O voz do outro

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O VOZ DO OUTRO: A REPRESENTAÇÃO NO DOCUMENTÁRIO E CRIAÇÃO DE BIOGRAFIAS VISUAIS Kamyla Faia Maia Bacharel em Comunicação Social- Jornalismo pela UFG Especialista em Cinema e Educação- IFITEG RESUMO A presente análise busca mostrar as contradições na forma com que os documentaristas retratam o outro de classe, indivíduo que geralmente se encontra em posição inferiorizada em relação ao realizador. Com isso o artigo tenta mostrar de que maneira o fazer documentário tem evoluído em termos estéticos e éticos, deixando a mera utilização de “personagens” para comprovar um discurso pré-estabelecido e alcançando a representação mais fiel de diferentes personalidades. Por meio desta evolução pretende-se comprovar que a partir dos filmes documentais é possível, em casos específicos, fazer um biografia visual dos sujeitos representados. PALVRAS-CHAVE Documentário; Voz do outro; representação; biografia e memória.

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O VOZ DO OUTRO: A REPRESENTAÇÃO NO DOCUMENTÁRIO E CRIAÇÃO

DE BIOGRAFIAS VISUAIS

Kamyla Faia Maia

Bacharel em Comunicação Social- Jornalismo pela UFG

Especialista em Cinema e Educação- IFITEG

RESUMO

A presente análise busca mostrar as contradições na forma com que os

documentaristas retratam o outro de classe, indivíduo que geralmente se encontra em

posição inferiorizada em relação ao realizador. Com isso o artigo tenta mostrar de que

maneira o fazer documentário tem evoluído em termos estéticos e éticos, deixando a mera

utilização de “personagens” para comprovar um discurso pré-estabelecido e alcançando a

representação mais fiel de diferentes personalidades. Por meio desta evolução pretende-se

comprovar que a partir dos filmes documentais é possível, em casos específicos, fazer um

biografia visual dos sujeitos representados.

PALVRAS-CHAVE

Documentário; Voz do outro; representação; biografia e memória.

INTRODUÇÃO

Uma das definições mais conhecidas de documentário para as pessoas em geral é de

ele seria um obra que lida estritamente com fatos reais, que representa fielmente uma

realidade. No entanto ao longo da evolução estética e ética do documentário os teóricos

trouxeram a tona vários contradições nestas afirmações. Em primeiro lugar a linha tênue

que separa o documentário da ficção, aproximando os dois estilos em formas

intercambiáveis de realização cinematográfica. Depois começou a se discutir os entraves do

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acesso a realidade, o desafio de se relacionar com a realidade do outro e os dilemas éticos e

estéticos de se dar voz a esse outro.

A prática documental também apontou as várias tensões existentes neste estilo,

principalmente na maneira de dar voz ao outro, ao ator-social, que sempre se torna a ponte

que liga duas realidades diferentes e que nos leva, realizadores e expectadores, a mundos

pouco conhecidos ou a histórias relevantes. Esta forma de representação vem evoluindo

desde a mera utilização dos depoimentos como confirmação das teses do documentarista

até a possibilidade, ainda em início de exploração, da feitura de biografias visuais.

DESENVOLVIMENTO

Ainda em meio a várias discussões a respeito do fazer documental, podemos definir

o documentário de forma menos romântica com uma “representação do mundo em que

vivemos e não uma reprodução direta dele” (NICHOLS, 2001, 47). ) Ou como definiria Da-

Rin uma ficção como outra qualquer:

“Uma vez que não se pode conhecer uma realidade sem estar mediado por algum sistema significante, qualquer referência cinematográfica ao mundo histórico terá que ser construída no interior do filme e contando apenas com os meios que lhe são próprios. Sob este aspecto, o documentário é um constructo, uma ficção como outro qualquer.” (DA-RIN, 2004, 221)

Os fatos mostrados por qualquer documentário não ocorrem da mesma forma que

ocorreriam em situações normais, sem que uma câmera estivesse ligada. Isto acontece

mesmo que o cineasta não interfira nas ações dos personagens. A presença da câmera e de

todo o aparato cinematográfico mediam a apreensão do real e transformam a realidade. Da

mesma forma que a escolha da abordagem que será dada a obra; de quem filmar, de que

maneira filmar e de quais imagens irão para a tela na montagem final; também interferem

nesta apreensão. Tais afirmações anulam qualquer tentativa de colocar o documentário

como um acesso direto a realidade, já que uma obra documental passa por todas estas

escolhas. Representando, assim, o ponto de vista de um cineasta.

Apesar de ser o ponto de vista de um cineasta a obra documental necessita tocar a

realidade na medida em que se utiliza de situações, ambientes e pessoas que existem

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mesmo sem a realização do filme. Assim ela “mostra aspectos ou representações auditivas e

visuais de uma parte do mundo histórico” (NICHOLS, 2001, 30). Esta representação do

mundo, ou como Bernardet prefere classificar, a tentativa de dar voz ao outro, é uma das

principais características e importâncias do documentário. Este outro geralmente é um

“outro de classe” (LINS, 2008, 20), pertencente a uma condição social e econômica

diferente daquela do realizador e também daqueles que assistem ao filme. Nichols define

esta forma de fazer documentários com “eu falo deles para vocês” (2001, 46). O cineasta,

que não pertence ao mundo retratado, fala deste mundo para outras pessoas que também

não o conhecem empiricamente.

No documentário brasileiro os cineastas só começaram a se preocupar com a

questão de dar voz ao outro durante o cinema moderno. Nesta escola são incluídos os

filmes realizados durante as décadas de 1950 e 1960, principalmente aquelas que

compunham o Cinema Novo. Pela primeira vez, os filmes abordaram criticamente os

“problemas e experiências das classes populares, rurais e urbanas”, e tentaram retratar o

outro de classe, ou seja, os “pobres, desvalidos, excluídos, marginalizados”, (LINS, 2008,

20-21).

No entanto a maneira de mostrar a realidade deste outro acabava, muitas vezes, por

não dar voz a ele, mas sim por usá-lo como amostragem ou tipificação de uma tese

construída pelo realizador. Como afirma Bernardet, a maior parte dos filmes documentais

realizados no Brasil durante este período seguia um modelo chamado de sociológico

(BERNARDET, 2003, 12). Neste modelo o cineasta produzia um discurso a respeito da

realidade, tido como universalmente aplicável, utilizando-se geralmente de uma voz off ou

voz da verdade, e apenas dando voz ao outro como forma de comprovar este discurso.

Este modelo foi aos poucos sendo destronado e já nas décadas de 1960 e 1970,

ainda com o Cinema Novo, várias obras trouxeram formas de representações diferentes.

Esta evolução na representação do outro no entanto foi interrompida primeiro pelo regime

militar que impossibilitou a discussão de temas polêmicos. Depois de uma breve volta

durante a democracia nascente, principalmente a partir das obras de Eduardo Coutinho,

como Cabra Marcado para Morrer, foi interrompida novamente, desta vez pela a crise do

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cinema nacional no início dos anos 1990. Com a política de Fernando Collor de Melo as

produções nacionais chegaram quase a zero e da mesmo forma ocorreu com o

documentário.

Com a retomada do cinema nacional, o documentário demorou a recuperar seu lugar

na produção brasileira. Notadamente as primeiras produções cinematográficas da retomada

eram ficcionais e o documentário acabou ocupando o lugar de patinho feio no mercado, já

que o público, ainda reativo as produções nacionais, era ainda mais temeroso de ver obras

documentais. Aos poucos o documentário começou a novamente chamar a atenção do

público com obras como Janela da Alma, de João Jardim e Walter Cravalho.

Estes filmes documentais, cuja produção se realizou desde os meados da década de

1990, se enquadram no que Lins classifica como “documentário contemporâneo”. (2008,

10-11) Assim como as escolas anteriores, a contemporânea também se preocupa em dar voz

ao outro, mas de uma forma bem diferente:

“A recusa do que é representativo e o privilégio da afirmação de sujeitos singulares são dois traços marcantes na diferenciação entre o documentário contemporâneo brasileiro e o chamado documentário moderno, em particular aquele produzido no decorrer dos anos 60” (LINS, 2008, 20)

O modelo de representação em questão pode ser classificado; assim como fez Marco

Aurélio da Silva no artigo Documentário Brasileiro: Entre o Modelo Sociológico e o

Etnográfico; de etnográfico por se aproximar de uma “proposta de saber compartilhado,

entre entrevistador e entrevistado”, em que o importante é o encontro entre cineasta e

personagem e o que surge disto. Um dos exemplos desta nova opção de representação é o

filme, Estamira de Marcos Prado, em que o cineasta consegue fazer uma representação da

personagem que vai além dos estereótipos e da comprovação de discursos moralistas.

Estamira e as várias personagens dos filmes mais recentes, com os de Eduardo

Coutinho, podem ser interpretados segundo as teorias de Benveniste que foram levantadas

pelo artigo de Márcio Seligman-Silva. Elas seriam como superstes, ou seja, a testemunhas

que “subsistem além de”, que são testemunhas e ao mesmo tempo sobreviventes. Enquanto

rememoram suas vivências para nos contar, cada um destes indivíduos transforma os fatos,

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“cita a história, mas nesse momento mesmo, ela a destrói e a recria, dando início a um

processo potencialmente sem fim de escritura e disseminação”. (SELIGMANN-SILVA,

2005, 78).

Os cineastas escolhem estes indivíduos como personagem e invadem a vida deles

tanto para deixar que elas falassem sobre si e recriassem sua experiência, quanto para

recriar a si mesmo a partir da história deles, para viver a realidade que eles vivem. Com

esta tentativa de dar voz realmente ao outro de classe e de mostrar sua história, o filme se

transforma em um testemunho de vida e assim nos leva a conhecer o mundo histórico dos

indivíduos por meio das evidências reais e da memória dos fatos. Desta forma os

realizadores acabam por fazer biografias visuais, ultrapassando a mera representação

utilitária do outro de classe e alcançando de forma ética e abrangente a realidade das

personagens. Como define Souza (2008, 1) tais documentários podem ser percebidos como

“modos de narração constituídos de discursos da memória, a partir da centralidade do

sujeito que narra”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e Imagens do Povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

DA-RIN, Sílvio. Espelho Partido: Tradição e Transformação do Documentário. Rio de Janeiro. Azougue Editorial, 2004.

LINS, Consuelo. Filmar o Real. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2008.

MEDEIROS, Marcílio. Arthur Bispo do Rosário: 50 anos para reconstruir o mundo. Pernambuco, 2009. Disponível em: www.portalliteral.terra.com.br/artigos. Acesso em 07 de junho de 2010.

NICHOLS, Bill. Tradução de Mônica Saddy Martins. Introdução ao Documentário. Campinas: Papirus, 2005.

SELIGMANN-SILVA, Marcio. Testemunho e a Política da Memória: O Tempo Depois das Catástrofes. São Paulo: Projeto Historia, 2005. Disponivel em: www.pucsp.br/projetohistoria/downloads/volume30/04-Artg-(Marcio).pdf. Acesso em 26 de junho de 2010.

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SILVA, Marco Aurélio da. Documentário Brasileiro: Entre o Modelo Sociológico e o Etnográfico. PPGAS/UFSC, 2001. Disponível em: http://br.monografias.com/trabalhos-pdf901/documentario brasileiro/documentario-brasileiro.pdf. Acesso em 10 de maio de 2010.

SOUZA, Elizeu Clementino. (Auto) Biografia, Identidade e Alteridade: Modos de Narração, Escritas de Si e Praticas de Formação da Pós-Graduação. Dossiê Fórum, POSGRA/UFS, Ano 2, Volume 4, 2008. Disponível em: www.posgrap.ufs.br/...identidades/.../DOSSIE_FORUM_Pg_37_50.pdf. Acesso em 26 de maio de 2010.

CURRÍCULO RESUMIDO DA AUTORA

Kamyla Faria Maia

Bacharel em Comunicação Social, habilitação Jornalismo pela Universidade Federal de

Goiás- UFG. Especialista em Cinema e Educação pelo Instituto de Filosofia e Teologia de

Goiás- IFITEG. Estudante de cinema documentário do Taller de Cine Documental Sin

Fronteiras da Escuela de Cine e Artes Audiovisuales de La Paz- Bolívia em parceria com a

UFG. Professora do curso de Jornalismo da Faculdade Araguaia, em Goiânia.