O Voo da Estirpe

11

description

Capítulo I

Transcript of O Voo da Estirpe

C

Ccapítulo 1 o que se tem para hoje

O Q U A R T O E S T A V A S O M B R I O .

A escuridão chegava a fazer sons em meu ouvido. Em pou-cos segundos fui tragada completamente para algum lugar desco-nhecido. Demorei a identificar o que estaria acontecendo. Com dificuldades em respirar, algo me impedia de mexer o rosto e cau-sava mal estar. Percebi-me sendo sufocada pelo travesseiro. Alguém entrou em meu quarto e tentava me matar.

Retorci o tórax e, com as mãos livres, debatia-me na cama quase desfalecendo, engolindo o próprio sangue que descia pela garganta. Por um ato de misericórdia, o meu assassino soltou o tra-vesseiro. Tive medo de encarar o tirano e ser surpreendida por novas tentativas de tortura. Em um ímpeto de sobrevivência, levantei da cama e passei a correr, saindo pelas calçadas escuras. Escutava seus passos atrás de mim. A distância entre nós era curta, estava quase me alcançando. Tropecei algumas vezes, levantando-me pela von-tade de conseguir escapar. Sem perceber o rumo tomado, fui parar em frente ao penhasco paradisíaco da cidade, logo atrás de mim, o assassino misterioso querendo me matar.

S

16o voo da estirpe | adriana vargas de aguiar

De longe um clarão, alguém havia escutado meu grito e veio ao meu socorro. Ao se aproximar, por mais que tentasse me ajudar, algo o impedia como se estivesse tentando subir em uma escada rolante que corria para a descida. Olhei-o pela última vez, era um moço alto que usava um paletó marrom. Seus olhos transpareciam impotência. Ele gritava algo que eu não ouvia. O assassino se pre-parava para a minha rendição. Encurralada e com duas alternativas a escolher, saltei do penhasco com o coração cheio de vida e medo.

Acordei transpirando por inteira. As veias pulsavam firmes parecendo rasgar a pele. Senti alívio por ter acordado viva e ver que tudo era somente um pesadelo. Estive escrevendo o conto que entregaria amanhã de manhã ao jornal local, antes de adormecer. Levantei-me da cama e perambulei pela casa com intenção de encontrar meu álibi que argumenta o quanto viver é bom. Olhei pela vidraça, ainda era dia. De longe se avistava a chuva que vinha dançando em ritmo frenético. Meus olhos alcançavam a energia que saltitava dos pingos ligeiros na folhagem do jardim. Eu não sentia o cheiro, mas imaginava que ele se comparava ao que minha mãe cozinhava durante a semana sem imaginar que comer beter-raba era bom para tantas outras coisas e poderia ser a receita santa de minha libertação.

Olhei mais uma vez pela vidraça e vi um pequeno pássaro se escondendo num cacho verde na árvore do jardim. Nele, vi-me, tentando me esconder da realidade nua e crua do mundo, das qualidades e defeitos que reconheço como parte do meu pacote de sobrevivência. Meu gato, que responde pelo nome de Ninchi, passou por mim, esfregando-se em minhas pernas, reivindicando sua ração. Abri a porta que saía para o singelo jardim nos fundos da casa. O jardim estava abandonado; crescendo erva daninha entre as plantas que minha mãe cuidava com tanto zelo. Aquele era o cenário atual de minha vida, por dentro e por fora.

17livro i | caminhos para a libertação

Por entre o mato que cobria o jardim, uma roseira viva. De repente, uma surpresa, um botão de rosa se abrindo lin-

damente de cor vermelha. Quase chorei. Era a esperança que eu precisava para entender que dentre os destroços sempre existirá algo que animará o recomeço. Senti vontade de colher a flor, mas em vez disso, peguei a enxada e o rastelo e passei a limpar o jardim. Em pouco tempo cresciam bolhas em minhas mãos. A falta de compromisso doméstico acomodara-me na preguiça e desleixo.

Eu gosto de estar só, mesmo que isso pareça triste. Talvez eu seja mimada, mas prefiro garantir à minha mãe que eu continuaria na missão de não me contrariar. Este é meu porto seguro, a raiz de minha imaturidade – disfarce de criança órfã que optou em per-manecer na zona de conforto. A coragem viria com o desespero e obrigação de sobreviver aos meus sentimentos, porque viver é apenas para quem aprendeu a voar.

Ao terminar meu trabalho no jardim, fui para o banho limpar a sujeira que havia dentro de mim. Já tinha conseguido retirar a terra por debaixo das unhas, mas a sensação de mal estar ainda continuava. Compreendi que os entulhos de terra além de estarem embaixo das unhas impregnaram nas valetas da alma.

Saí do banho com uma sensação musical entre os fusos horá-rios de meus órgãos, cada um funcionando de um modo diferente. Fui até a herança da família, a vitrola antiga de mogno que ainda tocava os velhos discos de vinil. Era uma lembrança nostálgica que um dia foi importante para animar as festas tímidas da adolescência de minha avó. Coloquei um disco tipicamente country romântico, um clássico americano da década de 60. Não gosto de country, mas era o que tinha para hoje. Servi-me de uma taça com água tônica e gelo, alguém disse que isso substitui perfeitamente o desejo de se embriagar. Era também, o que tinha para hoje.

18o voo da estirpe | adriana vargas de aguiar

A música continuava tocando com seus tons evocados pelo ar, insistentemente triste e cafona. Algo peculiar me irritava naquela melodia, pois me identifiquei prontamente com o que achava ridí-culo em sua tristeza contida – esta era a expressão do som emanado de dentro do vinil.

Estava ávida por dançar. Imaginei o country se transformando em um blues adornado por uma gaita chorosa e reinventei um novo fim para a música infeliz. Elevei o copo como se fosse uma mão a segurar a minha e me pus a ensaiar os primeiros passos tímidos, para lá e para cá. Era ridículo, mas como já disse, era o que tinha para hoje. E que dure até me esvaziar da obsessão por uma gota de algo que me preencha sem que eu mereça sofrer por isso, porque no fundo, só queria me sentir feliz.

O motivo pelo qual estava em minha sala dançando com uma taça de água tônica pouco importava, pelo menos pude me sentir uma rainha inventada por alguns instantes: tudo estava ali para me servir.

Fechei os olhos e me deixei ser levada pela voz feminina que já não soava mais com gritos apelativos e, sim, como alguém que tentava me ninar.

Poderiam estar aqui, as pessoas mais importantes de minha vida. Quem? Minha mãe? Será mesmo que ela supriria a solidão enraizada em meus axiomas com a minha cabeça em seu colo, querendo entrar em seu útero novamente para me esconder do mundo aqui fora? A solidão hoje é a ausência de mim mesma. Eu sou a pessoa mais importante em minha vida.

Como vou me sentir só, sem ao menos sentir medo de estar só? Quanto aos outros? Eu só falo por mim, que fujo de rodinhas de curiosos que me questionam sobre como me sinto morando so-zinha há tanto tempo. Digo com segurança, sinto-me bem, gosto de estar assim! Controversa – a fria taça de água tônica substituiu

19livro i | caminhos para a libertação

a mão ausente por falta de opção. Não digo isso enfatizando a falta da mão de uma pessoa importante e, sim, a pessoa que se tornaria importante se estivesse aqui.

Continuo dançando irritada, quase infantil, com os pés deslizando no tapete da sala. A irritação se prolongou até que cessassem os últimos pingos de chuva. O céu se tornou sombrio, parecia um humano em depressão. As nuvens eram os olhos que choravam por saber que sou alguém que limpa incessantemente esta casa para ninguém sujar.

Não limparei a casa com álcool, nem passarei mais o tempo todo sorrindo com um sorriso de cristal comprado em lojas popu-lares de R$ 1,99. Se tiver que sorrir, que seja com o meu sorriso. Se tiver que chorar, chorarei com lágrimas de verdade em qualquer lugar que couber a minha dor.

Com o queixo sobre o tapete e cabelos cacheados no rosto, lágrimas são permitidas escorrerem pelo rosto lânguido e insólito. Eis, a chuva santa! Internamente me perdoando por ser obcecada por resultados que acredito me pertencerem.

Quando eu amar através das escolhas feitas pelo coração, talvez tenha tempo de sorrir. Pensarei nos tendões do estranho chegando, a festa se inicia com a manifestação que a palavra amor guardou para ser descoberta em um momento especial. O momento em que o outro me amará através do amor que ver em mim, por mim mesma.

O dia está findando, já escurecera. Tenho a sensação de que o ser amado baterá à minha porta se apresentando, pedindo des-culpas pelo atraso, fazendo promessas. Perderá as suas chances de sair como o vilão da história. Estaria acorrentado à cerca do meu conhecimento quanto a seu rosto, voz e nome. Por que em vez de me instigar, não vem se deitar comigo? Serei as mãos curiosas a inventar as bocas que consigo distinguir uma das outras com o afã

20o voo da estirpe | adriana vargas de aguiar

de beijá-lo, o cuidado para evitar sufocá-lo no exagero descompas-sado da carência.

Vou me justificar, dizendo que sou imperfeita. Uma heroína feita de material humano sujeita a sentimentos mesquinhos e falí-veis. Como posso impedir que o sentimento de vingança se instale em mim? Alguém teria que pagar por minha solidão. Tenho dois caminhos: esqueço e me proponho a perdoar o culpado anônimo, ou permito que este ressentimento me guie.

Não faço isso por você, estranho. Faço isso por mim, que mereço viver e ser feliz. Levanto do tapete e abro a porta para a noite começar. Hoje estou perigosa para a humanidade. A vigi-lância pública deveria impedir-me de sair pela noite do modo como me encontro. Bêbada de meus sentimentos, saio à caça de emoções. Os botequins cheios; algumas prostitutas nas calçadas e lobos ferozes dentro dos carros que seguem em velocidade lenta à procura de sua presa.

O sapato me incomoda, restringe minha liberdade e machuca os pés, retiro-o e carrego nas mãos.

Ao acabar de pensar, estacionou um carro ao meu lado. Continuo a caminhar. A pessoa insiste e atravessa o carro na rua, subindo pela calçada, tentando me impedir de prosseguir a cami-nhada. Dou a volta por trás do carro e prossigo irritada. O motorista sai do carro, bate a porta e segura em meu braço

— Ei! Para onde vai com tanta pressa? – suas mãos são fortes e me machucam. Tento escapar sem olhar no rosto dele e ele me detém.

— Solte-me! E solte agora! – disse quase ordenando. Ele gargalhou e tentou me arrastar para dentro do carro.

— Venha, belezinha, venha com o papai. – seu hálito de bebida enjoava meu estômago. Passei a arranhá-lo na mão que me prendia e relutei com as pernas para resistir a sua força que me

21livro i | caminhos para a libertação

vencia. — Olha que beleza, uma gata selvagem. Ah! Então você gosta com violência? – falando isso, passou a puxar o meu cabelo e engravatou-me o pescoço.

Não sabia de onde tirar forças para podá-lo. À medida que apertava meu pescoço, eu sentia a vista escurecer. A sorte é que sou mais alta que ele, e minhas pernas possuem a força de um mino-tauro. Flexionei a perna para frente buscando arranque e, com o calcanhar, atingi o seu testículo. Ele me soltou.

— Sua ordinária! – ele se agachava e tentava me seguir. Saí correndo, deixando meus sapatos para trás.

Ofegante, cheguei a minha casa. Ao trancar a porta, em vez de chorar, ou me odiar no canto da sala, ri de minha vulnerabili-dade pela busca de emoções fortes. Como pode uma pessoa ser tão inconsequente? Fui para o banho pensando que aquele dia já havia bastado para uma louca só.