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  • 1

    O CONCEITO DE VIOLNCIA EM HANNAH ARENDT

    Marcelo Hsiao 1

    RESUMO

    O presente artigo de reviso resume, analisa e discute o tema da

    violncia sob a ptica de Hannah Arendt, que parte da Dissertao de Mestrado

    em Direito (rea de concentrao - Filosofia do Direito) apresentada Banca

    Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, denominada

    Hannah Arendt: entre o passado e o futuro da poltica e do direito - autoridade,

    legitimidade, violncia e poder, defendida pelo mesmo autor, Marcelo Hsiao, sob a

    orientao do Professor Doutor Gabriel Benedito Isaac Chalita.

    Palavras-chave: Poltica. Direito. Autoridade. Legitimidade. Violncia. Poder. Hannah

    Arendt.

    1 INTRODUO

    O presente artigo de reviso visa a anlise e discusso de uma

    investigao cientfica, de maneira resumida, que retrate as reflexes poltico-

    filosficas pautadas em noes do Direito, Poder, Violncia, Legitimidade e

    Autoridade na obra de Hannah Arendt.

    O pensamento poltico de Hannah Arendt teve participao de destaque

    no entendimento dos fatos histricos marcantes em nossa sociedade, sendo, dessa

    forma, considerada uma das mais brilhantes pensadoras do sculo XX. Por meio de

    sua obra, pode-se trazer tona um conceito plausvel do Direito, do Poder, da

    Legitimidade e da Autoridade, depreendendo a conexo entre os institutos,

    alcanando uma anlise da conjuntura mundial vigente, baseada nos fatos histricos

    1 Capito da Polcia Militar do Estado de So Paulo (PMESP) Chefe Interino da Diviso de Altos Estudos da

    Academia de Polcia Militar do Barro Branco; Bacharel (1993) e Mestre (2013) em Cincias Policiais de

    Segurana e Ordem Pblica; Bacharel em Direito (1999); Especialista em Direito Militar (2007); Mestre em

    Filosofia do Direito (2007); Doutorando em Filosofia do Direito (2011-). Currculo Lattes:

    . Contato: [email protected].

  • 2

    marcantes em nossa civilizao ocidental, sob o primado da Filosofia, haja vista que

    os acontecimentos tendem a ocorrer de forma cclica, isto , fatos ocorridos no

    passado podem acarretar fatos vindouros, criando-se um crculo vicioso.

    No obstante todo esse reconhecimento, Arendt recusava para si o ttulo

    de filsofa, com isso despertando a ateno para a separao entre a filosofia e a

    poltica, utilizando-se de importante argumento filosfico, qual seja:

    A separao da filosofia da poltica, aps a morte de Scrates, conduziu a filosofia exclusivamente vida contemplativa em detrimento da vida ativa. A vida contemplativa passou a ser o lugar privilegiado no qual o ser humano poderia superar as limitaes naturais, sair do campo do necessrio e adentrar no da liberdade.

    Em sua obra A Condio Humana Hannah Arendt mostra que, com o

    advento da era moderna, esta trouxe uma completa inverso do quadro que

    predominava na Grcia antiga, com a eliminao da separao entre as esferas

    pblica e privada. O interesse individual sobrepujou o interesse coletivo (a esfera

    pblica deveria, agora, atender aos interesses da esfera privada) e a preocupao

    do cidado comum passou a ser a manuteno e o aumento de sua propriedade e

    riqueza, sem que o Estado em nada possa prejudic-lo.

    2 PODER E VIOLNCIA

    Hannah Arendt, para o estudo do poder e da violncia, utilizou-se de

    acontecimentos que se desenrolaram ao longo do sculo XX: o surgimento do

    totalitarismo nazi-fascista; o progresso tecnolgico dos instrumentos de violncia a

    partir da Segunda Guerra Mundial; e a crescente apologia da violncia na sociedade

    contempornea. Todavia, cumpre ressaltar que a autora no se preocupa em definir

    o que sejam poder e violncia, mas sim compreend-los. A compreenso faz-nos

    aprender a lidar com nossa prpria realidade e a reconciliarmo-nos com ela.

    A compreenso confere um significado s coisas que produzimos em

    nosso prprio processo de vida2

    Apesar do fenmeno da violncia estar presente em toda a nossa histria,

    este no fora frequentemente escolhido como alvo de considerao poltica como os

    2 Hannah Arendt, A Dignidade da Poltica, p. 40.

  • 3

    temas da guerra e da revoluo, pois poucos autores dignaram-se a refletir sobre a

    violncia.3

    A violncia s se torna objeto de interesse para muitos tericos da

    poltica, quando relacionada a contextos que a provocaram, como no caso de

    guerras e revolues.

    Neste diapaso, a violncia vista como inerente queles

    acontecimentos, um meio para atingir determinado fim e a violncia, enquanto fim

    em si mesma, est fora das consideraes da teoria poltica.

    Arendt afirma que os fatos que a humanidade presenciou desde a

    Segunda Guerra revelam que a violncia chegou a um patamar to perigoso que se

    tornou um fim em si mesmo, o banal aceito como recurso vivel para a resoluo

    da maioria dos problemas.

    Conforme meno anterior, a preocupao da autora compreender a

    violncia em suas manifestaes concretas. Desta maneira, revela toda uma gama

    de fenmenos inter-relacionados, mas que no se confundem com a violncia, quais

    sejam: autoridade, fora, vigor e, principalmente, o poder.

    No que tange ao poder, o fenmeno poltico por excelncia, Arendt

    insistir em dizer que violncia e poder no se confundem; muito pelo contrrio, so

    incompatveis.

    O espao ocupado por um elimina necessariamente o outro. H

    divergncias necessrias, visto que poder e violncia so institutos distintos.

    A compreenso nos faculta a lidar com nossa prpria realidade para nos

    reconciliarmos com ela; assim, damos visibilidade a um fenmeno (a violncia) que,

    ao ser relegado ao segundo plano nas reflexes polticas, corre o risco de no ser

    devidamente levado em considerao e, com isso, banalizada.4 Esclarecer as

    questes e adquirir alguma desenvoltura no confronto com problemas especficos

    tarefa que a autora se prope a discorrer.

    O especfico, nas reflexes de Arendt, foi a emergncia do totalitarismo

    no sculo XX e a gama de terror e violncia que ele ensejou, confirmando assim as

    previses de Lnin, de que o sculo XX seria o sculo da violncia.

    3 Citemos dentre os autores e obras que procuraram refletir sobre a violncia: G. Sorel, em Reflexes sobre a

    violncia; L. Coser, em A funo do conflito social; L. Nieburg, em A violncia poltica; E. V. Walter, em Terror

    e Resistncia e Hannah Arendt, em Sobre a Violncia. 4 Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro, p. 42.

  • 4

    Em anlise dos fatos polticos de nosso sculo, d-se conta de que a

    violncia decorrente da arbitrariedade, visto que na ao violenta no se trata de

    prever qual ser o seu alcance e se ser possvel det-la se ela tomar propores. A

    ao violenta tem a tendncia de alastrar-se por todos os prismas da existncia

    humana.

    A violncia, segundo Arendt, o meio para se atingir determinados fins. A

    problemtica que a categoria meio-fins, aplicada aos negcios humanos, redundou

    em que os meios suplantaram os fins, pois as aes dos homens esto para alm

    do controle dos atores, abrigando a violncia um elemento adicional de

    arbitrariedade.5

    Arendt, para salvar a ideia de poder, livrando-a da confuso que equaliza

    poder e violncia, prope que no se enxergue o corpo poltico como superestrutura

    coercitiva. Todavia, temos outra questo fundamental: j que o poder supe uma

    forma de domnio, como exercer o poder dominante do domnio por meios violentos?

    No resgate do pensamento poltico ocidental que Arendt busca, num

    primeiro momento, elementos para matizar as concepes de poder associadas s

    formas de domnio que se utilizam da violncia como meio de se fazer obedecer.

    A segunda concepo de poder na qual a autora se filia no relaciona o

    poder com o binmio mando-obedincia.

    A primeira das tradies origina-se na Grcia, com os crticos das ideias

    democrticas como Xenofonte (355 a.C.) e Plato (347 a.C.), passa por Jehan Bodin

    (1576) e Thomas Hobbes (1651) e chega aos nossos dias, por exemplo, na figura de

    Passrin dEntrves (1970). O que converge nas ideias desses pensadores

    vislumbrarem o poder como domnio do homem sobre o homem.

    A tradio que v o poder como relao mando-obedincia inscreve-se

    em precpua na Antiguidade grega quando os gregos tentaram definir as formas de

    governo enquanto modos de domnio; em Hobbes a nica maneira de garantir a paz

    consiste na delegao de um poder absoluto ao soberano.

    Conforme assevera B. de Jouvenel: Um homem se sente mais homem

    quando est se impondo e fazendo dos outros instrumentos de sua vontade.;

    tambm: Mandar e ser obedecido sem isto no se h poder e com isto no

    5 Hannah Arendt, Sobre a Violncia, p. 16.

  • 5

    necessrio qualquer outro atributo para que haja[...]; ainda: A coisa essencial sem

    a qual no h poder: ordens.

    O poder alicerado no mando tem como contrapartida a exigncia da

    obedincia, e esta s ser conseguida pela coao dos indivduos por meio de

    algum tipo de violncia.

    Consequentemente, aquele que domina v aumentado o seu poder cada

    vez que recorre aos instrumentos de violncia. A violncia, ento, configura-se como

    a mais flagrante manifestao do poder.6

    Quanto outra tradio, na qual Arendt busca elementos para

    fundamentar sua concepo de poder, aquela que no conceitua poder enquanto

    relao mando-obedincia, e limiar na Grcia dos tempos homricos, com a

    constituio da isonomia, na polis e depois em Roma, nas civitas.

    O que pitoresco em tais momentos que em ambas as experincias, o

    domnio no se faz do homem sobre o homem, e sim, de muitos sobre um, atravs

    da lei. A tradio encontra eco nos revolucionrios do sculo XVIII, preocupados em

    assegurar que o domnio da lei se assentasse no poder do povo para colocar um fim

    ao domnio do homem sobre o homem.

    Assim, esta forma de poder distinta porquanto a apologia s leis no era

    cega, fruto de aceitao passiva. Pelo contrrio, era o resultado do consenso

    adquirido mediante a explicitao de vrios pontos de vista. Desse modo, eram

    afastadas quaisquer tentativas de imposio violenta da obedincia inquestionvel.

    Ainda inspirados nesta tradio, Arendt afirma que os revolucionrios do

    sculo XVIII, diante da violncia extrema de um contra todos, opuseram a forma

    extrema de poder de todos contra um e reafirmaram a pluralidade do poder em

    oposio singularidade da violncia.

    Conclui Arendt que, somente o poder de todos a limitao do vigor

    individual materializado na violncia extrema que se multiplica cada vez mais graas

    ao alcance tcnico-destrutivo de novos implementos. Onde h o aumento da

    violncia, necessariamente h um declnio do poder. Na Grcia Antiga, a pluralidade

    do poder estava ligada experincia da polis, onde tudo era decidido mediante

    palavras e persuaso, e no atravs da fora ou violncia, que eram considerados

    modos pr-polticos de lidar com as pessoas, prprios dos dspotas.7

    6 Hannah Arendt, Sobre a Violncia, p. 32.

    7 Hannah Arendt, A Condio Humana, p. 35.

  • 6

    Ora, no se trata mais de saber quem domina quem, mas sim como erigir

    um poder no qual no haja aqueles que dominam e os que so dominados; aqueles

    que mandam e aqueles que obedecem.

    O poder proposto por Arendt aquele fruto da pluralidade humana,

    construdo pela ao conjunta dos homens no espao pblico poltico, onde ao e

    discurso se fazem presentes.

    Em sntese, o espao da polis grega, visto pela autora no como ideal a

    ser imitado, mas como a mais elevada das possibilidades humano-mundanas e

    fonte de inspirao para se pensar formas alternativas relao mando-obedincia

    que muito facilmente utilizam-se da violncia.

    A autora distingue o poder da fora, e esta da violncia. Fora para ela

    a energia que se desprende de movimentos fsicos e sociais. Quanto violncia, ela

    caracteriza pelo seu carter instrumental, multiplicador da potncia individual, graas

    manipulao dos implementos dela mesma. J o poder uma relao que leva

    formao de uma vontade comum, que resulta de uma comunicao voltada para a

    obteno do acordo. Por isso, para ela o poder nunca atributo de um indivduo no

    singular, mas sim o resultado da capacidade do agir pluralmente, em conjunto8.

    A violncia por parte dos cidados frequentemente visa desmascarar a

    hipocrisia dos governantes, e quando estes se veem na contingncia de recorrer

    apenas violncia para se manterem no governo, porque as instituies polticas,

    enquanto manifestaes e materializaes do poder, esto petrificadas e

    decadentes, esvaziadas por assim dizer do sopro de vida gerado pelo poder que

    resulta do apoio da comunidade9.

    A seguir, faremos a distino do poder, que o agir em concerto, da

    violncia, que sempre instrumental ou o meio para atingir o fim.

    3 DISTINO ENTRE VIOLNCIA E PODER

    Os conceitos de poder e violncia, assim como seus correlatos: vigor,

    fora e autoridade promovem muitos equvocos. A viso limitante desses conceitos

    seria v-los somente sob a ptica do domnio.

    8 LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuaso e poder, p. 34.

    9 Ibidem, p. 35.

  • 7

    Hannah Arendt prope-se a analis-los em sua individualidade,

    mostrando suas divergncias e a o alcance destes conceitos em mbito poltico.

    Desta maneira, o poder corresponde atividade humana para agir em

    concerto. Tem fundamento na liberdade da ao e do discurso e com a ausncia

    dos destes, a esfera pblica perde sua razo de ser.

    Arendt afirma que o agir em concerto nunca propriedade de um

    indivduo, mas pertence a um grupo que o conserva unido. Quando dizemos que

    algum est no poder, isso significa que foi empossado por certo nmero de

    pessoas para agir em seu nome. aqui que o poder encontra sua legitimidade.10

    O vigor designa algo no singular: a propriedade inerente a um objeto ou

    pessoa e pertence ao seu carter. O vigor possui uma independncia peculiar, por

    isso, da natureza de um grupo e de seu poder voltar-se contra a independncia, a

    propriedade do vigor individual.11

    A fora, diversas vezes confundida com a violncia, deveria indicar

    somente a energia liberada por movimentos fsicos e sociais. Ela qualidade

    natural de um indivduo isolado. mensurvel, confivel, imutvel [...]. Na luta entre

    dois homens, o que decide a fora, e no o poder.12

    A autoridade costumeiramente confundida com o poder e a violncia.

    Sua insgnia o reconhecimento inquestionvel por aqueles a quem se pede que

    obedeam; nem a coero nem a persuaso so necessrias.13

    A violncia distingue-se pelo seu carter instrumental. Trata-se do

    instrumento para o alcance de uma finalidade almejada. Contrape-se ao poder, na

    medida em que onde h emprego de meios violentos h, concomitantemente, a

    negao do poder. Onde um domina absolutamente, o outro est ausente.14

    Os referidos conceitos requerem maior compreenso, pois eles guardam

    elementos que os tornam mpares.

    O poder s efetivado enquanto a palavra e o ato no se divorciam, quando as palavras no so empregadas para velar intenes, mas para revelar realidades, e os atos no so usados para violar e destruir, mas para criar relaes e novas realidades.

    15

    10

    ARENDT, Hannah. Sobre a Violncia, p. 36. 11

    Ibid., p. 37. 12

    Idem, A Condio Humana, p. 212. 13

    Idem, Crises da Repblica, p. 124. 14

    Idem, Sobre a Violncia, p. 44. 15

    Idem, A Condio Humana, p. 212

  • 8

    Com esta afirmao, Arendt quer dizer que cada vez que os homens se

    renem na modalidade de ao e do discurso, no espao da aparncia, o poder

    efetivado. O mostrar-se condio sine qua non para a efetivao do poder na

    medida em que ele no propriedade de um s individuo, mas pertence a uma

    coletividade, onde cada qual mostra aquilo a que veio e onde todos so ouvidos uns

    pelos outros.

    Com relao a este conceito pitoresco de poder em Hannah Arendt, que

    J. Habermas vai denominar de poder comunicativo, porque fundado na ao

    comunicativa, a

    [...] faculdade de alcanar um acordo quanto ao comum, no contexto da comunicao livre da violncia contrapondo-o quelas teorias clssicas sobre o poder que o definem como possibilidade de impor a prpria vontade ao comportamento alheio.

    16

    A concepo de poder enquanto imposio encontra no pensamento

    clssico farta referncia. Conveniente se faz aprofundarmo-nos nas concepes de

    poder que permeiam a tradio poltica ocidental para depois percebermos a

    originalidade da concepo arendtiana de poder.

    Conforme meno anterior, o espao da polis grega, espao de ao e do

    discurso, era comum e pblico.

    Alm do espao pblico, o cidado grego era obrigado a conviver com o

    espao privado da casa (oikia), onde mantinha relaes despticas com a famlia e

    os escravos. Tal espao era caracterizado pela desigualdade entre quem tem o

    poder e quem est privado dele.

    Com o declnio da civilizao grega e o irromper do Imprio Romano, as

    relaes de sociabilidade existentes na antiga polis foram substitudas por relaes

    desiguais.

    Desta maneira, o que fazia parte da privacidade para os gregos, o mando

    e a obedincia, tornar-se-ia no Imprio Romano o princpio regulador das relaes

    polticas na societas.

    A participao do cidado nos negcios pblicos foi perdendo importncia

    frente s comunidades domsticas onde predominavam os interesses privados e as

    desigualdades.

    Na polis, a sociabilidade naturalmente definida (no espao pblico, a

    igualdade e na vida privada, o inferior se submete ao superior), a societas constitui

    16

    J. Habermas, Freitag B. e Rouanet, J.P., p. 100.

  • 9

    uma associao baseada num pacto entre os senhores das vrias comunidades

    autnomas detentoras da propriedade privada com suas leis prprias. O espao

    pblico significa agora a associao negociada entre os diversos espaos privados.

    Gerard Lebrun apregoa:

    Desde que esse mundo Ksmos - , que era ao mesmo tempo uma ordem, desaba, a comunidade (do grego Koionnia) no existe mais por princpio, e o problema poltico ento ser encontrar uma soluo, permitindo que elementos separados por essncia, retrados ao seu interesse vital, ciosos de sua independncia, sejam integrados, apesar de tudo, numa totalidade em que se preserve a sua igualdade original.

    17

    A igualdade original, evocada por Lebrun, ser o ponto de partida das

    teorias do pacto, tendo como um de seus expoentes Thomas Hobbes.

    Hobbes, por sua vez, teorizou sobre a transformao da multido de

    indivduos naturalmente iguais, em um corpo poltico constitudo sobre o fundamento

    de um princpio de consenso universalmente vlido.

    Em anlise primeira parte de sua obra O Leviat, temos que Hobbes

    concebe o homem como um indivduo isolado, preocupado precipuamente com sua

    prpria segurana.

    Anteriormente ao ingresso na vida social, os indivduos encontram-se no

    estado de natureza, em que cada homem lobo do homem. Posto isso, o primeiro

    direito natural de todo ser humano garantir a prpria vida. Todos tm, portanto, a

    liberdade de utilizar quaisquer meios que julgar necessrios para manter a prpria

    existncia.

    Ao explicarmos a questo do poder, verificamos o fato de que no estado

    de natureza, os homens esto sempre em guerra e para protegerem-se, renunciam

    a todos os seus direitos naturais e submetem-se a um terceiro, um homem ou uma

    assembleia, ou um soberano que tem todos os direitos e nenhum dever, o qual

    passa a exercer um poder ilimitado sobre os sditos.

    O que nas societas era a multido, um nmero de homens distintos pelo

    lugar de suas residncias, torna-se um corpo poltico, cuja vontade tida e

    considerada como vontade de cada homem em particular.

    como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condio de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas aes. Feito isso, a multido assim

    17

    Grard Lebrun, Hannah Arendt: um testamento socrtico. Suplemento Cultural de O Estado de So Paulo

    (76): 4-6, 22 nov. 1981.

  • 10

    unida numa s pessoa se chama Repblica, em latim, civitas, essa a gerao daquele grande Leviat.

    18

    A legitimidade do poder situa-se no fato de que este poder defende e

    protege a todos mediante um contrato de autorizao.

    Hobbes entende que no momento em que o homem resolve abandonar o

    estado pr-poltico, reconhece que a vida em sociedade lhe trar vantagens; todavia,

    viver em sociedade significa viver sob ordens, isto , sob uma estrutura de poder

    visando garantir o bem da coletividade.

    necessria a existncia de poder em qualquer corpo poltico, visto que

    Hobbes quer com sua colocao deixar implcito que este, enquanto capacidade de

    mandar e se fazer obedecer, essencial para o funcionamento da sociedade civil e

    fazer obedecer implica em estar de posse de aparelhos de coero, dentre eles, o

    monoplio da violncia.

    Neste diapaso, Max Weber preconiza que, para fazer-se obedecer, o

    poder deve ser uma combinao de:

    a) potncia ou a possibilidade de impor sua prpria vontade no interior

    de uma relao social, at mesmo contra resistncias, pouco

    importando em que repouse tal possibilidade;

    b) fora ou meios adequados, violentos se necessrio para se fazer

    obedecer;

    c) dominao ou a imposio de uma ordem com determinado contedo

    especfico a ser obedecido por determinado nmero de pessoas. 19

    Weber, assim como Hobbes, enxerga no poder uma razo utilitria,

    porque este pode a seu bel-prazer utilizar de qualquer meio considerado til e

    necessrio para se atingir um determinado fim.

    Para Arendt, o poder s pode se basear na ao comunicativa. Ela

    recorre ao exemplo da polis. No espao da polis, o poder era o resultado da

    capacidade humana de agir e falar uns com os outros, de unir uns com os outros e

    atuarem em concordncia.

    O poder, que encontra sua razo de ser na ao comunicativa, no

    encontra respaldo em fora, ameaas, sanes e manipulao; mas sim, de um

    18

    Thomas Hobbes, O Leviat, passim. 19

    Grard Lebrun, op. cit., p. 10-13.

  • 11

    poder que se obtm atravs de uma teia de relaes, onde cada qual se liga ao

    outro na comunicao recproca.

    Desta maneira, o poder somente existe na proporo em que os homens

    agem em conjunto e da mesma forma desaparece quando eles se dispersam. Para

    tanto, o poder sempre um potencial de poder, no uma entidade imutvel,

    mensurvel e confivel como a fora.

    Arendt afirma que isso pode ser confirmado pela prpria Histria, em que

    muitas vezes um pequeno grupo de homens organizados governa grandes imprios,

    da mesma forma como um grupo com pequeno arsenal blico, mas muito bem

    organizado capaz de derrotar grandes potncias mundiais, como a clebre derrota

    dos Estados Unidos na Guerra do Vietn.

    Neste mesmo sentido, observa Arendt que vrias revoltas populares no-

    violentas contra governos materialmente mais fortes resultaram em sucesso mesmo

    que por um breve espao de tempo. Para tanto, cita a Revoluo Hngara de 1956:

    esse sbito levante de um povo oprimido em busca da liberdade e nada mais, sem o caos desmoralizador da derrota militar (como na Alemanha) precedendo-o, sem tcnicas do coup dtat, sem um aparato bem montado por organizadores e conspiradores, sem a propaganda sabotadora de um partido revolucionrio, alguma coisa que todos, conservadores e liberais, radicais e revolucionrios, haviam descartado como um sonho nobre ento ns tivemos o privilegio de testemunh-la

    20.

    Este tipo de ao nada tem a ver com resistncia passiva, pois se trata de

    um dos meios mais eficazes de ao j concebidos, uma vez que no se lhe pode

    opor um combate que termine em vitria ou derrota, mas somente uma chacina em

    massa da qual o prprio vencedor sairia derrotado e de mos vazias, visto como

    ningum governa os mortos.21

    O fator primordial para o surgimento do poder a convivncia entre os

    homens. Aps o primeiro momento da organizao dos corpos polticos os quais

    irromperam com a ao, o que mantm esses corpos polticos unidos o poder

    fundamentado na pluralidade humana.

    Ainda assim, Arendt explicita sua anlise da gerao do poder recorrendo

    a duas palavras gregas: archein e prattein, que significam respectivamente iniciar e

    levar adiante, para demonstrar que a gerao de poder s possvel com o apoio de

    muitos.

    20

    E. Young-Bruehl, Hannah Arendt: por amor ao mundo, p.272. 21

    Hannah Arendt, A Condio Humana, p. 213.

  • 12

    Um lder pode tomar a iniciativa da ao, mas s podemos falar de poder

    se esta iniciativa levada adiante por muitos. Arendt conclui que ou o poder reside

    no povo ou qualquer outra coisa menos poder: Todo aquele que, por algum

    motivo, se isola e no participa dessa convivncia, renuncia ao poder e se torna

    impotente, por mais que seja a sua fora e por mais vlidos que sejam suas

    razes.22

    Como o poder depende sempre do acordo de muitas vontades e

    intenes, isto , da pluralidade humana, ele no propriedade de um nico

    indivduo enquanto a fora uma caracterstica individual.

    O que distingue o poder da fora que enquanto a nica limitao do

    poder a pluralidade, a limitao da fora est na interao de vrios indivduos e

    no poder da maioria. Um homem com fora jamais possui poder enquanto que um

    grupo organizado sempre o possui.

    no contexto do indivduo isolado, que tem como nica forma de

    persuaso fora e violncia, que Arendt vai introduzir a figura do tirano. Este, tendo

    fora, no tem poder, porque a tirania instaura um governo de medo e de

    desconfiana mtua entre tirano e sdito. O resultado desse modo de governar o

    isolamento do tirano em relao aos sditos e destes em relao uns com os outros,

    contrariando assim a condio humana da pluralidade, de ser visto e ouvido pelos

    outros.

    A tirania, portanto, uma condio sempre frustrada de substituir o poder

    pela violncia. O tirano no vive instalado no poder, j que este consequncia da

    pluralidade, mas mergulhado numa comunidade da violncia, porque como no

    tem o respaldo dos outros para o seu agir, confia somente no uso cada vez maior

    dos instrumentos de violncia como forma de ao. Aqui a violncia aparece em

    toda a sua instrumentalidade, ela um mero instrumento para o alcance de um fim

    almejado.

    A violncia por natureza instrumental; como todos os meios, sempre necessita de orientao e justificao pelos fins que persegue. E o que necessita ser justificado por alguma outra coisa no pode ser a essncia de coisa alguma.

    23

    22

    Hannah Arendt, A Condio Humana, p. 213. 23

    Idem, Sobre a Violncia, p. 41.

  • 13

    O poder no necessita de justificao, visto que ele justifica-se por si

    mesmo por ser inerente prpria existncia das comunidades polticas. O que ele

    necessita de legitimidade.

    Hannah Arendt, ao tratar de legitimidade do poder, orienta-nos para que

    faamos uma crtica quilo que a sociedade moderna entende por autoridade, que

    no se confunde com o desejo de se fazer obedecer atravs da coero imposta

    pela fora, pelo vigor ou pela violncia.

    O poder necessita da autoridade e esta s encontra seu fundamento no

    espao da pluralidade. Em outras palavras, o alicerce da autoridade a comunidade

    poltica. O conceito assim percebido afasta de imediato qualquer tentativa de tomar

    como sinnimo autoridade e autoritarismo.

    A confuso entre os dois conceitos reside no fato de se pensar a

    autoridade tambm sob os parmetros de mando-obedincia-violncia. Sob esse

    ponto de vista, diz Arendt, [...] tudo relacionado a um contexto funcional, tomando-

    se a utilizao da violncia como prova de que nenhuma sociedade pode existir

    exceto num quadro de referncia autoritria.24

    A preocupao com o significado e a crise da autoridade no mundo

    moderno resultou uma anlise histrico-etimolgica desse conceito.

    Arendt relembra que para os romanos, a fundao de um novo organismo

    poltico atravs da ao conjunta era uma das mais importantes tarefas. Assim, no

    por acaso que as divindades profundamente romanas eram Janus, o deus do

    princpio e Minerva, a deusa da recordao. A fundao e a recordao estavam

    atrelados ao re-ligare da religio romana, quilo que estava ligado ao passado, ao

    lendrio esforo de fundar para a eternidade. Da autoridade do latim augere,

    aumentar, acrescentar.25

    Dessa maneira, eram os ancios do Senado os responsveis pela

    preservao e transmisso da fundao, que guarda parentesco com o que viria a

    ser chamado de tradio.

    Ambos os termos significando o que preserva o passado e o transmite s

    geraes futuras.

    Para os romanos, a autoridade tinha suas razes no passado

    diferentemente do poder que se localizava na ao conjunta no ato de fundao. A

    2424

    Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro, p. 141. 25

    Ibidem, p. 163.

  • 14

    a assertiva de Ccero, lembrada por Arendt: enquanto o poder reside no povo, a

    autoridade repousa no Senado, incumbido de zelar pela continuidade da

    fundao.26

    Arendt vai transpor a relao entre fundao e autoridade quando se

    referir a legitimidade das revolues dos sculos XVIII e XIX. Na medida em que

    estas intentam fundar novos organismos polticos e preservar estes organismos,

    pode-se dizer que so legtimas. Sobre elas Arendt dir que so tentativas de [...]

    renovar o fio rompido da tradio e de restaurar, mediante a fundao de novos

    organismos polticos, aquilo que durante tantos sculos conferiu aos negcios

    humanos certa medida de dignidade e grandeza.27

    As distines feitas at agora so importantes porque nos possibilitam

    precisar melhor onde se encontra a legitimao e a efetivao do poder e em que

    ele se diferencia da violncia.

    O poder arraiga-se na associao entre os homens que se renem no

    espao da aparncia, onde ao e discurso manifestam-se livremente, e prprio

    do espao da aparncia a criao de relaes que permitem o fluir livre de diferentes

    pontos de vista sobre uma mesma realidade.

    A violncia, pelo contrrio, leva sempre destruio de todo corpo

    poltico, pois onde a violncia j no mais contida e restringida pelo poder, j

    comeou a bem conhecida inverso no cmputo dos meios e fins. Os meios de

    destruio agora determinam o fim e a consequncia ser a destruio de todo o

    poder.28

    Com a predominncia da violncia, sucede-se o reino do terror, que

    aniquila toda forma de organizao; o estado policial de vigilncia se impe muito

    alm dos aparelhos de represso do Estado: inimigos e amigos passam a ser

    suspeitos; o poder desaparece.

    Para Arendt, a violncia nunca legtima, mas pode ser justificada.

    Justificamos a violncia quando examinamos sua natureza e suas causas no mbito

    da poltica, quando convertemo-la em reao para reequilibrar a balana da justia

    ou como ltimo recurso quando foram esgotados todos os outros caminhos

    possveis.

    26

    Ibidem, p. 164. 27

    Ibidem,p. 185. 28

    Hannah Arendt, Sobre a Violncia, p. 43.

  • 15

    3.1 Natureza e causas da violncia no mbito da poltica

    At presente momento, procuramos distinguir a violncia do poder, pois

    se tratam de institutos opostos, pois onde um deles domina totalmente o outro est

    ausente.

    Aps explicitarmos o entendimento arendtiano sobre poder e violncia,

    faz-se necessrio compreender qual a natureza e as causas da violncia no mbito

    da poltica e assim, as consequncias deste fenmeno para o mundo moderno.

    Arendt, parafraseando Lnin, afirmou que se o sculo XX o sculo por

    excelncia da violncia, tambm o momento em que os tericos mais se

    empenharam em compreender esse fenmeno. Dos bilogos aos cientistas sociais,

    passando pelos psiclogos, todos estudaram sobre o fenmeno da agressividade

    humana, na tentativa de compreend-lo.

    Os esforos empenhados foram salutares, todavia, no oferecem uma

    resposta para alm das explicaes organicistas que interpretam a violncia

    somente em termos biolgicos ou dos instintos. O perigo dessas explicaes e

    limitaes organicistas para Arendt est no fato de que:

    enquanto falarmos em termos biolgicos, no-polticos, os glorificadores da violncia sempre podero apelar para o fato inegvel de que no seio da natureza a maneira que a ao violenta coletiva, independentemente de sua atrao inerente, pode aparecer como um pr-requisito natural para a vida coletiva da humanidade, como o so a luta pela sobrevivncia e a morte violenta para a continuidade da vida do reino animal.

    29

    Alm de possibilitarem uma interpretao da violncia como um

    fenmeno natural e inerente natureza humana, as explicaes organicistas,

    segundo a autora, correm o risco de alimentar ideologias racistas saturadas de

    violncia.

    Tal fato constatado quando governos e grupos em nome da pureza da

    raa justificam o genocdio de raas inteiras tidas como inferiores. A violncia neste

    caso seria lcita para o bom aperfeioamento e continuidade de determinadas raas

    superiores.

    Ultrapassando as explicaes do pensamento orgnico, a proposta

    arendtiana analisar o fenmeno da violncia no como algo bestial ou irracional,

    29

    Hannah Arendt, Crises da Repblica, p. 146.

  • 16

    mas analisar a partir das condies polticas em que este fenmeno se situa: o

    conflito entre homens racionais.

    Para Arendt, em certas circunstncias em que a violncia no legtima

    mas justificvel, ela ocorre como nica maneira de reequilibrar a balana da

    justia.30

    Nos casos em que a violncia a reao que brota da ira por

    determinadas situaes que poderiam ser mudadas e no o so, Hannah Arendt

    lembra que ningum reage iradamente misria provocada por uma catstrofe

    natural, mas sim queles que poderiam evitar a misria e no o fizeram, ou mesmo

    os que so responsveis por ela.

    Conforme mencionado anteriormente, a violncia uma reao para o

    reequilbrio da balana da justia, encontrando aqui, a nica causa de sua

    racionalidade. Assim sendo, ela s racional na medida em que busca alcanar um

    fim que a justifique num curto prazo, como no caso da legtima defesa.

    Um outro fato importante que a ira geradora da violncia induzida pela

    hipocrisia.

    O poder s se atualiza no espao da aparncia onde ao e discurso

    convergem. Prprio deste espao a revelao de realidades e de novas relaes

    baseadas no agir conjunto.

    A hipocrisia nada mais do que o ocultamento de realidades sob a

    aparncia de racionalidade. Por ser uma forma de dominao, a hipocrisia mascara

    at mesmo os meios violentos que permitem dominar.

    Arendt diz que s se pode confiar nas palavras, quando se tem certeza

    de que a funo delas revelar e no dissimular.31

    A reao violenta o instrumento que permite arrancar a mscara da

    hipocrisia, que tudo quer ocultar e dissimular, mesmo correndo o risco de tudo

    aniquilar. Aqui reside sua vitalidade mas tambm o seu perigo porque embora

    reequilibre a balana da justia, pode tambm generalizar-se.

    Arendt exemplifica claramente a luta violenta contra a hipocrisia, quando

    no curso da Revoluo Francesa os engags transformaram-se em enrags32, no

    por causa das injustias, mas por causa da hipocrisia dos governantes.33

    30

    Hannah Arendt, Sobre a Violncia, p. 48. 31

    Ibidem, p. 50.

  • 17

    A reao violenta tem sua razo de ser, mas torna-se irracional no

    momento em que racionalizada, isto , de reao transforma-se em ao e tudo

    passa a ser resolvido mediante a violncia. Esta se torna o nico instrumento para a

    resoluo de questes e comea a caa aos suspeitos, acompanhada pela busca

    psicolgica de motivos ltimos.34

    A violncia muitas vezes sedutora, e se torna tanto mais perigosa na

    medida em que for coletiva. No campo da violncia, o individualismo o primeiro

    valor a desaparecer e forma-se, ento, uma grande comunidade da violncia onde

    os criminosos se protegem, destruindo todos os vnculos com a sociedade

    respeitvel. Destrudos os vnculos humanos, a prpria realidade que corre perigo de

    desaparecer, j que a teia de relaes humanas que lhe d consistncia.

    As causas da expanso da violncia, hodiernamente, devem ser

    procuradas na crescente expanso da burocracia da vida pblica. Quanto maior a

    burocratizao da vida, maior o atrativo da violncia.

    A burocracia diminui a esfera da influncia pblica quando transforma

    governos em mera administrao. O indivduo considera-se impotente porque no

    tem com quem argumentar, e onde no h palavras, o que resta a violncia muda.

    A consequncia do burocratismo o domnio de ningum e a impotncia

    individual ou de grupos. A autora assevera: onde todos so igualmente impotentes,

    tem-se uma tirania sem tirano.35

    A aceitao e a glorificao da violncia no mundo contemporneo est

    ligada impotncia e frustrao da faculdade de agir. como se por detrs das

    reaes violentas estivesse o desejo de resgatar a faculdade de agir e de recuperar

    a participao no espao pblico da palavra e da ao. Isso para Arendt o que

    explica a desobedincia rebelde enquanto clara oposio autoridade que perdeu o

    poder.

    32

    Os enrags (enraivecidos), constituam o grupo social de extrema esquerda poca da Revoluo Francesa.

    Tratava-se do grupo ligado plebe e os mais conscientes de que qualquer modificao poltica, por mais radical

    que fosse, no conseguiria modificar a situao de misria que esmagava o mais comprometido defensor da

    Revoluo. Obrigados a defender o direito dos pobres, ousaram atacar o dolo popular Robespierre. Para Jacques Roux, membro desta faco, os revolucionrios do grupo de Robespierre so os hipcritas ressuscitados que cidados demasiado crdulos incensam hoje como se fossem deuses, sem ver que eles lhes

    impem aos poucos e de mo leve um novo jugo e que escondem, sob a coroa de rosas, o cetro de ferro. Cf. Daniel Gurin, A Luta de Classes em Frana na Primeira Repblica, 1793 1795 p. 53. 33

    Hannah Arendt, Sobre a Violncia, p. 49. 34

    Idem, Crises da Repblica, p. 139. 35

    Hannah Arendt, Sobre a Violncia, p. 59.

  • 18

    O declnio do poder nas sociedades modernas facilitou a invaso da

    violncia no espao pblico da ao. Esta intromisso deu-se mais recentemente e

    de maneira radical com o surgimento do totalitarismo.

    A autora afirma que se a compreenso parte sempre de uma experincia

    viva, referncia de todo pensamento, importa compreender essa experincia to

    marcante para a sociedade contempornea e a partir da, estabelecer a trajetria do

    que seria, para a autora, a possvel reconstruo do espao pblico da ao.

    3.2 O fenmeno do totalitarismo

    O advento do fenmeno totalitrio ocupa posio de destaque nas

    reflexes polticas de Hannah Arendt. Sob a ptica da poltica, tal fenmeno

    irrompeu uma forma indita de domnio baseado no terror e na violncia jamais

    imaginado pela tradio poltica ocidental.

    Evocando as experincias totalitrias na Alemanha Nazista de 1933 a

    1945 e na Rssia Stalinista a partir de 1924, Arendt est preocupada no em fazer

    um relato dos fatos relacionados queles fenmenos, mas sim em compreend-los,

    pois so acontecimentos emblemticos de uma poca que menosprezou o sentido

    da ao poltica, substituindo-a pela alienao e pelo conformismo.

    Compreender as sociedades totalitrias significa para a autora olhar a

    realidade em que aquelas experincias foram possveis, sem preconceito ou sem o

    sentimento de que tudo est perdido, e por fim, resistir a elas.36

    O exerccio de ateno realidade tem-nos mostrado que, para alm do

    declnio da sociedade totalitria, esta permanece como tentao recorrente.

    As solues totalitrias bem podem sobreviver queda dos regimes

    totalitrios, em forma de fortes tentaes que ressurgiro sempre que parea

    impossvel aliviar a misria poltica, social e econmica de um modo digno para o

    homem.37

    O fenmeno totalitrio indito pelo fato de ser uma forma de domnio

    alicerado na ideologia, no terror e no aperfeioamento de mtodos sempre mais

    violentos como forma de se atingir o domnio total. Como veremos, o campo de

    36

    Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo, p. 12. 37

    Ibid., p. 51.

  • 19

    concentrao a culminncia desse projeto, pois l se levou a cabo todos os

    avanos em termos de tecnologia de aniquilamento e submisso total.

    Assim, a reflexo arendtiana sobre o totalitarismo, enquanto forma de

    governo cuja finalidade o domnio pelo terror e pela ideologia, diz respeito

    intromisso da violncia criminosa na esfera da poltica.

    Com o escopo de elucidar em que medida o movimento totalitrio

    representou o declnio do espao da poltica, o pensamento de Hannah Arendt pode

    ser articulado a partir de trs temas fundamentais: o totalitarismo enquanto mal

    radical; o que este fenmeno significou enquanto ruptura da tradio ocidental e, por

    fim, como as prticas totalitrias levaram ao declnio dos direitos humanos.

    3.3 O totalitarismo enquanto mal radical

    Mal radical. Com esta expresso, Hannah Arendt evoca os radicais

    acontecimentos surgidos com a emergncia das sociedades totalitrias em nosso

    sculo, que culminaram com o surgimento dos campos de concentrao.

    Para Arendt, o campo de concentrao a materializao de uma

    espcie de mal que foge a qualquer conceituao, quer da teologia, da filosofia ou

    do direito e diante do qual a tradio do pensamento poltico ocidental no encontra

    categorias de pensamento que possam esclarec-lo.

    Arendt diz que os campos:

    so laboratrios onde as mudanas na natureza humana so testadas [...]. Em seus esforos para provar que tudo possvel, os regimes totalitrios descobriram, sem o saber, que h crimes que os homens no podem punir, nem perdoar. Quando o impossvel foi tornado possvel, ele se tornou o mal absoluto no punvel, no perdovel, que no poderia ser mais compreendido e explicado pelos motivos malignos do auto-interesse, da gula, da cobia, do ressentimento, da sede de poder e da covardia; e que, portanto, a ira no podia vingar, o amor no podia suportar e a amizade no podia perdoar.

    38

    Na realidade, verificamos que os homens nunca sero capazes de

    desfazer ou sequer controlar com segurana os processos desencadeados atravs

    da ao, pois os atos humanos so irreversveis e imprevisveis.

    A nica soluo capaz de desfazer o que se fez a faculdade de perdoar.

    Perdoar para Arendt, desfazer os atos passados, cujos pecados pendem como

    espada de Dmocles sobre cada nova gerao. Se no fssemos perdoados nossa

    38

    Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo, p. 510.

  • 20

    capacidade de agir ficaria limitada a um nico ato do qual jamais nos

    recuperaramos.

    A nica ofensa que no se pode punir nem perdoar, conclui Arendt, a ofensa que desde Kant chamamos de mal radical, porque este tipo de ofensa transcende a esfera dos negcios pblicos e as potencialidades do poder humano, s quais destroem sempre que surgem. Em tais casos, o prprio ato nos despoja de todo o poder.

    39

    Hannah Arendt analisa as condies histricas responsveis pelo

    surgimento do mal radical, partindo da busca do significado poltico por detrs dos

    acontecimentos.

    A obra da autora, que vai em busca do significado para o fenmeno

    totalitrio, Origens do Totalitarismo, cuja reflexo feita a partir das categorias de

    espao pblico e ao nos permitem elucidar melhor em que sentido aquele

    fenmeno foi muito mais do que uma forma de dominao, mas a tentativa de mudar

    radicalmente a natureza humana.

    Em anlise aos acontecimentos que sob sua viso contriburam para a

    superfluidade das massas europeias da dcada de 20, verificamos que tais

    acontecimentos sero o embrio do desprezo pela vida humana, que mais tarde os

    regimes totalitrios iro radicalizar atravs do terror e da violncia nos campos de

    concentrao: a superpopulao, a expanso e superfluidade econmica, o

    desenraizamento social e a deteriorao da vida poltica.40

    O primeiro fenmeno a que o totalitarismo est vinculado o surgimento

    das massas modernas.

    Arendt passa a descrever o comportamento das massas europeias na

    dcada de 20, cuja caracterstica mais marcante a solido radical, o isolamento

    que implica na perda das relaes polticas.

    As massas vivem sob o signo da indiferena, no se integram nas

    organizaes baseadas no interesse comum que se expressa atravs de objetivos

    determinados, limitados e atingveis como os partidos polticos, sindicatos e

    organizaes de classe.

    Partindo da premissa de que a caracterstica das massas o isolamento,

    temos que elas vivem como que suspensas da realidade.

    O mundo no para o indivduo da sociedade de massas o lugar para o

    encontro com os outros numa teia de relaes humanas. Pelo contrrio, como um 39

    Hannah Arendt, A Condio Humana, p. 248-255. 40

    Idem, Origens do Totalitarismo, p. 361.

  • 21

    animal laborans, tudo e todos devem ser devorados rapidamente e sem a

    possibilidade do estabelecimento de vnculos mais duradouros.

    Foi entre a massa de pessoas aparentemente indiferentes, observa

    Arendt, que o movimento nazista, depois de 1930, recrutou seus membros. Arendt

    trata do caso da sociedade alem, em que foi significativo o apoio das massas ao

    nazismo. Uma pesquisa de opinio realizada na Alemanha de 1939 a 1945

    comprovou que os alemes estavam informados do que se passava com os judeus,

    sem que com isso se reduzisse o apoio ao regime.41

    A indiferena das massas em questes polticas perpassava todos os

    segmentos da sociedade: do trabalhador mais simples ao burgus culto e bem

    colocado.

    Aos indivduos que permaneciam neutros, diante dos partidos tradicionais

    e diante de qualquer ao ou discurso poltico, foram os que mais facilmente

    puderam ser moldados pela ideologia dos movimentos totalitrios.

    Os novos membros, no acostumados aos embates polticos inerentes a

    toda organizao poltica baseada na pluralidade de opinies, tornavam-se

    incapazes de julgar e refutar quaisquer argumentos. No por acaso, lembra Arendt,

    seriam esses indivduos aqueles que, em plena vigncia do totalitarismo,

    substituiriam a persuaso pela violncia e pelo terror.42

    H um preconceito generalizado de que a alienao e o conformismo so

    caractersticas exclusivas das classes mais pobres. Arendt nos mostra que no caso

    do apoio ao totalitarismo, a burguesia e a intelectualidade da poca tiveram um

    papel fundamental na engrenagem totalitria.

    No eram somente aqueles que viviam submetidos privao das

    necessidades vitais, presos que estavam s atividades do animal laborans, que

    recusavam qualquer ao poltica, j que tinham que lutar pela prpria

    sobrevivncia.

    A burguesia, preocupada somente com o consumo e em como alcan-lo,

    pouca importncia iria dar vida pblica. Como classe dominante, mas no

    governante, permanecia alheia aos deveres e responsabilidades de todo cidado.

    Bastava a ela o governo de um homem forte que assumisse a conduo dos

    negcios pblicos.

    41

    Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo, p. 339. 42

    Ibid., p. 362.

  • 22

    Uma vez no poder, os representantes dos movimentos totalitrios viam

    com interesse a falta de escrpulos da burguesia, pois para a mquina impiedosa do

    domnio e do extermnio, elas constituam material capaz de crimes hediondos,

    contanto que estes crimes fosse bem organizados e assumissem a aparncia de

    tarefas rotineiras. A burguesia era capaz de manchar-se de sangue educadamente.

    Com relao elite intelectual, esta se deixou levar pelo movimento

    totalitrio. O que atraa a vanguarda intelectual nos movimentos totalitrios era o

    primado da ao pura. Se a sociedade burguesa vivia a passividade e a fatalidade

    de um mundo acomodado, os movimentos totalitrios pareciam trazer o vento da

    atividade dentro daquela estrutura.

    Arendt revela o retrato da vanguarda intelectual da poca:

    Comentava-se em participar cegamente de qualquer coisa que a sociedade respeitvel houvesse banido, independentemente de teoria e contedo, e promovia a crueldade categoria de virtude maior, porque contradizia a hipocrisia humanitria e liberal da sociedade.

    43

    O que atraa no movimento totalitrio era o fato de que este se

    apresentava como algo novo, diferente das antigas sociedades revolucionrias. O

    terrorismo, expressando-se atravs da violncia, havia se tornado uma espcie de

    filosofia atravs da qual era possvel exprimir frustrao, ressentimento e dio cego.

    A elite intelectual via com bons olhos o movimento com que a massa

    forava, atravs do terror, a sociedade respeitvel a aceit-la em p de igualdade,

    mesmo que para isso os movimentos totalitrios manipulassem a Histria atravs da

    propaganda. Desta maneira, a mentira tornou-se o sustento da ao.

    A finalidade das mais variadas e variveis interpretaes era sempre denunciar a Histria oficial como uma fraude, expor uma esfera de influncias secretas das quais a realidade histrica visvel, demonstrvel e conhecida era apenas uma fachada externa construda com o fim expresso de enganar o povo.

    44

    Os membros dos movimentos totalitrios reivindicavam para si uma viso

    de mundo, isto , a viso de totalidade da histria e do prprio homem. Acreditavam-

    se acima dos outros partidos que sempre representaram os interesses de uma parte

    da sociedade, enquanto estes movimentos abarcavam a sociedade como um todo.

    Quando a mquina totalitria, finalmente no poder, comeou a fazer suas

    vitimas entre os judeus e o povo da Europa Oriental, os homens respeitveis da

    43

    Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo, p. 380. 44

    Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo, p. 383.

  • 23

    sociedade alem no protestaram. Os protestos nasciam dos representantes das

    classes mais populares.

    A partir dos homens respeitveis que Himmler organizou as massas sob

    o domnio total, partindo do pressuposto de que a maioria deles so empregados

    competentes e bons chefes de famlia, preocupados apenas com a prpria

    segurana.

    O burgus estava disposto a tudo sacrificar, desde que fosse

    salvaguardada sua vida privada. Aproveitando-se desses sentimentos, os nazistas

    facilmente acabaram por destruir a moralidade desse indivduo.45

    No poder, o regime descartaria qualquer apoio, quer dos intelectuais, quer

    das classes populares.

    Se o objetivo do domnio total a criao de seres autmatos e sem

    vontade prpria, a iniciativa intelectual, espiritual e artstica dos intelectuais; bem

    como a iniciativa de banditismo das classes populares eram mais perigosas do que

    a simples oposio poltica, visto que:

    O domnio total no permite a livre iniciativa em qualquer campo de ao, nem qualquer atividade que no seja inteiramente previsvel. O totalitarismo no poder invariavelmente substitui todo talento, quaisquer que sejam as suas simpatias, pelos loucos e insensatos, cuja falta de inteligncia e criatividade ainda a melhor garantia de lealdade.

    46

    A perda do sentimento de pertencimento a um grupo ou uma classe

    acarretou para o homem da massa no s a indiferena diante de questes polticas

    mas tambm a apatia diante do sofrimento e da morte. O senso comum que nos liga

    e nos ajusta a um mundo comum foi substitudo por uma inclinao apaixonada por

    noes abstratas que no tinham nada a ver com a realidade. Tomemos como

    exemplo o julgamento de Adolf Eichmann, que Arendt observou como uma figura

    pattica a do prisioneiro que se comunicava somente por meio de jarges

    burocrticos e frases feitas. Para Arendt, o prisioneiro era incapaz de julgar.

    Todavia, os movimentos totalitrios de massa no foram responsveis

    pela iniciativa de atomizao social e isolamento extremo. Pelo contrrio, tais

    movimentos encontraram os fenmenos presentes na sociedade europeia e, antes

    de recrutar para suas fileiras os membros organizados dos partidos tradicionais,

    acolheram os completamente desorganizados que no reconheciam laos de

    obrigaes sociais. A massa, diz Arendt, no composta principalmente por homens 45

    Ibid., p. 388. 46

    Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo, p. 389.

  • 24

    brutos ou de rudez, mas principalmente por indivduos isolados das relaes sociais

    normais.

    Ao analisar o processo de atomizao do indivduo, levado ao extremo na

    Rssia stalinista, Arendt percebe o claro objetivo de destruio das classes.

    Comeou com a nova classe mdia da cidade e os camponeses do interior. O

    objetivo era acabar com os laos de solidariedade de classe, relegando cada

    indivduo a mais completa solido. Tal objetivo foi acompanhado de deportao e

    assassinato de milhes de pessoas.

    Diante do terror, a solidariedade de classe j no era mais possvel, pois

    cada um deveria aprender que suas vidas no dependiam mais de seus

    concidados, mais sim dos caprichos do governo. E mais: a figura do delator passa

    a ser muito valorizada, acabando assim com qualquer vnculo de famlia ou amizade.

    Cria-se um estado de desconfiana. Desse modo, as classes na Rssia stalinista

    deixaram de existir, porque no h classe que no possa ser extinta, quando se

    mata um nmero suficientemente grande de seus membros.47

    A lealdade total dos membros dos movimentos totalitrios fundamental

    para o sucesso da organizao. Esta lealdade s possvel em indivduos isolados,

    desprovidos de laos familiares, de amizade ou camaradagem, para os quais o

    partido surgia como o lugar onde uma vida banal adquiria sentido. Isso explica em

    parte a comunidade da violncia, que retira prazer das aes violentas praticadas

    em grupo.

    A adeso ao movimento prescindia do conhecimento de um programa

    partidrio. Os lderes dos movimentos totalitrios preocupavam-se em transmitir os

    contedos ideolgicos, com vistas ao domnio total, mais do que programas que

    especificassem um contedo concreto, pois o que concreto pode ser questionado

    e dar azo a mudanas de opinio.48

    Um dos contedos ideolgicos para a dominao diz respeito figura do

    lder. Ora, a figura do poder governamental envolve sempre a relao mando-

    obedincia. Das democracias constitucionais tirania, est implcito quem manda e

    quem obedece, ou lei ou a um homem.

    47

    Ibid., p. 370. 48

    O contedo ideolgico esteve sempre ligado ideia messinica de domnio mundial total durante sculos.

    Hitler, denota Arendt, recusava-se a mencionar ou discutir os pontos do programa do partido nazista.

  • 25

    No totalitarismo, elimina-se a distncia entre governantes e governados.

    O lder totalitrio no algum sedento de poder que poderia despertar o dio dos

    governados. Ele apenas um funcionrio das massas das quais dirigente, e a

    relao que se estabelece entre massa e lder uma relao de dependncia

    mtua.

    Elimina-se, dessa forma, qualquer autonomia do pensamento ou da ao,

    porque o que importa agir conjuntamente com e como o movimento. No governo

    totalitrio, o poder ou desejo de poder tem um papel secundrio.49

    Os programas partidrios, assim como o Estado, com seu aparelho de

    violncia, so vistos pelos movimentos totalitrios como meios insuficientes para a

    dominao total.

    Nem mesmo a tomada de poder e o controle da mquina estatal eram

    objetivos dos movimentos totalitrios. Sua ideia de domnio estava inerente

    dominao permanente de todos os indivduos em toda e qualquer esfera de vida e

    tentativa de mold-los sua estrutura.50

    Em sendo o objetivo dos movimentos totalitrios a atrao do maior

    nmero de seguidores, a soluo encontrada foi o uso macio da propaganda. Isto

    ocorreu porque quando ainda no era possvel o uso de instrumentos de terror e

    quando o pblico ainda no estava isolado de outras fontes de informao que

    permitiam o julgamento de ideias e principalmente onde ainda imperava a liberdade

    de opinio, esta era a melhor alternativa.

    A propaganda totalitria era dirigida especialmente para o pblico externo

    ou para as camadas populacionais que ainda no foram atingidas pela doutrinao.

    Com a obteno do controle absoluto, a propaganda daria lugar doutrinao.

    Ora, se a propaganda elemento vital na guerra psicolgica, ela no

    ultrapassa em importncia os mecanismos de terror. A propaganda deixa de existir

    quando uma populao inteiramente subjugada, enquanto o terror a essncia do

    governo totalitrio que atinge seu ponto de perfeio nos campos de concentrao.51

    No nazismo, o terror ultrapassou a propaganda como instrumento

    totalitrio, convertendo-se em propaganda de fora. Os nazistas deixavam s

    claras que era mais seguro pertencer a uma organizao paramilitar do partido, do

    49

    Ibid., p. 375. 50

    Ibid., p. 375. 51

    Ibid., p. 393.

  • 26

    que ser um republicano. Faziam questo de nunca negar os seus crimes, pelo

    contrrio, confessavam-nos publicamente.

    A ttica usada para a propaganda de fora era o uso de insinuaes

    indiretas e ameaas veladas a quem no aderia aos ensinamentos, seguidas do

    assassinato em massa contra culpados e inocentes.

    O outro escopo da propaganda era apresentao do lder como figura

    infalvel. Sua infalibilidade baseava-se muito mais em sua correta viso da histria

    e da natureza do que na inteligncia. Desse modo, as previses do lder so sempre

    verdadeiras, inclusive aquelas que diziam que judeus ou doentes incurveis seriam

    pessoas marcadas para morrer. A profecia (antecipao do fato) se realiza pelas

    mos do lder das massas.

    A manipulao ideolgica da propaganda totalitria baseia-se na crena

    de que os fatos podem ser manipulados pelo poder dos homens que os inventa. O

    objetivo claro o domnio total com o qual o governante totalitrio d realidade

    prtica s suas mentiras.

    O sucesso da propaganda mentirosa deveu-se ao fato de que as massas

    tendem a no acreditar no visvel nem da realidade de sua prpria experincia, mas

    apenas em sua imaginao. Contanto que os fatos sejam apresentados

    coerentemente no importa se so verdadeiros ou falsos. Recusam-se a

    compreender a fortuidade de que a realidade feita. A ideologia oferece s massas

    a segurana de que tudo pode ser controlado, de que no h acasos ou acidentes

    de percurso. Deste mundo coerente e seguro, o homem-de-massa quer fazer parte,

    mesmo s custas de sacrifcios individuais.

    Sobre a influncia da propaganda totalitria, Arendt comenta:

    A fora da propaganda totalitria antes que os movimentos faam cair cortinas de ferro para evitar que algum perturbe, com a mais leve realidade, a horripilante quietude de um mundo completamente imaginrio reside na sua capacidade de isolar as massas do mundo real.

    52

    Ao atingir esse estgio, as massas encontram-se completamente

    desintegradas e os apelos da realidade so silenciados. Aqui, o movimento totalitrio

    atingiu seus objetivos e a sociedade est pronta para viver sob a organizao

    totalitria da violncia num mundo irreal que existe de fato. Este mundo irreal mas

    plausvel culmina no campo de extermnio que, para Arendt, a concretizao

    extrema do mal radical.

    52

    Ibid., p. 402.

  • 27

    O campo de concentrao a quintessncia do regime totalitrio que

    funciona como laboratrio da realizao do tudo possvel.53

    L, os prisioneiros so mantidos numa situao que foge a qualquer

    razoabilidade, na espera de sua eliminao. So mantidos no limbo por um longo

    tempo, pois no sabem se esto mortos ou vivos. A vida e a morte j no lhes

    importa mais, visto estarem condicionados resignao. Toda ao ou reao

    espontnea eliminada.

    Assim como a estabilidade do regime totalitrio depende de sua

    capacidade de permanecer uma ilha fictcia em meio ao mundo real externo, o

    sucesso dos campos de concentrao depende do isolamento de cada indivduo ali

    confinado, separado do mundo dos vivos.

    Os relatos dos sobreviventes dos campos tornaram-se, aos olhos do

    mundo, algo fictcio. At mesmo aqueles que retornam do horror passam a duvidar

    da veracidade de seus relatos.

    Na fase inicial do regime, h necessidade de eliminar seus opositores

    para consolidar-se enquanto governo total, evitando assim oposies futuras, o

    terror total s se estabelece depois, quando toda a oposio j foi eliminada. Neste

    momento, o terror torna-se o fim e a razo de ser do regime, e a afirmao de que

    os fins justificam os meios no mais se justifica, pois o terror perdeu sua

    finalidade, pois ele mesmo tornou-se fim em si mesmo. Os campos se explicam

    unicamente pelos horrores que cometem. assim que Arendt sintetiza a situao

    absurda dos campos:

    Era o inferno literalmente falando, onde toda a vida era organizada, completa e sistematicamente, de modo a causar o maior tormento possvel [...]. O inferno totalitrio prova somente que o poder do homem maior do que jamais ousaram pensar, e que podemos realizar nossas fantasias infernais sem que o cu nos caia sobre a cabea ou a terra se abra sob nossos ps [...]. A vida humana tratada como se no existisse, como se j estivesse morta [...]. Como resultado, passa a existir um lugar onde os homens podem ser torturados e massacrados sem que nem os atormentadores nem os atormentados e muito menos o observador de fora saibam que o que est acontecendo algo mais do que um jogo cruel ou um sonho absurdo.

    54

    Arendt afirma reiteradamente que a gigantesca engrenagem de terror

    surge de uma hora para outra. Os mecanismos foram gestados na conscincia das 53Arendt usa frequentemente as expresses: tudo possvel e tudo permitido ao referir-se s prticas dos campos de concentrao. A expresso tudo possvel foi cunhada por David Rousset em Les jours de notre mort, ( Paris, 1947) e serviu de epgrafe para a 3 parte de Origens do Totalitarismo intitulada Totalitarismo. A frase a seguinte: Os homens normais no sabem que tudo possvel. 54

    Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo, p. 496-97.

  • 28

    pessoas muito tempo antes, numa Europa desintegrada poltica e economicamente,

    cujos contingentes populacionais haviam sido transformados em escria e, pouco a

    pouco, em seres descartveis, antecipando o surgimento dos campos de

    concentrao como corolrio da completa destruio das individualidades.

    A destruio da individualidade, marco da realizao do domnio total,

    obedece s etapas minuciosamente elaboradas. O sistema corri as pessoas

    paulatinamente e de forma sistemtica.

    De acordo com Hannah Arendt, a primeira etapa para o domnio total a

    morte jurdica do indivduo. A morte jurdica teve incio quando os governos no

    totalitrios da Europa do primeiro ps-guerra foram forados, pela desnacionalizao

    macia, a retirar de centenas de milhares de pessoas o status de cidado.

    Colocados margem do sistema jurdico, a lei no poderia determinar-lhes os

    delitos e as penas. Nesta situao, a sada foi a criao de campos de concentrao

    que funcionassem fora do contexto jurdico normal.

    Sob a gide do domnio totalitrio, a estes criminosos juntaram-se os

    judeus, os portadores de doena e os representantes das classes agonizantes que

    eram organizados de modo que perdessem a capacidade de cometer quaisquer atos

    normais ou criminosos. A alegao propagandstica era a de que a priso destes

    criminosos obedecia ao imperativo de medida policial preventiva, ou seja, medida

    que visa tirar dessas pessoas a capacidade de agir.

    Os criminosos para os quais havia penas previstas em lei nunca deveriam

    ser mandados para os campos, porque, segundo Arendt: mais difcil matar a

    pessoa jurdica de um homem, culpado por algum crime, do que a de um outro

    totalmente inocente pois aqueles sabem por que esto nos campos e, assim,

    conservam um resduo da personalidade jurdica. 55

    Aos criminosos comuns juntaram-se os criminosos polticos que, de certa

    maneira, haviam cometido crimes contra o regime e um grupo mais amplo de

    prisioneiros que no tinham qualquer ligao com qualquer tipo de crime, nem em

    sua conscincia, nem na conscincia de seus atormentadores e que se prestavam

    melhor a experincias radicais de privao de direitos e destruio da pessoa

    jurdica e so, portanto, em qualidade e quantidade, a categoria mais essencial da

    populao dos campos, visto que, sem eles, os campos teriam h muito tempo

    55

    Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo, p. 498.

  • 29

    deixado de existir. A lgica diablica dos campos estava no fato de que, quanto mais

    indivduos disponveis para as cmaras de gs, mais possibilidades os campos

    teriam de sobreviver.56

    O xito da morte jurdica s alcanado plenamente quando at mesmo

    a vontade de desistir de seus direitos polticos suprimida. Sob o domnio total, no

    pode haver qualquer sinal de escolha pessoal, de luta ou abdicao de seus direitos:

    O livre consentimento um obstculo ao domnio total, como o a livre oposio. A priso arbitrria que escolhe pessoas inocentes destri a validade do livre consentimento, da mesma forma como a tortura em contraposio morte destri a possibilidade da oposio.

    57

    Aps a destruio da individualidade, mata-se a pessoa moral do homem.

    Para se atingir tal finalidade, deve-se evitar, de qualquer maneira, a condio de

    mrtir. O mrtir cria uma solidariedade histrica, ele testemunho daqueles que

    morreram por algo, ele empresta morte uma significao, personifica algum que

    existiu. O mrtir deve ser destrudo, pois quando h testemunha, no pode haver

    testemunho: Os campos de concentrao, tornando annima a prpria morte e

    tornando impossvel saber se um prisioneiro est vivo ou morto, roubaram da morte

    o significado de desfecho de uma vida realizada.58

    Destruindo a pessoa moral, a experincia dos campos de extermnio

    destrua tambm qualquer possibilidade de os indivduos refugiarem-se no prprio

    individualismo e, assim, no mais secreto de si mesmos terem a possibilidade de

    tomar decises de conscincia. O regime cuidava para que o prprio critrio de

    escolha moral entre o bem e o mal fosse ultrapassado por uma escolha mais radical

    entre matar e matar.59

    O desfecho de todo este processo o desejo de destruio da

    individualidade. A metodologia sistemtica adotada para este objetivo era vencer as

    resistncias at transformar cada pessoa em morto-vivo.

    O transporte em condies subumanas at a chegada aos campos,

    passando pelas brutais torturas, tudo feito para no matar de imediato o corpo, mas

    manipul-lo atravs de formas mais variadas de dor, visavam destruir a dignidade da

    pessoa humana.

    56

    Ibid., p. 500. 57

    Ibid., p. 502. 58

    Ibid., p. 503. 59

    Albert Camus relata em Twice a year, de 1947, a situao em que uma me grega se v s voltas com o dilema

    moral de escolher um dos seus trs filhos para ser morto pelos nazistas.

  • 30

    Arendt observa que os primeiros campos de concentrao nazistas no

    aplicavam um mtodo racional de tortura, mas deixavam aos elementos da AS

    (Sees de Assalto), geralmente anormais, a tarefa de faz-lo. As torturas eram

    fomentadas por sentimentos de dio ou inferioridade e deram lugar destruio

    absolutamente fria e sistemtica de corpos humanos, calculada para aniquilar a

    dignidade humana.60 Sob o domnio das SS (Escales de Proteo), os campos

    tornaram-se campos de treinamento, onde homens perfeitamente normais eram

    treinados para tornarem-se perfeitos membros das SS.61

    A destruio da individualidade quase sempre foi bem-sucedida. Isto

    atestado pelos poucos relatos de rebelio nos campos e pela no resistncia de

    milhes diante das cmaras de gs. No momento da libertao, foram poucos os

    massacres contra os membros das SS. O sucesso dos campos estava em que antes

    de entrarem para as cmaras de gs, as pessoas j haviam sido mortas na sua

    individualidade. No reagiam porque, destruda a sua individualidade, o que

    destrudo tambm sua espontaneidade e isso : ...a capacidade do homem iniciar

    algo novo com os seus prprios recursos [...].62

    Houve a criao do modelo de cidado do Estado totalitrio: o fantoche

    cuja reao determinada por algo externo a ele mesmo (da a nfase na destruio

    de qualquer espontaneidade).

    Todos estes fatos que, convm lembrar, foram gestados numa sociedade

    no totalitria e que, pouco a pouco, foram se convertendo em prticas banais sob o

    domnio do Estado totalitrio, acabaram por colocar em cheque a crena na

    natureza imutvel do homem, em que os excessos do comportamento humano

    podem ser controlados.

    Arendt assevera que a experincia dos campos ensinaram que o poder

    do homem to grande que ele realmente pode vir a ser o que o homem desejar.63

    A radicalidade desta superfluidade humana levou ao que Arendt chamou

    de banalizao do mal pois, nos campos, so banais os instrumentos de tortura, a

    morte por inanio, as doenas. As aes dos carrascos tornaram-se banais e

    60

    David Rousset registra em Les jours de notre mort as palavras significativas de um soldado da SS a um

    professor: Antigamente voc era professor. Agora no mais professor de coisa alguma. J no nenhum manda-chuva. Agora voc um nanico: o manda-chuva agora sou eu. Apud Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo, p. 505, nota de rodap. 61

    Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo, p. 505. 62

    Ibid., p. 506. 63

    Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo, p. 507.

  • 31

    naturais e, assim, no se davam ao trabalho de refletir sobre a gravidade dos

    prprios atos.

    Na superfluidade das massas modernas [...] o castigo nada tem a ver

    com o crime, para quem a explorao praticada sem lucro e para quem o trabalho

    realizado sem proveito [...].64

    Os campos de concentrao provam a insensatez desses fatos que, sob

    a gide da ideologia totalitria, tornaram-se perfeitamente lgicos.

    Sob o prisma da tradio poltica ocidental, nada mais indito do que

    uma organizao baseada no terror e na ideologia. Por este motivo, os regimes

    totalitrios so para Arendt fenmenos de ruptura da tradio ocidental e, por isso,

    exigem uma melhor compreenso de seus motivos e consequncias.

    3.4 O totalitarismo e a ruptura da tradio ocidental

    O despontar do fenmeno totalitrio no s incutiu em Arendt a reflexo

    sobre o mal radical, mas tambm a percepo do modo em que este mal, radicado

    no mundo contemporneo, resultou na ruptura da tradio ocidental.

    Arendt questiona que os valores morais, polticos e religiosos que

    aliceram a Tradio ocidental so capazes de dar ao homem moderno respostas

    para a srie de problemas do presente e a segurana de que o Mundo continuar

    sendo sua morada.

    A autora constata que o edifcio da tradio, que durante sculos foi

    suporte da civilizao ocidental, sofreu um rompimento, o que levou o homem

    contemporneo perceber-se incapaz de discernir as classes de perguntas que

    devem ser formuladas sobre os problemas do presente.

    Houve, portanto, uma ruptura drstica que abalou a tradio ocidental,

    sob a ptica moral, poltica, religiosa e jurdica, repercutindo na ao e que por

    derradeiro, fez irromper o totalitarismo.

    Arendt indica que o limiar da tradio do pensamento ocidental surgiu

    com Plato, quando este deixa os afazeres do mundo para dedicar-se

    contemplao das ideias eternas. Que tradio se inicia aqui? Aquela que v a

    64

    Ibid., p. 508.

  • 32

    preocupao com os negcios humanos com desconfiana e que v a ao e a

    poltica como trevas e confuso.

    conveniente registrar tal fato porquanto a partir de Plato, a

    grandiosidade da ao, o seu desenrolar no espao pblico, a excelncia dos atos

    vo sendo substitudos pelo desprezo para com os assuntos polticos. No limiar da

    tradio, a poltica vista com desconfiana.

    O cerne do problema est no fato de que a tradio que enxergava a

    ao com desconfiana foi paulatinamente se esgarando, a ponto de no oferecer

    mais respostas aos impasses que a modernidade havia lhe colocado.

    Arendt afirma que foi no sculo XIX que os valores da Tradio seriam

    definitivamente questionados.

    Os trs filsofos que questionaram de modo mais incisivo a tradio do

    pensamento ocidental foram Sren Kierkegaard, Karl Marx e Friedrich Nietzsche.65

    A autora diz que os filsofos no foram responsveis pela ruptura, mas

    cada um deles, dentro de seu campo de reflexo, questionaria a validade dos

    axiomas sobre os quais nossa tradio est fundamentada: Kierkegaard e a religio

    tradicional; Marx e o pensamento poltico tradicional e Nietzsche e a Metafsica

    tradicional. Por isso os trs so para ns como marcos indicativos de um passado

    que perdeu sua autoridade.66

    Ao saltar da dvida para a crena Kierkegaard deu uma resposta moderna moderna falta de f em Deus e na razo em oposio dvida cartesiana. Ao dizer que a Filosofia e sua verdade esto localizadas no fora dos assuntos dos homens e de seu mundo comum, mas precisamente nele [...] Marx saltou da teoria para a ao e da contemplao para o trabalho. Nietzsche, ao propor a transmutao de todos os valores, saltou do no-sensvel reino transcendente para a sensualidade da vida.

    67

    O esgaramento da tradio, no entanto, adstrito ao campo do

    pensamento, no provocou efetivamente a quebra da nossa histria, o que s veio a

    ocorrer com o surgimento do movimento totalitrio, baseado no terror e na ideologia.

    A dominao totalitria se reveste de ineditismo porque ela vai alm das

    mais radicais e ousadas ideias de qualquer pensador, na medida em que [...] no

    pode ser compreendida mediante as categorias usuais do pensamento poltico, e

    65

    Kirkegaard, Marx e Nietzsche situam-se no fim da tradio, antes de sobrevir a ruptura. Eles anunciam a

    ineficcia de todas as categorias polticas, morais, religiosas e jurdicas com as quais nossa tradio havia se

    mantido. 66

    Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro, p. 56. 67

    Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro, p. 56-57.

  • 33

    cujos crimes no podem ser julgados por padres morais tradicionais ou punidos

    dentro do quadro de referncia legal de nossa civilizao [...].68

    As reflexes arendtianas sobre a ruptura apontam para o fato de que o

    totalitarismo no poder inaugurou uma nova era, em que os seres humanos passam a

    ser suprfluos e descartveis. Com o totalitarismo, estamos diante de uma forma de

    dominao, cujo propsito algo sem propsitos: no s o genocdio em massa de

    oponentes e de inocentes, mas a destruio da prpria pessoa humana.

    A novidade do totalitarismo est tambm na forma de organizao poltica

    que ele inaugura. Observa Arendt que o totalitarismo diferente dos regimes

    autoritrios como dos regimes tirnicos e ditatoriais.

    Verifica-se que nos regimes totalitrios, as liberdades so restringidas,

    enquanto nos regimes tirnicos e ditatoriais, as liberdades polticas so abolidas.

    Tanto em um caso como no outro, o desejo de liberdade continua presente em

    indivduos ou grupos que mais cedo ou mais tarde vo se colocar em ao para

    reconquist-las, parcial ou totalmente.

    Apenas o regime totalitrio visa a total eliminao da espontaneidade, isto

    , da mais geral e elementar manifestao da liberdade humana, fato que torna o

    totalitarismo indito.69

    Elucidando as distines entre as formas de dominao citadas, Arendt

    se utiliza de imagens que possam represent-las. Desta maneira, o governo

    autoritrio e ditatorial representado pela forma piramidal em que o poder se

    localiza no topo, de onde emana ordens para os escales inferiores, integrando-os

    num todo coeso. J a estrutura de organizao totalitria assemelha-se, segundo a

    autora, imagem da cebola

    [...] em cujo centro, em uma espcie de espao vazio, localiza-se o lder; o que quer que ele faa [...] ele o faz de dentro, e no de fora ou de cima e todas as partes extraordinariamente mltiplas do movimento [...] relacionam-se de tal modo que cada uma delas forma a fachada em uma direo e o centro na outra, isto , desempenham o papel de mundo exterior normal para um nvel e o papel de extremismo radical para outro.

    70

    Quanto mais prximo ao centro, maior o segredo do poder. Quanto mais

    prximo dele, mais longe da realidade. Assim, a vantagem dessa estrutura

    68

    Ibid., p. 54. 69

    Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro, p. 133. 70

    Ibid., p. 136-37.

  • 34

    organizacional que ela passa a tornar-se prova de choque contra os fatos do

    mundo real.

    Garantia da dominao que alcana um bom termo, a estrutura totalitria

    transfere constantemente os centros de poder, uma vez que o conhecimento da

    fonte das ordens poderia introduzir um elemento de estabilidade, alheio ao domnio

    totalitrio.

    Arendt analisa que, nessa forma de domnio, o movimento necessrio

    para que o mundo no tenha de adquirir a normalidade que as leis e as instituies

    oferecem. Na Alemanha Nazista, a dinmica jurdica e moral estava subordinada ao

    imperativo maior, que era o desejo do Fhrer. O que importava no era somente

    obedecer s ordens, mas reafirmar, a cada momento, a fidelidade ao Fhrer, que

    passava ao largo das instituies jurdicas no oferecendo, assim, parmetros para

    a ao dos indivduos, que em nome da lei poderiam reivindicar ou contestar. Acima

    de tudo, estava o desejo do lder que poderia mudar de ideia de acordo com as

    necessidades do Regime.71

    A fluidez do poder tinha a finalidade de confundir os indivduos que se

    viam em constante insegurana, pois no sabiam a quem deveriam obedecer e a

    quem deveriam ignorar. Tanto as lideranas como a populao viviam esta situao

    dilemtica, em que o sentimento de culpa e a incerteza eram os nicos elos que

    uniam indivduos, na mais extrema solido.

    A outra distino do totalitarismo, que o coloca em contraposio s

    outras ideias de domnio poltico, a supresso do interesse.

    Conforme Arendt, o interesse sempre foi o critrio para a ao humana.

    Em Maquiavel, por exemplo, temos a razo-de-estado; no Capitalismo, o interesse

    pessoal como promoo do interesse coletivo; no socialismo, o exerccio do poder

    pelo proletariado redundaria no interesse das grandes maiorias.

    No cerne dos governos despticos, as aes de seus lderes baseiam-se

    num interesse utilitrio, nem que seja para a manuteno do poder individual ou de

    um grupo. Neste tipo de governo, possvel vislumbrar um mnimo de

    previsibilidade, haja vista serem poderes que se apresentam com certa visibilidade.

    Os regimes totalitrios desconhecem motivaes utilitrias. Assim, os

    interesses materiais e motivaes de lucro so desprezados. O que importa a

    71

    A Constituio de Weimar, segundo Arendt, nunca foi ab-rogada durante o regime nazista e tambm a

    Constituio Stalinista de 1936, completamente ignorada, na prtica nunca foi abolida.

  • 35

    existncia, em si, de uma forma de organizao onipotente, sem motivao

    nenhuma, seno a de ser auto-alimentar.

    O ineditismo do regime totalitrio est tambm no importante papel

    desempenhado pela polcia secreta.

    Acima do Estado e por trs das fachadas do poder ostensivo, num labirinto de cargos multiplicados, por baixo de todas as transferncias de autoridade [...] est o ncleo do poder do pas, os supereficientes e supercompetentes servios da polcia secreta.

    72

    A atuao da polcia secreta se d sobre os chamados inimigos

    objetivos, que no so os opositores do regime, mas os considerados perigosos,

    porque portadores de tendncias. Na Alemanha nazista sero os judeus, depois os

    poloneses e at certas categorias de alemes; na Rssia stalinista, os descendentes

    das antigas classes governamentais, depois os russos de origem polonesa, os

    trtaros e certas classes de judeus. A lista de inimigos objetivos ampliada cada vez

    que as circunstncias o exigirem.

    A polcia totalitria est somente subordinada ao desejo do lder, que a

    aciona no momento em que deseja que certas categorias da populao sejam

    eliminadas. O regime no um governo, mas um movimento sempre em marcha,

    que elimina obstculos.

    A necessidade da liquidao do inimigo objetivo est diretamente

    relacionada ao crime possvel, isto , a justificativa para o genocdio em massa se

    d pela previso de que o inimigo objetivo cometeria crimes contra o sistema e por

    isto: [...] todo crime que o governo possa conceber como vivel deve ser punido,

    tenha sido cometido ou no.73

    As consequncias deste tipo de organizao para a sociedade, que

    todos acabam se tornando suspeitos em potencial pelo simples fato de serem seres

    pensantes. Apregoa Arendt:

    Simplesmente em virtude da sua capacidade de pensar, os seres humanos so suspeitos por definio, e essa suspeita no pode ser evitada pela conduta exemplar, pois a capacidade humana de pensar tambm a capacidade de mudar de ideia.

    74

    Se partirmos da premissa de que todos so inimigos, ningum mais est

    seguro. Cada indivduo tem o seu direito de se defender negado. Os direitos

    72

    Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo, p. 470. 73

    Ibid., p. 478. 74

    Ibid., p. 481-482.

  • 36

    fundamentais so completamente abolidos e o que resta uma sociedade de

    suspeitos, submetida ao terror constante.

    A pretenso totalitria de criar uma sociedade com fundamento na

    ideologia e no terror se concretizou no Estado totalitrio. A admoestao de Arendt

    ainda cabe na conjuntura vigente: nada garante que suas sementes estejam mortas.

    Ora, se filsofos como Kierkegaard, Marx e Nietzsche no sculo XIX

    foram capazes de decretar o fim da tradio ocidental, porque os valores desta

    tradio j no conseguiam mais dar respostas aos impasses de que eles eram

    testemunhas, o homem do sculo XX, herdeiro de um humanismo milenar, foi capaz

    de fazer a mais radical e a mais tenebrosa das experincias nunca antes imaginada:

    a tentativa de destruir a humanidade de todo humano, algo jamais pensado pela pior

    das ditaduras.

    A ruptura da tradio ocidental ocorrera com o advento do Estado

    totalitrio, com fundamento no terror e na ideologia. Esta nova forma de dominao

    atesta que, num mundo construdo pelas mos humanas, tudo possvel.

    3.5 A crise dos direitos humanos

    Arendt diz que a ruptura da tradio ocidental acarretou a perda da

    permanncia e da segurana no mundo, na medida em que, sob o domnio

    totalitrio, os valores polticos, ticos e jurdicos, que balizavam as relaes entre os

    homens, foram substitudos pela crena de que os seres humanos so suprfluos e

    descartveis.75

    A barbrie de que o mundo foi vtima, concretizada nos campos de

    concentrao, imps ao homem contemporneo a redefinio dos conceitos no s

    polticos e ticos, mas tambm de toda a noo de direitos humanos.

    As reflexes arendtianas oferecem pistas para a compreenso da crise

    dos Direitos Humanos no sculo XX, visto que ela sintoma do desaparecimento do

    espao pblico: espao de articulao da ao e do discurso significativos.

    interessante ressaltar como o ocidente, desde as suas origens,

    percebeu o valor da pessoa humana.

    75

    Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro, p. 132.

  • 37

    O primeiro livro do Pentateuco, Gnesis, encontramos o valor e a

    dignidade humana quando o autor bblico relata a criao do homem imagem e

    semelhana de Deus. Aps, todo o Antigo Testamento vai reafirmar a sacralidade da

    vida humana.

    O Cristianismo, ao recolher elementos da tradio judaica e grega,

    tambm afirma a ideia de que cada pes