Obras de arte múltiplas, obras de arte singulares e a hipótese do objeto físico

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    Anais do VII Seminrio de Ps-Graduao em Filosofia da UFSCar (2011)

    Obras de arte mltiplas, obras de arte singulares e a hiptese do objeto fsico

    Jean Rodrigues Siqueira*

    RESUMO

    A ideia de que as obras de arte so meros objetos fsicos posio chamada por Wollheim de

    hiptese do objeto fsico enfrenta grandes dificuldades tericas quando se considera a

    natureza de gneros artsticos como a literatura, a msica, o teatro, a fotografia, o cinema, e

    outros maisgneros cujos produtos so obras mltiplas. No entanto, gneros como a pintura

    e a escultura a entalhe cujos produtos so obras singulares - parecem, em um primeiro

    momento, livres de inconvenientes desse tipo. Com relao s primeiras, elas dificilmentepodem ser identificadas com objetos fsicos uma vez que no h nenhum objeto em particular

    que possa ser tomado como sendo aobra. As obras de arte singulares, por sua vez, apesar de

    comumente serem tidas como simples objetos fsicos, tambm parecem possuir um estatuto

    ontolgico bem mais complexo quando examinadas com mais cuidado. Na medida em que h

    uma divergncia de propriedades entre as obras de arte singulares e sua contraparte material,

    e tambm h entre a obra e o respectivo objeto diferenas envolvendo suas condies de

    identidade e permanncia temporal, sua identificao revela-se igualmente difcil de ser

    admitida.

    PALAVRAS-CHAVE: hiptese do objeto fsico, obras de arte mltiplas, obras de arte singulares.

    I

    Obras de arte pertencentes a gneros como a pintura e a escultura a entalhe1

    podemser identificadas com os materiais que as constituem? A obra A floresta, de Germaine Richier,

    *Aluno da Universidade Camilo Castelo Branco (UNICASTELO). E-mail: [email protected].

    1 importante distinguir entre as esculturas feitas a entalhe e as esculturas feitas a partir de moldes; apenas as

    primeiras podem ser consideradas obras de arte singulares.

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    uma escultura entalhada em bronze atualmente presente no acervo do MAC-USP, pode ser

    reduzida ao pedao de bronze para o qual apontaramos ao falar inequivocamente da obra A

    floresta? Seria a pintura Retirantes, de Cndido Portinari, exatamente o mesmo objeto que

    as diversas camadas de tinta a leo distribudas sobre uma certa tela pendurada em uma das

    paredes do MASP?

    As questes que acabam de ser levantadas dizem respeito quele que considerado o

    problema fundamental da ontologia da arte, a saber, o problema de determinar que tipo de

    entidade so os objetos artsticos. Em particular, essas questes colocam em discusso uma

    possvel e frequente resposta a esse problema, a qual se baseia justamente na suposio de

    que todas as obras de arte so objetos fsicossuposio batizada pelo filsofo da arte Richard

    Wollheim (1994) como hiptese do objeto fsico.

    Essa concepo, embora em consonncia com a viso do senso comum, goza, no

    entanto, de pouco prestgio entre os filsofos da arte, principalmente porque obras

    caractersticas de gneros artsticos como a literatura, a msica, o cinema ou a fotografia, por

    exemplo, ao serem passveis de mltiplas ocorrncias, dificilmente podem ser identificadas com

    elas, sob pena de assim violar preceitos bsicos da fsica clssica (como o de que um mesmo

    objeto fsico no pode existir simultaneamente em lugares diferentes do espao). Contudo,

    alguns autores ainda insistem como parece ser o caso do prprio Wolheim que obras

    singulares como as pinturas ou as esculturas a entalhe podem ser compreendidas como meras

    coisas materiaise precisamente essa concepo que ser aqui examinada em maior detalhe

    e contestada. Mas antes de explorarmos a tese de que entre as obras de arte singulares e sua

    contraparte material h uma relao de identidade, consideraremos primeiramente as

    objees dirigidas contra sua verso mais forte, que aquela que afirma que todas as obras de

    arte, tanto singulares como mltiplas, so identificveis com algum objeto fsico. Ao mesmo

    tempo, teremos ocasio tambm para esclarecer melhor a distino entre o que at aqui foi

    chamado de obras de arte singulares e obras de arte mltiplas.

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    II

    Recentemente tive vontade de reler a novela O tnel, do escritor argentino Ernesto

    Sbato. Com essa inteno dirigi-me estante de casa onde estava o texto que queria ler

    mais precisamente uma traduo dele para o portugus e aps algumas horas manuseando

    um livro de menos de 100 pginas satisfiz meu desejo. Mas enquanto eu lia O tnel, isto ,

    enquanto segurava em minhas mos um objeto material ao qual recorri quando quis ter acesso

    novela de Sbato, incontveis outras edies, traduzidas para os mais variados idiomas,

    continham a mesma obra. Assim, se naqueles momentos de leitura algum tivesse me

    perguntado onde estava a obra O tnel e eu dissesse que ela estava em minhas mos, algo

    muito estranho estaria ocorrendo: como a referida obra poderia estar nas minhas mos e, ao

    mesmo tempo, em inmeros outros lugares mundo afora? Certamente havia um livro um

    objeto fsico - em minhas mos; mas a obra de arte, embora manifesta naquela sucesso de

    palavras impressas em vrias folhas de papel encadernadas, aparentemente existia para muito

    alm delas.

    Estranheza similar ocorreu enquanto escrevia este texto e em meu aparelho de som

    tocava o clssico Child in time do Deep Purple a verso ao vivo do lbum Made in Japan:

    se a obra Child in time era aquela sequncia de fenmenos sonoros que ouvi, o que pensar de

    todas suas regravaes, das apresentaes ao vivo no gravadas, da verso em estdio que

    est no lbum In rock, alm das possveis ocorrncias simultneas das cpias dessa mesma

    faixa em diversos lugares do mundo nesse instante?

    O que acontece que tanto O tnel como Child in time so obras de arte mltiplas,

    isto , obras que podem estar simultaneamente presentes em lugares diferentes, seja como

    coisas ou como eventos. Identificar uma obra de arte mltipla com um certo objeto material ouevento , como vimos pelos exemplos acima, no mnimo problemtico, justamente porque no

    parece possvel indicar um certo exemplar (um nico exemplar) da obra como sendo aobra.

    Desse modo, a verso de O tnel que tenho em casa apenas isso, uma verso, um exemplar

    de uma obra de arte que se apresenta de maneira mltipla; o exemplar um objeto fsico, mas

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    a obra, ainda que possa depender do meio material para se manifestar, no o mesmo que ele.

    A fim de reforar esse ponto, vamos supor que eu cometesse o absurdo de destruir queimar,

    digamoso meu exemplar: isso de modo algum implicaria a destruio da obra, mas apenas de

    uma de suas mltiplas manifestaes. De modo semelhante, se eu perdesse minha cpia de O

    tnel, isso no significaria que a obra como tal estaria perdida; portanto a obra no poderia

    ser identificada com a minha cpia (material) da mesma. Outro raciocnio igualmente simples

    tambm poder ser aplicado para mostrar que uma obra de arte mltipla no se reduz a sua

    contraparte material: uma obra musical como a cano Child in time no pode ser

    identificada com uma de suas ocorrncias fsicas, j que uma pessoa poderia perfeitamente

    adorar essa msica e no gostar de alguma de suas verses; ela poderia, por exemplo, no

    apreciar a verso ao vivo presente no lbum Made in Japan , ou ainda detestar a verso que

    se encontra no lbum Nobodys perfect. No incomum, inclusive, um crtico musical ou

    um crtico de teatro tecer comentrios negativos referente a uma certa apresentao,

    montagem ou interpretao de um certo espetculo que ele prprio aprecie; isso, de modo

    algum, quer dizer que sua crtica est sendo dirigida obra como tal.

    claro que algum ainda poderia insistir em defender a identidade das obras de arte

    mltiplas com algum objeto material, alegando, por exemplo, que as obras no so as cpias,

    mas sim um objeto original, ou seja, um manuscrito no caso das obras literrias, e uma

    partitura no caso das obras musicais. Mas essa estratgia tambm padece de dificuldades

    semelhantes ao caso das cpias que vimos acima: tambm os manuscritos poderiam ser

    destrudos ou perdidos sem que as obras fossem destrudas ou perdidas (o mesmo valendo

    para as partituras). Em tese, inclusive, se o original e todas as cpias de uma obra poderiam ser

    destrudos, ainda assim seria possvel que a obra em questo existisse na memria das pessoas

    ou no interior de alguma tradio cultural estritamente oral uma poesia ou cano popular,

    por exemplo, seria um caso bastante simples dessa possibilidade; mas nada impediria a

    memorizao e reproduo de um romance como Finnegans Wake, de James Joyce, de uma

    longa sute de rock progressivo ou mesmo de uma sinfonia de msica erudita. Alm disso,

    especificamente no caso das obras de arte musicais (obras de msica erudita), a idia de que

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    elas so, em ltima instncia, um objeto no sonoro (uma partitura) , no mnimo, contra

    intuitiva.

    Em virtude da existncia de argumentos como os que acabam de ser arrolados, a

    hiptese do objeto fsico, quando pensada em relao s obras de arte mltiplas, parecerealmente insustentvel e assim ela tem sido entendida pela imensa maioria dos estetas e

    filsofos da arte contemporneos. Entretanto, as obras de arte que so singulares, ou seja, as

    obras que no podem existir simultaneamente em diversos lugares do espao, que podem ser

    apontadas de modo especfico quando queremos indicar onde a obra se encontra, tais obras

    inicialmente parecem identificveis com algum objeto material. Se algum quisesse saber onde

    est a Mona Lisa de Leonardo Da Vinci, por exemplo, bastaria indicar-lhe o Museu do Louvre:

    seria l, e apenas l, que hoje poderamos encontrar essa famosa pintura. Poderamos, claro,

    abrir um livro sobre pintura, qui um volume das clebres edies da Taschen, e mostrar uma

    foto da Mona Lisa e dizer Veja aqui a Mona Lisa. Mas obviamente teramos ali apenas uma

    fotografia (que, enquanto gnero artstico, constitui-se de obras de arte mltiplas) e no a tela

    pintada por Leonardo Da Vinci h vrios sculos atrs. Essa tela encontra-se em um museu

    especfico, e se ela fosse transferida para outro museu, teramos que considerar que no

    apenas a tela teria sido movida, mas a prpria Mona Lisa (se, por outro lado, eu desse meu

    exemplar de O tnel a algum amigo, isso no significaria que a obra O tnel foi movida). E

    se algum destrusse a Mona Lisa? Seria possvel a obra continuar existindo, como no caso

    das obras mltiplas que vimos h pouco? Diferentemente das obras literrias ou musicais, a

    oralidade no seria suficiente para manifestar novamente a obra; at seria possvel apresentar

    uma descrio pormenorizada das caractersticas tcnicas, formais e simblicas da pintura, mas

    isso seria insuficiente para resgat-la inteiramente. Mesmo se algum pintor voltasse a

    reproduzi-la em uma tela, seria improvvel que ele obtivesse uma cpia perfeita; alm disso,

    seria impossvel ele fazer uso dos mesmos materiais que constituam a obra (j algum que

    soubesse de cor o texto de Finnegans Wake precisaria apenas escrever novamente aquela

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    sequncia de palavras que a constitua para resgat-la2; ou simplesmente narr-la para

    algum).

    Essas observaes parecem, ento, indicar que o caso das obras de arte singulares pode

    garantir, ao menos parcialmente, a veracidade da hiptese do objeto fsico. Contudo, a seguir

    passaremos a examinar uma srie de argumentos que colocam em xeque tambm a ideia de

    que entre as obras de arte singulares e seu meio material existe uma relao de identidade.

    III

    As objees mais comuns hiptese do objeto fsico no que diz respeito s obras de

    arte singulares baseia-se em um apelo chamada lei de Leibniz, tambm conhecida como

    princpio da indiscernibilidade dos idnticos. Segundo esse princpio, se uma entidade a

    idntica a uma entidade b, ento a e b tm exatamente as mesmas propriedades; se essas

    entidades apresentam ao menos uma propriedade diferente uma da outra, ento essas

    entidades so diferentes. Assim, aqueles que como o meu caso rejeitam a tese de que as

    obras de arte singulares identificam-se com sua contraparte material, argumentam que os

    objetos artsticos apresentam propriedades que no podem ser encontrados nos objetos fsicos

    utilizados pelos artistas na criao de seus trabalhos. Obras de arte, por exemplo, apresentam

    diversas propriedades representacionais e muitas vezes tambm propriedades expressivas, algo

    que, aparentemente, no acontece com meros objetos fsicos3. Uma tela, isto , um mero

    objeto fsico, no representa nada alm dela mesma; j um padro de tintas azulado disposto

    em sua parte superior pode estar l representando o cu. Mesmo em uma pintura no realista

    2Um desafio interessante a essa concepo encontra-se no conto Pierre Menard, autor de Quixote, de Jorge Luis

    Borges, em que o personagem Pierre Menard reescreve o Dom Quixote de Cervantes palavra a palavra e ento

    surge a discusso a respeito do estatuto ontolgico desse novo texto. Borges, ou pelo menos seu texto, sugere

    que se trata de uma obra completamente diferente. O referido conto faz parte do livro de contos intitulado porBorges de Fices.3Cabe destacar que as propriedades representacionais e expressivas das obras de arte so propriedades essenciais

    ou necessrias desses objetos. Assim, a tentativa de contornar essa objeo fazendo delas algo meramentecontextual ou relacional tende a falhar.

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    como, por exemplo, as mais conhecidas obras de Pollock, Rohtko ou Malevich, os padres de

    cores e formas, na medida em que so dotados de significado, possuem algum contedo

    representacional. Poderamos at imaginar uma pintura que nada mais fosse do que uma tela

    em branco exposta em uma galeria por algum artista minimalista; mesmo assim, essa tela

    hipottica estaria representando algo, comportaria um significado e, portanto, seria diferente

    de uma tela visualmente idntica a ela e venda em alguma loja especializada. O mrmore,

    como tal no possui expressividade, mas um rosto humano nele esculpido pode exprimir

    sofrimento ou felicidade. Pela lei de Leibniz, se a obra apresenta propriedades

    representacionais e sua contraparte material no, ento as duas coisas no apresentam

    exatamente as mesmas propriedades; logo, so distintas. Da mesma maneira, crticos de arte

    descrevem as obras de arte como vivas, em movimento, melanclicas, etc., quando os

    objetos fsicos correspondentes no possuem nenhuma dessas propriedades. A tela em que

    podemos encontrar a obra O casal Arnolfini bidimensional, mas a obra do pintor flamenco

    Van Eyck apresenta uma inigualvel dimenso de profundidade e tridimensionalidade.

    Alm dessas propriedades expressivas e representacionais, que geralmente no se

    encontram nos objetos fsicos, h outra gama de propriedades das obras de arte que esto

    ligadas ao impacto da obra no seio de um determinado contexto da histria da arte ou a um

    determinado contexto social. Tambm essas propriedades pertencem exclusivamente obra,

    mas no sua contraparte material. A fonte de Marcel Duchamp, por exemplo, uma obra

    irreverente, transgressora, inovadora, desafiadora, etc., sendo que nenhuma dessas

    propriedades poderia ser atribuda ao mero objeto material utilizado pelo escultor francs na

    criao de seu famoso ready-made. Mais uma vez, portanto, teramos uma violao da lei de

    Leibniz.

    Outro caso em que teramos uma violao dessa lei seria ao destacar a distino j

    aludida na ltima nota de rodap entre propriedades essenciais ou necessrias e

    propriedades no essenciais ou contingentes que um objeto pode ter. Tambm nesse caso

    encontraramos uma discrepncia entre as propriedades de uma obra de arte e as propriedades

    de sua contraparte material. Qualquer escultura a entalhe ou pintura , necessariamente, um

    artefato, isto , um objeto trabalhado, manipulado, alterado e, assim, criado, por um artista -

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    ou pelo menos escolhido por um artista (como ocorre com os ready-madesde Duchamp). Um

    bloco de mrmore, um tronco de madeira ou qualquer outro material comumente empregado

    na criao de uma escultura, por outro lado, no podem ser considerados como artefatos.

    Assim, mais uma vez, as obras de arte possuiriam propriedades que os objetos materiais que

    habitualmente supe-se serem o mesmo que elas no apresentariam.

    Outra objeo no mesmo sentido consiste em destacar o fato de que as condies de

    identidade que individuam os objetos fsicos so diferentes daquelas que individuam as obras

    de artes e que, em virtude dessas condies serem distintas, um objeto no poderia ser

    identificado com o outro. Uma escultura entalhada em argila, por exemplo, poderia sofrer uma

    restaurao e ainda assim consideraramos tratar-se da mesma obra; no entanto, no

    poderamos afirmar o mesmo com relao sua contraparte material, dado que sua

    constituio fsica teria sido significativamente alterada. Analogamente, se essa escultura fosse

    derretida, a obra seria destruda, mas sua constituio material aquela quantidade especfica

    de argila permaneceria a mesma. Desse modo, uma vez que a obra de arte (a escultura

    entalhada em argila) e sua contraparte material (uma certa quantidade de argila) apresentam

    condies de identidade distintas, a obra no poderia ser identificada ao objeto fsico: o que

    torna a obra uma objeto artstico no o mesmo que torna o objeto fsico um objeto fsico.

    Mas, alm dessa diferena a respeito das condies de identidade dentre a obra e o

    objeto fsico, tambm possvel apontar diferenas com relao s condies de persistncia

    ou durao existente entre ambos. E, sendo as condies de durao tambm distintas, no h

    como afirmar a identidade entre as obras e os objetos fsicos. Tomemos, mais uma vez, o

    exemplo da obra de Duchamp, A fonte. Antes de Duchamp se apropriar de uma certa pea de

    cermica comumente comercializada em casas de objetos para construo e decorao e

    transfigur-la em artecomo diria Arthur Danto (2005) essa pea nada mais era do que um

    objeto comum; portanto, nesse caso, a origem temporal do objeto fsico seria bastante

    diferente da origem temporal da obra de arte correspondente4.

    4Uma anlise baste aprofundada da disparidade de condies de persistncia/durao entre as obras de arte e

    seus respectivos objetos fsicos desenvolvida nos trabalhos de Lucien Krukowski (1891, 1988).

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    Em virtude das razes apresentadas, a concepo segundo a qual as obras de arte

    singulares so idnticas a meros objetos materiais, assim como sua verso mais forte (que inclui

    tambm as obras de arte mltiplas), parece insustentvel. Isso, contudo, no nos conduz

    negao da existncia de uma ntima relao entre as obras de arte e sua contraparte material.

    O que preciso determinar , portanto, qual relaoj que no a de identidadeexiste entre

    uma coisa e a outra.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    DANTO, Arthur.A transfigurao do lugar-comum. So Paulo: Cosac Naify, 2005.

    HANFLING, Oswald. The ontology of art in HANFLING, Oswald (ed.). Philosophicalaesthetics

    an introduction. Cambridge/Oxford: Blackwell, 1992, pp. 75-110.

    KRUKOWSKI, Lucien. Artworks that end and objects that endure in The Journal os aesthetics

    and art criticism, 40, 2, 1981, pp. 187-197.

    __________________. The embodiement and duration of artworks in The Journal os

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    LAMARQUE, Peter. Work and object Explorations in the metaphysics of art. Oxford: Oxford

    University Press, 2010.

    WOLLHEIM, Richard.A arte e seus objetos. So Paulo: Martins Fontes, 1994.