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Universidade de Aveiro Departamento de Cincias da Educao 2008

Carina Miguel Figueiredo da Cruz Rosa Rodrigues

O livro no jardim-de-infncia Um olhar sobre a obra de Lusa Ducla Soares

Universidade de Aveiro Departamento de Cincias da Educao 2008

Carina Miguel Figueiredo da Cruz Rosa Rodrigues

O livro no jardim-de-infncia Um olhar sobre a obra de Lusa Ducla Soares

Dissertao apresentada Universidade de Aveiro para cumprimento dos requisitos necessrios obteno do grau de Mestre em Cincias da Educao, na rea de especializao em Formao Pessoal e Social, realizada sob a orientao cientfica do Prof. Doutor Manuel Fernando Ferreira Rodrigues e co-orientao da Prof. Doutora Ana Margarida Corujo Ferreira Lima Ramos

A ti Ins, pelas histrias que no te contei

O jriPresidente Doutor Carlos Alberto Pereira de Meireles Coelho Professor Associado da Universidade de Aveiro

Doutora Glria Maria Loureno Bastos Professora Auxiliar da Universidade Aberta

Doutora Ana Margarida Corujo Ferreira Lima Ramos Professora Auxiliar da Universidade de Aveiro (Co-orientadora)

Doutor Manuel Fernando Ferreira Rodrigues Professor Auxiliar Convidado da Universidade de Aveiro (Orientador)

Agradecimentos

As pginas que aqui seguem no bastariam para agradecer ao largo conjunto de pessoas que, ainda que de forma indirecta, contribuiu em muito para que me fosse possvel levar este projecto a bom porto. No querendo fugir s formalidades impostas por estes processos acadmicos, minha inteno deixar, em simples palavras mas profundamente sentidas, o meu reconhecimento a algumas pessoas que se revelaram nesta minha caminhada. Talvez porque no ntimo de cada um de ns permanece aquela criana que fomos ou que desejaramos ter sido, quer consciente, quer inconscientemente, h etapas da nossa vida certamente as mais marcantes que nos transportam para a nossa infncia. Ao contrrio do que muitos diro com alguma tristeza, confesso , prezaria guardar memrias de um av ou de um pai que, para tantos, encarnou aquela figura extraordinria de um incessante contador de histrias. Possivelmente nessa busca ter-me-ei afeioado tanto a um universo to poderoso e to mgico, como a Literatura para a Infncia e que, ainda nos meus vinte anos de idade, me contagiou e me dotou de asas para sonhar e fantasiar com histrias, aparentemente, dirigidas aos pequenos leitores. No tivesse tido a sorte de me deliciar com as histrias da Professora Leonor Riscado, da Escola Superior de Educao de Coimbra, que durante horas prenderam o meu olhar, porventura, nunca teria despertado em mim o bichinho da Literatura para a Infncia, e que, desde ento, se foi apoderando da minha mente. Ambicionara muito dedicar-me a esta rea pela qual me sentia altamente perseguida, no imaginando, por isso, iniciar esta viagem to prematuramente, seno na hora em que, prova de uma profunda amizade, a Raquel me persuadiu a entrar na sua embarcao. Percorridas algumas milhas, mas sentindo-me ainda muito cambaleante face a um conjunto de decises que urgia tomar e que no deixavam de me avassalar, foram as palavras do Professor Manuel Ferreira Rodrigues que me permitiram avistar, ao longe, uma terra segura. Pela sua original Sopa da Pedra, percebi que tinha encontrado, nele, uma pessoa to seduzida pela Literatura para a Infncia quanto eu, anunciando-se como uma preciosa bssola neste percurso. Mais do que um orientador, fez prova de uma amizade e humanidade valiosssimas, ajudando-me, no raras vezes, na superao de muitos dos meus medos e desassossegos.

Eram inmeros os autores por quem me sentia atrada e que despertavam em mim uma real curiosidade. Porm, Lusa Ducla Soares foi a voz reclamada para a gnese deste estudo, e que viria, mais tarde, a ocupar um lugar muito essencial na generosa cedncia de informaes, julgadas indispensveis a uma maior compreenso da sua fabulosa obra, e diga-se, encantadora de pequenos e grados. Ainda assim, por obstinao, sentia a falta de algum que me pudesse elucidar neste domnio em especfico, e que considero, hoje, ter-se revelado como um pilar imprescindvel. Foi ento, num contacto estranho e forado diria mesmo ousado , que Professora Ana Margarida Ramos solicitei auxlio, e que, apesar da distncia, mostrou, desde o primeiro instante, inteira disponibilidade e dedicao neste meu tema basta recordar a excepcional prontido com que esclarecia qualquer uma das minhas dvidas. Ainda que simbolize um momento um tanto difcil para ambas, devo a esta professora o mais rico dos seus ensinamentos, tendo-me permitido, para sempre, encontrar nesta arca um verdadeiro tesouro, onde se mantero guardados grandes marcos de profunda felicidade. De facto, sempre que folhear esta tese, recordarei todas aquelas que pessoas que influenciaram e possibilitaram a sua realizao. Foram vrias as amizades descobertas merc desta viagem e que se revelaram infinitamente marcantes: desde os almoos que com a Carlita e a Ana saboreei, as tardes de estudo que com a Gi partilhei, as gargalhadas que com a Mrcia troquei, as longas noites que Sara ousei retirar e que jamais retribuirei, as angstias que com a Cludia desabafei, as lgrimas que com a Patrcia deitei e at o computador de que a Andreia privei, sem contar os muitos momentos que com a minha tertlia no desfrutei. E como se por si s j no revelasse uma certa tenso, foi ainda num perodo menos risonho que me encontrei a escrever esta dissertao. Contudo, e por isso me senti em muito recompensada, tive a oportunidade de contar ainda com o apoio de vrios colegas, do Museu da gua de Coimbra, mas em especial, do Engenheiro Maricato que, para alm dos muitos outros apertos de que me socorreu, deu conta de um compreenso desmesurvel, ao regalarme de uma total liberdade na escrita desta tese. Ainda que no tenha sido ao som de belas histrias, foram os meus estimados pais os que me sossegaram e me proporcionaram um lugar sereno em muitos perodos de mal-estar. Ansiosos e inquietos por este moroso decurso, foram eles que muitas vezes me recordaram a L e a Ins, e diante de quem, hoje, me humilho pela reconhecida compreenso nas horas em que me mostrei sempre to ocupada, descurando-as nos momentos mais precisados. Finalmente, se de todos aqueles que, pelo apoio inestimvel e mesmo que no tenham sido nomeados, me vejo capaz de narrar o episdio mais saliente da sua exibio, permanece ainda de fora a figura que, afinal, maior protagonismo teve nesta histria. O seu destaque em ltimo lugar, jamais viria coloc-la em segundo plano, na medida em que foi a principal personagem que em qualquer situao encenou. Comigo a principiou, acompanhando-me, ininterruptamente, em todo o seu enredo. Juntos vivemos e enfrentmos as mais rduas peripcias. E hoje, ainda se encontra por perto para vitoriar a meu lado este desfecho positivo, onde todos os meus maiores anseios se vero solucionados. ao Nelson, a quem devo a maior e mais verdadeira de todas as amizades, pela sua incansvel pacincia e, principalmente, pela sua inabalvel tolerncia face a tudo o que, por minha causa, para trs ficou.

Palavras-chave

Literatura para a infncia, criana, educao pr-escolar, educador de infncia, Lusa Ducla Soares.

Resumo

A literatura para a infncia tem sido objecto de discusso, especialmente no tocante ao seu estatuto no universo literrio, sobretudo a partir dos anos 70 do sculo XX, vindo, assim, a desenvolver-se e a assumir uma crescente importncia. Decorrente da evoluo do conceito de criana, a literatura para a infncia foi assumindo um lugar proeminente na sua formao, nomeadamente, em idade pr-escolar. A seguir famlia, o educador de infncia afigura-se como outro dos principais mediadores no encontro da criana com o livro, tendo, desde a, uma funo influente face promoo do gosto pela leitura. No entanto, este profissional sente a necessidade de, desde a sua formao inicial, se ver dotado de conhecimentos bsicos que lhe permitam prticas mais ajustadas e que salvaguardem as necessidades e interesses de leitura das crianas. A presente dissertao tem como principal finalidade aferir a importncia atribuda literatura para a infncia, com especial destaque na obra de Lusa Ducla Soares, em contexto de jardim-de-infncia. Apesar do lugar incontestvel desta autora e da sua obra no cnone da literatura portuguesa para a infncia, a crtica literria de que tem sido alvo ainda exgua. Por essa razo tambm, procurmos, atravs de uma anlise das especificidades da sua escrita, da diversidade das temticas inerentes s suas histrias e da qualidade esttica e literria das suas publicaes, reflectir sobre as potencialidades das obras que nos apresenta a referida escritora, pelas quais tem merecido vrios prmios e nomeaes.

Keywords

Literature for early years, child, early childhood education, kindergarten teacher, Lusa Ducla Soares.

Abstract

Literature for early years has been subject of quarrel, especially regarding to its statute in the literature universe, mostly since the 70s of the 20th century, and consequently came to grow and to assume an increasing importance. As a result of the evolution of the child concept, literature for early years was assuming a prominent position in children education, specifically, in preschool age. After family, the kindergarten teacher figures hisself/herself as another of the main intermediaries in introducing child to books, having, since then, an influential role endorsing readings taste on children. However, this practitioner needs, since his/her formative years, to be endowed with basic knowledge that allows him/her more adjusted practices that look after readings necessities and interests of childrens interests. The present dissertations main purpose is to survey which importance has literature for infants, with a special focus on the work of Lusa Ducla Soares, in early childhood education. Even though her books are unquestionable at ruling literature for infants in Portugal, there hasnt been that much literary analysis about it. Therefore, we looked, through the particulars aspects of her writing, the diversity of themes that are inherent to her stories and the artistic and literary value of her publications, to proof the quality of the work presented by the mentioned writer, on behalf of which the author has justified several awards and nominations.

Mots-clefs

Littrature pour enfants, enfant, cole maternelle, instituteur en maternelle, Lusa Ducla Soares.

Rsum

La littrature pour enfants a t le centre de discussion, notamment en ce qui concerne son statut dans lunivers littraire, surtout a partir des annes 70 du XXme sicle, venant ainsi se dvelopper et assumer une importance croissante. D lvolution du concept denfant, la littrature pour enfants a assum, peu peu, un rle prominent sur sa formation, en particulier, lge de la maternelle. Suivie de la famille, linstituteur en maternelle saffigure comme lun des principaux mdiateurs dans la rencontre entre lenfant et le livre, en ayant, ds lors, une fonction influente face la promotion du got pour la lecture. Cependant, ce professionnel a besoin, ds sa formation initiale, de se voir dot dun minimum de connaissances qui lui permettent des pdagogies plus ajustes, tout en sauvegardant les intrts de lecture de lenfant. La prsente dissertation a comme principale finalit dexaminer l'importance attribue la littrature pour enfants, en ayant comme principale prominence loeuvre de Lusa Ducla Soares, au sein de lcole maternelle. Malgr la rputation incontestable de cet auteur, ainsi que de son oeuvre dans le canonne de la littrature portugaise pour lenfance, la critique littraire dont elle a t cible est encore exigu. De ce fait, nous avons aussi recherch, grce une analyse des spcificits de sa production textuelle, de la diversit des thmes inhrents ses histoires, ainsi que de la qualit esthtique et littraire de ses publications, rflchir sur les potentialits des oeuvres que nous prsente lcrivain en question, dont lesquels lui ont apport plusieurs prix et nominations.

O livro no jardim-de-infncia Um olhar sobre a obra de Lusa Ducla Soares _______________________________________________________________________________________

NDICE

ndice .................................................................................................................. 11 Lista de quadros................................................................................................... 14 Lista de grficos ................................................................................................... 15 Introduo........................................................................................................... 19 1. Contextos e motivaes .........................................................................................19 2. Fundamentao e pertinncia do tema .................................................................19 3. Estrutura do trabalho ............................................................................................21 Captulo I O livro no jardim-de-infncia ............................................................ 23 1. Literatura para a infncia: conceito e pressupostos...............................................23 2. A literatura para a infncia contextualizao genrica da sua evoluo .............29 2.1. Contextualizao geral ....................................................................................29 2.2. Origens e evoluo da literatura para infncia em Portugal...........................31 2.2.1. Sculo XIX ..............................................................................................31 2.2.2. Sculo XX e antecedentes .......................................................................32 3. A literatura para a infncia e o universo da criana ..............................................37 3.1. Interesse da faixa etria na relao criana/livro............................................37 3.2. Potencialidades da literatura para a infncia ..................................................40 4. Difuso da literatura para a infncia .....................................................................43 4.1. A literatura para a infncia e a famlia............................................................43 4.2. A literatura para a infncia no jardim-de-infncia ..........................................46 4.2.1. A criana, o livro e o educador de infncia ............................................48 Captulo II A obra de Lusa Ducla Soares .......................................................... 57 1. A obra de Lusa Ducla Soares: principais influncias ...........................................58 1.1. Breves notas biobibliogrficas.........................................................................58 1.2. Algumas linhas marcantes da produo literria de Lusa Ducla Soares .......60 2. Uma obra multifacetada ........................................................................................63 2.1 Gneros literrios.............................................................................................63 2.1.1. Uma narrativa contempornea para crianas .........................................64 2.1.2. Quando palavras e imagens andam de mos dadas: o lbum narrativo para crianas................................................................................................................67 2.1.3. A Poesia para crianas: herana tradicional ou reinveno da tradio .69 2.2. Diversidade temtica: o elogio da diferena ...................................................76

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2.3. Construo narrativa ......................................................................................79 2.4. As personagens: gente gira, gente divertida ....................................................81 2.5. A ilustrao: danas e contradanas de palavras e imagens............................85 2.6. A arte da escrita ..............................................................................................89 Captulo III Representaes sobre literatura para a infncia ............................... 95 1. Conceptualizao do estudo e definio da amostra ............................................95 1.1. Objectivos da investigao ..............................................................................95 1.2. Amostra e populao-alvo...............................................................................96 1.3. Tipo de investigao .......................................................................................97 1.4. Instrumentos de recolha e anlise de dados ...................................................98 1.5. Procedimentos ..............................................................................................100 1.5.1 Inqurito por questionrio ....................................................................100 1.5.2. Anlise dos dados .................................................................................101 2. Apresentao e discusso dos resultados.............................................................108 2.1. Caracterizao da amostra ............................................................................108 2.1.1. Idade .....................................................................................................109 2.1.2. Tempo de servio ..................................................................................109 2.1.3. Habilitaes literrias............................................................................110 2.1.4. Escola de formao ...............................................................................111 2.1.5. Faixa etria do grupo de crianas..........................................................112 2.2. A literatura para a infncia e o livro no jardim-de-infncia..........................112 2.2.1. Formao em literatura para a infncia ................................................112 2.2.2. Tipo de formao..................................................................................113 2.2.3. Contributo da formao em literatura para a infncia.........................113 2.2.4. Actualizao em literatura para a infncia ............................................114 2.2.5. Frequncia na compra de livros............................................................115 2.2.6. Critrios de seleco dos livros .............................................................116 2.2.7. Organizao do tempo ..........................................................................117 2.2.8. Organizao do grupo...........................................................................118 2.2.9. Organizao do espao..........................................................................119 2.2.10. Frequncia da narrao.......................................................................120 2.2.11. Tctica de narrao .............................................................................120 2.2.12. Meios audiovisuais ..............................................................................121 2.2.13. Finalidade da hora do conto ...........................................................122 2.2.14. Valores presentes ................................................................................123 2.2.15. Aquisio dos livros ............................................................................124 2.2.16. Principais autores................................................................................124

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2.2.17. Frequncia da visita a bibliotecas municipais .....................................125 2.2.18. Conhecimento do Plano Nacional de Leitura....................................126 2.2.19. Apoio no Plano Nacional de Leitura ..................................................126 2.2.18. Conceptualizao ................................................................................127 2.3. A obra de Lusa Ducla Soares .......................................................................128 2.3.1. Consideraes gerais .............................................................................128 2.3.2. Obras apreciadas ...................................................................................129 2.3.3. Obras rejeitadas.....................................................................................130 2.3.4. Apreciao da histria narrada .............................................................131 2.3.5. Tctica de narrao ...............................................................................132 2.3.6. Interpretao da histria .......................................................................132 2.3.7. Prolongamento didctico ......................................................................133 2.3.8. Efeitos....................................................................................................134 2.3.9. Reconto da histria...............................................................................134 2.3.10. Destaques ............................................................................................135 2.3.11. Personagem preferida..........................................................................136 3. Sntese de resultados............................................................................................137 4. Reflexes finais ....................................................................................................142 Concluso...........................................................................................................143 Anexos................................................................................................................149 Anexo 1....................................................................................................................149 Anexo 2....................................................................................................................150 Anexo 3....................................................................................................................154 Bibliografia.........................................................................................................157 Bibliografia de Lusa Ducla Soares ..........................................................................157 Referncias bibliogrficas gerais ..............................................................................161 Referncias bibliogrficas sobre literatura para a infncia ......................................162

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Categorizao das respostas da parte I do questionrio ........................................................... 103 Quadro 2 Categorizao das respostas da parte II do questionrio .......................................................... 106

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LISTA DE GRFICOS

Grfico 1 Distribuio da amostra por grupos de idade ........................................................................... 109 Grfico 2 Distribuio da amostra por tempo de servio.......................................................................... 110 Grfico 3 Distribuio da amostra por habilitaes literrias ................................................................... 110 Grfico 4 Distribuio da amostra por escolas de formao inicial .......................................................... 111 Grfico 5 Distribuio da amostra por faixa etria do grupo de crianas ................................................. 112 Grfico 6 Distribuio das respostas em funo do tipo de formao ...................................................... 113 Grfico 7 Distribuio das respostas em funo da actualizao em literatura para a infncia ................ 115 Grfico 8 Distribuio das respostas em funo da frequncia na compra de livros ................................ 116 Grfico 9 Distribuio das respostas em funo dos critrios de seleco dos livros ................................ 117 Grfico 10 Distribuio das respostas em funo da organizao do tempo ............................................ 118 Grfico 11 Distribuio das respostas em funo da organizao do grupo ............................................. 119 Grfico 12 Distribuio das respostas em funo da organizao do espao ............................................ 119 Grfico 13 Distribuio das respostas em funo da frequncia da narrao........................................... 120 Grfico 14 Distribuio das respostas em funo da tctica de narrao.................................................. 121 Grfico 15 Distribuio das respostas em funo dos meios audiovisuais................................................ 122 Grfico 16 Distribuio das respostas em funo da finalidade da hora do conto................................ 122 Grfico 17 Distribuio das respostas em funo dos valores presentes ................................................... 123 Grfico 18 Distribuio das respostas em funo da aquisio dos livros ................................................ 124 Grfico 19 Distribuio das respostas em funo da frequncia na visita de bibliotecas municipais ....... 125 Grfico 20 Distribuio das respostas em funo do conhecimento do Plano Nacional de Leitura ........ 126 Grfico 21 Distribuio das respostas em funo do apoio no Plano Nacional de Leitura...................... 127 Grfico 22 Distribuio das respostas em funo da conceptualizao .................................................... 127 Grfico 23 Distribuio das respostas em funo das consideraes gerais .............................................. 129 Grfico 24 Distribuio das respostas em funo das obras apreciadas .................................................... 130 Grfico 25 Distribuio das respostas em funo das obras rejeitadas ..................................................... 130 Grfico 26 Distribuio das respostas em funo da tctica de narrao.................................................. 132 Grfico 27 Distribuio das respostas em funo da interpretao da histria ........................................ 133 Grfico 28 Distribuio das respostas em funo do prolongamento didctico....................................... 133 Grfico 29 Distribuio das respostas em funo do reconto da histria................................................. 135 Grfico 30 Distribuio das respostas em funo dos destaques .............................................................. 135

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Livro um amigo para falar comigo um navio para viajar um jardim para brincar uma escola para levar debaixo do brao Livro um abrao para alm do tempo e do espao Lusa Ducla Soares 1

1

Texto copiado do soalho do Centro de Documentao e Informao, da Escola Superior de Educao

de Coimbra.

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INTRODUO

1. CONTEXTOS E MOTIVAES O apreo sublimemente reconhecido aquando da nossa formao inicial, e consecutivamente da nossa experincia profissional enquanto educadora de infncia, pelo prestgio e transcendncia de que revestida a literatura para a infncia, atraiu-nos para um alargar de saberes no domnio desta dimenso literria. Mais tarde, o contacto com trabalhos de outros investigadores na rea da literatura para crianas, particularmente, com os estudos anteriores levados a cabo por Maria de Ftima Albuquerque (2000), por Rui Marques Veloso (2002), e mais recentemente por Ana Lusa Brito (2004) suscitaram a nossa curiosidade e o levantamento de certas questes relativamente rea, constituindo um ponto de partida para esta investigao e possibilitando o desenvolvimento deste estudo. A maioria destes estudos referidos prende-se com questes relacionadas com as potencialidades da literatura para a infncia e com as prticas educativas dos professores e educadores no tocante s formas de promoo e de animao da leitura. Outros procuram centrarse, j e especificamente, na dinamizao da hora do conto: as suas virtualidades e todo o ambiente que lhe deve ser confinado, com a apropriao de momentos e espaos especficos, assim como com a seleco e constituio de um corpus textual diversificado e ajustado. No sentido de dar continuidade a investigaes anteriormente iniciadas, atravs de exploraes renovadas e diversificadas, esperamos, com o presente estudo, contribuir para melhores prticas que consolidem a formao de futuros leitores para quem a literatura para a infncia poder ocupar um lugar de destaque, sonhando e emocionando-se deliciosamente com os livros. 2. FUNDAMENTAO E PERTINNCIA DO TEMA Atendendo ao desenvolvimento que a literatura para a infncia tem conhecido nos ltimos anos, pelas polmicas no raras vezes suscitadas relativamente ao seu estatuto no universo literrio, e pelo contexto previamente descrito, um estudo neste domnio afigura-se

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Introduo _______________________________________________________________________________________

de particular pertinncia. Por outro lado, a nossa experincia profissional, vivenciada com crianas de jardim-de-infncia, veio demonstrar a importncia desta rea da produo literria pelos seus poderes exmios, no s aos nveis lingustico e literrio, como tambm no desenvolvimento relacional, afectivo e moral da criana, fomentando, deste modo, um interesse redobrado em ampliar os nossos conhecimentos neste universo. Porque estudos anteriores vm testemunhar a escassez de obras literrias de qualidade junto do pblico infantil, e em particular nos jardins-de-infncia actuais, surge o interesse de apresentar, a todos os profissionais de educao pr-escolar, e no s, as virtualidades de uma obra que prima pela sua diversidade literria, ao nvel temtico e formal. Lusa Ducla Soares foi a voz sobre a qual incidiu a escolha da presente investigao, por se nos afigurar como uma das autoras contemporneas cuja obra ainda parece insuficientemente conhecida, mas que, pelas vrias distines recebidas e pelo nmero de obras publicadas, revela inmeras qualidades. Evidencia-se ainda a produo literria desta escritora por apresentar uma obra multifacetada, quer no que respeita aos gneros literrios que contempla, quer nas temticas abordadas, oferecendo livros diversificados e adequadamente dirigidos faixa etria abrangida pela educao pr-escolar, e que, pela sua qualidade esttica, literria e educativa, se tem imposto, com xito, junto do pblico mais novo. Esta investigao surge, principalmente, do interesse em conhecer as representaes dos educadores de infncia acerca da literatura para a infncia. Relativamente s suas concepes, pretendemos evidenciar a forma como procuram os educadores estar a par das novidades nesta rea da produo literria, assim como perceber de que modo pde a sua formao inicial contribuir para o ajuste das suas prticas educativas. No que se refere s vivncias destes profissionais neste mbito, pretendemos equacionar o lugar que ocupa a literatura para a infncia nas suas rotinas dirias, especificamente na forma como procuram dinamizar a hora do conto, desde a sua finalidade, a forma como organizam o grupo de crianas, o local e o momento, bem como os critrios nos quais se baseiam para a seleco dos livros que compem os acervos bibliogrficos das suas salas de actividades. Por outro lado, esta investigao nasce, igualmente, de uma aproximao anlise da obra de Lusa Ducla Soares, no de um ponto de vista literrio, mas a partir do olhar de uma educadora de infncia mediadora de leitura. De facto, em contexto de jardim-de-infncia, os leitores so diferentes, uma vez que necessitam de um intermedirio para a leitura do texto verbal e/ou para conhecer a histria; Porque no jardim-de-infncia no h leitores, no sentido estrito do termo, so os educadores o veculo que transforma o discurso escrito em discurso oral, transformando-os em mediadores efectivos na difuso da literatura para a infncia. Tradicionalmente a oralidade antecedia a escrita. Hoje, com o texto escrito, acontece precisamente o contrrio, sendo o educador um dos principais agentes na renovao/transmisso da tradio, transportando o texto escrito para a oralidade; de tal forma

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que, no s poder alterar o sentido, o ritmo e a forma de recepo da criana-ouvinte, como at mesmo censurar ou recriar o prprio escritor. Neste estudo, pretendemos caracterizar a obra de Lusa Ducla Soares, atendendo s suas potencialidades junto de crianas em idade pr-escolar. Por outro lado, reflectimos sobre a relao estabelecida entre o livro e o leitor, neste caso o educador de infncia, sem esquecer a sua funo enquanto mediador de leitura junto da criana, equacionando a questo dos destinatrios preferenciais deste tipo de textos e os seus efectivos receptores. 3. ESTRUTURA DO TRABALHO O presente estudo assume-se, essencialmente, como uma anlise das percepes dos profissionais de educao pr-escolar relativamente literatura para a infncia, com uma incidncia particular para a obra escrita por Lusa Ducla Soares, sobretudo no que diz respeito forma como actua junto da criana, despertando-lhe o seu gosto esttico e literrio. Deste modo, e com vista a respeitar os objectivos enunciados, pretendemos estruturar o nosso plano de trabalho em trs captulos. No primeiro captulo, tentaremos definir conceptual e evolutivamente o panorama editorial no mbito da literatura para a infncia, com base na fundamentao terica e crtica de alguns autores de referncia. Como a literatura para a infncia tem sido objecto de discusso activa, desde a problematizao relativamente sua categoria como verdadeiro fenmeno literrio at valorizao de um pblico explcito e concreto, importar reflectir sobre a sua evoluo e desenvolvimento, assim como sobre o tipo de destinatrio preferencial a que se dirige. Tendo a escrita para crianas conhecido um investimento considervel nos ltimos anos, procederemos, posteriormente, a uma abordagem do seu estatuto no panorama literrio portugus, reflectindo sobre o seu processo de legitimao e sobre as suas principais linhas evolutivas. Ainda, e procurando visar o objecto central do nosso estudo, pretenderemos contextualizar a obra de Lusa Ducla Soares no actual panorama literrio nacional destinado ao pblico infantil, contemplando as origens e os factores que influenciaram a sua produo literria para os mais novos. Procuraremos, nesse mesmo captulo, analisar as consideraes dos diversos estudiosos acerca das potencialidades da literatura para a infncia na formao da criana, assim como reflectir sobre a importncia da mediao leitora no encontro entre a criana e o livro. Num segundo captulo, partindo da reflexo de autores de referncia, e atendendo ao interesse em incidir o presente estudo na obra de Lusa Ducla Soares, pretenderemos caracterizar a sua produo literria luz do contexto poltico-social no qual se desenvolveu, e, por outro, no seguimento que foi sofrendo ao longo do seu processo de escrita. Seguidamente, procederemos a uma tentativa de caracterizao desta mesma obra, reflectindo quer sobre

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Introduo _______________________________________________________________________________________

os diferentes gneros literrios que contempla, quer sobre traos estilsticos mais significativos e que fazem dela uma obra inovadora e singular. Para esta leitura, ainda que apenas para a exemplificao de uma ideia, apoiar-nos-emos, especialmente, nas obras em que essas caractersticas surgem com maior relevo. Assim, de acordo com os gneros literrios contemplados, com as temticas abordadas ou ainda em funo do nvel etrio a que se dirigem, sero referenciados e/ou analisados, no corpus do trabalho, os seguintes livros: O Ratinho Marinheiro (1973); O Soldado Joo (1973); Doutor Lauro e o Dinossauro (1973); O Urso e a Formiga (1973); O Gato e o Rato (1973); O Meio Galo e Outras Histrias (1976); AEIOU, Histria das Cinco Vogais (1980); O Caranguejo Verde (1981); O Drago (1982); Trs Histrias do Futuro (1982); Poemas da Mentira e da Verdade (1983); A Princesa da Chuva (1984); 6 Histrias de Encantar (1985)/Seis Histrias s Avessas (2003); Lengalengas (1988); Destrava Lnguas (1988); A Gata Tareca e Outros Poemas Levados da Breca (1990); Adivinha, Adivinha (1991); Nau Mentireta (1992); Preciso Crescer (1992); Os Ovos Misteriosos (1994); O Casamento da Gata (1997); Arca de No (1999); Uns culos para a Rita (2001); Todos no Sof (2001); Tudo ao Contrrio! (2002); Gente Gira (2002); Se os Bichos se Vestissem como Gente (2003); Contrrios (2003); A Cavalo no Tempo (2003); Quem Est A? (2003); Abecedrio Maluco (2004); A Festa de Anos (2004); Contos para Rir (2005); A Cidade dos Ces e Outras Histrias (2005); Histria de Dedos (2005); O Maluquinho da Bola (2005); e Mais Lengalengas (2007). No ltimo captulo, procuraremos expor a metodologia utilizada, apresentando e justificando as opes efectuadas. Explicitaremos os objectivos da nossa investigao e caracterizaremos a amostra definida para a sua concepo, evidenciando os instrumentos utilizados para a recolha e o tratamento/anlise dos dados. Finalmente, procederemos apresentao e discusso dos resultados obtidos, procurando dar resposta s questes levantadas no presente estudo. Sero enunciadas as principais snteses decorrentes dos resultados das anlises realizadas, relacionando-as com o enquadramento terico e com os resultados de outros estudos semelhantes. Na concluso, procuraremos sintetizar e avaliar o trabalho realizado, numa articulao com os objectivos previamente enunciados. Evidenciaremos, ainda, o interesse e os contributos deste estudo, assinalando as dificuldades sentidas ao longo da sua realizao e deixaremos sugestes para prximas investigaes desenvolvidas nesta rea de interveno ou em reas adjacentes.

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CAPTULO I O LIVRO NO JARDIM-DE-INFNCIA

Ouvir e contar histrias corresponde [] a uma quase necessidade humana, particularmente visvel na infncia (Gomes, 1991, 16).

A narrao constitui uma prtica efectiva da actividade humana desde tempos imemorveis e as narrativas integram um patrimnio antiqussimo. Desde as histrias contadas oralmente, narrao em obras escritas, esta prtica estava associada famlia e sociedade, em grupos mais pequenos ou mais alargados. Por circunstncias diversas, a famlia parece estar, contudo, a distanciar-se desta funo. Por essa razo, so actualmente os educadores de infncia quem procura responder a essa necessidade humana, atravs de actividades diversas, integrando na rotina diria de creches e jardins-de-infncia a narrao e dramatizao de contos, entre outras iniciativas, ocupando assim o principal lugar do velho contador de histrias. Porm, e porque assistimos ainda a uma certa tendncia para deixar cair no esquecimento esta rea da produo literria, urge sensibilizar os principais agentes educativos responsveis por esta transmisso de saberes, para a importncia da literatura para a infncia, promovendo a criao de espaos e momentos propcios sua difuso junto das crianas. Antes de nos debruarmos sobre estas questes, nomeadamente sobre o papel que a literatura para a infncia pode desempenhar na formao da criana, interessa-nos primeiramente perceber o tipo de literatura que nos propomos analisar, clarificando o seu conceito e conhecer as origens e as dinmicas evolutivas que acompanharam a sua afirmao. 1. LITERATURA PARA A INFNCIA: CONCEITO E PRESSUPOSTOS A realizao de um trabalho de investigao no campo da literatura para a infncia revela-se um grande desafio por apenas recentemente se ter atribudo a esta rea da literatura o seu merecido apreo. Segundo Rui Veloso (1994, 15), a literatura para a infncia era at ento considerada como um subproduto sofrvel, ou ainda, uma sub-literatura da rea da produo literria (Soriano, 1975, 16).

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Apesar da literatura para a infncia ter suscitado algumas questes e discusses sobre o seu estatuto no universo literrio, pela valorizao de um pblico explcito e especfico, no podemos menosprezar a existncia desta rea da produo literria que tem vindo a desenvolver-se e a assumir uma crescente importncia em vrios domnios. Em termos meramente quantitativos, veja-se o aumento do volume das suas edies, principalmente a partir dos anos 70 do sc. XX. Na perspectiva de Vtor Aguiar e Silva, o aparecimento, no mbito da chamada literatura escrita, de textos de literatura infantil constitui um fenmeno historicamente recente, mas as razes da literatura infantil produzida e recebida oralmente afundam-se na espessura dos tempos e aponta para matrizes vrias: mitos, crenas e rituais religiosos [], smbolos ligados ao trabalho e s suas relaes com os ciclos de vida da natureza, acontecimentos histricos Narrativas, canes, adivinhas, etc., destinadas a educar e a satisfazer ludicamente as crianas tm circulado assim oralmente, desde h muitos sculos, por toda a Europa, transmigrando de regio para regio, sofrendo alteraes ou modulaes em funo das pocas, dos espaos geogrficos e das comunidades sociais, sem que se lhes possa assinalar quase nunca uma autoria razoavelmente identificada [] (Aguiar e Silva, 1981, 11). Foram vrios os autores que se debruaram sobre o mundo da literatura infantojuvenil, reflectindo sobre questes ligadas ao prprio conceito, s suas origens e evoluo. Uma pesquisa neste mbito revela-nos que certas discordncias se prendem, desde logo, com a prpria designao a ser utilizada quando procuramos referir-nos a este universo literrio. Entre as perspectivas recolhidas, encontrmos menes diversas alusivas a este gnero, designado por literatura para crianas (por influncia francfona, littrature pour les enfants), literatura para crianas e jovens (da expresso espanhola, literatura para nios y jvenes), literatura infanto-juvenil, ou ainda, literatura infantil, na qual Alice Gomes (1979) consideraria adequado o uso deste adjectivo se se tratasse de obras escritas pelas prprias crianas, ou, tal como no caso de uma literatura juvenil, de textos escritos por jovens. Por seu turno, Antnio Garcia Barreto julga literatura para a infncia como a expresso que continua a imperar entre ns quando se pretende designar toda a literatura cujo destinatrio a criana (Barreto, 2002, 305). Porm, e apesar de ser esta a denominao mais apropriada para o tipo de literatura em apreo na presente dissertao, no consideramos que o emprego de expresses alternativas, como literatura infantil, possam evidenciar quaisquer ambiguidades relativamente questo do emissor. Assim, no associamos ao conceito a produo literria e artstica em termos gerais, vinda da mo de uma criana, na medida em que, pela sua condio, no rene as especificidades fundamentais a esse acto criador. Ainda, no que concerne definio do conceito, parecem perdurar algumas contradies, especificamente no tocante ao seu estatuto e ao destinatrio preferencial que pretende atingir.

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Uma das primeiras propostas, numa tentativa de clarificao do conceito de literatura para a infncia, foi decerto a de Marc Soriano, que interpreta a literatura para a infncia como sendo une communication historique (autrement dit localise dans le temps et dans lespace) entre un locuteur ou un scripteur adulte (metteur) et un destinataire enfant (rcepteur) qui, par dfinition en quelque sorte, au cours de la priode considre, ne dispose que de faon parcielle de lexprience du rel et des structures linguistiques, intellectuelles, affectives et autres qui caractrisent lge adulte (Soriano, 1975, 185). Nas suas palavras, Soriano equipara a literatura para a infncia a um fenmeno comunicativo especfico (Bastos, 1999, 22), realando a importncia de um emissor e de um receptor, e da sua contextualizao num tempo e espao precisos. Mais, diz-nos que este tipo de literatura deve fundamentalmente atender s especificidades do destinatrio, considerando o estdio de desenvolvimento em que se encontra. Deste modo, e considerando que se destina preferencialmente ao pblico infantil, entendido de forma lata, a literatura para a infncia dever-se- apresentar com um conjunto de textos distintos, previstos e adequados condio especfica da criana. A esse propsito, Alice Gomes afirma que h quem defenda o conceito de que literatura s uma, e que os livros para crianas, com qualidade de escrita, se podem pr a par dos livros que os adultos lem. No entanto, para a infncia, so necessrias caractersticas especiais que dizem respeito aos temas e s linguagens (Gomes, 1979, 11). Tambm Henriette Bicchonnier se questionou sobre a natureza do conceito, referindo que quando escrevemos para crianas, a estratgia forosamente muito diferente, uma vez que nos dirigimos a um pblico preciso []. Acrescentar para crianas palavra literatura acaba, de certa maneira, por evocar um outro gnero literrio, uma outra forma de escrita, adaptada a um pblico (1991, cit. Bastos, 1999, 23). J em 1984, em La Literatura Infantil en la Educacin Bsica, aquando da sua primeira tentativa de definio deste conceito, Juan Cervera dizia-nos que na literatura para a infncia se integran todas las manifestaciones y actividades que tienen como base la palabra con finalidad artstica o ldica que interesen al nio (Cervera, 1991, 11). Mais tarde, o referido autor reconhece que toda produccin que tiene como vehculo la palabra con un toque artstico o creativo y como destinatario al nio (Ibidem). Para Juan Cervera, a literatura para a infncia deve apresentar um rigor literrio, artstico e ldico, servindo de resposta aos interesses e necessidades ntimas da criana, apresentando contextos e situaes prximas das suas vivncias, fundamentando assim a pertinncia da especificidade deste gnero no cnone da literatura em geral. Diz-nos ainda que [] cualquier definicin de literatura infantil que se formule deber cumplir dos funciones bsicas y complementarias. Por una parte tendr que ejercer un papel integrador o de globalizacin, para que nada de cuanto se considere literatura infantil quede fuera de ella. Por otra,

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tendr que actuar como selectora para garantizar que sea literatura (Cervera, 1991, 11). Logo, e contrariando Marc Soriano, que localiza a literatura para a infncia num tempo e espao precisos, Juan Cervera pressupe que este gnero compreenda tambm todas as narrativas de ndole tradicional, isto , aquelas que no foram de incio concebidas para elas, mas que, consequentemente, as crianas herdaram, bem como todas aquelas que, mesmo que regidas por cdigos diferentes, se dirijam s crianas, como o caso do teatro, da banda desenhada, da msica, cinema ou vdeo (Bastos, 1999). Esta uma perspectiva, de certo modo, questionvel, uma vez que nem todas estas formas de arte se podem verdadeiramente enquadrar no universo literrio para a infncia. Na perspectiva de Juan Cervera, a literatura para a infncia ramifica-se em trs categorias distintas: 1- a literatura ganada ou literatura recuperada; 2- a literatura creada para los nios; 3- a literatura instrumentalizada. Cervera entende por literatura recuperada todas as obras que eram inicialmente produzidas e dedicadas aos adultos, mas de que, por circunstncias vrias, as crianas tambm se foram apropriando. Neste grupo incluem-se as narrativas tradicionais de transmisso oral e o folclore da literatura para a infncia. J a literatura criada para crianas compreende todas as produes que foram particularmente escritas para as crianas, pensando fundamentalmente nas suas especificidades. Finalmente, a literatura instrumentalizada diz respeito aos livros com maior finalidade didctica em detrimento da literria, como servem de exemplos os dicionrios, enciclopdias ou os livros de imagens (Cervera, 1991, 18). Para fundamentar esta sua teoria, Juan Cervera recorre perspectiva de Gabriela Perriconi (1983) sustentando que la literatura infantil constituye un aspecto muy particular de la literatura, pues se sita en el punto medio entre el tiempo transcurrido y el tiempo que desconocemos. Es una medicin en el tiempo (Cervera, 1991, 11). No decorrer da sua anlise, Gabriela Perriconi volta a meditar no conceito, mas apontando j o lugar imprescindvel de um destinatrio e de um receptor. Mais do que definir literatura para a infncia, destaca os seus objectivos, j que quando se refere unicamente a ela, sustenta que es un acto de comunicacin, de carcter esttico, entre un receptor nio y un emissor adulto, que tiene como objectivo la sensibilizacin del primero y como medio la capacidad creadora y ldica del lenguaje, y debe responder a las exigencias y necesidades de los lectores (Ibidem). Entendemos, nestas concepes, que na literatura para a infncia prevalece o particular processo de comunicao que se estabelece entre o receptor e o emissor e pelas especificidades do primeiro. Tambm, na sua Ntula sobre o Conceito de Literatura Infantil, Vtor Manuel de Aguiar e Silva assegura que se a literatura feminina a literatura escrita por mulheres, a literatura infantil a literatura que tem como destinatrio extratextual as crianas. No primeiro sintagma, o adjectivo reporta-se esfera da produo literria; no segundo sintagma, esfera da

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recepo literria (Aguiar e Silva, 1981, 11). Por isso, Rui Veloso sustenta ainda a necessidade de se procurar no sujeito leitor o fundamento do conceito de literatura, neste caso o receptor de um conjunto de obras que ganham feio especial, quer pela temtica, quer pela inteno (Veloso, 1994, 15). Apologista da expresso literatura infantil, considerando-a validada pela tradio, contendo em si uma clara ideia do que efectivamente uma literatura para crianas, podendo os adultos tambm desfrutar dela, Rui Veloso vinca que s literatura infantil aquela que feita por adultos para crianas, excluindo totalmente os textos infantis; estes no so literatura pois no comportam as caractersticas que tipificam o texto literrio, e a que chama de meros exerccios textuais (Idem, op. cit., 16). De acordo com Nelly Novaes Coelho, a literatura infantil , antes de tudo, literatura; ou melhor, arte: fenmeno de criatividade que representa o Mundo, o Homem, a Vida, atravs da palavra e que, na sua essncia, a sua natureza a mesma da que se destina aos adultos. As diferenas que a singularizam so determinadas pela natureza do seu leitor/receptor: a criana (Coelho, 1984, cit. Brito, 2004, 78). Fazendo uso das palavras da autora acima referenciada, Ana Lusa Brito defende que, hoje, e longe de ser vista como um gnero menor em relao rea global da Literatura, a Infantil vem sendo reconhecida como um valor maior. Como verdadeiro ponto de convergncia das realizaes, valores, desvalores, ideais, ideias ou aspiraes que definem a Cultura ou a Civilizao de cada poca (Idem, op. cit., 77). Na mesma linha de pensamento, Antnio Mendoza Fillola define a literatura para a infncia como um conjunto de obras de carcter literrio artstico que se assemelhem a outras produes pelas caractersticas literrias que as definem, assim como livros, principalmente fornecidos criana nas suas etapas bsicas de formao lingustica e cultural, mesmo que apresentem outros tipos de cdigos semiticos (Mendoza Fillola, 1999). Por seu turno, Glria Bastos (1999), no seu estudo sntese sobre a literatura infantil, refere-se ainda subsistncia de dois tipos de produo na rea da literatura para a infncia. Assinala, por um lado, o conjunto das produes literrias destinadas a um pblico especfico, marcadas por especificidades literrias valorosas, contemplando assim gneros de ndole narrativo, lrico ou dramtico. Por outro, e designando-a de literatura anexada, distingue a literatura de tradio oral e as obras que no eram inicialmente produzidas a pensar na criana, mas que foram sendo encaradas como parte da literatura para a infncia. J Alexandre Parafita diz ser frequente definir literatura para a infncia como [] toda a produo editorial que visa a informao e a formao da criana, no que respeita ao traquejo da lngua, desenvoltura intelectual e sensibilidade esttica (Parafita, 2002, 208). Acrescenta que o que a distingue de outros gneros literrios a questo da faixa etria a que se destina. Porm, afirma que so vrias as dvidas colocadas no tocante rea, princi-

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palmente quando se pretende discernir aquilo que literrio daquilo que no o , num contexto infantil. Em consequncia, este autor considera que, apesar de apontar para objectivos bsicos aquisio e potenciao de esquemas mentais, aquisio e cultivo da linguagem, aquisio e implementao de experincias estticas e ticas para que seja literatura, tem, acima de tudo, de ser um objecto artstico. Uma obra de arte portanto (Ibidem). Mais recentemente, em Livros de Palmo e Meio Reflexes sobre Literatura para a Infncia, Ana Margarida Ramos entende por literatura para a infncia toda a produo literria que tenha um destinatrio preferencial a criana, definido, sobretudo, por uma determinada faixa etria e que, apesar de se destinar a um pblico consideravelmente jovem, pode ser concebida como uma produo em tudo semelhante (do ponto de vista da qualidade, do rigor e do sentido esttico e artstico) que produzida para adultos (Ramos, 2007, 67). Depois de uma reviso actual da literatura sobre o conceito em apreo, e procurando unificar os vrios ensaios, consideramos, sumariamente, literatura para a infncia como toda a produo literria, intencionalmente concebida pelo adulto, com vista a atingir um pblico de potencial recepo infantil, atendendo especificidade e faixa etria do seu destinatrio a criana. Incluem-se, ainda, neste quadro, as produes que, no tendo sido originariamente ideadas para a criana, se encaram hoje como parte da literatura que lhe remetida, e a qual nos atrevemos a apelidar de literatura herdada. Por literatura didasclica pensamos o conjunto dos livros cuja inteno seja fundamentalmente didctica e informativa os dicionrios, as enciclopdias ou os prprios livros de imagens 1 didcticos e que, por tal motivo, no julgamos constituir um verdadeiro corpus literrio da literatura para a infncia, seno um subgnero ou uma tipologia adjacente a esta mesma rea editorial. Finalmente, e procurando visar o objecto central do nosso estudo, interessa-nos demarcar os gneros literrios particularmente destinados s crianas, e mais frequentemente expostos em contexto de jardim-de-infncia. A esse propsito, Rui Veloso e Leonor Riscado (2002) consideram que a literatura para a infncia contempla diversos gneros literrios, que vo desde o lrico ao dramtico, passando pelo narrativo. Os mesmos autores asseguram que, no actual panorama literrio portugus dirigido infncia, os mais visitados so os narrativos, nomeadamente os contos tradicionais, populares, e os contos e novelas de autor, referindo tambm a poesia de autor, as rimas tradicionais (trava-lnguas, lengalengas, provrbios e rimances), assim como as obras de domnio teatral. Por sua vez, em trabalho anterior, Rui Veloso defende ainda que uma fruio esttica plena por parte da criana depende do seu contacto com toda esta diversidade de cdigos e obras (Veloso, 1994).

1

Aqui no esto contemplados os lbuns narrativos ilustrados, uma vez que se integram no mbito lite-

rrio.

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2. A LITERATURA PARA A INFNCIA CONTEXTUALIZAO GENRICA DA SUA EVOLUO Seguindo o pensamento de Natrcia Rocha (1984, 17) quando afirma que o livro surge como um fenmeno social por isso deve ser analisado nas suas caractersticas, funes e efeitos, e tambm no quando, como e onde do seu nascimento, procuraremos, numa tentativa de esboar uma breve retrospectiva histrica das origens e evoluo da literatura para a infncia, debruar-nos, agora, sobre os principais aspectos relevados pelos estudos desenvolvidos neste campo. Nesse sentido, centrar-nos-emos sobre as panormicas de Esther de Lemos (1972), Maria Laura B. Pires (1983), Natrcia Rocha (1984) e Jos Antnio Gomes (1997), por se constiturem como as principais referncias na abordagem de uma histria para a literatura portuguesa para a infncia. Pretendemos retratar, nos pargrafos seguintes, apenas os marcos mais significativos que definem evolutivamente o panorama editorial do mbito da literatura para a infncia, evidenciando o surgimento das principais publicaes no quadro ocidental, estreitando o estudo para o caso portugus, onde as edies tm suscitado, nos ltimos anos, vrias reflexes, designadamente acerca da sua especificidade. Procurando, ainda, visar o objecto central do nosso estudo, deter-nos-emos, nesta breve cronologia, na obra de Lusa Ducla Soares, contextualizando-a no actual panorama literrio para a infncia, que conheceu um particular destaque nas ltimas dcadas. 2.1. CONTEXTUALIZAO GERAL O percurso da literatura para a infncia, no Ocidente, nasceu no Humanismo (renascentista) e esteve sempre ligado tendncia de secularizao da cultura (Lemos, 1972). Todo um conjunto de factores que se fizeram sentir nos sculos XVI e XVII, nomeadamente pelas transformaes polticas (emergncia do Estado Moderno), sociais (emergncia de novos grupos sociais, urbanizao), econmicas (constituio de mercados mais alargados, produo em srie), culturais (valorizao da Infncia no final do Antigo Regime, escolarizao), ideolgicas (emergncia de concepes igualitrias), propiciaram a evoluo rpida registada nos sculos seguintes. Tambm a difuso da imprensa facilitou o aumento notvel do nmero de leitores que eram, antes, restritos nobreza de toga e ao clero. E, por outro lado, a literatura oral no deixou de ter um lugar permanente na literatura para a infncia, funcionando como fonte permanente de inspirao. Assistiu-se a uma mudana significativa, no s do pblico leitor como tambm de autores que deixaram de pertencer aristocracia e passaram a ter origem em meios burgueses. Assim, a recepo de livros destinados s crianas decorre, de alguma forma, da conjuntura socioeconmica relacionada ainda com a educao formal. At ento, a cultura era difundida pela oralidade, por contadores de histrias, e diri-

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gida indiscriminadamente tanto aos adultos como s crianas. No entanto, nessa poca marcada pela passagem da difuso do texto oral para a difuso atravs do texto escrito, no se fez notar qualquer distino entre obras para adultos e outras especificamente dedicadas s crianas, na medida em que estas no eram consideradas como verdadeiro pblico com necessidades especficas. A criana era considerada um adulto em miniatura, pertencente a um grupo pblico leitor constitudo, ainda e na sua maioria, por adultos de reduzida instruo. Por isso, no se fez sentir a necessidade de estabelecer uma diferena entre temas para adultos e outros para crianas. A criana tinha acesso aos mesmos textos disponibilizados aos adultos, uma vez que se considerava que se o adulto fosse capaz de compreender um texto, a criana, enquanto adulto em ponto pequeno, tambm deveria ter essa capacidade (Idem). Em Portugal, como em muitos outros pases europeus, a literatura para a infncia estava estreitamente ligada escolaridade e aos seus objectivos. As primeiras obras explicitamente dirigidas s crianas decorreram de intenes expressamente pedaggicas. Em vez de o livro ser encarado como instrumento de recreio e diverso, era visto como meio de instruo/educao. Consequentemente, a literatura para a infncia era apenas aquela que constava dos livros escolares. Fora da escola, at ao sculo XIX, a criana no tinha nada para ler, estava reduzida ao conto tradicional, transmitido pela oralidade (Rocha, 1984). Como refere Ana Lusa Brito, destaca-se, ainda nessa poca, para alm dos contos populares, o recurso aos romances de cavalaria, s obras pedaggicas (nomeadamente cartilhas de aprender a ler), os catecismos, os relatos de viagens, os exemplrios (relatos com funes educativas e moralizantes), as fbulas, a literatura de cordel e h tambm notcia de teatro infantil (Brito, 2004, 81). Neste contexto surge a obra de Gonalo Fernandes Trancoso, Contos e Histrias de Proveito e Exemplo, editada em 1575 e reeditada vrias vezes no sculo XVII (Rocha, 1984). Contudo, as obras que se seguiram pertenciam a uma literatura ainda muito ligada tradio oral, na medida em que se apresentavam, frequentemente, sob a forma do discurso directo e num estilo marcadamente popular. A literatura para a infncia atingiu um maior crescimento no sculo XVIII, fora de Portugal, nomeadamente com os famosos Contes de Ma Mre LOye, de Charles Perrault, e as Fbulas, de La Fontaine, que perduraram at hoje, entre outras obras. O sculo XVIII encerra-se com a obra de Fnelon, Les Aventures de Tlmaque (1699) (Rocha, 1984, 37). J em Portugal, s a partir do sculo XIX que os escritores que se debruaram sobre o assunto, como os da nomeada Gerao de 70, situam o surgimento da literatura para a infncia. Um maior interesse sobre a compreenso da infncia e da sua natureza revela, ainda, uma outra preocupao, designadamente em perceber se se comeou a escrever para crianas ou se paradoxalmente se comeou a escrever sobre elas.

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2.2. ORIGENS E EVOLUO DA LITERATURA PARA INFNCIA EM PORTUGAL A preocupao em criar uma literatura para a infncia, no nosso pas, nasceu em resultado dos estudos folclricos, na altura em que as teorias positivistas procuravam sistematizar a ideia romntica do povo criador e do poema como obra de arte colectiva. Os contos tradicionais que, desde sempre, tinham servido para adormecer ou entreter as crianas, passaram a ser os pioneiros da literatura para a infncia em Portugal e vistos como o alimento espiritual mais natural que se podia proporcionar criana (Lemos, 1972). 2.2.1. SCULO XIX As colectneas de contos tradicionais dedicados s crianas multiplicaram-se ao longo do sculo XIX. Nessa altura, sentiu-se uma grande escassez de obras originais, tornando-se mais fcil a adaptao de histrias j existentes do que propriamente a sua inveno, para um pblico que afinal se revelou to especial, e sobre o qual a maioria dos autores sabia bem pouco (Idem). Como referimos anteriormente, a literatura portuguesa para a infncia s teve verdadeira expresso a partir dos meados do sculo XIX, com o aproveitamento da literatura de adultos para as crianas, com as fbulas, contos tradicionais ou at mesmo atravs de exemplos da histria. At ento, como se verificou noutros pases, o livro servia exclusivamente de instrumento didctico. Os exemplos e as fbulas (Esopo e Fedro) foram dois gneros que, desde cedo, passaram da literatura adulta para o uso das crianas mas, durante muito tempo, com uma finalidade e utilizao quase puramente escolares. As fbulas de Esopo eram utilizadas como forma de transmisso de valores; constituam a base da cultura popular que transmitiam os saberes de referncia para cada circunstncia. Fora desse contexto, a criana tinha somente acesso a histrias atravs dos contos tradicionais conhecidos por transmisso oral (Idem). A literatura portuguesa para a infncia conheceu uma rpida evoluo e um particular arranque com a pioneira Gerao de 70 que, nas dcadas seguintes revoluo republicana, revelou contributos decisivos para que se possa considerar este o perodo impulsionador da literatura portuguesa de potencial recepo infantil (Gomes, Ramos e Silva, 2007). Em 1887, Guerra Junqueiro (1850-1923) publica Os Contos para a Infncia, onde o autor declara que para educar as crianas preciso am-las. As escolas devem ser o prolongamento dos beros. Por isso, os grandes educadores, como Froebel, tm uma espcie de virilidade maternal. O leite o alimento do bero, o livro o alimento da escola (Lemos, 1972, 11). No ltimo quarto do sculo XIX, verifica-se o predomnio da literatura tradicional. Em 1879, aparece uma colectnea dos Contos de Andersen, organizada por Gabriel Pereira. Em

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1882, Maria Amlia Vaz de Carvalho (1847-1921) considerava fundamental fornecer s crianas contos que elas entendessem, que as interessassem, que as fizessem rir e chorar. Assim, com base nos contos de Grimm e Andersen, e com a colaborao do seu marido Gonalves Crespo, surgem Os Contos para os Nossos Filhos. Em 1883, foram editados por Salomo Saragga dois volumes dos Contos de Grimm e, em 1888, aparece outra colectnea de Andersen. Mais tarde, em 1897, Lusa de Albuquerque publica outra colectnea de vrios contos tradicionais. E no ano seguinte (1898) surge outra de Antnio Pena, prefaciada por Carolina Michalis (Idem). Somente a partir dessa altura os autores comearam a escrever para a criana em moldes mais semelhantes aos actuais (Pires, 1983, 71). No entanto, j Esther de Lemos dizia que o facto de no existir uma literatura diferente da que hoje achamos adequada s crianas do sculo XIX no nos deveria, na [sua] opinio, levar a concluir que no h literatura infantil em Portugal seno a partir da segunda metade do sculo XIX (Lemos, 1972, 15). Estabelecendo uma relao com a produo anglo-saxnica destinada infncia, Ea de Queirs (1845-1900) criticou o atraso e incompreenso do povo portugus face a esta problemtica. Mas ainda com a expectativa de uma breve mudana, aconselha uma leitura graduada por idades: salienta a importncia da ilustrao, do desenho e da cor, do preo baixo e da funo pedaggica, entendida no sentido amplo e rico (Pires, 1983, 72). Para este contexto, Maria Laura B. Pires aponta como principais factores os contactos com o estrangeiro, assim como o desenvolvimento dos meios de comunicao, que abriram o nosso pas ao resto da Europa e trouxeram uma certa expanso cultural. Segundo a autora, tambm o entusiasmo pelo progresso educacional e pela difuso do ensino estiveram na origem da renovao destas concepes (Idem, op. cit., 73). 2.2.2. SCULO XX E ANTECEDENTES A partir dos ltimos anos do sc. XIX e os primeiros do sc. XX, em Portugal, registaram-se vrias mudanas ao nvel poltico e cultural, nomeadamente j no perodo que antecede o golpe militar de 28 de Maio de 1926, atingindo os domnios da educao e, consequentemente, da literatura para a infncia (Gomes, 1997). De facto, neste perodo, onde se iniciou o sculo da criana, assistiu-se a um aumento notrio da produo de livros a ela destinados. Surgem novos estmulos culturais, designadamente com a intensificao da propaganda republicana (e da monrquica que se lhe opunha) e da revoluo pedaggica, iniciada por Pestalozzi e Froebel, indutores de uma mudana de atitudes face infncia (Lemos, 1972). Assiste-se, tambm, ao surgimento de numerosas colectneas de livros para crianas, nas quais se destacam as fbulas e obras de carcter tradicionalista, predominando nomes

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tais como os de Almeida Garrett (1799-1854), Guerra Junqueiro (1850-1923) e as tradues ou adaptaes de Charles Perrault, Jakob e Wilhelm Grimm ou ainda, Hans Christian Andersen (Pires, 1983). O conto popular foi outro gnero que ganhou maior relevo nestas dcadas, particularmente com a publicao de obras da autoria de Francisco Adolfo Coelho 1 (1847-1919), Tefilo Braga 2 (1843-1924) e Alexandre Herculano (1810-1877). J no ltimo quartel do sculo XIX, emerge a clebre obra pedaggica de Joo de Deus (1830-1896), tambm fabulista e poeta, que prope um novo mtodo global de leitura na sua Cartilha Maternal (1876), revelando-se, ento, empenhado em renovar e divulgar o ensino da primeiras letras (Idem, op. cit., 82). ainda neste perodo que aparecem as primeiras revistas infantis, devido ao desenvolvimento das tcnicas de impresso e ao aumento do pblico leitor, e que se revelaram como as precursoras das inmeras publicaes, que viriam a surgir no sculo XX (Idem, op. cit., 86). Nas ltimas dcadas deste sculo, foram, igualmente, dados os primeiros passos no campo do teatro infantil, com vrias peas publicadas por Maria Rita Chiappe Cadet, entre 1883 e 1885, intituladas A Mascarada Infantil e O Primeiro Baile. Vivem-se grandes transformaes no que respeita aos modos de vida e s relaes familiares, nomeadamente nas leituras que deixam de ter tanta visibilidade nos seres familiares, verificando-se uma ruptura entre o livro que era, at ento, expressamente dirigido aos adultos e o livro para crianas, que passam a ser o seu destinatrio preferencial (Pires, 1983, 91). Por esses motivos, assistimos ao aparecimento de uma nova viso da literatura para a infncia que, segundo Maria Laura B. Pires, [] adquiriu a sua dimenso prpria e deve ter como fim estimular a imaginao, desenvolver o sentido de humor, encorajar o gosto pela literatura em geral e alargar a compreenso de outras raas e pases (Ibidem). De facto, comeou a dar-se maior importncia educao de infncia e, mesmo em termos polticos, importava formar as crianas, na medida em que, as geraes mais novas eram aquelas que haviam de, ou no, assegurar continuidade ao ideal revolucionrio (Lemos, 1972, 19). Com a revoluo republicana, nasceu um novo esprito relativamente literatura para a infncia: Urgia despertar nos espritos, o sentido cvico que substitusse as velhas ideias de fidelidade e obedincia, e desse a cada cidado a conscincia da responsabilidade que tinha no progresso do pas (Ibidem). Por isso, h afirmaes de que os ideais democrticos e republicanos dominantes no perodo compreendido entre 1910 e 1926, as goradas preocupaes em torno da alfabetizao, da educao pr-escolar e escolar e a afirmao pblica dos valores da liberdade, da instruo, do trabalho e do progresso, a par do1 2

Em 1879, publica a primeira colectnea portuguesa sob o ttulo Contos Populares Portugueses. Em 1883, publicou a colectnea Contos Tradicionais do Povo Portugus com um Estudo de Novelstica em

Geral.

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incremento da imprensa infantil e das publicaes para a infncia, tero concorrido para a criao de um clima propcio conformao de uma nova literatura para a infncia em Portugal, mais consciente da sua dimenso ldica e esttica e mais liberta, desse modo, da intencionalidade pedaggica e moralizante que inquinou muito da produo anterior (Gomes, Ramos e Silva, 2007, 14). A literatura para a infncia coeva acusa, em parte, o impulso dessas tendncias. Isto verifica-se com Ana de Castro Osrio 1 (1872-1935), considerada como a principal impulsionadora da literatura portuguesa para a infncia, cujos trabalhos vieram a lume no sculo XX, e que, a partir de 1897, publicou uma srie de fascculos contidos na sua revista Para as Crianas, onde predominam contos tradicionais tirados da boca do povo, direccionados para a educao cvica e patritica imposta pelos novos ideais (Lemos, 1972). Esta inteno manifesta-se tambm noutra obra da autora em questo, publicada em 1918, De Como Portugal Foi Chamado a Entrar em Guerra Histrias para Crianas. E como ela, muitos outros autores apareceram nessa poca dentro do mesmo esprito, fazendo-se sentir a ideia de que a literatura parece estar ao servio da propaganda. Muitos autores tentaram combater essa tendncia, mas nenhum conseguiu alcanar o grande objectivo de formar, simultaneamente, o gosto literrio e a defesa de um ideal de vida (Idem). Com o passar do tempo e em resultado de mltiplas transformaes, aumenta significativamente a produo de livros dirigidos infncia. Nas primeiras dcadas do sculo XX, com a particular finalidade de combater o analfabetismo em Portugal, surgem obras de carcter pedaggico e formativo, de figuras como Jos Francisco Trindade Coelho 2 (18611908), Maria Amlia Vaz de Carvalho (1847-1921), Ana de Castro Osrio (1872-1935), ou ainda, Virgnia Castro e Almeida (1874-1945), entre muitos outros (Pires, 1983). Tambm por esses anos, durante o perodo da Primeira Repblica e a primeira fase da ditadura salazarista, se traavam em Portugal outros movimentos, mas desta vez de cariz nacionalista, ou seja, mais especificamente ligados tradio e aos valores do pas. No entanto, esta ainda no era considerada literatura puramente dedicada s crianas. Os autores procuravam, de uma forma simples, ensinar e transmitir narrativas ligadas histria e da vida de Portugal. Surgem, ento, obras inspiradas em poesias marcadas at hoje na histria da literatura para a infncia, como Os Lusadas (1572) e A Nau Catrineta (1703). Afonso Lopes Vieira (1878-1946) e Jaime Corteso (1884-1960) foram dois dos autores que revisitam a histria dos descobrimentos portugueses nos seus textos.1

Em 1899, Ana de Castro Osrio publica uma colectnea de contos no livro Alma Infantil. Em 1907, funda O Jornal dos Pequeninos e, em 1922, publica a obra Viagem Aventurosa de Felcia e Felizardo. 2 Na mesma linha de pensamento de Joo de Deus relativamente alfabetizao, Trindade Coelho publica em 1901, o ABC do Povo.

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Nos anos aps a Primeira Guerra Mundial, a literatura para a infncia conquistou um prestgio indubitvel. Escrever para crianas passou a motivar um nmero aprecivel de escritores para os quais esta produo literria era significativa. Nessa linha de pensamento, surgem vrias obras da autoria de Antnio Srgio (1883-1969) tais como, uma colectnea de contos tradicionais intitulados Na Terra e no Mar, datado de 1924; Contos Gregos (1925), A Dana dos Meses (1926), O Rato Pelado (1926), ou ainda, Os Conselheiros do Califa, em 1927. A seguir, surge uma das obras certamente mais significativas no panorama da literatura para a infncia do sculo XX, pela mo do grande romancista e novelista Aquilino Ribeiro (18851963), que se destaca com aquele que seguramente o clssico mais evidente da nossa literatura para a infncia: O Romance da Raposa (1924), publicao pela qual veio quebrar a tradio que at ento prevalecia nos textos destinados aos mais novos. Mais tarde, e com essa mesma qualidade literria, Aquilino Ribeiro assina, em 1933, uma adaptao sob o ttulo de Peregrinao de Ferno Mendes Pinto: Aventuras Extraordinrias de Um Portugus no Oriente e, em 1962, escreve O Livro de Marianinha: Lengalengas e Toadilhas em Prosa Rimada, que s publica mais tarde, em 1967 (Gomes, 2005). Esta a idade do intimismo e do psicologismo, uma vez que, na primeira metade do sculo XX, era atribuda uma enorme importncia ao universo da criana, que passa a ser objecto de correntes artsticas como o dadasmo e o surrealismo. Mas como consequncia destas tendncias, surgem incertezas quanto produo de obras para crianas e obras cujo tema a infncia. Pode aqui ser referido Antnio Botto (1897-1959) com os seus temas O livro das Crianas (1931) e O Meu Amor Pequenino (1934), ou ainda Augusto de Santa Rita (1888-1956), que, com a sua colectnea O Mundo dos Meus Bonitos, publicada em 1920, se afasta completamente do livro para crianas (Pires, 1983). Mas, se as tendncias gerais da literatura originaram algumas discusses, tambm elas favoreceram nos autores, com a verdadeira vocao para a literatura para a infncia, o aprofundamento e enriquecimento dos temas e figuras, a delicadeza e naturalidade das descries, o sentido potico do real (Lemos, 1972, 26). O perodo entre as duas guerras fica marcado na nossa literatura para a infncia, pois, para alm dos grandes nomes que se destacaram pelo seu contributo, aparece um leque de escritores especializados na rea da literatura para a infncia que, pelo seu interesse narrativo e pela qualidade literria das suas obras, se distinguem dos anteriores. Fernando de Castro (1889-1946) e Adolfo Simes Mller (1909-1989) foram dois desses autores que revelaram a sua capacidade de escrever para pequenos leitores (Idem). Na perspectiva de Jos Antnio Gomes (1997), os anos 60 foram expansivos, trazendo literatura para a infncia duas tendncias: por um lado, o conservadorismo, implicando uma aceitao dos princpios tradicionalistas instaurados pelas ideologias do Estado Novo, e,

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por outro, o humor e a crtica, assistindo-se ento a uma literatura que pe em causa a realidade social vigente, ao mesmo tempo que prope modelos de conduta inovadores. no ltimo quartel do sculo XX, precisamente em 1970, que se estreia Lusa Ducla Soares, escritora contempornea de textos literrios para a infncia, com o seu primeiro volume de poesia, intitulado Contrato. Dois anos depois, Lusa Ducla Soares publica a sua primeira obra destinada s crianas: Histria da Papoila, pela qual, em 1973, o Secretariado Nacional de Informao (SNI) pretendeu atribuir-lhe o Grande Prmio de Literatura para a Infncia Maria Amlia Vaz de Carvalho, mas que a autora recusou, por motivos ideolgicos e polticos. Novas mudanas decorrem do 25 de Abril de 1974, nomeadamente aos nveis poltico, socioeconmico e cultural. Jos Antnio Gomes sustenta que o fim da Censura, a livre expresso e circulao de ideias e a abertura de Portugal ao exterior favoreceram o aparecimento de iniciativas ligadas reflexo sobre o mundo da criana, a par de uma certa renovao no domnio da literatura que lhe destinada a qual resulta da possibilidade de escrever e publicar num clima de liberdade (Gomes, 1997, 43). Com os progressos tcnicos das artes grficas assiste-se ainda revelao de um novo gnero literrio o lbum narrativo que conheceu um boom significativo por volta dos anos 60/70 do sculo XX, em alguns pases de Europa, como foi o caso do Reino-Unido, da Alemanha ou ainda da Frana, com a afirmao de nomes que ainda hoje so referncias neste mbito e dos quais distinguimos, a ttulo meramente exemplificativo, Maurice Sendak, Mercer Mayer e Leo Lionni. Em Portugal, todavia, s comearam a aparecer os primeiros lbuns, nos finais dos anos oitenta e na dcada de noventa. Foram vrios os autores que, ao nvel internacional, se destacaram enquanto criadores de lbuns para crianas. Alguns dedicaram-se somente sua escrita, outros tomaram o duplo papel de autores/ilustradores. Contudo, em Portugal, esta uma rea ainda pouco explorada e, por isso, o nmero dos seus autores no muito significativo, destacando-se a produo de figuras como Leonor Praa, Maria Keil, Cristina Malaquias, Manuela Bacelar e, mais recentemente, Marta Torro ou Alain Corbel, entre outros (Gomes, 2003; Ramos, 2007). Nas ltimas dcadas do sculo XX, precisamente no perodo decorrente entre os finais dos anos 70 e os princpios de 90, a literatura infanto-juvenil conhece uma maior evoluo em Portugal. Na origem deste acontecimento esto fenmenos como a renovao de numerosas bibliotecas escolares; a criao da disciplina de Literatura para a Infncia, nos cursos de formao inicial de educadores de infncia e de professores do Ensino Bsico, nas escolas do Magistrio Primrio e, mais tarde, nas Escolas Superiores de Educao; a divulgao crescente de exposies, seminrios, colquios, e aces de formao no mbito desta rea da literatura; a publicao de alguns volumes, como o caso das publicaes de Maria Laura Bettencourt Pires, com a sua Histria da Literatura Infantil em Portugal (1983), assim como Natrcia

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Rocha, com uma Breve Histria da Literatura para Crianas em Portugal (1984), ambas editadas nos anos 80; a manifestao das primeiras revistas sobre crtica literria; e o surgimento de um conjunto de trabalhos de investigao, realizados no mbito de mestrados, e que continuam a ser referncia nos estudos da Literatura para a Infncia em Portugal (Gomes, 1997). 3. A LITERATURA PARA A INFNCIA E O UNIVERSO DA CRIANA

A aventura de ler comea muito cedo. A leitura uma aprendizagem social que ultrapassa o quadro escolar, comeando muito antes da entrada na escola. A leitura comea antes da leitura. A criana l o mundo que a rodeia muito antes de ler um livro. O mundo um livro aberto. L o sorriso da me que se debrua no bero, l a natureza, l a cor e a forma dos objectos que lhe so familiares (Traa, 1992, 75).

Pelo caminho longo e complexo, que percorre desde a sua entrada na educao prescolar at ao final do 1 ciclo da educao bsica, a criana passa por inmeras transformaes a vrios nveis, sejam eles de ndole fsico, psicolgico, lingustico-literrio, social, entre outros (Couto, 2003). A literatura para a infncia apresenta-se como um mediador, por excelncia, na transmisso de saberes, ao qual a criana tem acesso desde mais tenra idade. Neste sentido, parece-nos relevante uma anlise do seu papel na prpria formao da criana. 3.1. INTERESSE DA FAIXA ETRIA NA RELAO CRIANA/LIVRO Segundo Ramiro Marques (1991), a relao que a criana estabelece com a literatura para a infncia, pelo menos de forma consciente, tem como veculo prioritrio o livro. Natrcia Rocha (1984) sustenta que, para uma melhor compreenso do afinco desta relao, devem ser tidas em considerao as alteraes que se tm feito sentir no que respeita ao estatuto da criana na sociedade e ao tipo de livros que lhe so destinados, isto perante os progressos entendidos na rea da psicologia infantil. Vrios estudos tm sido elaborados no sentido de se analisar a forma como utilizada a literatura para a infncia em contexto de jardim-de-infncia e se perceber qual o seu impacto na prpria formao da criana. Tal como o estudo realizado por Robert Thorndike, outros tm permitido verificar que as crianas a quem so lidas histrias desde tenra idade so aquelas que, posteriormente, se tornaro mais hbeis na leitura (1973, in Hohmann & Weikart, 1997, cit. Brito, 2004). Pesquisas recentes tm demonstrado ainda a pertinncia de outros domnios ligados s relaes da criana com a leitura. Em Becoming a Reader. The Experience of Fiction from Childwood to Adultood, J. A. Appleyard demonstra que, para alm das estruturas cognitivas que

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caracterizam a criana, tambm o seu envolvimento afectivo, as relaes interpessoais e os papis sociais so outros agentes significativos na determinao da relao que poder estabelecer com o livro. No nos , por tal, possvel encar-lo como linear, uma vez que por estar submetido a outras influncias, define-se como um processo complexo e, por conseguinte, sujeito ao possvel fracasso (Appleyard, 1991, cit. Bastos, 1999). Na opinio de Appleyard, distinguem-se cinco fases na apropriao da leitura, desde a idade pr-escolar idade adulta, referindo-se a atitudes e intenes por parte do leitor, determinantes na sua relao com a leitura. O mesmo autor discrimina assim o leitor enquanto player (pr-escolar); o leitor como heri (1 e 2 ciclos); o leitor como pensador (adolescncia); o leitor enquanto intrprete (estudante do secundrio/universitrio); e o leitor pragmtico (idade adulta) (Ibidem). Atendendo ao nosso interesse em situarmos esta dissertao em contexto pr-escolar, o primeiro leitor, enquanto player, que se afigura para ns de maior interesse. Trata-se de uma fase em que a criana, ainda ouvinte de histrias, assume o lugar de actor principal na superao dos seus conflitos interiores. A relao que a criana estabelece com a leitura est, como vimos anteriormente, associada a especificidades psicolgicas mas tambm de ndole scio-emocional. Ainda na sua origem, est o lugar da famlia e, consecutivamente, da escola enquanto veculos privilegiados na orientao e promoo da leitura. E no podemos, todavia, deixar de nos questionarmos acerca da faixa etria, tambm factor relevante do desenvolvimento psicolgico e afectivo da criana. Assim sendo, parece-nos exequvel estabelecer uma analogia entre os interesses de leitura e o desenvolvimento psicolgico da criana. Com a mesma concepo, Juan Cervera apresenta-nos algumas adaptaes do quadro proposto por Jean Piaget, no qual se distinguem quatro estdios de desenvolvimento, desde o nascimento at adolescncia: Estdio sensrio-motor (dos 0 aos 2 anos); estdio pr-operatrio (dos 2 aos 7 anos); estdio das operaes concretas (dos 7 aos 11/12 anos); e estdio das operaes formais (dos 11/12 aos 15 anos). Contudo, e procurando, uma vez mais, centrar o nosso estudo em crianas de idade pr-escolar, concentrar-nos-emos apenas nos dois primeiros estdios. Desta forma, e apoiando-nos na teoria piagetiana, dedicaremos ateno ao estdio sensrio-motor (dos 0 aos 2 anos) ao qual esto associadas, nos primeiros meses, as rimas infantis e, a partir do primeiro ano, surge a necessidade do contacto com livros de jogos e lbuns simples que ofeream imagens representativas de objectos do meio mais prximo da criana. O estdio pr-operatrio (dos 2 aos 7 anos) est directamente relacionado com a apario da funo simblica e das estruturas bsicas de aquisio da linguagem. Estas funes permitem que a criana esteja progressivamente apta para as operaes fundamentais como a representao. Permitem-lhe actuar sobre as coisas, no s materialmente, mas tambm interiorizando os esquemas de aco em

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representaes e realizando ainda imitaes temporizadas (Cervera, 1991). Nesta etapa da sua formao, a criana vai reconstruindo as aquisies anteriores e organizando os dados recebidos atravs dos sentidos, categorizando, assim, a realidade (Couto, 2003). Cervera salienta como uma das caractersticas primaciais do comportamento intelectual da criana, o egocentrismo, que, segundo o autor, se articula com trs outras categorias: o realismo, em que a criana adopta a sua perspectiva do mundo como objectiva e absoluta, buscando assim coisificar os seus pensamentos, sentimentos e fantasias; o animismo, que conduz a criana a atribuir vida a objectos inanimados e explica a sua preferncia por contos e fbulas com personificaes e antropomorfismos; e, por fim, o artificialismo, relacionado com a atribuio da origem das coisas naturais aco explcita de um criador (Cervera, 1991). Cervera argumenta que na sua descobe