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Capitão Witold Pilecki: O relatório, a missão, o homem

o relatório

O Relatório de 1945 do capitão Witold Pilecki é um docu-mento poderoso. Não tanto pelo ritmo da sua prosa ou as imagens impressionantes do seu relato; o documento nun-

ca foi concebido como uma peça literária. Pilecki escreveu parte do texto em Auschwitz mas completou-o em Itália, no segundo semes-tre do ano de 1945, como um relatório para os seus superiores milita-res, conforme descreve na carta de apresentação que dirige ao general Pełczński. Nele, Pilecki recorre frequentemente a frases e parágrafos curtos, e reconhece espontaneamente que, dispondo de mais vagar, teria passado mais tempo a aperfeiçoá-lo. No entanto, este relatório é poderoso pelo seu imediatismo e por tornar conhecido o mundo sel-vaticamente pervertido de Auschwitz, de uma forma que apenas al-guém com uma experiência direta o poderia fazer.

Pilecki não foi um sociólogo a tentar encaixar Auschwitz em pe-quenas caixas ou teorias metódicas, nem sobrevalorizou intelectual-mente aquilo que ali viveu. Era um homem honesto e, ao que tudo indica, despretensioso, sem se reger por qualquer interesse político ou ideológico, a não ser pelo amor ao seu país e à fé católica, respeitando o princípio de «Bóg, Honor, Ojczyzna» («Deus, Honra e Pátria»), e que

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registou aquilo que viu e sentiu, com algumas incursões ocasionais à esfera da filosofia e reflexão pessoal.

Seja qual for o ponto de vista, ele foi também um homem extraor-dinário. Dotado de grande resistência física e de uma imensa coragem, Pilecki demonstrou uma presença de espírito e senso comum notáveis em circunstâncias muito terríveis, e uma total ausência de autocomi-seração. Enquanto a maioria dos prisioneiros de Auschwitz sem uma condenação imediata à morte mal conseguia sobreviver, ele dispunha de reservas suficientes em força e determinação para ajudar os outros e criar uma organização de resistência secreta no interior do campo. Além disso, conseguiu manter sempre a cabeça fria e saber aquilo de que precisava para sobreviver, o que, por exemplo, implicava combater os próprios impulsos fisiológicos e poupar comida para o dia seguinte — uma tarefa que exigia uma força de vontade quase sobre-humana. Dispunha também de uma quantidade razoável de sorte e tinha até disponibilidade para alguma ironia amarga, referindo que as somas dos dígitos interiores e exteriores do seu número de campo, o 4859, perfaziam ambas o número treze!

Pilecki refere ter atingido muito rapidamente um estado de sere-nidade quase espiritual. Conheceu a «felicidade» face à solidariedade que as terríveis condições no campo fizeram germinar entre os polacos: «Nesse momento, senti que um pensamento único percorria aqueles polacos alinhados ombro a ombro; constatei, por fim, que todos está-vamos unidos pelo mesmo ódio; com um desejo de vingança, senti--me num ambiente perfeitamente ajustado ao início do meu trabalho e descobri dentro de mim algo parecido com a felicidade…» Chega até a haver um indício daquela crença mística de Soljenítsin, segundo a qual apenas quem viveu num campo de trabalho pode compreender verdadeiramente o significado mais profundo da vida. Pilecki escreve: «Éramos talhados com um instrumento cortante. A lâmina cravava-

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-se dolorosamente no nosso corpo, no entanto, nas nossas almas, ela encontrava campos para lavrar…». E mais à frente: «Um homem era encarado e apreciado por aquilo que verdadeiramente valia…».

O Relatório de 1945 é igualmente poderoso ao lançar luz sobre um aspeto de Auschwitz menos conhecido no exterior da Polónia, e no mundo de sobreviventes e historiadores do campo de concentração. Enquanto a maioria das pessoas ouviu falar de Auschwitz, na Polónia ocupada pela Alemanha, no contexto do Holocausto, e estão a par das abomináveis câmaras de gás e do crime indescritível do gaseamento de seres humanos, poucas sabem que na primeira fase da existência do campo a maioria das suas vítimas eram polacos cristãos, grande par-te dos quais foram barbaramente assassinados ou morreram devido às condições de trabalho. De facto, o lançamento de Auschwitz, em 1940, tinha em vista a construção de um campo para presos políticos polacos, tornando-se apenas mais tarde um campo de extermínio para os judeus europeus. Indo mais além, no Ocidente e fora dos círcu-los académicos, quantas pessoas sabem que os prisioneiros de guerra soviéticos eram despachados para o campo para serem executados?5 O relatório descreve, por vezes com pormenores arrepiantes, a bruta-lidade implacável, incessante e, em algumas ocasiões, quase fortuita, na qual não eram reconhecidos quaisquer limites morais. Na verdade, Pilecki demonstra até que ponto o ser humano pode decair quando não existem quaisquer normas éticas.

Em simultâneo, o relatório representa também um sinal de es-perança, demonstrando que, mesmo no meio de tanta crueldade e degradação, há quem não abra mão de qualidades básicas como a ho-nestidade, a compaixão e a coragem. Pilecki fala sobre homens capa-zes de suplantar as próprias circunstâncias e que, a par da necessidade

5 Na Frente Oriental, ao contrário da Ocidental, respeitava-se muito pouco as Con-venções de Genebra, as quais, de todas as formas, nunca foram assinadas pela URSS.

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que sentem de salvar as suas vidas, se negam a fazê-lo à custa dos ou-tros. Ele refere ainda: «(…) mas também se desenvolvia ali o respeito por esta natureza humana singular, fortalecida pela alma que encerra e que parece conter em si mesma algo de imortal.» Ainda que Pile-cki fosse um verdadeiro crente, este relatório não é em si próprio um legado de valores cristãos, mas antes uma chamada de atenção sobre virtudes humanas universais, as quais são subscritas por todos os cre-dos e religiões.

Contudo, ele expressa a sua raiva face ao estado de degradação a que o mundo teria chegado: «Extraviámo-nos, meus amigos, extraviá-mo-nos terrivelmente. O pior é não haver palavras que o descrevam… Gostaria de dizer que nos tornámos uns animais… mas não, estamos num nível diabolicamente inferior ao dos animais.» Ele reflete sobre qual dos mundos será pior: o campo, perverso, ou o mundo exterior, insensível e pardacento.

Embora seja cristão, Pilecki não deixa também dúvidas de que o fogo se deve combater com o fogo. Os kapos, de uma crueldade sem limites (tratava-se de prisioneiros com funções de «homens de con-fiança» ou supervisores do campo), os homens das SS e os informado-res eram abatidos sem dó nem piedade pelos prisioneiros do campo, na maioria das vezes no hospital. Ainda que Pilecki não o refira, a sua organização clandestina, a ZOW (Związeq Organizacji Wojskowych — União de Organizações Militares)6, mantinha de facto em funcio-namento uma espécie de tribunal.7 Era uma luta brutal pela sobrevi-vência, na qual os menos audaciosos, individualistas ou cobardes não tinham qualquer chance.

6 Por vezes, escrita Związek Organizacji Wojskowej (União da Organização Militar), o que parece menos lógico.

7 Muitos casos eram efetivamente revistos por alguns prisioneiros juristas para ga-rantir alguma aparência de legalidade.

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O episódio mais extraordinário aqui narrado será talvez o do fu-zilamento de aproximadamente duas centenas de jovens polacos que marcharam conscientemente ao encontro da morte, sem escolta, sa-bendo perfeitamente que o único resultado de qualquer tentativa para se rebelarem seria o de retaliações violentas contra as suas famílias. Apesar disso, Pilecki refere que, se esses homens optassem por resistir, a sua organização teria intervindo e lutado energicamente.

A obra empreendida por Pilecki é digna de consideração. Não ape-nas na criação de uma organização capacitada a ajudar as pessoas a sobreviver no campo, como também, através dos seus esforços, na re-aproximação entre os partidos políticos ali representados; tarefa nada fácil, dadas as tensões e animosidades existentes no período entre as duas guerras. Segundo ele refere sarcasticamente: «Era preciso mostrar diariamente aos polacos uma pilha de cadáveres polacos para que eles se reconciliassem…» Tendo em conta a sua posição bastante baixa na hierarquia militar e o facto de ser, politicamente, um completo desco-nhecido, trata-se de um feito notável e um testemunho do seu caráter.

A organização de Pilecki enviou ainda um conjunto de relatórios ao governo polaco exilado em Londres, através do Exército Nacional Po-laco (o Armia Krajowa, ou AK), denunciando as condições do campo, incluindo os gaseamentos em larga escala de judeus. A dimensão da violação de todos os princípios humanos e morais, por parte da Ale-manha nazi, é dada pelo facto de homens como Pilecki, que se encon-travam efetivamente ali e testemunhavam o que de terrível acontecia à sua volta, não abarcarem de início a enormidade e as proporções do crime que viria a ser conhecido como Holocausto. Talvez não seja de admirar que o mundo exterior demorasse a reagir às notícias.

No entanto, o relatório de Pilecki termina com uma nota de frus-tração, se não de raiva. Pilecki — que, deve recordar-se, tinha ido voluntariamente para Auschwitz — estava consternado por os co-

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mandantes do Exército Nacional e até mesmo os outros Aliados não se mostrarem dispostos a organizar qualquer ataque militar a Aus-chwitz, beneficiando da organização por ele criada: «Se houvesse um raide aéreo ou o lançamento de armamento… Nem nós nem os nossos Aliados colocaram tal hipótese — ou chegaram até a concebê-la.» De facto, ele sentia que se era mais ou menos indiferente ao sofrimen-to no campo, referindo o «contínuo, ignorante silêncio» do mundo.

Existe ainda uma ou outra observação algo depreciativa relativa-mente àqueles que tinham passado a guerra em acomodações menos hostis: «Então, havia pessoas valorosas que caminhavam para a morte ali [Auschwitz] e perdiam a vida para não prejudicar quem quer que estava lá fora, enquanto outros mais fracos do que nós nos chamavam esqueletos, com ar de indiferença.» Descreve também com algum me-nosprezo a sua reação às pessoas no mundo exterior, após a sua fuga: «Por vezes, sentia que vagueava numa grande casa e abria, de repente, a porta de uma sala onde havia unicamente crianças: “… ah, as crian-ças estão a brincar…”» Outro exemplo: «A fronteira entre a honesti-dade e a desonestidade comum tinha sido cuidadosamente esbatida.»

a Missão

A organização de Pilecki tinha três objetivos principais: o levan-tamento do moral, obtendo e fornecendo aos seus membros notícias do exterior e provisões complementares; o envio de relatórios acerca do campo; e a preparação do uma sublevação armada. A curto prazo, dedicava-se a ajudar os prisioneiros a enfrentar a sua terrível situação. Através de contactos bem posicionados, os homens eram destacados para equipas de trabalhos (kommandos, no calão do campo, já que a língua oficial era o alemão) mais acessíveis e dentro de portas, os do-entes levados para o hospital, a comida e roupas angariadas ou, para

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usar o vernáculo do campo, «organizadas». Segundo ele, no início de 1942, a organização tinha invadido — Pilecki usa o termo «conquis-tado» — todos os kommandos, à exceção de um.

Na verdade, a história de como um grupo destemido de prisionei-ros políticos8 conseguiu arrebatar, em todo o campo de concentração, as posições de topo inicialmente detidas por prisioneiros alemães de delito comum é extraordinária, mas ela não faz parte do relato de Pi-lecki. À medida que a guerra avançava, as autoridades alemãs enca-raram os prisioneiros políticos como mais competentes para gerir as complexidades administrativas de um vasto campo como Auschwitz do que os criminosos até então investidos dessas funções. Como Pile-cki salienta, até durante a sua estadia no campo as condições melhora-ram ligeiramente, por várias razões, das quais se destaca o decréscimo do controlo de poder por parte dos criminosos alemães.

Seja como for, a longo prazo, o objetivo da organização era o recru-tamento e a formação de um corpo de homens capaz de se sublevar e tomar o controlo do campo, a registarem-se circunstâncias favoráveis. Isso teria sido necessário se, por exemplo, as SS dessem algum sinal de tencionar liquidar todos os prisioneiros. Embora este grupo estivesse de facto a postos — e Pilecki indica que o grupo estava efetivamente preparado para ocupar o campo («há alguns meses que dispúnhamos da capacidade de assumir o controlo do campo, mais ou menos numa base diária») —, ele nunca recebeu auxílio do exterior, sem o qual as possibilidades de êxito eram escassas.

Pilecki tinha em mente uma operação terrestre, eventualmente apoiada pela Brigada de Paraquedistas Polaca a partir de Inglaterra, com a utilização de armas introduzidas no campo em paraquedas; po-rém, na altura, estas expetativas eram pouco realistas dada a localização

8 Na sua maior parte tratava-se de comunistas, de longe o grupo mais bem organi-zado nos campos.

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de Auschwitz. No entanto, ele tinha a perfeita noção de que qualquer ação prematura da sua parte teria repercussões assinaláveis no exterior do campo, em termos de retaliações locais, e, enquanto militar, não estava disposto a tomar uma decisão tão importante de motu proprio.

O Exército Nacional Polaco chegou realmente a planear um ata-que ao campo, mas nunca dispôs de força suficiente para avançar, cal-culando que apenas conseguiria manter à distância a guarnição das SS germânicas, com uma força de vários milhares,9 o tempo bastan-te para a saída em segurança de duas a três centenas de prisioneiros. Os restantes, talvez cerca de 100 mil, teriam de se desenvencilhar sozinhos, do que resultaria um massacre sangrento. Existia ainda a forte probabilidade de os alemães se vingarem na população polaca local. Todavia, a ideia de que os alemães pudessem querer liquidar os prisioneiros que restavam, à medida que o Exército Vermelho se aproximava, continuava a ser uma fonte de preocupação para o Exér-cito Nacional. No verão de 1944, o segundo-tenente Stefan Jasieński, um dos agentes polacos treinados pelo SOE (cichociemni,10 em pola-co), fez o reconhecimento da área em volta do campo, mas foi apa-nhado em setembro e levado para o campo. Embora haja dúvidas quanto ao seu destino, existem relatórios que o apontam como um sobrevivente de Auschwitz. Nunca se chegou a efetuar um ataque ao campo e as SS nunca concretizaram o massacre final dos prisio-neiros que restavam.

9 Em agosto de 1944, a guarnição das SS continuava a ter 3250 homens, havendo a pos-sibilidade de angariação de forças adicionais por parte dos alemães. O Exército Nacional não teria conseguido reunir mais do que umas escassas centenas de homens, no máximo.

10 O SOE — Special Operations Executive (Executivo de Operações Especiais) — foi uma organização britânica que operou durante a Segunda Guerra Mundial. Os cichociemni, corpo de paraquedistas polaco de elite, teve na base da sua criação as normas do SOE britânico. [N. da T. portuguesa]

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o HoMeM

Witold Pilecki nasceu a 13 de maio (ou 30 de abril, no calendá-rio antigo11) de 1901, numa família de polacos patriotas, em Olenets, uma pequena cidade de Carélia, próximo da fronteira finlandesa no que era então o império russo, depois da repartição da Polónia entre a Rússia, a Prússia e a Áustria, a partir do final do século xviii. Edu-cado em Wilno (atualmente, Vilnius) e Oryol, Pilecki familiarizou--se desde jovem com as organizações clandestinas polacas proibidas pelos russos, incluindo o movimento de escoteiros polaco. Mais tarde, participou em operações militares contra os bolcheviques na Guerra Polaco-Soviética de 1919-1920.

Em 1921, a falta de recursos levou-o a abandonar os estudos de Belas-Artes na Universidade Stefan Batory, em Wilno (na Polónia recentemente libertada), ingressando na Associação de Segurança Nacional (Związek Bezpieczeństwa Kraju), uma organização de ca-ráter meio voluntário, e ficando alguns anos ao seu serviço. Homem multifacetado, que escrevia poesia, pintava e tocava guitarra, Pilecki foi colocado no 26.º Regimento de Ulanos, em 1926, e promovido a segundo-tenente de cavalaria na reserva. Manteve-se neste posto até à sua promoção a primeiro-tenente, em novembro de 1941, quando estava em Auschwitz (um desvio na prática habitual do Exército Na-cional, que não promovia os homens que estivessem em campos), com a promoção final a capitão de cavalaria em fevereiro de 1944.

Durante a década de 1920, assumiu a gestão da pequena proprie-dade da sua família, localizada onde hoje fica a Bielorrússia, casando

11 O calendário juliano russo da pré-revolução (conhecido por calendário antigo) tinha 13 dias de atraso em relação ao calendário gregoriano no século xx. A Rússia bol-chevique adotou o calendário gregoriano em 1918, quando o dia 14 de fevereiro se se-guiu ao dia 31 de janeiro.

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com uma professora primária local, Maria Ostrowska, em 1931.12 Ti-veram dois filhos. Pilecki sentia uma grande atração pela área militar e formou uma unidade voluntária de cavalaria, a qual acabou por ser integrada nas forças regulares de combate, conjeturando-se que ele terá trabalhado em espionagem ou contraespionagem militar duran-te a década de 1930.

À semelhança de muitos polacos da sua geração, Pilecki era pro-fundamente patriota e católico, e parece ter estado afetivamente em sintonia com muitas das perspetivas do marechal Piłsudski, na prá-tica o líder da Polónia até à sua morte, em 1935. Embora nunca ti-vesse sido muito dado a questões políticas, Pilecki parece fazer eco de algum do desencanto de Piłsudski face aos políticos e ao processo democrático bastante atabalhoado que se desenrolou na Polónia no período entre as duas guerras.

Mobilizado em agosto de 1939, pouco tempo antes do ataque ger-mânico à Polónia, Pilecki combateu na sua unidade de cavalaria, ligada à 19.ª Divisão de Infantaria, derrotada pelos alemães a 6 de setembro. Em seguida, combateu em várias unidades até 17 de outubro, muito tempo depois da invasão soviética da Polónia, da queda de Varsóvia e da formação de um novo governo polaco no exílio, em Paris. Nessa altura, a unidade foi desmembrada.

Em novembro de 1939, em conjunto com um grupo de oficiais do exército e vários civis, Pilecki empenhou-se na constituição de uma organização militar de resistência clandestina: o TAP (Tajna Armia Polska — Exército Secreto Polaco). Regido por princípios patrióti-cos e cristãos, o TAP não tinha filiação partidária e, ao que se supõe, chegou a integrar entre oito a doze mil membros, até à sua fusão com a ZWZ (Związek Walki Zbrojnej — União para o Combate Arma-

12 Morreu em 2002, com 96 anos de idade.

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do) no final de 1941, a qual passou, em 1942, a ser mais conhecida por AK (Armia Krajowa — Exército Nacional)13.

Ao oferecer-se para ser preso e conduzido como prisioneiro para Aus-chwitz, de forma a cumprir a sua missão secreta para a resistência polaca, Pilecki introduziu-se deliberadamente numa batida feita pelos alemães a uma rua de Varsóvia, a 19 de setembro de 1940. Chegou a Auschwitz na noite de 21 para 22 de setembro, na segunda remessa de Varsóvia (a primeira fora efetuada em agosto), a coberto do nome falso de Tomasz Serafińsky — uma pessoa real que Pilecki não conhecia, mas cujos do-cumentos de identificação tinham sido encontrados num «esconderijo» em Varsóvia no qual Serafińsky tinha estado e que ele estivera a usar. Malgrado as terríveis condições do campo e os imperativos de se man-ter alerta e com vida, Pilecki não tardou a procurar outros prisioneiros, membros do TAP, para formar o núcleo da sua nova organização.

Servindo-se do TAP como modelo, a sua organização em Aus-chwitz, a ZOW (Związek Organizacji Wojskowych — União de Or-ganizações Militares), foi construída de acordo com o princípio das «células», ou o que Pilecki designava por «quintetos» (por vezes, um «quinteto» tinha mais de cinco membros). Os «quintetos» operavam independentemente uns dos outros para ser impossível um indivíduo denunciar a organização inteira, na eventualidade de os alemães apa-nharem alguns membros e os torturarem. As «células» iam recrutando mais «quintetos», os quais, por sua vez, se encarregavam de recrutar outros. Pilecki constituiu o seu «quinteto do topo», conforme lhe cha-mava, no início de outubro de 1940.

Existe alguma controvérsia sobre o momento em que ele terá cria-do o segundo «quinteto de topo». Em junho de 1943, imediatamen-

13 É curioso notar que o Exército Nacional utilizava com frequência o acrónimo PZP (Polski Związek Powstańczy — Organização Insurrecional Polaca) para ocultar a sua identidade.

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te a seguir à sua fuga, Pilecki referiu ter sido em novembro de 1940, enquanto mais tarde, nesse mesmo ano, e em 1945, indica o mês de março de 1941. Forma, em seguida, o terceiro «quinteto de topo», em maio de 1941, o quarto em outubro do mesmo ano e o quinto em novembro. Verificam-se algumas discrepâncias relativamente aos membros destes «quintetos de topo» em alguns dos próprios relatos de Pilecki, a par de outras fontes. Contudo, uma prova cabal da efi-cácia da sua estrutura reside no facto de o próprio Pilecki nunca ter sido apanhado ou mesmo identificado pelas autoridades do campo como o fundador da ZOW.

A organização começou quase de imediato a enviar informação acerca das condições de Auschwitz às autoridades da resistência po-laca. As primeiras informações de Pilecki seguiram em outubro de 1940, através de um prisioneiro libertado, acabando por chegar ao governo polaco no exílio, em Londres, em março de 1941. De facto, foi a organização de Pilecki que forneceu às autoridades no exterior da Polónia informação sobre o tratamento desumano dos prisioneiros de guerra soviéticos em Auschwitz e o início do assassínio em massa de judeus, o Holocausto, em Birkenau/Brzezinka, informação que o governo polaco no exílio passava posteriormente aos outros aliados. Nas suas mensagens, Pilecki pressionava a resistência polaca a atacar Auschwitz, mas nunca recebeu qualquer resposta a este pedido.

A par da dimensão militar e solidária do seu trabalho, Pilecki, que valorizava o caráter apolítico da sua estratégia, conseguiu contribuir para a formação, nos finais de 1941, de um comité político abarcando cada um dos diversos agrupamentos representados no campo: uma conquista notável, tendo em conta as animosidades remanescentes do período antes da guerra e as condições dominantes no campo. Ao ser acusado, posteriormente, por outros prisioneiros, de criar uma or-ganização para alimentar o próprio ego (uma crítica completamente

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injustificada), Pilecki passou o comando da ZOW ao comandante do grupo ZWZ/AK no campo, o tenente-coronel Kazimierz Rawicz, que se encontrava ali sob o nome falso de Jan Hilkner.

Por fim, preocupado com o facto de muitos polacos de valor terem sido enviados para outros campos e de as autoridades da resistência polaca parecerem fazer orelhas moucas às suas insistências para aju-darem à libertação do campo, Pilecki foge em abril de 1943, através da padaria do campo, acompanhado de dois outros prisioneiros, com o intuito de defender pessoalmente a sua causa. Os comandantes lo-cais e regionais da AK, descrendo da sua história, não se mostraram dispostos a aceder ao seu apelo para atacarem o campo e libertarem os prisioneiros.

Mais tarde, Pilecki ingressa no Alto Comando da AK, em Varsóvia, torna-se membro da organização anticomunista de agentes infiltrados, a NIE (Niepodległość — Independência), cujo objetivo era atuar face à chegada do Exército Vermelho, e combate com bravura na Revol-ta de Varsóvia de 1944.14 Feito prisioneiro pelos alemães, permanece algum tempo nos campos para prisioneiros soviéticos de Lamsdorf e Murnau, após o que se alista no 2.º Corpo do Exército Polaco, em Itália. É aí que escreve o Relatório de 1945, e é daí que parte para a sua fatídica missão na Polónia.

* * *

Pilecki empreendeu a sua missão no campo com uma determina-ção surpreendente. Embora fale abertamente sobre os seus amigos, não menciona a mulher e os filhos uma única vez, e é difícil saber, com base no relatório, onde estes se encontravam durante o seu tempo de

14 Não confundir com a Revolta do Gueto de Varsóvia.

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detenção ou se os contactou após a sua fuga. Alude apenas à família em referências breves, no tocante às encomendas que chegavam, ao receio de que os familiares pudessem negociar a sua saída de Aus-chwitz, numa altura em que ainda se concentrava na construção da sua rede de resistência, e às cartas que lhes enviava de tempo a tempos.

Esta concentração no que Pilecki considerava ser a luta existen-cial pela sobrevivência da nação polaca é o âmago de um dilema mo-ral terrível, o qual muitas pessoas com família e que optaram por se juntar a movimentos de resistência enfrentaram inquestionavelmen-te. Deviam elas envolver-se em atividades que poderiam colocar os seus entes queridos em risco? Não existe, obviamente, uma resposta correta, e creio que todos nós, no aconchego retrospetivo das nossas poltronas, não estamos em posição de julgar estas pessoas de uma ma-neira ou de outra. Elas fizeram o que sentiram ser correto na altura, e cabe-nos apenas admirá-las por chegarem até a colocar a questão. Como seria mais fácil limitarem-se a curvar a cabeça e a seguir a via tranquila da obscuridade anónima…

Não foi esta a opção de Pilecki. De facto, a partir do momento em que ele se voluntariou a ir para Auschwitz para criar ali um movimen-to de resistência, era improvável que se sentisse alguma vez inclinado a levar uma vida de compromisso tácito. Em última análise, foi este traço de caráter que conduziu ao desfecho trágico da sua vida, o qual, embora extravase o âmbito do relatório, é essencial para o conheci-mento do homem na sua globalidade.

Após a guerra, Pilecki, tal como a maioria dos polacos, opunha-se ao regime comunista e ateu imposto à Polónia pelos soviéticos. Por esse motivo, em 1945, ele assumiu uma missão que englobava a cooperação com as organizações de resistência anticomunistas no seio da Polónia e a transmissão de informações ao general Władyslław Anders, co-mandante do 2.º Corpo do Exército Polaco sob o comando britânico,

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que se destacava como o líder dos polacos a ocidente. A mulher e os filhos estavam a viver na Polónia e era possível a Pilecki contactá-los. Ao ignorar as ordens de Anders para deixar a Polónia, no momento em que se tornou claro que as autoridades comunistas andavam de olho nele, Pilecki acabou por ser detido a 8 de maio de 1947 e tortu-rado pela polícia secreta polaca, referindo posteriormente a um fami-liar, que o visitara na prisão, que Auschwitz era uma brincadeira de crianças (igraszka) em comparação com o seu tratamento às mãos dos compatriotas treinados pelos soviéticos.

Acusado de espionagem e de preparar ataques armados a membros da polícia secreta polaca, acusações que negou veementemente, Pilecki foi julgado por um tribunal militar, condenado e, finalmente, execu-tado na prisão Mokotów, na rua Rakowiecka, em Varsóvia, ao entar-decer do dia 25 de maio de 1948… pelos seus próprios compatriotas.

É difícil imaginar um final mais terrível para uma vida, à qual tal-vez as comoventes palavras de S. Paulo a S. Timóteo sejam o epitáfio que melhor se ajusta:

Combati o bom combate,Terminei a minha carreira,

Guardei a fé.

A última morada de Pilecki é desconhecida. Ele foi completamen-te ilibado a título póstumo, na década de 1990, e é considerado uma figura heroica na Polónia contemporânea.

— Jaroslaw Garliński

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C a r t a d e a p r e s e n t a ç ã od o c a p i t ã o Wi t o l d P i l e c k i

a o m a j o r - g e n e r a lTa d e u s z P e ł c z y ń s k i

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C a p í t u l o

Excelentíssimo Senhor,

Entrego-lhe o meu manuscrito, dada a impossibilidade de o

levar comigo15 e porque os oficiais superiores e dirigentes das

nossas forças de resistência na Polónia podem considerar in-

teressantes estes dados relativos a uma área de atividade do

Exército Nacional completamente desconhecida. Recebi uma

proposta para a sua publicação na América, por uma quantia

bastante apreciável, mas, por enquanto, ainda estou a ponde-

rar o assunto, visto não ter disponibilidade para lhe aperfei-

çoar o estilo e ainda porque sentiria remorsos de o vender a

troco de dinheiro. Houve quem pretendesse ficar com ele; con-

tudo, penso que a atitude correta é depositá-lo nas suas mãos,

General. Talvez alguém em Londres possa considerá-lo igual-

mente interessante. Peço-lhe que não o encare como (exclusi-

vamente) algo sensacionalista, já que estas são experiências

ao mais alto nível de um grupo de polacos honestos. Nem tudo

está aqui descrito, pois não era possível fazê-lo num espaço de

tempo tão curto. Nada foi «exagerado»; até a mais ínfima das

mentiras profanaria a memória daquelas pessoas valorosas que

ali perderam as suas vidas.

Tomasz de Auschwitz,

Capitão de Cavalaria Witold,

que o contactou há alguns dias.

19 de outubro de 1945

15 Supõe-se que ele tencionava regressar à Polónia, na sua fatídica missão final.

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C a p í t u l o

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C a p í t u l o

VERÃO DE 1945

Devo registar os factos em toda a sua objetividade, que é

aquilo que os meus amigos pretendem que faça.

Disseram-me eles: Quanto mais te cingires aos factos con-

cretos, sem qualquer espécie de comentário, mais valioso será

o documento.

Bom, vou começar… Mas devo dizer desde já que não éra-

mos feitos de madeira, muito menos de pedra, ainda que por

vezes parecesse que até uma pedra se teria coberto de suores.

Por isso, aqui e ali, irei intercalando estes factos com uma

reflexão para mostrar o que se sentia.

Ignoro se isso deverá, por definição, retirar valor ao relato.

Não se era de pedra, embora eu o desejasse frequentemen-

te; ainda se conservava um coração a pulsar, por vezes nas

mãos, e sem dúvida que às voltas na cabeça existiam pensa-

mentos estranhos que eu abarcava por vezes com dificuldade…

Julgo ser necessário inserir uma ou duas frases ocasionais

em relação a isto, para que o quadro apresentado seja verda-

deiramente real.

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O Vo l u n t á r i o d e A u s c h w i t z

a u s C H W i T Z E a r r E d o r E s

M Representação esquemática de Auschwitz e arredores datada de 1944, feita a par-tir de uma fotografia aérea do campo, obtida pelas unidades de reconhecimento dos Aliados em agosto de 1944.

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s E T E m b r o d E 1 9 4 0

É dia 19 de setembro de 1940 — data da segunda batida às ruas em Varsóvia.

São poucos os que estão vivos e me viram sozinho, às seis da manhã, à esquina da Aleja Wojska com a rua Felińskiego a juntar-me aos «quintetos» de homens detidos e feitos prisioneiros pelas SS.

A seguir, na Plac Wilsona, colocaram-nos em camiões e conduzi-ram-nos aos quartéis do regimento de cavalaria ligeira.

Naquelas instalações provisórias, depois de sermos desapossados dos nossos pertences, aliviados de objetos pontiagudos e ameaçados de fuzilamento caso nos encontrassem nem que fosse uma lâmina de barbear, fomos conduzidos ao picadeiro da escola onde permanece-mos nos dias 19 e 20.

Durante esses dias, a cabeça de alguns travou conhecimento com o bastão de borracha. No entanto, isto encontrava-se mais ou me-nos dentro dos limites aceitáveis para quem estava habituado a tais métodos de manutenção da ordem por parte dos guardiães da paz.

Enquanto isso, algumas famílias compravam a liberdade dos seus entes queridos, pagando às SS exorbitantes quantias em dinheiro.

À noite, dormíamos lado a lado sobre o chão. O picadeiro era ilu-minado por um grande holofote instalado à entrada. Os homens das

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SS posicionavam-se a cada um dos quatro lados com armas automá-ticas. Ao todo, éramos cerca de mil e oitocentos.

O que mais me deixava verdadeiramente irritado era a passividade daquele grupo de polacos. Todos os detidos ostentavam já sinais da psicologia das multidões, daí resultando que o nosso grupo se com-portava todo como um rebanho submisso.

Um único pensamento não parava de me importunar: agitar toda a gente e pôr aquela massa humana em movimento.

Sugeri ao meu camarada Sławek Szpakowski (que sei ter vivido em Varsóvia até à revolta)16 uma operação conjunta durante a noite: assu-mir o controlo do grupo e atacar os postos de sentinela, enquanto eu, a caminho da retrete, «chocava» com o holofote e o partia em bocados.

Contudo, eu tinha um motivo diferente para estar ali. Este teria sido um objetivo muito menos importante. Enquanto ele considerou a ideia uma completa loucura.

Na manhã do dia 21 fomos metidos em camiões e, sob a escolta de motociclos e armas automáticas, transportados à estação de caminho de ferro ocidental e enfiados em vagões de mercadorias. Os vagões ferroviários deviam ter sido usados para o transporte de cal, porque o chão estava coberto dela.

Os vagões foram fechados. Viajámos o dia inteiro. Não nos davam nada para comer ou beber. De qualquer forma, ninguém tinha vontade de comer. No dia anterior, haviam distribuído entre nós algum pão, o qual ainda não sabíamos como comer ou apreciar. Tínhamos ape-nas muita sede. A cal, ao agitar-se, desfazia-se em pó. Este invadia o ar, irritando-nos o nariz e a garganta. Não tínhamos nada para beber.

Através das frinchas das tábuas que cobriam as janelas, víamos que estavam a levar-nos em direção a Częstochowa.

16 Pilecki refere-se à Revolta de Varsóvia de 1944, não à Revolta do Gueto de Var-sóvia de 1943.

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Por volta das 22h00, o comboio parou num sítio qualquer e não tornou a avançar. Ouvíamos gritos e berros, os vagões a serem aber-tos e cães a ladrar.

Considero este ponto da minha história como o momento em que me despedi de tudo o que conhecera até então neste mundo e entrei em algo que parecia deixar de lhe pertencer. Não se trata de uma ten-tativa da minha parte de recorrer a palavras ou a termos fora do co-mum. Bem pelo contrário: acredito não ser necessário tentar utilizar qualquer palavrinha bonita ou irrelevante.

É assim que era.Fomos atingidos na cabeça não só pelas coronhas das armas das

SS, mas também por algo muito maior. Os nossos conceitos da lei e da ordem, e daquilo que era normal, e todas as ideias com que nos tí-nhamos familiarizado neste mundo levaram um pontapé brutal.

Tudo acabou.O objetivo era atingir-nos com a maior dureza possível. Dobrar-

-nos do ponto de vista psicológico, e quanto mais depressa melhor.Pouco a pouco, a agitação e a gritaria aproximavam-se. Por fim, as

portas do nosso vagão foram abertas com violência. O clarão das lu-zes entrou, deixando-nos cegos.

— Heraus! Raus! Raus!… [Saiam! Saiam! Saiam!…] — Os membros das SS investiam sobre nós com epítetos e coronha-das nos ombros, costas e cabeça. O objetivo era sair tão depressa quanto possível.

Dei um salto para fora, conseguindo de alguma maneira escapar à agressão, e reuni-me aos «quintetos» no centro da coluna. Um grupo maior de homens das SS agredia, pontapeava e berrava:

— Zu fünfen! [Em filas de cinco!]Os cães, atiçados pela tropa enlouquecida, investiam sobre os que

estavam fora da coluna.

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O Vo l u n t á r i o d e A u s c h w i t z

Encadeados pela luz, empurrados, agredidos, pontapeados e acos-sados pelos cães, descobrimos inesperadamente estar numa situação que duvido ter sido alguma vez vivida por qualquer um de nós. Os mais frágeis estavam de tal modo esmagados que se limitaram a cair num estado letárgico.

Intimaram-nos a seguir em direção a um feixe de luz maior. No caminho, um de nós recebeu ordens para correr até um poste ao lado da estrada; foi seguido por uma explosão de rajadas das armas auto-máticas e ceifado. Uma dezena de homens arrastados das fileiras à sor-te foram abatidos à pistola pela «responsabilidade coletiva» da «fuga» que as próprias SS tinham encenado.

Os onze foram então arrastados, atando-se umas correias às per-nas. Excitados pelos corpos ensanguentados, os cães atiraram-se a eles.

Tudo isto acompanhado de risadas e escárnio.Aproximámo-nos de um portão numa cerca de arame farpado, so-

bre o qual se via o letreiro Arbeit macht frei [«O trabalho liberta-te»].Só mais tarde aprendemos a interpretá-lo convenientemente.Atrás da cerca despontavam fileiras de barracas de tijolo, entre as

quais se distinguia um grande recinto de parada. Ao passarmos entre as fileiras de soldados das SS mesmo à frente do portão tivemos um pequeno interlúdio de paz. Os cães foram afastados e recebemos or-dens para nos reunirmos em grupos de cinco. Ali, fomos cuidadosa-mente contados, com os corpos arrastados a serem adicionados no final.

A alta, nessa altura somente, cerca de arame farpado e a entrada cheia de homens das SS faziam-me recordar, de alguma maneira, um provér-bio chinês lido algures: «Ao entrares, pensa no regresso, e estarás ínte-gro quando partires…» Um sorriso de ironia assomou de algum ponto dentro de mim e morreu… Ali, isso não ia servir para grande coisa…

No interior do arame farpado, no grande recinto da parada, depa-rámos com uma visão bem diferente. Sob a luz algo fantasmagórica

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a alastrar-se sobre nós, vinda dos projetores que nos rodeavam por todo o lado, avistámos seres parecidos com pessoas, mas cujo com-portamento era mais o de animais selvagens (não tenho dúvidas em considerar animais neste ponto, ainda não existe uma palavra na nossa língua para estas criaturas). Envergavam uns trajes estranhos às ris-cas, como os que vira nos filmes de Sing Sing, com o que a luz bruxu-leante fazia parecer medalhas em fitas coloridas, armados de bastões, a atacar os nossos camaradas, rindo selvaticamente, agredindo-os na cabeça, arremessando-os ao chão com pontapés nos rins e em outras zonas sensíveis, saltando-lhes com as botas sobre o peito e a barriga, a lidar com a morte com um riso bizarro.

Trouxeram-nos para um asilo de loucos! O pensamento passou-me vertiginosamente pela cabeça. Que diabólico! Continuava a raciocinar em categorias terrenas. Aquelas eram pessoas apanhadas numa batida na rua e, por conseguinte, mesmo na perspetiva da mente germâni-ca, sem estarem acusadas de qualquer crime contra o Terceiro Reich.

As palavras de Janek W. [ Jan Włodarkiewicz], ditas após a pri-meira batida de agosto em Varsóvia, iluminaram-me o pensamento. Vês, perdeste uma grande oportunidade, as pessoas apanhadas numa ba-tida não são acusadas de qualquer crime político; é a maneira mais segura de se ir para um campo.

Como éramos ingénuos naquela Varsóvia longínqua em relação aos polacos enviados para os campos…

Ali, no terreno, não era preciso ser-se «político» para morrer. Eles matavam quem quer que estivesse à mão.

Para começar, houve uma pergunta disparada em alemão por um homem de fato às riscas e de bastão na mão:

— Was bist du von zivil? [Tu aí, qual era a tua profissão?]Naquela altura, responder «padre», «juiz» ou «advogado» equivalia

a ser-se espancado até à morte. Ao ser interpelado, o tipo que estava

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na fila à minha frente respondeu em alemão «richter» [juiz], enquanto o puxavam pelo colarinho.

Aquele foi um erro fatal. Passados momentos, estava no chão a ser desancado e pontapeado. Portanto, eles faziam o que lhes era possível para aniquilar as classes profissionais.

Depois de observar aquilo, o que eu pensava mudou de certa forma. Se calhar, aquela insanidade obedecia a um método e aquela era uma forma terrível de assassinar os polacos, a começar pela elite intelectual.

Tínhamos uma sede desesperada. Apareceram uns cântaros com um líquido qualquer. Os mesmos assassinos de fatos às riscas percor-reram as nossas fileiras com canecas cheias, a perguntar:

— Qual era a tua profissão?Obtínhamos o almejado líquido, referindo algum trabalho ou arte

manual. Entre agressões e pontapés, por vezes, estes estranhos «semi--humanos» vociferavam:

— Hier ist KL Auschwitz, mein lieber mann! [Meu caro senhor, este é o Campo de Concentração de Auschwitz!]

Interrogávamo-nos mutuamente sobre o que aquilo quereria di-zer. Alguns sabiam que correspondia a Oświęcim, o que para nós era apenas o nome de uma pequena cidade polaca, já que a fama terrível do campo ainda não conseguira chegar a Varsóvia, nem era conheci-da em termos mundiais.

Só algum tempo depois esta simples palavra haveria de gelar o san-gue nas veias dos homens e afugentar o sono dos olhos dos prisionei-ros nas prisões de Pawiak, Montelupich, Wiśnicz e Lublin.

Um de nós referiu que estávamos nos quartéis do 5.º Regimen-to da Artilharia a Cavalo, próximo da pequena cidade de Oświęcim.

Constatámos que éramos um zugang [recrutamento] de bandidos, que andava a atacar a pacífica população germânica, e que nos prepa-rávamos para receber ali o nosso justo castigo.

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I

P Witold Pilecki em 1922.

P Casa Sukurcze, onde vivia a familia Pilecki.

O Witold Pilecki em 1920.

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II

M Witold Pilecki com os jovens do distrito de Lida num encontro em Varsóvia, na década de 1930.

O Witold Pilecki em Vilnius, em 1923.

O Witold Pilecki em 1930.

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III

O Witold Pilecki, ao comando de uma parada de cavalaria em Lida.

M Witold Pilecki com a sua mulher, Maria, e o seu filho Andrzej, em Ostrów Mazowiecka, 1932 ou 1933.

P A familia Pilecki em 1934 — Witold, Maria, Zofia e Andrzej.

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IV

Pormenor do retrato de Pilecki enquanto prisioneiro em Auschwitz.

IV

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V

M «O meu número era o 4859. Os dois 13 (soma dos dois digitos exteriores e interiores) convenceram os meus camaradas de que eu ia morrer; mas os números deixaram-me animado.»

M Segundo-tenente Witold Pilecki (sentado, à esquerda) com o major Jan Wlodarkiewicz, comandante do TAP (Tajna Armia Polska — o Exército Secreto Polaco).

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VI

M Os prisioneiros dos campos de concentração nazis (aqui, numa chamada de pre-sença em Buchenwald) eram identificados pelos uniformes prisionais às riscas azuis e brancas. Nesta fotografia também são visiveis os winkels, emblemas triangulares e coloridos que eram cosidos à esquerda do peito e na perna direita das calças, debaixo dos quais se via o número do prisioneiro escrito a preto.

Os primeiros reclusos de Auschwitz tatuados com o número no corpo foram os prisioneiros de guerra soviéticos, no outono de 1944, sendo, a partir dai, tatuados todos os novos prisioneiros não selecionados para morte imediata. Apenas a partir da primavera de 1943 se deu inicio ao programa de tatuagem dos prisioneiros iniciais.

O As boas-vindas a todos quantos chegavam ao campo principal de Auschwitz eram dadas pelo letreiro Arbeit macht frei («O trabalho liberta-te»).

P Secção da cerca dupla eletrificada em redor de Auschwitz.

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