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D- PEDRO V
O SEU REINADO
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ACADEMIA DAS SCIENCIAS DE LISBOA
D. PEDRO V
O SEU REINADO
POR
JÚLIO DE VILHENASÓCIO EFECTIVO DA ACADEMIA DAS SCIENCIAS DE LISBOA
VOLUME I
COIMBRAIMPRENSA DA UNIVERSIDADE
1921
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DP
iV
610415
'*7.s-r*
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Tendo chegado ao nosso conhecimento e exame os
documentos inéditos, colhidos pela comissão da Aca-
demia das Sciências de Lisboa, encarregada de coli-
gir, afim de serem publicados por esta corporação, os
trabalhos de D. Pedro V, observámos, pela sua leitura,
que a figura do Rei nos aparecia sob uma face nova,
muito diferente daquela que a tradição lhe atribuía,
sem, contudo, nada perder da sua primacial grandesa.
Lembrou-nos então que não seria inútil para a história
do país, no curto período do reinado daquele monarca,
coordenar os documentos, pondo- os no lugar próprio
e acompanhando-os de algumas ligeiras considerações
que lhes ajudassem a interpretação.
E assim, descrevendo a quadra e as circunstâncias
do ambiente, em que se manifestou a acção do Rei, po-
deríamos concorrer para a justa apreciação da sua
pessoa e da sua obra.
Para dar uma impressão exacta dos acontecimentos
preferimos, geralmente, deixar falar os próprios pro-
tagonistas, suposto não seja sempre pura a sua lingua-
gem, e não raro a própria gramática s&fra algumas
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irreverências. Mas a sua boca repela melhor o seu
pensamento do que o faria a nossa pena.
O período, em que viveu D. Pedro V, é triste e não
mereceria, certamente, o tempo que gastámos em o des-
crever, se não fosse a figura do Rei. A história não
se inventa e não pode, somente para recreio do autor,
converter-se em facto épico de pomposa narração o
que de si é mesquinho e, por ve\es, demasiadamente ri-
dículo.
A máquina constitucional, durante esta época, fun-
cionou desastradamente. Nenhum dos poderes do Es-
tado cumpria os seus deveres. O poder legislativo,
principalmente na câmara dos pares, onde pontificavam
o conde da Taipa, o marquês de Valada, o conde de
Tomar, o visconde de Fonte Arcada e o barão de
Porto de Mós, oferecia o exemplo de uma instituição
corrompida, não só pela natureza das questões que ali
se controvertiam, senão porque os interesses próprios
eram defendidos sem rebuço pelos seus membros. O
projecto de lei sobre os morgados, aprovado pela câ-
mara popular, arrastou-se numa discussão inglória por
espaço de dois anos, e, emfim, voltou à outra câmara,
crivado de emendas, todas com o intuito de manter
as prerrogativas da velha aristocracia, que tinha na
câmara alta os seus maiores representantes.
Havia, sem dúvida, naquela câmara homens de valor,
mas, na grande maioria e na sua função colectiva,
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— VII
era uma instituição condenada, desconhecendo inteira-
mente a missão que tinha de cumprir no regimen par-
lamentar. A câmara dos deputados era o que foi
sempre entre nós : maiorias sem pudor, aprovando tudo
quanto agradava aos governos que as elegiam.
Isto no que respeitava ao poder legislativo.
No tocante ao poder judicial, em época nenhuma
esteve mais corrompido.
Os moedeiros falsos, os assassinos, e em especial, os
da Beira, encontravam decidida protecção no júri, e
não menos nos juizes togados.
O poder executivo era, ainda assim, o que melhor
funcionava, conquanto, por ve\es, abusasse sobretudo
em assuntos eleitorais.
Por fim, até o poder moderador, depositado nas
mãos de um Rei sábio e justo, saia da órbita das suas
atribuições, ingerindo-se constantemente na função do
poder executivo!
Em suma: A máquina constitucional não desempe-
nhava a sua função geral, porque nenhum dos seus
órgãos exercia rigorosamente a sua função especial.
Não obstante, o período não foi inútil para o pro-
gresso da nação, pois que foi durante êle que se acen-
tuou a idea, já em começo de realização, dos melhora-
mentos materiais. As qualidades da raça portuguesa
também se não perderam, porque, sobre representadas
na poderosa individualidade do Rei, encontraram-se,
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em todo o seu nobilíssimo vigor, durante a cholera-
-morbus e a febre amarela. Altruísta, generosa, cheia
de abnegação até à morte, a raça esteve ao lado dos
doentes, fe% subscrições, fundou asilos, amparou órfãos,
e entre as 6:000 vítimas da febre amarela viu morrer
no seu posto, além de muitos padres, i3 médicos e
16 farmacêuticos.
De todos estes acontecimentos nos ocupámos nos lu-
gares competentes.
Ao livro chamámos D. Pedro V e o seu reinado,
porque é principalmente o papel que o Rei desempenhou
que pretendemos acentuar.
Não é um panegírico que fademos; quem o quiser ler
procure os folhetos dos irmãos Castilhos, o discurso
académico de Rebelo da Silva, os artigos necrológicos
de Latino Coelho e de João de Deus, e tantos outros
que poluíam na literatura laudaiória da época. Esta
obra é talve%, aos olhos de muitos, excessivamente
cruel, porque vai arrancar o Rei às tradições mís-
ticas da lenda que, no volver dos anos, acrescentariam
?nais um santo ao agiológio lusitano.
Mas se, por um lado, se perde um São Pedro Vora pro nobis, por outro resiitue-se à história um vulto
humano, grandioso em tudo até nas próprias paixões.
Filemos todos os esforços por manter a imparciali-
dade em nossos jui^os. Aonde o Rei se mostra sublime,
não lhe roubámos o elogio; aonde se mostra menos
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IX
ponderado, não lhe poupámos o castigo. O Rei pode
bem com os rigores da crítica, porque, por mais ríspida
que seja, não lhe chega sequer ao pedestal da estátua.
Só os irremediavelmente perdidos teem direito a com-
paixão da história.
Esta obra poderá servir de preâmbulo à compilação
que a Academia vai publicar, mas cumpre di^er que
é da exclusiva responsabilidade do seu autor, e nada,
quanto a opiniões, tem com ela a colectividade.
Aras Notas elucidam-se ou consignam-se algunsfactos
da história contemporânea, que anda, em grande parle,
transviada da verdade. A mentira de ontem tende,
cada dia, a converter-se na história de hoje e, seguindo
a mesma traça, a mentira de hoje na história de
amanhã.
Não se indaga, não se investiga, aceita-se a calúnia
do jornal ou do panfleto como guia intemerato, e com
um pouco de estilo romântico atira-se ao público um
livro de história, no género do Portugal Contempo-
râneo. O documento, que é tudo, escalda as mãos, e é
maisfácil substituí-lo por um período defácil redacção,
do que procurá-lo pacientemente nos arquivos onde foi
sepultado. A história contemporânea de todo o sé-
culo xix precisa de uma larga e funda revisão.
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CAPITULO IX
Sumário.—Abertura da sessão em 4 de Novembro de 1857.—Leis
publicadas, mas não votadas pelas câmaras.— Adiamento para
9 de Dezembro. — Cresce a febre amarela. — Como apareceu
e alastrou. — Número das vítimas. — Procedimento do Rei.
—
Em S. Carlos e em D. Maria. — Meios religiosos contra a epi-
demia. — Morte do Patriarca. — Insinua-se que a epidemia vai
decrescendo.— Ávila deixa a pasta da justiça em 7 de Dezembro.
— Entrada de José Silvestre Ribeiro. — Reabertura do parla-
mento em 9.— Não aparecem os deputados às sessões.— Umaquestão complicada resolvida no intervalo das sessões.— Con-
flito de Macedo com a Academia.— Suas origens.— Herculano
pede a demissão da Academia e da compilação dos Documentos
históricos.— Carta à Academia. — Ataque a Rodrigo da Fon-
seca. — A questão no parlamento. — Diversas formas por que
se apresenta.— Aposentação de Macedo.— Herculano regressa
à Academia e aos trabalhos do Portugaliae Monumento..
Encerrou-se, emfim, a primeira sessão da legislatura
em 1 1 de Julho, e foi marcada a segunda sessão para 4de Novembro. Assim o mandava a nova lei de 16 de
Julho, filha da iniciativa do conde de Samodaes.
Mas ainda quiseram os fados que, antes de se en-
cerrarem as cortes, fossem publicados, como leis e coma devida sanção rial, dois simples projectos que não
tinham sido aprovados pelas câmaras, sendo um relativo à
organização do depósito geral de cavalaria e outro con-
siderando comissão do ministério público o lugar de se-
cretário do supremo tribunal de justiça. Quando a
comissão da câmara foi expor o caso ao Rei, diz a
folha oficial que Sua Magestade «se dignou responder,
fazendo ponderações acerca do motivo que deu lugar a
esta mensaeem».
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— 208 —As ponderações é que se ignora quais fossem, mas
considerado o carácter do Rei, adivinha-se que seriam
pouco elogiosas para a secretaria da câmara.
^Ea concordata? Essa estava aprovada e fechada a
sete chaves. Havemos de a encontrar oportunamente.
Agora achamo-nos com uma temperatura de 37,5
graus, em 19 de Julho, e com a febre amarela a crescer
prodigiosamente.
Na sessão de 8 de Junho, houve referências à epidemia,
na câmara dos pares. Já quando era ministro do reino
Júlio Gomes, se falava na existência da febre amarela
no Porto, cuja população comercial se opunha à adopção
de medidas sanitárias, alegando que esse flagelo estava
apenas a bordo dos navios e não tinha qualquer foco
dentro da cidade.
Em Lisboa mesmo, o conselho de saúde informou o
governo, dizendo que, depois de ser visitado um país
pela cólera mórbus, vinha sempre, em seguimento à
desaparição desse flagelo, outra grave enfermidade que
se não podia bem classificar. Em Junho, pois, ainda
não estava verificada a existência da febre amarela.
Sabia-se apenas (1) que, em Maio, no Largo de Santo
António, a S. Paulo, na casa n.° 4, 3.° andar, se reco-
lhera um marítimo vindo do Algarve, ao qual sobreveiu
uma febre com sintomas ataxo dinâmicos e hemorragias
de pele.
Na mesma casa, adoeceram depois, e sucessivamente
com os mesmos sintomas, mais nove pessoas da família
da casa ou que a ela vinham habitualmente. A doença
parecia ter carácter puramente tifoso.
As câmaras funcionavam regularmente e, do mesmomodo, todos os serviços públicos. Ainda na sessão de
1 1 de Julho, a última do ano, Sua Eminência presidira
(1) CU. Rei, pág a,
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— 2og —à câmara dos pares, mal pressentindo que a febre
amarela o havia de levar deste mundo
!
Foi no dia 22 que um empregado nos trabalhos bra-
çais da alfândega adoeceu com calafrios cefalalgia supra-
-orbitária, e em seguida, ao terceiro dia, febre, comvómito bilioso, e ao quarto dia o vómito depositava
fragmentos côr de tabaco: o doente tornou-se ictérico*
delirou e morreu ao quinto dia ( 1).
Era, sem a menor dúvida, a febre amarela
!
Alastrando em pouco tempo por toda a cidade, ela
tinha atacado até o fim do ano 1 3:757 pessoas. Destas
foram tratadas em suas casas, segundo as participações
dos facultativos assistentes 77:842 e nos hospitais 5:qi5.
O conselho de saúde julga que este número deve
reputar-se muito inferior ao verdadeiro, em relação às
pessoas tratadas em casa, porque resultando ele das
participações enviadas quási exclusivamente pelos de-
legados e subdelegados de saúde, faltam ainda muitos
casos observados por outros facultativos da capital, que
não deram parte dos que ocorreram na sua prática.
Assim, não será exagero avaliar o número dos atacados
em 18:000. O número dos falecidos foi de 5:652, a
saber: 3:466 nos domicílios e 1:932 nos hospitais es-
peciais e ainda 254 em outros. Homens faleceram nos
domicílios 2:061 e mulheres 1:405. Médicos morreram
i3 e farmacêuticos 16.
<;0 que fazia o Rei?
IFugia da peste como D. Manuel e D. Sebastião?
Não. D. Pedro arrostava valentemente com o flagelo
e desempenhava o seu ofício de reinar com a suprema
coragem e abnegação.
Agora não era o sábio no seu gabinete; não era o
mestre dos seus ministros; era o pai dos seus súbditos
(1) Todas estas indicações são fielmente extraídas do Boletim
Oficial.
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acompanhando-os na sua desgraça, chorando com eles
e prodigalizando-lhes todos os auxílios, carinhos e
afectos. Nunca houve Rei, em semelhante ocasião,
maior do que este!
#
Era preciso não assustar mais a população, já de si
aterrada pelo desenvolvimento da epidemia. Fingia-se
que corria tudo normalmente. No Diário de 26 de
Agosto anunciava-se a abertura de S. Carlos na época
seguinte com os respectivos preços : assinatura de umcamarote de i.
a ordem 55o$ooo réis; um logar de
plateia superior 960 réis; dois pintos, como então se
dizia; plateia geral, 600 réis; e galeria, 32o réis. Nãoesqueciam ainda os nomes dos artistas que haviam de
notabilizar a época lírica: eram, como primeiros tenores
assolutos, o Baraldi e o Malvezzi; como primeiro ba-
rítono, o grande Beneventano, que as damas da época
comparavam na figura com o conde de S. Januário,
então simples Januário Correia de Almeida, mas sempre
muito espartilhado e elegante.
Por aqueles preços podiam ouvir-se igualmente a
Demeure, a Schwarz e a Bernardi, e admirar-se a dança,
no género francês, da Bellini e da Pittari e, no género
italiano, de Yicinelli e das duas Casartis. Os dois
teatros funcionavam regularmente: em 3o de Agosto
representa-se no D. Maria Lúcia, comédia num acto,
e o Primo e o Relicário, comédia em três actos.
Era uma sociedade que pretendia, com as distracções,
esquecer as mágoas e animar os espíritos, descoroçoados
pelo perigo constante que corriam.
Em 16 de Setembro, no aniversário do Rei, houve,
como de costume, recepção no Paço. O discurso da
câmara municipal não fez a menor alusão à epidemia.
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1\ 1
Em D. Maria representou-se o drama em cinco actos,
de César de Lacerda, Os portugueses na índia, e emS. Carlos cantou-se a Sonâmbula com madame Char-
ton e Neri Baraldi.
Em 29 também houve recepção no Paço pelos anos
de D. Fernando, e em 3o, S. Carlos dava o Ernani,
por não ter podido, como prometera, dar nessa noite
a Maria de Rohan, e D. Maria continuava a massar
os espectadores com os Portugueses na índia.
Ao mesmo tempo e para contraste, adiava-se em 29
a abertura da escola médica até nova resolução, emvista do estado sanitário que reclamava os cuidados
de todos os facultativos, e o cardeal Di Pietro, Núncio
de S. Santidade, aquele mesmo que levou de Portugal
tanta e tão preciosa mobília antiga e outras obras de
arte, que causavam a admiração de todos os purpurados
de Roma, — querendo contribuir com os recursos do
seu ofício para a extinção da doença, aconselhou o pa-
triarca, a publicar a sua pastoral de 1 de Outubro, a
última que lhe saiu da pena evangélica. Os habi-
tantes de Lisboa e dos seus arredores ficavam dispen-
sados da abstinência da carne, nos dias prescritos pela
santa igreja, mas com duas condições: a primeira era
que não haviam de misturar a carne com o peixe —nada de premiscuidades; — a segunda consistia em que
as pessoas, que se aproveitassem deste indulto, deviam
resar em cada dia, três avé-marias, pelos enfermos e
defuntos da actual epidemia, sendo extensiva esta con-
cessão às pessoas regulares. Esta segunda condição
terminava com a extinção da epidemia e celebração do
acto da acção de graças por ela ter terminado.
Mal pensava o Patriarca que, decorridos poucos
mezes, haviam de lhe aproveitar as três avé-marias
que pedia para os enfermos e defuntos!
O sr. Di Pietro, inventor desta receita, é que ficou
ainda neste mundo, por muitos anos e bons, gosando o
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-
bric-á-brac doirado de igrejas e mosteiros, em cujo
assalto acompanhou o Regente.
O Rei, que já no ano de 1857- 1-858 havia cedido, em3 de Fevereiro de 1807, a quantia de c)i:25o#ooo réis
da sua dotação, sendo acompanhado neste acto meri-
tório por seu pai, que cedeu por sua parte 5o:ooo$ooo
réis, entendeu agora que devia adiantar a cedência
do ano futuro de i858-i85g em igual quantia, sendo
3o:ooo$ooo réis, para a sociedade protectora dos órfãos
desvalidos e aplicados por ela aos órfãos desamparados
em consequência da actual epidemia. D. Fernando
procedeu com igual generosidade, dando da sua dotação,
no mesmo ano de 1 858-1 869, a quantia de 5o contos.
O cardeal Di Pietro é que não consta ter dado grande
coisa, exceptuadas as três avé-marias do ritual.
# #
A administração pública continuava sem interrupção.
O Rei comutava a pena capital ao réu Florindo
Augusto de Sales, e as outras penas a mais três sol-
dados de artilharia 2, — aqueles que se tinham amo-
tinado em Agosto. Ao réu Jacinto Rebelo, condenado
por homicídio, também era comutada a pena capital.
Já em 8 de Janeiro, ele tinha comutado a mesma pena
ao grumete Tomás José de Carvalho.
Adiava-se a feira da Covilhã; nomeava-se Manuel de
Jesus Coelho (o do Português) aspirante da alfândega
grande de Lisboa; José Jorge Loureiro e o visconde de
Algés, conselheiros de Estado efectivos ; exonerava-se o
visconde de Sá, da pasta da guerra, e nomeava-se, emsubstituição, António Rogério Gromicho Couceiro (8 de
Setembro); constituia-se uma companhia para a cons-
trução de linhas férreas americanas em Angola ; en-
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2 I 3
carregava-se uma comissão mixta de engenheiros es-
panhóis e portuguezes, de fazer os estudos de umalinha férrea do Porto à fronteira do norte; assinava-se
o contracto definitivo com Morton Peto; constituia-se
a companhia das águas; procedia-se às eleições suple-
mentares de deputados em 22 vacaturas (20 de Se-
tembro) e, emfim, publicava-se o programa para a aber-
tura das cortes ordinárias em 4 de Novembro.
As subscrições em favor das vítimas polulavam por
toda a parte ; além da sopa económica, instituída em 23
de Outubro, a caridade particular acudia a todos, numagrandiosa manifestação de solidariedade social. Como Rei desafiando a morte, não havia timidês nem egoísmo
possível.
Abriu-se, pois, o parlamento em 4 de Novembro,
mas nem os pares nem os deputados apareciam em nú-
mero suficiente para constituírem legalmente as sessões.
O patriarca compareceu em todos os dias, mas só con-
seguiu presidir a uma sessão regular.
Na câmara dos deputados é que não havia número.
Em 6 de Novembro, foram adiadas as cortes para 9 de
Dezembro.
No intervalo, em i5 de Novembro, morria o presi-
dente da câmara dos pares, cardeal patriarca.
Não pode a história passar em claro este momento,
em que foi arrebatado pela morte um dos mais notáveis
prelados portugueses e um dos mais atilados e hábeis
políticos do seu tempo.
O modo como este homem presidia à câmara dos
pares, em sessões tempestuosas, revelava a superiori-
dade das suas qualidades de gravidade, prudência,
bom senso e finura de tacto nas suas relações com os
homens. Todo o seu segredo consistia em evitar a
responsabilidade directa das suas deliberações comopresidente: delegava tudo na própria câmara. Amaispequena dúvida que ocorresse era sempre a câmara
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— 214 —
que a resolvia. Declinando habilmente a decisão para
a assembleia, esquivava-se aos protestos do orador
contra a sua própria individualidade.
Era um encanto vê-lo presidir.
Na sessão de i856, teve dois dias de desgosto, e
esse desgosto proveio, não de dentro da câmara, mas
de dois artigos publicados pelo jornal O Português.
Coitado do Patriarca ! Levou-o a febre amarela
!
Em suplemento ao Diário do Governo, ordenou-se que
fosse enterrado no cemitério dos Prazeres, conduzido
para lá num coche da casa real e com as solenidades
inerentes ao seu elevado cargo eclesiástico e civil.
Só mais tarde é que veio para S. Vicente, onde re-
pousa, não embalsamado, em companhia dos seus con-
frades que tiveram essa honra de conservação realenga.
Para não amedrontar mais do que estava o resto do
clero, quatro dias depois, em 19, o teatro de D. Maria
dava ao público a comédia em três actos o Anjo da
Ressurreição e a Mulher que detesta o marido, e emS. Carlos cantava-se os Puritanos e bailava-se a Dan-
çarina Veneziana.
O governo, para socegar os ânimos, mandava publicar
o parecer do conselho de saúde, que dizia:
«A vista, portanto, das circunstâncias referidas, menos desfa-
voráveis sem dúvida do que geralmente se tem acreditado, no que
respeita à propagação e intensidade da epidemia, parece ao Con-
selho que não existe actualmente motivo bastante plausível para
que continuem tão exagerados o terror e o susto dos habitantes
da capital, e o abandono dos negócios públicos e particulares, o
que junta, aos efeitos do flagelo, males para a sociedade de não
menor consequência.
«Ponham- se embora a salvo da epidemia, aqueles que não com-
prometem com isso os seus deveres; mas que sigam semelhante
exemplo os que desse modo agravam a situação e a crise por que
estamos passando, é que se não pode justificar, e se torna tanto
mais digno de reparo, quanto diante de si teem o corajoso exemplo
do Monarca, o qual, desde o princípio da epidemia, não hesitou
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2 I 5
a-pezar-de todos os avisos, em vir partilhar os seus perigos;
passeia as ruas da cidade, visita os hospitais, anima com a sua pre-
sença os doentes, ora a Deus nos templos, distribue com liberali-
dade e amor verdadeiramente paternal, avultados socorros aos
desgraçados, alcançando assim de todos o sentimento do maior
respeito, simpatia, e de verdadeiro reconhecimento.
«A Providência o tem salvado, e salvará para satisfação e for-
tuna do país» (i).
Já no discurso da abertura das cortes, em 4 de No-
vembro, o governo tinha afirmado que a epidemia tendia
a decrescer e prometia medidas para a evitar no futuro:
«Uma grande calamidade veio recentemente afligir-nos. A febre
amarela manifestou-se na capital. Para ocorrer a este flagelo,
agravado ainda por apreensões exageradas, o Governo de Sua
Magestade adoptou as medidas que entendeu serem urgentes e
oportunas. É grato ao Governo de Sua Magestade o ter de vos
declarar por esta ocasião, que em tão tristes circunstâncias não
faltaram nobres e salutares exemplos de dedicação e caridade
cristã. A Providência parece atender às súplicas que lhe são di-
rigidas, tornando-se evidente que o flagelo tende a perder a sua
intensidade. Para evitar, quanto possível, a repetição do mal,
serão oíerecidas à vossa consideração pelo Governo de Sua Ma-
gestade as medidas preventivas adequadas» (2).
#
Em 7 de Dezembro, António José de Ávila deixava
a pasta da justiça, entrando para o ministério e para
ela José Silvestre Ribeiro.
Em 9 de Dezembro reabriu-se o parlamento. Para
a vaga deixada pelo patriarca, de presidente da câmara
dos pares, foi nomeado o favorito do Rei — o conde de
(1) Diário do Governo de 18 de Novembro de i857, pág. 1480.
(2) Idem, de 5 de Novembro de 1857, pág. 1427.
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— I 1
Em geral, os oradores da oposição o que pediam
era a rescisão do contrato e a abertura do concurso,
sem deixarem, como o aconselhavam os interesses po-
líticos, de mostrar o desastre que o governo sofrera, e
especialmente o ministro das obras públicas, pois que
estavam, na frase expressiva do barão das Lages, há
mais de dois anos para fazer um contrato, quando bas-
tava metade do tempo para fazer o caminho de ferro.
Chegou a vez de José Estêvam, que pôs Carlos Bento
em artigos de morte. Amortalhou-o em seguida no
contrato Peto e lançou-o à vala da literatura, que pa-
recia ser para José Estêvam a vala das mediocridades
políticas.
«Que não havia muito tempo, dizia, vira aquele mancebo, comoa esperança e predestinação desse mesmo partido, e na subida
dele ao poder vira também com assombro, que se tivera em vista
uma idea pequenina, uma idea mesquinha, que era poder trans-
tornar ou diminuir a influência de um outro cavalheiro, que há
pouco acabava de largar o poder.
Mas ele (orador) sabia que o predestinado não possuía as qua-
lidades essenciais para mandar, porque para ser Ministro não bas-
tava espírito, não bastava ter facilidade em responder aos seus
adversários, e não bastava mesmo ter inteligência: eram necessá-
rios outros requesitos, e esses não os possue o Sr. Ministro.
Que a experiência estava feita, e depois deste debate parece-lhe
que S. Ex.% cuja consciência lhe está bradando pela verdade das
considerações que êle (orador) está fazendo, faria, não um ser-
viço ao seu país, porque o país tinha poderosos meios para se
descartar da sua gerência; não um serviço à maioria, porque se
livrava de uma intimação formal; mas fazia um serviço a si
mesmo largando a pasta, e recolhendo-se à vida literária, para
que está destinado» (i).
(i) Diário do Governo de 23 de Fevereiro de i85o, pág. 241.
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I 2
Por fim, o governo apresentou um novo contrato,
que a comissão de fazenda e obras públicas, na sua
maioria, rejeitou no seu parecer de 10 de Março, infor-
mando que este era mais desvantajoso do que o ante-
tior
:
i.° Pelo sistema agora adoptado para a remissão da
linha
;
2.° Pela substituição do sistema de subvenção pura
e simples pelo mixto de subvenção e garantia de juro;
E ainda por outras desvantagens, incluindo
:
«que a proposta de lei apresentada pelo Governo à Câmaraem 21 de Fevereiro do corrente ano, para ser autorizado a effec-
tuar no contrato do caminho de ferro do norte de 28 de Agosto de
1857 com as alterações, que vem anexas à referida proposta de lei,
deve ser rejeitada, e rescindido este contrato ; 2.,que seria conve-
niente, nas actuais circunstâncias, não fazer contrato algum de
caminho de ferro sem compreender a linha que nos deve ligar coma Espanha; 3.°, que no estado, em que se acha esta questão, seria
preferível recorrer ao concurso público, assente sobre bases de-
terminadas para a construção das nossas linhas férreas» (1).
A maioria aprovou o contrato.
Era um golpe mortal que vinha terminar com umgoverno, que a própria câmara dos pares já tinha con-
denado nas sessões de 3 1 de Janeiro e 1 de Fevereiro.
Na primeira destas sessões, o marquês de Valada
provocou o ministro da fazenda a dar explicações sobre
a crise ministerial e sobre «o desgraçadíssimo contrato
Peto a que o público dá o nome de peta, porque não
acredita nele».
Quanto à crise,— responde Ávila — que é coisa que
não há. E certo que havia ditas pastas vagas, mastempo houve aí por i83q (ministério de 26 de Novem-
bro) que os ministros efectivos eram só quatro, e ainda
depois, houve uma administração em que um cavalheiro
(1) Diário do Governo, de 14 de Março de 1859, pág. ^29.
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— i3 —teve sempre duas pastas, mas, emquanto os ministros
não pedem a sua demissão e teem a confiança da coroa
e do parlamento, não há crise ministerial. Pelo que
lhe tocava tinha apresentado às cortes, pela pasta da
fazenda, a reforma das pautas, um projecto de pensões
e outro da capitalização da dívida do Estado: só isto
chegava para uma sessão legislativa. Pela pasta da
justiça, tinha um muito importante que era o da su-
pressão de alguns conventos e do estabelecimento da
profissão e votos nas casas religiosas, que se ocupam
da educação. Isto não era por causa das freiras, maspelos seus administradores que lhes defraudam os bens.
Em 8 de Fevereiro, a câmara dos pares perde a pa-
ciência, e o conde de Tomar pede que se suspendam
as sessões, visto que os ministros não aparecem. Naoutra câmara (14 de Março), o deputado Sebastião
José de Carvalho requeria:
«que a presente discussão seja adiada, até que o Governo ex-
plique á Câmara quais foram os obstáculos constitucionais ou
políticos, que teem impedido a reconstituição do Ministério, e de-
clare, quando espera que desapareçam as dificuldades, que se
teem oposto à satisfação desta necessidade política, reconhecida
como urgente pelos próprios Ministros.
Disse que apresentava esta proposta, porque entendia que sa-
tisfazia assim, e a Câmara satisfaria também aprovando-a, a umaexigência imperiosa da opinião pública; exigência que não se
traduz em demonstrações ruidosas, como acontece em países
mais adiantados, mas expande-se por diferentes modos.
Que não há ramo nenhum de administração pública, que não
se ressinta do estado de dúvida e incerteza, que está constante-
mente pairando sobre as cadeiras dos Srs. Ministros; e SS. Ex.*i
são os primeiros que concordam neste ponto, porque teem tra-
tado de robustecer-se, querendo-se adicionar elementos de vida e
força, recorrendo a certos caracteres políticos, pedindo-lhes que
façam parte da situação, e todos se teem recusado, todos teem
sido surdos à voz do Poder. Não há homem nenhum que tenha
sido convidado para fazer parte do Governo, que se tenha pres-
tado a isso. E necessário que os Srs. Ministros digam o que si-
gnifica este facto. $Não há homens no país que queiram ser
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— 14 —Ministros?
iAcabou a ambição? ^Já se acabou em todos o
amor da causa pública? Não há quem queira ser Ministro, masé com os actuais Ministros, e neste estado de coisas é necessário
que SS.Ex.as digam o que significa esta situação anómala e inde-
finida, continuando a despeito de todos os princípios constitucio-
nais.
Que o Sr. Ministro das Obras Públicas, por ocasião da res-
posta ao discurso da Coroa, havia dito— ^quereis agora a re-
construção do Ministério? Pedis um absurdo, porque, emquantose não resolver esta questão da barca Carlos e Jorge, não há
homem que se queira associar ao Governo. — Discutiu-se a questão
da barca Carlos e Jorge, e o Ministério não se tinha reconstruído.
Que depois viera a Concordata, e os Srs. Ministros disseram
que, emquanto se não resolvesse a questão da Concordata, não
havia homem nenhum que quisesse tomar sobre os seus ombros
a pasta da Justiça: a questão da Concordata já tinha passado há
muito tempo, e o Ministério não se tinha reconstruído. i<D que
era, pois, agora que impedia a organização do Ministério ?
Mandava, portanto, para a mesa a sua proposta de adiamento,
a qual entendia que a Camará devia aprovar, porque devia rasgar
o véu do mistério, e saber da boca dos Srs. Ministros a razão por
que o Ministério se não reconstrue». (i).
A esta hora o ministério entregava a alma ao poder
moderador. Assim o declarava o presidente do con-
selho no dia seguinte
:
«O meu colega, o Sr. Ministro das Obras Públicas, respon-
dendo ontem às explicações que se pediram ao Ministério, sobre
a reconstrução ministerial, viu-se embaraçado, porque o Governo
estava para tomar uma resolução, que efectivamente tomou on-
tem, mas ainda a não tinha definitivamente tomado ; e agora verá
o nobre Deputado o Sr. Mousinho, que fez tão acres acusações
de inconstitucionalidade, que estas questões graves nem sempre
se podem tratar num momento dado.
O Ministério estava hesitando se podia continuar a gerir os
negócios públicos, ou não. Não tinha ainda tomado uma reso-
lução; é exactamente nesta ocasião que se lhe pedem explicações
a este respeito. O Governo não as podia dar satisfatórias, porque
ainda não tinha tomado uma resolução.
(i) Diário do Governo de 1 5 de Março de 1859, pág. 339.
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— i5 —Isto dito, cumpre-me agora participar à Câmara, que o Minis-
tério resolveu ontem pedir a Sua Magcstade a sua demissão, foi
aceita, e Sua Magestade chamou já o Sr. Duque da Terceira, para
formar uma nova administração» (i).
A camará resolveu suspender os trabalhos até que
houvesse novo governo.
Não passaremos adiante sem notar que, antes da
queda do governo, tinha cobrado novas forças a questão
religiosa. Ao menor pretexto ela surgia logo, dando
manifestações de vigor. Ontem eram as irmãs da ca-
ridade que hão de voltar em breve ; hoje era o pro-
jecto do governo, e originariamente de Ferrer, sobre a
redução do número dos conventos.
O deputado miguelista, Pinto Coelho, era um dos
defensores das imunidades dos conventos de freiras.
Mandando para a mesa (2 de Março) diversas repre-
sentações, ponderava que o direito de petição estava
sendo coarctado pelas autoridades, pois que obriga-
vam-se os signatários a retratar-se e praticavam-se até
crimes, como aconteceu a um minorista que andava so-
licitando assinaturas em favor das irmãs da caridade
e foi assassinado na serra do Marão; e ultimamente
ns Rocio foi apedrejado um eclesiástico francês, a quemchamaram lazarista. Isto era tolher ou embaraçar o
direito de petição e desacreditar tantos mil cidadãos,
entre os quais se encontravam todos os membros da
família do presidente do conselho.
Ávila repetiu o argumento de que era preciso salva-
guardar os bens dos conventos contra as malversa*
(1) Diário do Governo de 16 de Março de 1859, pág. 345.
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— i6 —ções dos seus administradores. Ofereceu o exemplo de
que «havia um convento extinto que rendia i:5oo$ooo
réis, não chegando às mãos da única freira que tinha, e
vivia em casa de uns parentes, mais do que i26$ooo
réis. Havia de combater a reacção em todas as suas
forças, a qual procurava introduzir-se com pés de la,
mas não havia de ganhar o terreno que perdeu princi-
palmente pelos meios ardilosos que empregava (muitos
apoiados)» .
Quem conhecesse as manhas deste farçante político
ficaria sabendo logo que ele estava para sair do minis-
tério. jEra o mesmo que ajudara a admitir as irmãs
da caridade, e agora já se queixava da reacção que
entrava com pés de lã e com meios ardilosos ! Era
preciso dar o primeiro golpe nessa reacção, e o pro-
jecto da redução dos conventos prestava-se a tais in-
tuitos. Insistia, por isso, com as comissões para que
dessem o seu parecer.
Era uma excelente mortalha para um homem liberal,
e Ávila, que nunca o foi, folgava de representar mais
aquele papel perante as multidões ingénuas.
. Como se fazia liberal, aplaudiram-no logo, ainda
aqueles que nunca o poderam tragar. Tinha conse-
guido o seu fim e adquirido um bom passaporte para
combater a situação que lhe havia de suceder.
Rebelo da Silva entoou, a propósito, o hino da liber-
dade. Dizia êle
:
«Não podia ocultar uma grande verdade. Que a reacção ca-
minha de colo levantado e não parte de Portugal para fora, vem
de fora para Portugal. Desde as medidas do Imperador, de sau-
dosa memória, até hoje não parece que medeiam um pequeno nú-
mero de anos, parece que mediaram séculos, esquecemos os mo-
tivos dessas grandes medidas, a razão filosófica e os princípios
que as ditaram.
Que devemos ser fieis católicos apostólicos romanos, é dever
de cada um .pela sua educação e porque esse princípio está con-
signado na Constituição do estado; mas alem disto nada mais, e
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tudo que se concedesse à reacção era uma brecha aberta no ba-
luarte da liberdade.
Que sabia como muitas representações tem sido feitas e comoalguns conventos de freiras estão sendo administrados, ao pé da
porta tem o exemplo de um convento que, não tendo número de
freiras para constituir comunidade canónica, é administrado por
um procurador que tem feito aforamentos ilícitos sem autorização
do Governo, e isto acontece quási em toda a parte.
Que não há senão um meio, nesta questão, de que os homens
públicos devem lançar mão : conceder à cúria romana tudo que
lhe devemos como um estado católico, mas não lhe conceder nemum ápice das nossas liberdades públicas, não lhe conceder aquilo
que não lhe concederam os Governos absolutos».
Ferrer, o primitivo autor do projecto sobre os con-
ventos, pulou logo de contente:
«Que desejava combater a reacção, porque não o embalavam
as palavras daqueles que dizem — ,; como é que a liberdade tem
medo de seis freiras e dois frades ?— Não tinha medo de seis
freiras e dois frades, mas tinha medo das demonstrações por que
se manifesta a reacção, porque ela aparece de muitos modos e de
muitas maneiras.
Que em 1834 fizeram-se grandes reformas, à sombra das quais
ainda hoje descança a liberdade; mas desde então essas reformas
teem-se desmoronado uma a uma, e se continuarmos, neste sis-
tema, de braços cruzados, a reacção acaba com todas as grandes
reformas de 1834.
Que, tendo pedido a palavra para um requerimento, o seu re-
querimento consistia em que fossem convidados os Srs. Ministros
do Reino e dos Negócios Eclesiásticos a comparecerem na co-
missão de legislação, porque da comissão ter uma conferência
com SS. Ex.,s estava dependente o apresentar o seu parecer
acerca da questão das irmãs da caridade, questão de que o Par-
lamento se devia ocupar» (1).
Como se vê, já cá estão as irmãs da caridade.
Pouco falta para estalar a trovoada.
Por fim, como falara Rebelo, também José Estevam
preludiou sobre a liberdade, e fechou-se a sessão com
(1) Diário do Governo de 3 de Março de 1859, pág. 287.
% VOL. II
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alegria de António José de Ávila que, com as suas ha-
bilidades, chegara a afinar com José Estêvão, pela
primeira vez em toda a sua vida.;Muita velhacaria
tinha aquela criatura
!
Dois dias depois (4 de Março), o incidente continuou.
Um grupo de deputados, entre os quais estavam José
Estevam, Rebelo da Silva, Ferrer, Mendes Leal, Oli-
veira Marreca e Tomás de Carvalho, assinou a se-
guinte moção, que Ferrer mandou para a mesa:
«A Câmara, reconhecendo que o exercício do direito de pe-
tição é livre para todos os partidos e opiniões, convida o Governo
a atender aos princípios liberais inaugurados pela restauração,
mantendo a execução das Leis que os consignam, e opondo-se
com firmeza às demasias e abusos de influência de qualquer es-
pécie de reacção religiosa, que os tente invadir e prejudicar» (1).
Ávila assustou-se com a moção, e sempre astucioso,
evitou o laço que receiava, perguntando o que queria
aquilo dizer. ;Era um voto de censura ao procedi-
mento do governo? Ele não o merecia, porque estava
em campo contra a reacção. ,:Era um simples desejo?
Então estava de acordo, porque o seu dever era res-
peitar os princípios liberais.
— Que sim, clamava Melo Soares. E logo acres-
centava poder dizer «que os signatários não tiveram
intenção, nem de acusar o governo, nem de o censu-
rar; fora apenas o desejo de apresentar o sentimento
da câmara a respeito dos dois assuntos a que ela se
reíere».
José Estevam calava-se, e Ávila gozava o triunfo glo-
rioso das suas artimanhas.
• Mas quem, no meio de tudo, alcançou uma vitória
parlamentar foi Pinto Coelho. A situação hipócrita
do ministro da fazenda foi posta a descoberto. De-
(1) Diário do Governo de 5 de Março de 1859, pág. 295.
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— Kj —
pois de mpstrar que, por toda a parte, os represen-
tantes do governo impediam as reclamações, pergun-
tava onde estavam os princípios de tolerância religiosa,
e porque se chamava reaccionários aos que não con-
cordam com as ideas do governo e se dá logo força a
este para os perseguir?
Na sessão seguinte (5 de Março), ainda falou Pinto
Coelho e sempre com grande eloquência,iQuais eram
os pontos que constituíam a chamada reacção?
«Que o segundo ponto da reacção eram as ordens religiosas
:
eram um^dos grandes capítulos reaccionários. ,;Mas em que
havia reacção nas ordens religiosas? <; Porque é que as ordens
religiosas eram opostas à liberdade? Na Bélgica havia liberdade
e há ordens religiosas; nos Estados Unidos havia liberdade e há
ordens religiosas; na Inglaterra havia liberdade e há ordens reli-
giosas; na França e na Espanha podiam dizer que não ha liber-
dade, mas havia ordens religiosas.
iQue se disse que a Carta proibe as ordens religiosas! ,;Em
que artigo, perguntava ele orador? Um grande homem havia
dito num lugar bem público, que as ordens religiosas são opostas
à liberdade, porque, em regra, todas se opõem ao princípio de que
se não pode ter vontade própria mas a vontade do superior, e
esta sujeição à vontade do superior, esta disciplina, era oposta à
liberdade; e que um indivíduo que professava uma ordem abdi-
cava da sua vontade e da sua liberdade.
Mas então abaixo a disciplina do exército. O religioso tinha
obrigação de obedecer ao seu superior, salvo nas ordens que en-
volvessem erro ou induzissem pecado; e qual era o soldado que
podia dizer ao seu comandante, quando êle lhe dizia — vai a tal
ponto— não vou porque isto envolve pecado. Os religiosos po-
diam ser castigados por leis eclesiásticas mas não fuzilados, e o
soldado era fuzilado quando faltava às ordens do seu superior».
.<;E as irmãs da caridade?
«Que a posição do Governo nesta questão era indecifrável.
IQuem introduziu cá as irmãs da caridade e os lazaristas? ^Com
que dinheiro vieram elas cá? ^Qual era a convicção do Minis-
tério nesta alta questão governamental i O Ministério concede
licença para elas virem: o Ministério, se não oficialmente, pelo
menos extra-oficialmente, põe-se à testa dos donativos para elas
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— 20 —aqui entrarem, inscreve-se entre os primeiros a subscrever para
isso e toda a aristocracia constitucional, salvas algumas excep-
ções, e o Ministério vinha ao Parlamento arguir a ele (orador) de
reaccionário e queria ficar da banda de lá!... Não podia ser.
Que sabe que um dos motivos que tem obrigado o Governo a
não decidir, a não cortar por esta questão, são os nomes de
muitos signatários para que as irmãs da caridade entrem aqui;
mas o Governo tinha obrigação de ter uma opinião; tinha obri-
gação de ter um sistema, de ter princípios, proclamá-los, lançar-se
na discussão, e fazê-los executar; e quando daí lhe proviesse pre-
juízo largar as pastas, porque o pior de tudo é não ter Governo,
e isto era não ter Governo: não se podia ser Governo nestes vai-
véns de opinião».
Seguiu-se Ferrer que, feitas as considerações filosó-
ficas sobre liberdade religiosa, condições especiais dos
bens eclesiásticos, e tudo o mais que é do estilo emcasos tais, fala das irmãs da caridade e aí
«Principiava por declarar, que entende que as irmãs da cari-
dade são uma das mais belas instituições dos tempos modernos:
crê nas virtudes destas senhoras; não pode deixar de lhes prestar
louvores pela dedicação evangélica com que se dão ao tratamento
dos enfermos pobres; mas este, que é o fim principal das irmãs
de caridade, tem sido abandonado pelas chamadas irmãs de cari-
dade francesas, que, em lugar de se dedicadem ao fim principal
da sua instituição, se dedicam ao ensino da infância, matéria
muito alheia.
Que o grande fim que dirigiu as filhas de S. Vicente de Paula é o
tratamento dos enfermos. Todos queriam irmãs de caridade do
instituto português, sujeitas aos nossos Prelados ordinários, no-
meados em cada cidade, em cada província, e em cada aldeia
;
mas o que se não queria eram irmãs de caridade francesas como seu instituto, e sujeitas ao geral dos jesuítas, que reside emFrança.
Que para ensinar crianças não é necessário que venham mu-lheres estrangeiras: e se em Portugal não há senhoras com sufi-
ciente instrução para ensinar o — ba-bá— ,; podiam porventura
ser boas mestras senhoras que não entendem as creanças, nem as
creanças as entendem a elas?
Que também se tinha falado na associação para a guarda dos
domingos e dias santos : não lhe parece que este terceiro preceito
do Decálogo seja mais importante que todos os outros do mesmo
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— 228 —O Orador: — Tomo a responsabilidade desta frase em todos
os seus efeitos (apoiados. — Vozes : — Muito bem). Eu vi que o
ilustre deputado por Vagos (riso) se havia dirigido também a
mim, porque eu era um dos que tinha o riso na face, o qual reve-
lava, não um pensamento, mas sim um sentimento ; com este riso
incomodou-se um pouco o ilustre deputado, evidente prova de que
traduziu perfeitamente o sentimento que ele manifestava» (i).
Isto passava-se na sessão de 14, e na de i3 dissera
José Estevam
:
«Trata-se do modo de propor, mas trata-se primeiro que tudo,
de eu dizer que fui iludido, (muitos apoiados) completamente ilu-
dido (riso); e respondo com esta frase aos risos e choros, às cha-
cotas, às ameaças, (O sr. Pereira Dias: — [Ameaças!) e a toda
a variedade de expressões que podessem vir ao rosto de algum
dos nossos colegas, que quási lucrariam em não empregar nesta
casa nenhuma outra expressão dos seus sentimentos ; não me re-
firo individualmente a ninguém» (2).
Por fim, José Estevam, já enfastiado com a suscepti-
bilidade dos colegas, disse na sessão de 16 de Agosto:
«Eu pedi a palavra para dizer à câmara duas coisas, que ela
sabe perfeitamente: i.°, que não respeito nenhum dos seus mem-bros, um mais do que o outro, porque nos meus sentimentos de
consideração e respeito para com os srs. deputados não tenho
senão uma bitola, salvo o juízo que posso fazer das qualidades di-
ferenciais que os distinguem; 2. , que não reconheço em nenhum
o direito de me dar lições, nem de me fazer prescrições de civili-
dade e de estilo parlamentar, e alguns há que considero redonda-
mente incapazes em ambos estes assuntos.
Estas admoestações, pelo que me toca, são tanto menos aten-
díveis quanto são acompanhadas de recriminações às quais eu
saberia responder de todo o modo e de todas as maneiras, segundo
o código que já prescrevi nesta casa, que todos podem ler e expe-
rimentar, e que estou pronto a pôr em prática» (3).
(1) Diário de Lisboa de 19 de Agosto de 1861, pág. 2285.
(2) liem de 17 de Agosto de 18G1, pág. 2267.
(3) Idem de 20 de Agosto de 1861, pág. 236i.
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— 229 —Outro incidente, entre Ávila e Valada.
Foi na sessão de 25 de Fevereiro. Valada acusara
Ávila por não ter consentido que o patriarca infligisse
a censura canónica ao livro, recentemente publicado
com o título — Jesus Cristo e a Egreja. Também se
queixara de que não tivesse consentido a publicação
das consultas da comissão de teólogos de Santarém e
da câmara eclesiástica de Lisboa.
Ávila, num certo ponto da resposta, exalta-se e tra-
va-se entre os dois um diálogo violento, em que trocam
algumas injúrias. Ávila emparelha com o seu antago-
nista.
Agora é com José Estevam. Este orador dissera
que a defesa, que se estava fazendo de Peto, era o libelo
para êle vir pedir indemnizações. Ávila queria que
José Estevam desse explicações, porque era uma injúria
à câmara. O orador explicou, mas as explicações
foram tais que Ávila continuou em plena fúria.
Quanto a José Estevam, esse ficou incorrigível:
sempre trocista, sempre fazendo rir, sempre metendo
a ridículo os colegas. Já, na sessão de 5 de Junho,
tinha ouvido coisas pouco agradáveis. Foi na discussão
da eleição da Póvoa de Lanhoso. Falara Xavier da
Silva e, consoante o costume, houve discurso humorís-
tico de José Estevam. O outro retorquiu, e, depois
de lhe dizer que, quando ridiculariza os seus compa-
nheiros, ridiculariza-se a si, terminou:
«Tenho pelo ilustre deputado a maior consideração e amizade;
tendo-lhe dado provas disso em quási toda a sua vida; sempre
respeitei o seu talento ; mas quando o nobre deputado fizer a
figura que acaba de fazer— que muitos terão por boa, e que eu
acho ridícula— hei de dar-lhe a correcção conveniente ; e entenda
o nobre deputado que eu não sou daqueles que ouça sossegada-
mente qualquer alusão, nem estou acostumado a sofrê-las. Neste
lugar hei de apresentar a minha opinião como entenda, agrade ou
não ao nobre deputado; e quando êle fôr descomedido parlamen-
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— 23o —tarmente, e eu ouvir alguma frase que entenda ser inconveniente,
tenho os meios para me desagravar» (i).
Na sessão de 22 de Junho, o presidente chamou a
atenção da câmara para o seguinte facto
:
Na 3.a
feira passada, tinham-lhe apresentado quatro
cidadãos, que se disseram constituirem uma comissão,
encarregada de lhe entregar uma representação para
êle oferecer à câmara. Recusou-se a fazê-lo, já porque
havia nela um ataque e desconsideração a alguns
dos poderes do Estado, parecendo até uma ameaça
indirecta, já porque, dizendo-se dirigida em nome do
povo da capital, vinha assinada só por um indivíduo
que, quaisquer que fossem as suas qualidades, não
podia dizer-se representante de uma cidade que tem
mais de 200:000 habitantes. O secretário nota que,
como o ofício, que acompanha a representação, está as-
sinado por António Camilo, Xavier de Quadros, Fer-
nando Leite de Sousa e barão da Batalha, e a repre-
sentação apenas pelo primeiro, deve ir este documento
para a comissão de petições.
JoséEstevam acode, dizendo que íôra êle quem apre-
sentara a representação, e defende calorosamente o di-
reito de petição, os comícios populares, toda a lira das
reivindicações liberais. O deputado Sá Nogueira, ner-
voso e impaciente, desfechou a interrompê-lo de modoque não chegava à mesa dos taquígrafos, José Estevam
perdendo a paciência
:
«— Ora o ilustre deputado tem representado comigo contra
cem governos, e tem as mãos manchadas de tinta das assinaturas
que tem feito em semelhantes representações, e, quantas vezes,
depois de manchadas de tinta, as tem manchado de terra, reme-
chendo-a para as barricadas que fizemos nesta terra? (Riso.)
O sr. Sá Nogueira : — Isso é verdade.
O Orador: — O ilustre deputado é por sua índole e natureza
(1) Diário de Lisboa de 8 de Junho de 1861, pág. 1397.
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— 23l —um carácter de oposição, de extrema oposição; e é com o maior
sacrifício que às vezes interrompe essas tendências naturais, para
nesses intervalos ser governamental (riso); mas é todo oposição,
e mesmo tem pintado na magreza e rugas do seu rosto e nos seus
olhos esse carácter oposionista— carácter que não desonra nin-
guém. Portanto, não é do ilustre deputado que posso esperar
uma grande pragmática sobre os estilos populares (riso).
Estou para vêr se a câmara se considera pudibunda ou incapaz
de receber essa petição ; estou mesmo para ver se se quer colocar
nas ante-câmaras desta casa uma comissão de redacção, por onde
se façam passar todos os papéis que lhe teem de ser presentes, de
maneira que os literatos, em quem recaia a sua confiança, tenham
de corrigir as frases que lhes parecerem indignas da câmara.;
; Éuma coisa estupenda ! ! . . . ;
O que me admira é que essa opinião
seja defendida, e defendida por aqueles que, em toda a sua vida,
desdenharam dela!* (i).
Parece que Sá Nogueira se magoou com a referência
às rugas, porque retorquindo a José Estevam com vio-
lência, não se esqueceu de inserir este trecho no seu
discurso
:
«Eu podia agora dizer alguma coisa a respeito das explicações
que o ilustre deputado pretendeu dar relativamente ao meu estado
físico (riso), dizendo que êle era o efeito da minha intolerância
;
mas só direi ao ilustre deputado, que às vezes as mesmas causas
em diferentes indivíduos, produzem diversos efeitos. Talvez o
ilustre deputado pela sua exaltação de ideas, por essa intolerância
orgulhosa que muita gente lhe nota, eu não; talvez que por isso
tenha sido atacado o seu sistema capilar, tenha perdido o cabelo, e
apresente agora a sua cabeça nesse estado muito respeitável, mas
devido talvez, repito, aos efeitos dessa exaltação de ideas, dessa
mesma intolerância que quer notar nos outros (riso)-» (2).
A petição não tinha nada de extraordinário e era re-
digida em linguagem pacífica: referia-se às irmãs da
caridade, dizendo que, por maiores que fossem as suas
virtudes, «o que é certo é que nós, portugueses, não ca-
(1) Diário de Lisboa de 26 de Junho de 1861, pág. 1545.
(2) Idem de 26 de Junho de 186 1, pág. 1545.
Obra protegida por direitos de autor
2^2 —
recemos de congregar-nos para exercer a caridade, nemqueremos que a educação popular seja influenciada por
nenhuma ordem religiosa, qualquer que seja o seu ins-
tituto».
Censura o governo pela sua submissão à corte de
Roma, os defeitos da nossa administração colonial, e,
por fim, o estado lastimoso em que se encontra a admi-
nistração da justiça. E lá foi para a comissão de pe-
tições, ficando em evidência as rugas de Sá Nogueira
e a calvície de José Estevam.
Gomo satisfação dada aos conservadores, veiu a por-
taria de 7 de Junho, proibindo a reunião, anunciada
para 9, na praça de D. Pedro, e os ajuntamentos
dentro da cidade.
Emquanto isto se passava na câmara dos deputados,
a polícia teimava que uma rapariga, que apareceu assas-
sinada, era a criada do par do reino Silva Carvalho, e
por mais que ele insistisse em que essa criada estran-
geira regressara à Suíça, conduzida até ao cais na sua
própria carruagem, levando outra pessoa a bagagem
num cavalo, e entregando uma carta de recomendação
ao comandante do vapor, a polícia insistia em que a
vítima do crime era Marie Louise Rubin. Não obstou
terem participado de Berne que a mesma pessoa es-
tava agora, como serviçal, em casa do secretário da le-
gação inglesa.
jA polícia acusava Silva Carvalho, dizendo que a
criada dele é que fora assassinada, e a que fora para
fora era outra com o nome suposto! Silva Carvalho
viu-se obrigado a fazer voltar a rapariga para que
vissem bem que estava viva e sã! jMas que torturas
e que calúnias sofreu este homem
!
Isto ficou, emfim, liquidado na sessão da câmara dos
pares de 6 de Fevereiro de 1861.
Obra protegida por direitos de autor
— 233
*
# #
Em i! de Novembro, deste infeliz ano de 1861, às
sete horas e um quarto da tarde, falecia o Rei D. Pe-
dro V.
<;De que doença sucumbiu? Dizem os médicos que
de uma febre tifóide, em seu parecer confirmada, sema menor dúvida, não só por todos os sintomas que a
doença manifestou, mas ainda pela autópsia a que se
procedeu, dois dias depois do falecimento do mo-
narca.
O povo dizia que tinha sido envenenado, apontando
como autor do crime, uns, D. José Salamanca, o con-
cessionário da linha férrea de norte e leste, outros o
marquês de Loulé, presidente do conselho.
Já quando falecera o príncipe D. Augusto, primeiro
marido de D. Maria II, o povo dissera que fora enve-
nenado pelo então chefe do governo, duque de Pal-
mela. A paixão popular, nestas e semelhantes ocasiões,
desvaira sempre.
Muito se tem escrito sobre o assunto, e como tra-
balho principal citaremos a Notícia da doença de que
faleceu Sua Magestade El-Rei o Senhor D. Pedro Ve das que na mesma ocasião atacaram Suas Alteias os
senhores infantes D. Fernando, D. Augusto e D. João
no ano de 1861, por Bernardino António Gomes — e,
como trabalho também de valor, a dissertação do
sr. João de Meira nos Arquivos de História de Me-
dicina Portuguesa, Nova série, 191 o, n.os
2 a 6, coma epígrafe: <//). Pedro V morreu envenenado?'
A autópsia do Rei foi feita pelos médicos barão da
Silveira, barão de Kessler, dr. Bernardino António
Gomes, dr. Francisco António Barrai, dr. Simas, Ma-
nuel Carlos Teixeira, José Eduardo Magalhães Gou-
Obra protegida por direitos de autor
— 234 —tinho, António Maria Barbosa e Manuel José Teixeira,
em i3 de Novembro de 1861.
Depois de notarem as alterações encontradas nas
vísceras, concluem assim o seu relatório:
«Estas alterações, bastante significativas, encontradas pela au-
tópsia feita no cadáver de Sua Magestade, o senhor D. Pedro V,
nenhuma dúvida deixam sobre o padecimento a que sucumbiuEl-Rei; e são elas ao mesmo tempo plena confirmação do juízo
anteriormente feito a este respeito. Uma erupção dotinentérica,
bem caracterizada e das mais desenvolvidas que se costumamobservar, atesta o ter havido uma febre das mais malignas, comofoi a que acometeu Sua Magestade. A alteração igualmente si-
gnificativa do baço concorre a denunciar o género de influência
que originou a moléstia, a saber, o miasma paludoso, que, nos es-
tragos que costuma produzir, particularmente afecta aquela vís-
cera.
Alem disso, na marcha da enfermidade, no modo porque co-
meçou e se desenvolveu, nas causas a que El-Rei se expôs muito
directa e prolongadamente, está sobejamente a confirmação do
juízo que, para os facultativos que observaram e trataram Sua Ma-
gestade, não podia ser duvidoso» (1).
Esta é a verdade histórica. É lamentável, contudo,
que se não fizesse a análise química das vísceras do
Rei, como se fez a das do infante D. João. O exame
toxicológico viria, naturalmente, completar a prova re-
sultante da autópsia.
Entretanto, a lenda do envenenamento do Rei existe,
e dificilmente será destruída, na tradição popular.
Ainda no princípio de Fevereiro de 1918, um dos
arqueólogos, encarregados de descobrir, no panteon de
S. Vicente, os restos de Nun'Álvares, dava aos lei-
tores do Diário de Notícias a sensacional informação
de que encontrara, por acaso, as vísceras do infante
D. João, irmão de D. Pedro V, falecido, da mesmadoença de que este morrera, em Dezembro de 1861,
1) Bastos, Memórias, pág. 180.
Obra protegida por direitos de autor
— 235 —perfeitamente fechadas e seladas pelas autoridades da
época, e às quais se não pôde então fa\er a respectiva
análise por terem desaparecido.
Anunciava-se assim, mais de cinquenta anos depois,
a novidade de que as vísceras do infante tinham sido
sonegadas ao respectivo exame químico, certamente
com intuitos de ocultar a verdade sobre as causas da
sua morte.
Era outra vez em discussão, e agora com uma su-
posta prova derivada da ocultação propositada das vís-
ceras, o envenenamento do infante e, consequente-
mente, o de D. Pedro, pois que ambos haviam sido
atacados da mesma enfermidade.
A asserção do arqueólogo perscrutador era menos
verdadeira.'
As vísceras do infante foram examinadas, e o que
está em S. Vicente são os restos, que sobejaram do
exame, para ali enviados e ali cuidadosamente guar-
dados. Encarregou-se de desfazer o equívoco, O Dia,
em artigos de 8, 9, i3 e i5 de Fevereiro, publicando
todos os documentos, que se acham no Boletim do Mi-
nistério da Justiça, n.° 6, de 1862, para onde foram
trasladados da folha oficial.
Os quesitos propostos a exame foram três:
i.°— Se a história da doença e autópsia podem ofe-
recer alguma indicação e qual, para a marcha da aná-
lise. E quais foram os medicamentos, ministrados no
decurso da doença;
2. — Quais são os tóxicos, cujos efeitos podem ser
confundidos com os sintomas da doença e caracteres
patológicos, observados na autópsia;
3.°— Quais os fundamentos, se os há, estranhos à
história médica da doença, que determinaram suspei-
ções de propinação de veneno.
Ao primeiro fizeram os peritos a história dos medi-
camentos empregados, afirmando que a doença tinha
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— 236 —todos os sintomas de uma febre tifóide, não lhes ficando
no espírito a mais leve dúvida a este respeito.
Ao segundo responderam que as lesões, achadas no
cadáver, correspondiam exactamente à febre tifóide,
não havendo mesmo outra doença, em que essas lesões
se manifestem.
Ao terceiro quesito declararam os peritos que nadahaviam presenceado ou ouvido, que pudesse fa\er criar
suspeitas de propinação de venenos ao infante.
Reflectindo sobre a matéria e as respostas dadas
aos quesitos, observa-se que os peritos não responde-
ram precisamente ao segundo.
O que se perguntava não era se havia alguma doença
que pudesse confundir-se com a febre tifóide, mas sim
se havia algum veneno que pudesse produzir no orga-
nismo humano os sintomas e caracteres patológicos
observados na autópsia.
,jEra febre tifóide ?
iHaverá algum veneno que cause
os mesmos efeitos que ela produz?
Os peritos, provavelmente porque não conheciam a
acção de todos os venenos aplicados ou aplicáveis, ilu-
diram a pergunta e falaram das doenças.
Contudo, em resultado da análise concluíram que
não havia nas vísceras examinadas, nem fósforo, nem
tóxico algum dos materialmente corrosivos, nem ácido
cianídrico, nem metal algum tóxico, nem arsénico, nembase orgânica alguma, isto é, substância alguma das
conhecidas e geralmente propináveis como venenos.
Em todo o caso, não se ficou bem sabendo se alguma
destas, ou de outras substâncias, embora não geral-
mente empregadas como venenos, poderia apresentar
os mesmos caracteres patológicos, revelados pela au-
tópsia.
Um médico mais audacioso encarregou-se de res-
ponder ao quesito; foi (segundo se dizia, na ocasião,
em Beja) um facultativo militar que, ocultando o nome,
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— 237 —
escreveu no jornal O Bejense (n.° 54, 2. ano, 1862, de
4 de Janeiro), o seguinte artigo
:
«Em o n.° 47 deste jornal dizíamos nós: — O falecimento do
Augusto Monarca é um facto que não somente nos contrista, massurpreende, porque não achamos nas declarações, de que tratam
os boletins de Lisboa, a ra^ão suficiente da morte de El-Rei. Sua
Magestade tinha acessos febris e um deles veiu acompanhado de
sintomas graves; nesta província é isto muito vulgar, chama-se-lhe
uma perniciosa, mas de uma sezão perniciosa, que não mata à
primeira, vê-se por aqui escapar muita gente. 1 E se não foi esta
a moléstia a que o senhor D. Pedro sucumbiu, então qual foi? Opovo tem direito a ser esclarecido, mesmo para se desvanecerem
boatos aterradores.
A possiblidade de um envenenamento já então se apresentava
ao nosso espírito. Pedimos que a sciência oficialmente nos escla-
recesse e esperávamos, como esperava toda a gente, que se publi-
casse a história minuciosa da doença de El-Rei; que um diário
médico, redigido rigorosamente, estivesse de acordo com a des-
crição da autópsia e com o juízo final que os nossos pontífices
da sciência médica fizeram de tão insólita e irregular moléstia.
Vimos em seguida toda a imprensa da capital desviando minucio-
samente a idea de veneno e dando uma importância excessiva à
infecção paludosa, adquirida na viagem ao Alentejo. Escrirores
a quem tributamos muita veneração fizeram sobressair a idea de
que as afecções morais que El-Rei tinha sofrido deviam agravar-
-Ihe o padecimento físico e concorrer poderosamente para a sua
morte. Em tudo isto não vimos mais do que altas conveniências
do Estado, que levaram os homens que deviam apresentar ao pú-
blico a verdade, a antepor- lhe razões que ignorávamos.
Guardámos silêncio, supondo que a expressão da verdade, ou
pelo menos das graves apreensões que percorreram rapidamente
todo o país, chegassem ao Paço dos nossos Reis, e que se to-
massem todas as precauções para que se não repetissem iguais
scenas pelo menos com os mesmos instrumentos.
Infelizmente não aconteceu assim, porque o nosso querido
duque de Beja é acometido e vítima do mesmo padecimento que
os seus três augustos irmãos. Hoje que vemos em perigo não só
o actual chefe do Estado, senão também toda a dinastia, pare-
ce-nos um dever de consciência dizermos o que nos dita o cora-
ção, por entendermos que a verdade deve estar acima de quais-
quer considerações, que neste caso se possam imaginar.
Vamos apresentar a história da doença, extraída dos boletins
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ÍNDICE
Prefácio Pág. v.
CAPITULO I
Sumário. — Factos esclarecidos por novos documentos. — A febre amarela. — Oque o Rei pensava acerca da epidemia, revelado na sua correspondência com os
tios. — As irmãs da caridade. — Comunicações do Rei sobre este assunto, r-
Incidente com a imperatriz viúva. — A questão Charles et Georgei. — Nobres
palavras de D. Pedro. — Uma carta do visconde de Sá sobre o assunto. — Ironias
do Rei. — A questão de D. Miguel. — Come se originou. — Carta de D. Pedro
ao príncipe da Prússia. — Carta ao marquês de Loulé com um artigo de D. Pedro
em resposta ao jornal Rei e Ordem. — Desmentido às notícias, espalhadas pela
imprensa, dado pelo Diário do Governo. — I). Pedro e seu irmão D. Luís. —Viagem a Angola. — Peceios de D. Pedro. — O que D. Pedro diz de seu irmão,
em correspondência com seus parentes. — Jorge da Saxónia- — O seu carácter.
— Pretençóe8 da infanta D. Maria Ana ao trono de Portugal.. . . Págs. i a 3i.
CAPÍTULO II
Sumário. — Opiniões do Rei sobre a situação politica de 1857 (do marquês de Loulé)
e governo do duque da Terceira. — Cartas a Lavradio e a Leopoldo da Bélgica.
— O que se passou sobre nomeação de pares do reino em i856 e 1861. —Contradições no procedimento do Rei. —Razões por que veiu a deferir o pedido
do governo. — Motivos particulares manifestados em carta ao visconde de Sá.
— A lei da desamortização. — Convite, em 1 1 de Setembro de 1860, ao visconde
de Sá, para a pasta da guerra. — Dúvidas apresentadas pelo convidado. — Acei-
tação da pasta. — Mau humor habitual do Rei. — Sempre mal disposto com 09
ministros. — Muitas vezes com o visconde de Sá. — Recusa intervir numa
pendência. — E, contudo, dá ao visconde as maiores provas de consideração. —Intransigência com a imoralidade. — Uma ironia a um politico. Págs. 33 a 56.
CAPITULO 111
Sumário. — Como D. Ped-a se interessava pelas questões relativas aos nossos Ca*
minhos de ferro. — A ligação com a Espanha pelo vale do Mondego. — Oirts»
ao marquês de Loulé. — Condições estratégicas 11a construção das linhas. —Uma carta que parece uma Memoria. — Justifica-se a longura da transcrição. —Polémica entre o Rei e um capitão de infantaria na Revista Militar. — Os adver-
sários portam-se briosamente. — O Rei combateu incógnito, mas todos sabiam
quem era o combatente — A linha do Porto a Vigo. — Carta a António José d«
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184
Ávila. — As fortificações de Lisboa. — A segunda linha. — A linha de Torres.
— A câmara vota, enfim, o projecio relativo às fortificações. — D. Pedro recebe
com grande prazer a noticia em Oliveira de Azeméis, onde se encontrava a
caminho do Porto em 23 de Agosto de ii'61 Págs. 57 a 77.
CAPITULO IV
Sumário. — Carta de D. Pedro ao marquês de Loulé âcêrea da construção dos novos
navios. — Ataca o almirante Sartorius encarregado pelo visconde de Sá de
dirigir a construção. — Sartorius entregou a fiscalização a pessoas estranhas.
— O que se passou com a construção da Mindelo, treze anos antes. — ( De que
servem os fiscais portugueses nomeados pelo governo ? — Censura acre ao vis-
conde de Sá.— A com ta Bartolomeu Dias. — D. Pedro aponta os seus defeitos
de construção.—A corveta Sagres. — O que vale o soldado português.— Ordem
dada ao almirante Sartorius em relação à corveta Estefânia e ao vapor de
400 toneladas.— Distinção entre uma fragata e uma corveta.— Discute D. Pedro
um relatório enviado por Sartorius ao visconde de Sá. — As contradições de
Sartorius. — Apreciação breve do maravilhoso trabalho do Jíei. — Carta ao vis-
conde de Sá, de 14 de Junho de i858. — Papel do infante D. Luís nesta questão.
— Amizade que êle dedicava ao visconde de Sá Págs. 79 a 100.
CAPÍTULO V
Sumário. — Creaçáo do Curso Superior de Letras. — Opinião do Rei acerca doscon-
cursos. — Não tem confiança no parlamento para a ampliação da sua obra. —Castilho, Viale e Rebelo da Silva escolhidos para professores do Curso. — Re-
núncia de Castilho. — Apontamentos dele sobre o caso. — Juízo do Rei acerca
do Método de leitura. — Desagravo pelo visconde de Castilho. — Palavras de
Herculano acerca de D. Pedro, na carta a Pinto de Campos e no prólogo da
3.* edição da História de Portugal. — O livro Ancien Regime de Tocqueville,
anotado por D. Pedro. — Onde se encontra hoje. — O que são as notas e como
apreciamos a oferta. — Outro livro anotado por D. Pedro. — Comparação soí o
aspecto literário das notas dos dois livros.— Relações com Viale. —Apreciação
da Tentativa Dantesca. — Como Viale responde à crítica do Rei, passados mais
de vinte anos. — Relações com Camilo Castelo Branco. — Nas cadeias da Re-
lação. — Um hino cuja letra foi feita por Camilo. — Fala-se a propósito de
alguns escritores estrangeiros, Macaulay, Raymond, Vítor Hugo e Maurice
Sand i Págs. 101 a 1 35.
CAPITULO VI
Sumário. —Trabalhos literários do Rei. — Não existem obras completas. — Há al-
guns breves estudos e fragmentos apenas. — O estudo sobre Grécia e Roma i
um bom trabalho escolar. — Discute qual mostrou no suicídio mais heroísmo,
se Catão ou Cícero. — Superioridade da Grécia sobre Roma. — Pensamento
acerca da intervenção dos Reis para bem das monarquias. — Acerca da liber-
dade. — Acerca da originalidade do espírito. — Sobre a Universidade. — Sobre
Mousinho da Silveira. — Alocução em resposta ás duas câmaras, em Janeiro dí
i858. — Alocução â câmara municipal de Lisboa, em Março de 1859, em res-
posta à entrega da medalha da fíbre amarela. — Apreciação sobre a natureza da
inteligência de D. Pedro. — A presentificação. — O que é. — D. Pedro possue
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1 85 —esta feição da inteligência. — Exemplos. — O que se passou no Conselho de
Estado com Silva Cabral. — O exercício da faculdade de perdoar. — O relatório
sobre os navios. — O regulamento do fogo. — Ninguém teve a presentificacâo
em maior grau do que D. Pe dro Págs. 137 a 157
NOTAS
1." a pág. viu. — D. João VI Págs. 161 a i63.
2.* a pág. 24. — El Rei D. Fernando Págs. 164 a 173.
3.* a pág. 100. — O casamento de D. Luís Págs. 174 a 177.
VOL. Illi3
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