tem pra recorrer. Então dentro dessas características, aí você podia se valer daquele Daime, de tomar o seu Daime e aquele Daime lhe socorrer.

217 Entrevista com o Sr. José Aparecido, dirigente de um ponto em Lavras, M.G., realizada em outubro de 2007 218 Entrevista com o Sr. Nelson Silva, fardado da Igreja Céu do Gamarra, realizada em dezembro de 2007.

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Apontando para essa mesma direção, Fábio Pedalino Costa afirmou:

O Daime de Guarda, como o nome diz, é para se ter de guarda em casa. Aí, normalmente, todo o fardado, todo membro da doutrina, tem um altar em casa e nesse altar ele guarda o Daime, normalmente em um lugar um pouquinho mais alto, com o objetivo de ter uma proteção. E é um Daime que normalmente, necessariamente, não precisa ser tomado. A não ser assim em caso de uma doença, uma emergência e tal. Mas normalmente ele é um Daime para ficar no altar, em uma garrafinha bem pequena.

Ambos os relatos evidenciam um uso bem diferente da simples resolução

dos males individuais do daimista, colocando o Daime de Guarda na condição de

portador de um poder capaz de gerar proteção e socorro. Só a presença da

beberagem sagrada é suficiente para garantir a segurança e o bem estar do

ambiente e do seu portador, independente de sua ingestão. Logo, o simples fato do

Daime se encontrar em um lugar possibilita sua inundação com emanações

transcendentais.

E é exatamente essa natureza especial do Daime de Guarda que lhe permite

ser o remédio para todos os males, físicos, psicológicos e espirituais; e, ao mesmo

tempo, fonte de proteção para o daimista. O Santo Daime, no universo simbólico do

movimento religioso, não é só uma bebida, mas sim um “ser divino”, uma

manifestação do sagrado, enfim, uma hierofania, como já analisado anteriormente.

Como materialização do divino, o Santo Daime promove a cura dos mais diversos

males quando ingerido, enquanto sua simples presença impregna o ambiente onde

se encontra com uma aura divinal.

É durante o feitio que, no simbolismo daimista, cipó, folha, água e fogo se

fundem para materializarem o “sangue de Cristo”. Portanto, é nesta alquimia

sagrada da floresta que se elabora o Daime de Guarda. E, do feitio, a beberagem

sacralizada segue para o lar do daimista. Segundo Fábio Pedalino Costa:

O Daime de Guarda pode ser qualquer Daime que for feito. A única diferença dele é que você já separa um para dar para as pessoas. Então normalmente todo membro tem seu Daime de Guarda, que é um Daime um pouco mais concentrado para poder se conservar mais. O Daime concentrado se conserva mais durante os anos. E ter uma garrafinha assim pequena, para o caso de uma doença. Mas, como já falei, o Daime de Guarda não é necessariamente para tomar. Normalmente, você deixa uma garrafa pequena ao lado de seu Daime de Guarda para tomar, se necessário.

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Portanto, alicerçado no seu caráter de materialização do transcendente, é

possível afirmar que o Daime de Guarda e seu uso doméstico se constituem em

uma reelaboração que se aproxima consideravelmente do culto aos santos, em

especial no seu desdobramento privado, do catolicismo popular.

Primeiramente, é importante se perceber que existe espaço na dinâmica do

catolicismo popular para uma resignifcação tão peculiar, pois, como afirma Edênio

VALE:

O catolicismo popular se constitui, portanto, como uma área de liberdade e autonomia em que o povo se sente poder mover-se com espontaneidade, seguindo suas motivações e sua cosmo-visão sacral e desenvolvendo uma linguagem e um tipo de relacionamento com os lugares, coisas e pessoas santas em que tudo se passa entre o fiel e o objeto de sua devoção, na qual ele encontra um amparo psico-emocional219.

No universo religioso do caboclo amazônico, essa “espontaneidade” foi o

alicerce do processo de reelaboração simbólica que deu origem ao movimento

daimista. Logo, é possível afirmar que o Santo Daime compartilha dessa

“espontaneidade” presente no catolicismo popular, constituindo-se em uma nova

forma extremamente peculiar de relacionamento com o sagrado católico. E é

exatamente na bebida divina que o daimista encontra a sua mais importante fonte

de “amparo psico-emocional”. Dessa forma, a “liberdade e autonomia”, que o

catolicismo popular garante para o indivíduo permitiu que, do interior da floresta, os

santos populares saíssem todos fundidos, transfigurados, liquefeitos e

engarrafados.

É uma característica marcante das práticas religiosas populares a

multiplicação de intermediadores com o sagrado. No catolicismo popular brasileiro

essa flexibilidade é observada por Carlos Rodrigues BRANDÃO:

Para obter um sistema simbólico universal e concreto, capaz de abarcar de uma só vez a pluralidade de todas as trocas e a realização de suas concretudes sobre vidas, famílias e comunidades, o catolicismo camponês multiplicou categorias de sujeitos sobrenaturais polares e seus mediadores humanos, celestes e infernais220.

219 Edênio VALE, Aspectos psico-grupais do comportamento religioso-popular, p. 75. 220 Carlos Rodrigues BRANDÃO, Os Deuses do Povo, p. 180.

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Portanto, existe espaço para um amplo diálogo entre o catolicismo popular

brasileiro e o Santo Daime. Conectados por suas maleáveis estrutras simbólicas, o

Santo Daime e as práticas católicas populares estabelecem amplos espaços de

interseção. E é exatamente nesta dinâmica de conexões que o Daime de Guarda

assume um lugar, lado a lado, com os multiplos mediadores católicos com o

transcendente.

Mas não é somente uma questão de se perceber a possibilidade de se

aproximar o Santo Daime de algum nicho do flexível universo simbólico do

catolicismo popular brasileiro. É também de fundamental importância se entender

onde se encaixa a utilização do Daime de Guarda neste complexo simbólico.

Para BRANDÃO, os católicos percebem a religião como “um estoque de

regras e recursos do sagrado a serviço das demandas cotidianas”221, de forma que:

No mundo dos católicos de foice e viola, a fronteira entre religião e magia tem contornos pouco definidos. Por isso “pedir” no saravá não é pecado, mas equivale a usar um recurso a mais. Ali são pequenas as diferenças entre esperar um milagre: da parte do Deus supremo; de uma das suas “três pessoas” – de preferência o “Filho”, mas não o Cristo cósmico dos leigos intelectualizados, nem o “chefão” dos cursilhistas, e sim o “Menino Jesus”, ou o “Bom Jesus de Pirapora”, “do Iguape”, “dos Perdões” ou “da Cana Verde”; de uma das muitas padroeiras “Nossas Senhoras”; de um, ou de uma associação lógica de mediadores especialistas; de uma fração de corpo de Cristo, com as “cinco chagas”; de entidades santificadas – “meu anjo da guarda”; “as almas do purgatório”, “as treze almas benditas, sabidas e entendidas”; ou ainda, de um objeto simbólico tornado poderoso, como “o santo lenho”, as relíquias de um santo, o túmulo de um menino, uma fonte de água, uma cruz de beira de estrada222.

E porque não o divino engarrafado? Pois é na resolução das demandas

cotidianas que o Daime de Guarda se aproxima dos múltiplos receptáculos do

sagrado encontrados no universo simbólico do catolicismo popular. Sem substituir a

figura do santo católico, que também está presente nas práticas devocionais

daimistas, o Daime de Guarda se constitui em uma das manifestações mais

presentes e atuantes do sagrado no cotidiano dos seguidores do movimento

religioso, assim como são os santos nas práticas domésticas do catolicismo

popular.

221 Carlos BRANDÃO, op. cit., p. 125. 222 Ibid., p. 133.

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Alba ZALUAR é outra autora que segue essa mesma linha de análise sobre a

religiosidade do povo. Segundo ela, fora das estruturas de controle da Igreja, o

catolicismo popular se abre para uma infinita possibilidade de resignificações

simbólicas, reflexo das incontáveis realidades particulares construídas no universo

das classes populares camponesas. Para ZALUAR:

A prática popular espontânea – isto é, fora do controle da Igreja – no manejo dos símbolos que os santos e as associações religiosas constituem sugere qual é a qualidade principal desses símbolos: sua capacidade de desdobrar-se ou reproduzir-se de acordo com o desdobramento e reprodução dos grupos, redes ou categorias de pessoas pelos santos e associações religiosas representadas223. Assim sendo, dentro da racionalidade própria do catolicismo popular

brasileiro, boa parte do conjunto de práticas rituais que estruturam a relação com o

sagrado se orienta com o objetivo de conseguir algo. É uma intermediação que o

santo faz em favor de alguém ou do grupo, “por isso mesmo, desses santos

dependia o bem-estar material de ‘seu povo’”224. Percebe-se, portanto, uma

racionalidade prática voltada claramente para o fim mais direto dos indivíduos que

vivenciam essas experiências religiosas, que é a sobrevivência e a resolução dos

problemas cotidianos. Logo, a presença do Daime de Guarda como um dos

elementos centrais da superação dos obstáculos eventuais e da manutenção da

ordem diária do daimista pode sintonizá-lo com a lógica racionalmente prática do

catolicismo popular.

Entretanto, apesar de estar profundamente marcado por práticas muitas

vezes entendidas como irracionais e desprovidas de uma fundamentação ética, o

catolicismo popular brasileiro foi capaz de produzir todo um arcabouço moral a partir

de reinterpretações e resignificações da matriz ética do cristianismo, à qual pertence

o Santo Daime. Nesse sentido, Alba ZALUAR defende a:

(...) refutação da tese de que o catolicismo popular é uma religião “instrumentalista”, sem “preocupações morais”. As rígidas exigências feitas ao comportamento tanto das dançadoras e dos músicos quanto dos assistentes [participantes da festa de São Gonçalo, no interior da Bahia] representariam a moral do modo de vida tradicional no que diz respeito à vida familiar e à relação entre os sexos225.

223 Alba ZALUAR, Os Homens de Deus, p. 64. 224 Ibid., p. 61. 225 Ibid., p.63.

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Não é, portanto, por mero acaso ou capricho que se exige da pessoa que

deseja ter o Daime de Guarda retidão moral e compromisso com os padrões éticos

cristãos. Como afirma o Sr. Luís Mendes:

Tem que caprichar para isso [ter o Daime de Guarda]. Tem que se habilitar, porque merecimento todo mundo tem, mas tem que saber com o que está se lidando. Porque ele é limpo [o Santo Daime], nele não tem sujeira não. Devido a essa pureza tão grandiosa, ele pode ser Daime ou não. De acordo com o valor que a gente vai dando. Se você não dá o valor ou então apronta alguma coisa que não condiz com a existência dele, com a responsabilidade de zelo, aí já não é Daime. É isso que ele corresponde. Pode tomar que não adianta nada. O catolicismo popular, independente da categoria em que as elites

dominantes o enquadram, rompe com a necessidade da institucionalização para

concretizar a relação com o sagrado. A distância incomensurável que separa criador

e criaturas exige uma intermediação, que pode ser feita pelas grandes instituições

religiosas. Entretanto, o catolicismo popular elege como seu intermediador a figura

do santo. Este pode estar em casa, na igreja ou na capela, mas sempre está ao

lado do crente. A figura do santo encarna o sagrado, é uma hierofania. Logo, não é

necessária a Igreja e todo seu aparato clerical e ritualístico para romper as

distâncias que separam os homens de Deus, existe uma ponte muito mais eficiente

e presente: o santo.

E mesmo esse não é o santo histórico, ainda controlado pela Igreja, que

monopoliza sua história e canonização, mas a imagem, concreta e palpável, que se

transforma em receptáculo do sagrado. Como afirma Alba ZALUAR:

Em todos os municípios estudados, os santos eram identificados às imagens (estátuas), que constituíam representações iconográficas dessas entidades, ao mesmo tempo pessoas e espíritos divinos, existentes localmente. Essas imagens podem pertencer à Igreja e às irmandades religiosas e, nesse caso, “moravam” nas capelas e igrejas locais. Podiam também pertencer a indivíduos ou famílias e, nesse caso, “morariam” em altares especialmente construídos dentro de suas casas. Eram a essas imagens localmente conhecidas e, em alguns casos, localmente achadas que se dirigiam os pedidos e que se atribuíam poderes milagrosos226.

O santo está presente, é palpável. O devoto pode tocá-lo ou tê-lo em casa. É

companheiro e fiel àqueles que lhe rendem fidelidade. Está presente a toda hora

para interceder ou solucionar os problemas cotidianos que Deus, muito ocupado

com as questões de ordem universal, não tem tempo de resolver. Em relação a esta

226 Alba ZALUAR, op. cit., p. 59.

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característica do culto aos santos do catolicismo popular, Pedro Ribeiro de

OLIVEIRA afirma:

O santo está ao alcance imediato do fiel: na imagem, na estampa, no santuário, num cruzeiro à beira da estrada, numa gruta, ou nos arredores de um cemitério. O fiel não precisa recorrer a um mediador especializado para contatar o santo; vai diretamente a ele, conversa com ele, expõe seus problemas, agradece “às graças”, ou simplesmente presta seu ato de culto. O santo, por sua vez, não é uma entidade abstrata, mas, por assim dizer, é encarnado na imagem que o representa227. Da mesma forma que o divino pode estar em uma garrafa, ao alcance do

daimista em seu altar, materializado em líquido que emana as irradiações do

sagrado em tudo a sua volta. Em sua casa, o daimista pode contar com seu Daime

de Guarda, que também dispensa qualquer mediador especializado, pois já está ali

a presença transcendental. Segundo o Sr. Luís Mendes, o Daime é “Deus, vem do

reino de Deus”.

Na lógica do catolicismo popular, o que importa é a capacidade de

intervenção na realidade que o santo tem. Esse é um dos motivos para a devoção

do povo se voltar muito mais para a imagem ou outro objeto qualquer que encarnem

o sagrado. Pois, como encarnação do transcendente, os santos, materializados nas

imagens e objetos de devoção, são capazes de conduzir ou alterar os

acontecimentos do mundo material. Como afirma Rodolfo Witzig GUTTILA:

No entanto, ainda que admirados por suas vidas exemplares, exaustivamente reiteradas nas narrativas hagiográficas, os santos eram e continuam sendo invocados – malgrado os esforços apologéticos do clero – sobretudo por seus poderes extraterrenos228. Mas além dos santuários e lugares públicos onde se processam as

manifestações coletivas de devoções populares, existe uma outra dimensão do culto

aos santos no catolicismo popular de extremo relevo. Essa é a dimensão privada,

que se desenrola no ambiente doméstico do devoto. Pois, na multiplicidade de

receptáculos do sagrado produzidos pelo catolicismo popular, existe espaço também

para imagens, objetos e práticas sacralizadas pelo fiel e utilizadas em uma relação

particular com o santo. Segundo as observações de OLIVEIRA:

As pesquisas feitas no Brasil revelam que a grande maioria dos católicos pratica sua religião de modo privatizado. Pode-se estimar essa maioria entre 70 e 80% dos católicos no Brasil. Caracteriza-se o catolicismo privatizado por ter como seu núcleo

227 Pedro Ribeiro de OLIVEIRA, O Catolicismo do Povo, p. 79. 228 Rodolfo Witzig GUTTILA, A Casa do Santo e o Santo da Casa, p. 84.

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a devoção aos santos. Só que, ao invés de celebrar a devoção ao santo de modo comunitário, como no catolicismo tradicional, esse culto tem um caráter privado. Vale examinar o que significa a categoria de santos, que não se confundem com os santos reconhecidos oficialmente pela Igreja. É muito mais abrangente, pois inclui, além dos santos canonizados pela Igreja, todas as denominações locais e titulares de Maria Santíssima, de Jesus, bem como santos locais e familiares. Uma criança assassinada com requintes de crueldade, uma pessoa morta tragicamente, ou um leproso que morre sem se queixar da vida, todos esses passam à categoria de santos, capazes de proteger e de alcançar graças para quem a eles recorre com fé229. E recorrer com fé é exatamente o que o daimista faz quando, passando por

uma dificuldade, física ou emocional, toma uma colher de seu Daime de Guarda

para resolver seus problemas e permanecer resguardado de outros graças à

presença constante em seu ambiente familiar da beberagem sagrada. Assim como

para Alexandre OTTEN “o culto aos santos apóia, encoraja, dá paciência para o

devoto suportar e enfrentar as agruras da vida”230, o Daime de Guarda está pronto

para auxiliar o daimista a qualquer hora. Portanto, é sua capacidade de atuar como

protetor e solucionador de crises cotidianas; e sua presença no ambiente familiar,

que o credenciam para assumir o lugar do “santo de casa” no universo simbólico

daimista.

Uma das utilizações do Daime de Guarda que mais ressalta a confiança e a fé

inabaláveis do daimista em sua hierofania engarrafada é o seu uso durante o parto.

Neste, que é um dos momentos mais importantes e delicados na vida de qualquer

mulher, a presença do Daime de Guarda representa seu papel fundamental como

veículo do sagrado e mantenedor de uma ordem superior, assim como seria a

presença de uma imagem consagrada trazida junto ao corpo por uma parturiente

devota de um santo católico. Falando sobre esse fato, o Sr. Luís Mendes afirma:

É muito antigo o costume das mulheres grávidas tomarem seu Daime de Guarda. Desde o tempo do Mestre, no tempo remoto dele, que em geral nessa época as mulheres tinham muitos filhos, a minha teve dez e por aí ia. Todos partos normais com o Daime na frente. E até aí não se conheceu na História que alguma tenha morrido em conseqüência do parto com o Daime. E isso sem falar em toda uma gestação que ela vem tomando Daime. Quanto mais melhor. Até o parto, quando chega na hora tem aquele com mais dificuldades, mas sempre eram realizados. Também tinham as parteiras oficializadas da casa que também tomavam Daime na hora do parto. É um ritual. Por isso tem que ser feito em casa. (...) Há contos

229 Pedro Ribeiro de OLIVEIRA, op. cit., p. 77. 230 Alexandre OTTEN, “Deus é brasileiro”. Uma leitura teológica do catolicismo popular tradicional, p. 17.

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emocionantes, de partos sem esperança que foram conseguidos através do Daime. Tem inclusive a Vera Fróes231. A privatização do culto aos santos aproxima o devoto de seu intercessor,

principalmente em relação às preocupações do cotidiano dos fiéis. Em casa o

contato é direto e diário, com a presença do sagrado transformando profundamente

o ambiente em que se encontra. Mas o transcendente requer um lugar especial,

distinto daqueles não sacralizados; um espaço reservado, com certas interdições,

separado do ambiente profano. Afinal, este é o local onde a hierofania se manifesta.

Normalmente, no catolicismo popular, o lugar reservado para a imagem do

santo e os objetos sacralizados pelo devoto é um altar ou oratório. Colocado, na

maioria das vezes, em lugares reservados especificamente para este fim no

ambiente familiar, o altar ou oratório doméstico se constituem em uma das

características mais tradicionais e presentes do universo simbólico religioso do povo

brasileiro. Segundo Riolando AZZI, “os oratórios eram conservados em muitas casas

em lugar de destaque e respeito, tanto nas cidades como na zona rural”232.

Esse culto doméstico e o local especial para receber o santo no ambiente

familiar também são mencionados por GUTTILA:

O eixo estrutural dos cultos domésticos e privados será, portanto, a relação direta entre o devoto e o “santo de casa” – representado concretamente pela imagem que habita o oratório doméstico. Na falta deste, qualquer peça de mobília que sirva para acolher a imagem do santo de devoção fará as vezes do outro233. A utilização de altares e oratórios domésticos é introduzida no Brasil no bojo

do culto aos santos, que veio se desenvolvendo desde o período colonial da história

brasileira. Ainda segundo GUTTILA:

Era o senhor que promovia e comandava a religião familiar, que tinha por núcleo e objeto o culto aos santos. De modo geral, a dulia se organizava em torno do oratório doméstico, ou ainda na capela avizinhada à casa grande, reunindo familiares, a extensa parentela, homens livres ligados por laços de lealdade ao senhor – e, invariavelmente, por laços de compadrio – bem como escravos domésticos234.

231 A pesquisadora Vera Fróes, fardada antiga da doutrina, descreve em sua obra Santo Daime, cultura amazônica, sua difícil experiência no parto ajudada pelo seu Daime de Guarda, além de relatar diversas outras situações que comprovam a tradição daimista de se utilizar o Daime de Guarda durante a gestação e o parto. 232 Riolando AZZI, O Catolicismo Popular no Brasil: aspectos históricos, p. 25. 233 Rodolfo GUTTILA, op. cit., p. 183. 234 Ibid., p. 49.

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Os altares e oratórios domésticos são locais especiais nas práticas

devocionais do catolicismo popular. Portanto, os cuidados são grandes por parte

dos fiéis que os mantêm em casa. Limpeza, atenção para que objetos não

relacionados ao sagrado não permaneçam no altar, a preocupação com a harmonia

e a conservação dos objetos e imagens sacralizadas, são típicos cuidados que os

devotos normalmente têm com esses lugares privados de manifestação do

transcendente. Toda essa dedicação em torno de altares e oratórios reflete o

compromisso do devoto para com o santo, incluindo tudo o que se relaciona com

ele. Como afirma ZALUAR, “tradicionalmente, a devoção aos santos também

implicava fidelidade e dedicação traduzidas no preparo de festas e danças e o

cuidado com o altar e a imagem do santo”235.

Riolando AZZI encontra em José Lins do Rego e Afonso de Taunay a

descrição dos cuidados especiais dedicados aos altares e oratórios domésticos

desde o período colonial. Observando “o carinho com que enfeitavam e enriqueciam

os oratórios com portas de cortina e arcos de talha e muitas e ricas imagens”236,

além do respeito refletido no ato de sempre manter coberto o oratório

confeccionado com o nobre jacarandá, AZZI demonstra a importância central

desses nichos familiares do sagrado para o catolicismo popular brasileiro.

Da mesma forma, pode-se encontrar no movimento religioso daimista a

necessidade de um lugar especialmente reservado para se deixar o Daime de

Guarda. Sobre essa questão, o Sr. Luís Mendes afirmou:

O Mestre Irineu, quando fornecia o Daime de Guarda, fazia algumas observações: primeiro que esse Daime que você tem em sua casa seja guardado bem ambientado. Não só pelo fato de sua conservação, que é um ambiente seco e arejado, como o cuidado maior que se tem é pelo fato de outros pormenores. Então tem que ser um ambiente apropriado somente para ele e seus acessórios (...) nunca no quarto do casal em um lugar só dele, uma apropriação que se faz para ele.

Seguindo essa mesma linha de pensamento, Fábio Pedalino Costa declarou:

Como o nome já diz, o Daime de Guarda é para se ter de guarda em casa. Aí normalmente todo fardado, todo membro da doutrina, tem seu altar em casa e nesse altar ele guarda o Daime de Guarda, normalmente em um lugar mais alto com o

235 Alba ZALUAR, op.cit., p. 94. 236 Riolando AZZI, op. cit., p. 26.

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objetivo de ter uma proteção (...) o Daime de Guarda é, normalmente, um Daime para se ter no altar.

Percebe-se, dessa forma, a mesma preocupação que existe no catolicismo

popular em relação ao local reservado para as imagens e objetos sacralizados pelo

devoto de um santo no ambiente familiar. Assim como os oratórios e altares

caseiros católicos, os altares daimistas são lugares especiais que os seguidores

desse movimento religioso preparam em seus lares para receber o Daime de

Guarda.

É claro o cuidado e a preocupação com a limpeza e a escolha dos objetos

que compõem esses altares familiares, principalmente com alguns itens

sacralizados pelos daimistas, que têm lugar de destaque em seus altares. A

presença do Cruzeiro, por exemplo, é quase obrigatória nesses nichos do sagrado

familiar daimista, assim como é obrigatória sua presença nas mesas colocadas nos

centros dos salões durante os rituais do movimento religioso. Em todas as casas,

visitadas foi constata a presença dessa cruz nos altares, como mostra a foto a

seguir:

Figura 1

No altar da casa visitada, além do Cruzeiro, é possível observar o terço

católico, imagens de santos, como a de Nossa Senhora da Conceição, a de São

Sebastião e a de São Miguel Arcanjo, algumas caixas de incenso, uma pequena

garrafa de água benta, conseguida em uma igreja católica, fotos de Raimundo

Irineu Serra e de Rita Gregório de Melo, viúva de Sebastião Mota de Melo, e,

evidentemente, algumas garrafas com o Daime de Guarda.

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Em outros altares, foi percebida a existência de praticamente os mesmos

objetos, como o Cruzeiro, a imagem de santos católicos, terços e fotos de

expoentes daimistas:

Figura 2

Neste exemplo, estão presentes a imagem da sagrada família, fixada na

parede acima do altar, o Cruzeiro, com um terço ao redor, um pequeno copo para a

ingestão do Daime de Guarda, uma foto de Sebastião Mota de Melo, duas garrafas

com a beberagem sagrada, uma pequena tábua com uma inscrição de oração

católica, uma bolsa lateral com os hinários utilizados nos rituais e um pequeno

recipiente em que era guardada a estrela de metal, distintivo da vestimenta ritual do

fardado daimista. O elemento peculiar fica por conta da estrela do mar, que pode

ser entendido como alusão à sacralização da natureza presente na doutrina do

Santo Daime.

Em outro altar, colocado na parte superior do corredor de outra casa visitada,

pode-se constatar a presença de todos os objetos consagrados nos exemplos

anteriores, com a presença novamente de um pequeno recipiente contendo água

benta, conseguida em uma igreja católica, e de uma vela e flores, elementos

também característicos de altares e oratórios do catolicismo popular brasileiro. Esse

detalhe demonstra a preocupação e o cuidado para com esses locais, pois, para

manter velas acesas e flores em bom estado, é necessária uma manutenção

constante. Outro elemento peculiar encontrado foi a presença de uma pequena

imagem de Nhá Chica, uma beata que viveu no município de Baependi no séc. XIX

e é centro de uma devoção muito forte na região:

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Figura 3

Interessante também foi um altar organizado por uma jovem daimista de

apenas 10 anos de idade, em que foram encontradas, além do Cruzeiro, do terço,

de um pequeno presépio, da vela de sete dias e do Daime de Guarda, imagens

angelicais que fazem parte do universo simbólico da religiosidade infantil:

Figura 4

Em outros dois altares, é utilizada a figura da pomba branca colocada logo

acima do cruzeiro, símbolo que representa o Espírito Santo, terceira pessoa da

Santíssima Trindade, para católicos e daimistas:

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Figura 5

Figura 6

A influência da religiosidade oriental, cada vez mais presente no movimento

daimista, pode ser percebida neste altar, em que uma imagem de Buda ocupa

espaço lado a lado com as figuras tradicionais do catolicismo, como a Sagrada

Família, e fotos de Raimundo Irineu Serra e Sebastião Mota de Melo e sua esposa

Rita Gregório de Melo:

Figura 7

Mesmo em lugares improvisados, o cuidado com os altares daimistas é

grande, como se percebe neste altar alocado sobre a estrutura de uma máquina de

costura, mas muito bem cuidado e limpo, apesar de sua simplicidade:

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Figura 8

Portanto, é possível constatar uma série de elementos que aproximam os

altares domésticos daimistas dos oratórios e altares caseiros do catolicismo

popular. Ambos são o nicho de recepção do sagrado no ambiente familiar. São

cuidados com extremo zelo, assumem um papel de destaque no local onde se

encontram e uma importância enorme no ambiente doméstico, tanto de daimistas

como de católicos. Os elementos que os compõem são extremamente semelhantes,

imagens e objetos sacralizados, terços, velas, flores.

Dessa forma, a presença do sagrado liquefeito nos altares daimistas

estabelece uma ponte direta com as práticas devocionais domésticas do catolicismo

popular brasileiro. No seu percurso absolutamente peculiar e único, o Santo Daime

anda sobre dormentes fornecidos pelo cristianismo e trilhos dispostos pelo

catolicismo popular. Entretanto, é importante ressaltar que, apesar de assumir o

lugar do santo de casa para o daimista, a relação do Daime de Guarda com os

adeptos desse movimento religioso guarda suas particularidades.

Primeiramente, não existe uma relação de troca clientelista, como a que se

observa nas práticas do catolicismo popular entre o devoto e o santo. Ou seja, o

daimista não faz promessa ao seu Daime de Guarda na esperança de conseguir

algo, para depois cumprir o compromisso firmado. O que se percebe é uma relação

mais gratuita e espontânea com essa hierofania engarrafada. A presença, o simples

fato do daimista ter o Daime de Guarda em seu ambiente familiar, já lhe possibilita

ter a garantia de sua proteção, independente de qualquer troca ou pagamento de

promessa. Inclusive, nada impede o daimista de fazer e pagar promessas aos

santos católicos, como qualquer outro devoto. Mas, em relação ao seu Daime de

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Guarda, sua proteção já está garantida, evidentemente que com o devido

“merecimento”, como observado anteriormente.

Em segundo lugar, a beberagem sagrada pode ter um valor simbólico maior

para o daimista do que as imagens para os devotos do catolicismo popular. Não é o

caso das imagens encontradas em condições especiais ou que comprovaram sua

capacidade singular de operar milagres, que, na maior parte das vezes, encontram-

se em santuários ou capelas abertas para o culto coletivo, mas, muitas das imagens

dos santos caseiros são simplesmente representações dos santos para seus

proprietários, podendo, inclusive, serem trocadas eventualmente, no caso de se

quebrarem ou envelhecerem. Entretanto, o Daime de Guarda sempre mantêm a sua

condição de manifestação líquida do sagrado, mesmo sendo reposto, em caso de

uso para ingestão ritual.

Por fim, é importante observar a possibilidade da relação ser mais próxima e

íntima entre o daimista e o seu Daime de Guarda do que aquela entre o devoto e a

imagem do santo caseiro. Pelo fato da maioria dos seguidores desse movimento

religioso ter participado do preparo dessa hierofania durante o feitio, sua interação

com a beberagem consagrada pode ser maior do que a do católico com a

representação do seu santo de devoção. Foram suas mãos, seu suor, sua

dedicação e sua fé que permitiram a materialização do sagrado naquele líquido

amargo e de cor ocre que ele agora guarda em sua casa e de onde emanam as

irradiações dos planos imateriais. Logo, diferentemente do devoto do catolicismo

popular que adquiriu, ganhou ou herdou a imagem que ele mantêm em seu altar

doméstico, o daimista, na maioria das vezes, esteve presente e participante na

materialização do sagrado, quando folha, cipó, água e fogo se fundiram no “sangue

de Cristo”.

Entretanto, existem limites na intermediação com o sagrado operada pelo

Daime de Guarda. As práticas domésticas que envolvem essa categoria são muito

menos importantes, no universo simbólico daimista, que os rituais coletivos

realizados no movimento. As grandes obrigações dos fardados, no cotidiano do

grupo, giram em torno das atividades conjuntas, como os trabalhos espirituais na

igreja ou mutirões. São nesses momentos que o daimista demonstra sua disposição

para trilhar o árduo caminho do auto-conhecimento e consegue os créditos,

acrescentados ao seu “merecimento”. Dessa forma, não é no conforto do lar, que o

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membro do movimento religioso se realiza como daimista, mas vivenciando as

práticas coletivas. O Daime de Guarda é visto como um auxiliar, mas não é capaz

de proporcionar as experiências que somente se processam nos momentos de

vivências coletivas. Assim como um devoto de São Francisco pode ter a imagem do

santo em seu altar, cuidadosamente mantido em casa, mas nada substitui, para ele,

a sensação de sentir as gotas de água benta aspergidas pelos frades franciscanos

no santuário de Canindé. É no desenrolar das práticas litúrgicas e nas

manifestações de devoção coletivas, que reside a esperança para a resolução das

grandes questões e dos obstáculos da vida. E é cantando os hinários na igreja ou

macerando o jagube durante os feitios, lado a lado com seus companheiros, que os

daimistas acreditam estar se preparando para concretizar o objetivo de vivenciar a

experiência de ser cristão, cerrando fileiras no Exército do Mestre Império

Juramidam. Enquanto da garrafa, colocada em seu lugar de destaque no altar,

com seu conteúdo consagrado, continua a emanar os fluidos divinos que encantam

o cotidiano do daimista, protegido por seu santo de casa, o Daime de Guarda.

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CONCLUSÃO

O Santo Daime é uma religião genuinamente brasileira. Não só pelo simples

fato de ter surgido no Brasil, mas por ter se construído a partir da mesma dinâmica

que norteia o espírito religioso desse povo que nasceu da fusão do europeu, com o

africano e o ameríndio. Uma dinâmica que tem no seu vértice central uma matriz

essencialmente cristã, mas amplamente eclética e aberta a reelaborações e

resignificações simbólicas das mais diversas. Esse caldeirão em constante

ebulição, de onde brotam as religiões brasileiras, é o berço do Santo Daime.

Portanto, conhecer melhor o Santo Daime significa entender mais profundamente a

religiosidade do Brasil.

Nesse sentido, o objetivo dessa pesquisa foi propor uma forma específica de

se entender o movimento daimista. Buscou-se um olhar sobre o Santo Daime que

permitisse enxergá-lo, não como um movimento xamânico, como em boa parte da

produção acadêmica sobre o tema, mas como uma religião que tem um alicerce

essencialmente cristão, sobre o qual foi sendo construído um arcabouço simbólico e

ritual a partir de diferentes matrizes religiosas.

Primeiramente, foram desenterrados, das raízes culturais do fundador do

movimento religioso, os indícios da presença crucial da matriz cristã, consolidada

através do catolicismo e, particularmente, das suas práticas populares. Sem

descartar a importância de outras influências, como a pajelança ou as

manifestações afro-brasileiras, foi possível perceber que Raimundo Irineu Serra

teve uma origem alicerçada profundamente nos princípios do catolicismo popular.

Ainda nessa primeira etapa da pesquisa, abriu-se um parêntese para a

análise do processo de construção de uma igreja daimista. Criada na segunda

geração de núcleos do Santo Daime fora da região norte, a igreja Céu do Gamarra

é um exemplo da dinâmica de expansão do movimento daimista para além de seus

limites originais. Apesar de não estar exatamente dentro da analise proposta, a

idéia foi aproveitar a pesquisa de campo realizada nesta igreja, com as entrevistas e

visitas para a coleta do material visual, para registrar, mesmo que de forma

resumida, a história dessas pessoas que largaram tudo por um ideal religioso.

Evidentemente, a abordagem não foi profunda, mesmo porque, como já foi dito, se

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tratou de um parênteses, portanto ainda existem muitas possibilidades de pesquisa

sobre a história dessa e de outras dezenas de igrejas daimistas na busca de

respostas para questões como as razões que levariam uma pessoa a largar tudo

para se dedicar a construir ou integrar uma igreja do Santo Daime ou as

dificuldades enfrentadas nesse processo.

Retomando a análise sobre as matrizes culturais do Santo Daime, a pesquisa

se debruçou sobre a produção acadêmica que interpreta o movimento daimista

como sendo xamânico. Levando-se em conta que essa é a corrente predominante

de análise sobre o tema, o objetivo foi criar o contra-ponto à perspectiva proposta

de se entender o Santo Daime como um movimento cristão. Não se buscou negar a

importância do xamanismo nos fundamentos culturais daimistas. A influência das

práticas xamânicas amazônicas é crucial no arcabouço ritual e simbólico do Santo

Daime. É extremamente marcante a presença reelaborada das experiências

extáticas e de todo um universo de símbolos, que remontam às milenares culturas

da floresta. Portanto, é inquestionável a parcela xamânica de Juramidam.

Entretanto, mesmo considerando-se a importância da matriz ameríndia para

o movimento daimista, o que se buscou foi colocar em relevo a alma cristã do Santo

Daime. Entender que a estrutura doutrinária e grande parte dos símbolos daimistas

estão profundamente enraizados no cristianismo, particularmente na sua vertente

do catolicismo popular brasileiro. O eixo central do movimento, em torno do qual se

aglutinam, em um processo dinâmico de reelaborações simbólicas, diferentes

matrizes religiosas, é essencialmente cristão. Portanto, levando-se em conta a

absoluta singularidade do Santo Daime em suas resignificações e tendo em vista

sua essência cristã, foi possível se pensar em uma nova categoria, o Cristianismo

Juramidam. Uma forma totalmente particular de se vivenciar a experiência de ser

cristão, consagrando o sangue de Cristo na bebida sagrada da floresta.

Dessa forma, a pesquisa avançou na busca dos elementos que permitem

sustentar essa visão. A primeira questão relevante é que os daimistas se entendem

como cristãos, já que acreditam em Jesus Cristo como filho de Deus, nascido de

uma Virgem, que foi crucificado e ressuscitou para salvar a humanidade. Assim

como a doutrina daimista, contida e divulgada no conjunto de hinários do

movimento, se assenta basicamente nos valores morais e princípios éticos cristãos.

Nas suas práticas, o Santo Daime também evidencia sua alma cristã, com um

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calendário litúrgico e uma série de ritos e símbolos fundamentalmente reelaborados

a partir do catolicismo popular, como os sacramentos católicos ou a identificação

direta entre os expoentes daimistas e o panteão católico. Portanto, foram expostos

os aspectos que estreitam os laços entre o Santo Daime e o cristianismo,

permitindo a possibilidade de se pensar a construção da categoria do Cristianismo

Juramidam.

Estreitando ainda mais esses laços, a pesquisa encerrou sua análise

traçando um paralelo entre os cultos domésticos aos santos do catolicismo popular

brasileiro e uma forma privada de utilização do Santo Daime, conhecido como

Daime de Guarda. O que se demonstrou foi que, mesmo resguardando suas

peculiaridades, o Daime de Guarda promove uma intermediação com o sagrado de

forma muito semelhante àquela que se processa nas práticas devocionais

domésticas do catolicismo popular, reforçando, assim, a idéia de um Cristianismo

Juramidam.

Entretanto, é necessário reconhecer alguns limites dessa pesquisa.

Primeiramente, é importante considerar a dificuldade de se entender claramente a

dinâmica fluida das interpenetrações religiosas que formam o movimento daimista,

na tentativa de observar uma direção nesse processo. Ou seja, da mesma forma

que o Santo Daime pode ser visto como cristão, incorporando elementos

xamânicos, também pode ser entendido como xamânico, incorporando elementos

cristãos, dependendo da perspectiva de análise. Outra questão relevante diz

respeito ao alcance das interpretações elaboradas sobre as resignificações

simbólicas processadas no Santo Daime. Até que ponto se estendem as conexões

entre o fardado daimista e o clero católico, ou entre o sangue de Cristo e a

beberagem ocre servida nos rituais daimistas. Da mesma forma, é importante

considerar os limites da pesquisa de campo, apontando para a necessidade de

ampliação do número de igrejas visitadas e daimistas entrevistados, com o intuito

de se aprofundar a análise da peculiar categoria do Daime de Guarda.

Portanto, de maneira alguma foi pretensão dessa pesquisa chegar a

verdades definitivas e acabadas sobre o tema. O objetivo foi propor um olhar, que,

evidentemente, ainda tem muito para ser explorado. Dessa forma, diversas

questões ainda se abrem diante das idéias trabalhadas. É importante uma análise

mais aprofundada sobre o alcance do processo de reelaboração simbólica daimista,

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percebendo até que ponto se mantêm e até que ponto se transformam os símbolos

religiosos na construção do Santo Daime. Logo, seriam interessantes novas

pesquisas que aprofundassem a questão, já que a maior ou menor envergadura,

em que se processam essas reelaborações simbólicas, determina as possibilidades

para a existência de um Cristianismo Juramidam.

Outro aspecto relevante que merece atenção é a categoria do Daime de

Guarda. O paralelo entre essa hierofania daimista e os santos de casa do

catolicismo popular pode gerar futuras reflexões, ampliando ou estreitando esses

pontos de conexão. Seriam necessárias novas pesquisas de campo que

ampliassem a coleta de informações sobre as peculiaridades no uso do Daime de

Guarda, colhendo elementos, que possam reforçar ou refutar a ligação com as

práticas domésticas católicas.

Por fim, não podem ser deixadas de lado as possibilidades de análise sobre

o conjunto de hinários daimistas, a riquíssima tradição musical do Santo Daime.

Com uma profusão considerável, levando-se em conta somente aqueles

amplamente reconhecidos pelos daimistas é possível se pensar em números que

chegam aos quatro dígitos, os hinários se constituem em um dos mais interessantes

elementos do movimento religioso. Com sua condição especialíssima de tradição

revelada, portanto verdade incontestável, e receptáculo da tradição doutrinária, na

simbologia daimista entendidos como os novos evangelhos, os hinos são, não só

fonte de informação, mas também objetos interessantíssimos de análise. Dessa

forma, seriam importantes novas pesquisas que mergulhassem mais

profundamente nesse vastíssimo campo de estudos.

Portanto, diante dos dados e conclusões apresentadas, apesar dos limites

inerentes a toda produção do conhecimento e a essa pesquisa em particular, é

possível propor um ponto de vista peculiar sobre o Santo Daime, percebendo-o na

categoria do Cristianismo Juramidam e abrindo, conseqüentemente, um enorme

leque de investigação sobre o tema.

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Outras fontes Hinário O Cruzeiro – Raimundo Irineu Serra

Hinário O Justiceiro – Sebastião Mota de Melo

Hinário O Cruzeirinho – Alfredo Gregório de Melo

Hinário Nova Era – Alfredo Gregório de Melo

Hinário de Germano Guilherme

Hinário de Antonio Gomes

Hinário de Maria Damião

Hinário Nova Aliança – Anderson Mignac

Fontes orais (entrevistas realizadas no município d e Baependi, Minas Gerais) Fábio Pedalino Costa – 04/04/2008

José Aparecido – 13/09/2007

Nelson da Silva – 13/09/2007

Suzana Pedalino Costa – 05/05/2008

Vinícios Varella – 13/09/2007

Fotos (acervo do autor)

Foto 1 – altar da Sra. Sônia Varella.

Foto 2 – altar da Sra. Marcela Guasquem.

Foto 3 – altar da Sra. Vanessa S. B. B. Ferreira.

Foto 4 – altar da Srta. Tainá B. Ferreira.

Foto 5 – altar da Sra. Branca.

Foto 6 – altar da Sra. Mariana G. P. Junqueira.

Foto 7 – altar da Sra. Melina.

Foto 8 – altar da Sra. Vanessa Apocalipse.