Ocultismo e protestantismo na Islândia. Tendências ... · modo geral, da bíblia aos tratados de...
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Ocultismo e protestantismo na Islandia. Tendencias
iconofilas de contextos nao-iconicos
Christophe Pons
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Christophe Pons. Ocultismo e protestantismo na Islandia. Tendencias iconofilas de contextosnao-iconicos. Protestantismo em Revista, Revista Eletronica do Nucleo de Estudos e Pesquisado Protestantismo (NEPP) da Faculdades EST, 2008, Dialogos com Christophe Pons, 15 (1),pp.7-32. <http://200.248.235.130/nepp/revista/015/ano07n1.pdf>. <halshs-01144683>
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����������������� ����Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia
Volume 15, jan.-abr. de 2008 – ISSN 1678 6408
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 7
Ocultismo e Protestantismo na Islândia: Tendências iconófilas de contextos não-icônicos*
Por Christophe Pons** IDEMEC – Institut d’Ethnologie Méditerranéennee et Européenne Comparative
Charge de Recherche CNRS
[Tradução: Adriane Luísa Rodolpho]
Resumo: Ao examinar o universo das sociedades psíquicas e dos médiuns na Islândia, este artigo parte de uma dupla constatação. De um lado, o esoterismo moderno gosta de explorar as representações (figurativas, teatrais...) como seu modo privilegiado de expressão e arvora, desta forma, uma forte tendência iconófila, em sentido amplo. Por outro lado, é neste país de tradição reformada que essas vias parecem mais fortemente investidas. Procurando compreender o paradoxo dessa coabitação, o artigo interroga amplamente a ambivalência entre ocultismo e protestantismo, em torno do processo cognitivo de introspecção inventiva. Mas, ao mostrar igualmente como a sociedade islandesa procura representar o invisível sempre que possível, essa tendência figurativa extrapola os quadros exclusivamente ocultistas para afirmar-se socialmente como uma sensibilidade religiosa distintiva. Palavras-chave: Islândia – médiuns – espiritualismo – protestantismo – representações – teatro
Cada domingo à noite, a partir das 19h30min, entre trinta e cinqüenta
pessoas se reúnem para sua sessão semanal na Sociedade Psíquica de Reykjavík.
Inicialmente previsto para abrigar escritórios, o local do centro foi reorganizado; o
espaço é caótico, evocando um cafarnaum labiríntico. Sobre a porta de entrada, * Tradução, autorizada pelo autor, do original “Occultisme et protestantisme en Islande. Les
tendances iconophiles des contextes aniconiques” publicado em Archives de Sciences Sociales des Religions 137 (jan.-mar. 2007), p. 125-143.
** Acesse o currículo: http://www.mmsh.univ-aix.fr/idemec/Membres/CV-membres/PONS.htm
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abaixo do nome oficial de SRFR1, está escrito em letras maiúsculas e em formato
menor: Álfarskóli, Escola dos Elfos. Num corredor em formato de funil, um jovem em
pé atrás de um púlpito, vestido com estilo, recebe as pessoas que chegam para pagar
suas entradas2. Em seguida, o corredor se prolonga até duas peças transversais, onde
senhores distintos e de idade avançada conversam em torno de um café. As paredes
são cobertas por estantes onde se encontram misturados livros, estatuetas cristãs e
budistas, bonecas, anões, feiticeiras, fantasmas, extraterrestres e trolls, além de
luminárias decorativas e outros bibelôs de estilo Kitsch fortemente pronunciado. De
modo geral, da bíblia aos tratados de ufologia, passando pelas biografias de médiuns
e pelos princípios de doutrinas esotéricas, a biblioteca impressiona pelo seu tamanho,
ao mesmo tempo em que se funde num ecletismo generalizado. Sobre o lado direito
dessa estranha passagem, uma série de portas fechadas intriga; é lá que, de segunda
à sexta, os oito médiuns empregados pela sociedade dão suas consultas privadas. À
frente, à esquerda, um minúsculo corredor cheio de caixas de papelão e de livros
empilhados conduz a uma cozinha onde, em volta de uma mesa, conversam e riem
um punhado de freqüentadores. Entre eles, a médium Sígriður, que, perto dos
setenta anos, continua a oficiar as sessões dominicais. Ainda que ela não dê consultas
privadas, ela conhece muito bem os princípios do transe e das sessões mediúnicas
que ela começou a freqüentar e a praticar nos anos de 1950. Adjacente à cozinha, uma
outra sala – a maior – é reservada para as reuniões coletivas. Igualmente
sobrecarregada de decorações e bibelôs diversos, essa sala tem suas paredes cobertas
por quadros impressionistas, ilustrando a natureza selvagem e mística da Islândia.
Dez minutos antes das 20h00min, Magnús S., presidente fundador e mestre de
cerimônia, começa a organizar os participantes, agora em número completo; estes
discutem vivamente sobre todo tipo de coisas, não necessariamente espirituais.
Segundo critérios não revelados, os freqüentadores habituais tomam lugares que
parecem usuais, enquanto que, para os novos, Magnús hesita, antes de indicar um 1 Sálarrannsóknarfélag Reykjavíkur ou Sociedade de Pesquisas sobre a Alma de Reykjavík, equivalente
islandês das Society for Psychical Research. 2 O equivalente a uma entrada e meia de cinema.
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assento. De costas para grandes janelas de vidro que circundam a sala, seis fileiras de
cadeiras descrevem um arco, voltadas para uma pequena mesa redonda, sobre a qual
estão dispostas figuras e pedras3 em torno de um castiçal de três braços. Do outro
lado da mesa, em frente à assistência, a médium Sígriður senta-se entre duas amigas,
as quais lhe seguram cada uma das mãos. Ela fecha os olhos, se ajeita em sua cadeira
e relaxa um pouco, estirando o pescoço. Ela começa a bocejar. Sobre sua cabeça
pende um microfone, preso ao teto. Ele está ligado a um equipamento de gravação,
atrás do qual toma lugar Magnús. Às 20h00min, enquanto ainda persiste um
burburinho de conversas, a porta é trancada à chave e as cortinas são fechadas. O
círculo é banhado por uma luz branda. Magnús leva o auditório a um recolhimento
que ele suscita com a Ave Maria de Verdi. Logo as bocas se calam, as mãos se juntam
e os olhos se fecham. Então, num tom de voz grave, Magnús declara solenemente
aberta a primeira sessão da temporada de outono.
Sessões
O “humor” espiritual do local nos introduz ao coração das manifestações
contemporâneas do esoterismo moderno em área ocidental. Esta sociedade psíquica
islandesa lembra outras observações similares efetuadas em diversas latitudes da
América e da Europa do Norte. Trata-se, com efeito, do mesmo fundo espiritualista
mostrado por Faivre (FAIVRE, 1996): ele se enraíza numa história recente que se
inicia nas zonas reformadas do velho mundo – em torno notadamente do sueco
Swedenborg (1688-1772) – institucionaliza-se, de início, na América do Norte
(eventos de Hydesville 1847) e depois retorna para a Europa via países da zona
nórdica, antes de multiplicar-se em toda a Europa cristã, e de retornar, enfim, aos
3 Trata-se de uma dezena de figuras em porcelana, representando animais, crianças angelicais e
outros evocando duendes. Duas pedras tipo “cristal” são igualmente dispostas em diagonal sobre a mesa. Note-se que nenhum uso será feito desses objetos, assim como da mesa que permanecerá imóvel.
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Estados Unidos pelo sul católico. Existe, é claro, muito a ser dito, para que se possa
retratar esses movimentos transatlânticos, sobre os quais traçamos aqui apenas largas
linhas, em toda a sua fineza. Aubrée e Laplantine (AUBRÉE & LAPLANTINE, 1990)
já os evocaram para as zonas do sul católico, mas o movimento se inscreve numa
troca difusionista mais ampla, onde o sentido horizontal do pêndulo (Europa-EUA)
deve igualmente ser pensado pela dimensão vertical das latitudes-atitudes (Norte
protestante – Sul católico)4.
No quadro deste artigo, nossa visão é mais restrita e consiste em interrogar
algumas pistas, sugeridas pelo caso islandês, a fim de repensar o lugar que ocupa o
esoterismo moderno no seio das sociedades contemporâneas da área norte ocidental.
Seguindo Hanegraaff (HANEGRAAFF, 1996) consideramos que as formas
contemporâneas da Nova Era e da pós-Nova Era são as últimas extensões de uma
herança esotérica moderna cujo ponto de partida se situa na virada do século XVIII
para o século XIX. O espiritualismo atual, da qual a sociedade psíquica de Magnús é
uma ilustração, se inscreve nesta filiação do esoterismo recente que denominamos
ocultismo5. Ora, a observação etnográfica e histórica desse ocultismo, na Islândia de
forma bem evidente, mas também em outras sociedades do Ocidente, faz aparecer
uma dupla constatação surpreendente. De um lado, ele explora uma via figurativa
que ele emprega como seu modo privilegiado de expressão e arvora, dessa forma,
uma forte tendência iconófila6. Por outro lado, constata-se que é nos países da “franja
4 Assim, podemos sublinhar, de passagem, que Denizard Hyppolyte Leon Rivail (1804-1854), aliás,
que Allan Kardec, promotor de doutrinas e práticas que foram a “versão” católica do espiritismo, recebeu na Suíça uma educação protestante liberal que moldou o “espírito mesmo do espiritismo, em sua doutrina e mesmo em sua organização”. (AUBRÉE & LAPLANTINE, 1990: 25).
5 Não podemos aqui senão alertar o leitor sobre o fato de que, especialmente nesse campo de pesquisa, é freqüente a falta de rigor na utilização das terminologias, isso quando não é totalmente livre. Assim, para evitar toda ambigüidade, tomamos aqui as terminologias de Faivre et Hanegraaff que falam antes de ocultismo (e de esotericism) para distinguir esse esoterismo moderno (após o século XVIII) que se distancia das diversas tradições de esoterismo/esoterism históricas mais antigas.
6 Empregamos aqui o termo iconófilo num sentido bastante amplo – e livre – para designar uma tendência geral em procurar todas as possibilidades de representações: imagens, pinturas, fotos, esculturas, mas igualmente exibições teatrais, vozes, sons, imagens mentais, etc.
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nórdica” – ou seja, de tradição reformada e, portanto, historicamente conhecidos por
sua postura radicalmente anti-icônica (BESANÇON, 1994) – que essa via figurativa é
a mais fortemente investida e inventiva.
A partir disso, o que significa essa tendência iconófila do ocultismo e como
explicar sua presença em países de tradição mais anicônica? Tomando essa pista,
gostaríamos de sugerir que a via figurativa do esoterismo moderno revela uma
sensibilidade religiosa distintiva que conduz a relativizar um tanto o tema do
individualismo desesperado, tão freqüentemente associado aos objetos “marginais”
da modernidade religiosa. Ora, se, nessa perspectiva, a Islândia é um bom campo de
estudo, é porque aqui, com efeito, os participantes das sessões não são os desafiliados
sociais descritos em outros lugares. Na pequena capital, onde “cada um se conhece”,
muitos freqüentam as sessões não regularmente, mas às vezes, e a prática não choca
senão os membros das Igrejas Livres evangélicas. Além disso, essa sensibilidade pelo
oculto não se afronta com a confissão oficial; ela se situa num espaço de coabitação
tolerante, e ninguém jamais deixou a Igreja Nacional Luterana da Islândia, para se
afirmar como espiritualista (o movimento não possui, aliás, nenhum estatuto
cultual). Aqui nós não retomaremos as razões históricas dessa atitude
surpreendentemente passiva, descritas em outras obras. As razões históricas
remontam ao início do século XX, quando o independentismo se afirma num curioso
compromisso entre a Igreja e o Espiritualismo nacionalista (PETURSSON, 1983;
GISSURARSON & SWAROS, 1997; PONS, 2005).
Essas características fizeram com que, hoje em dia, a Islândia seja, sem
dúvida, um modelo um tanto atípico no panorama do lugar acordado ao ocultismo
no seio das sociedades do Ocidente. Mas esse modelo é também um revelador mais
geral, colocando em relevo uma ambivalência das sensibilidades religiosas no
conjunto das sociedades de tradição reformada. Uma vez que, por um lado, o
ocultismo parece ocupar bem um território outro, distinto da confissão oficial,
podemos igualmente nos perguntar: até que ponto a via figurativa que o ocultismo
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toma não é encorajada por aquela – introspectiva – do protestantismo? O
protestantismo favoreceria aqui uma sensibilidade religiosa ocultista, se estamos de
acordo em definir esta como um mergulho em si mesmo, num mundo de imagens
pessoais que o indivíduo está autorizado a explorar por si só? Com efeito, esse modo
de apropriação do saber pela via interna da experimentação não é outro que a
imaginação – no sentido criador – da qual Faivre lembra as origens luteranas (1996 II,
p. 55).
As temáticas figurativas do ocultismo islandês
Mesmo que se trate de Nova Era ou de formas mais antigas, todos aqueles
que se debruçaram sobre as manifestações do esoterismo moderno fizeram a mesma
constatação de um lugar privilegiado acordado às representações. Na Islândia, tanto
entre os espiritualistas quanto entre os grupos de tradição mais iconófoba
(astrobiologistas e teósofos) uma pletora de imagens e de figurações em três
dimensões habita o espaço. Entre uma vintena de sociedades psíquicas, a de Magnús
explora muito bem essa veia, ostentando um aparente bricabraque multiforme e
dando a impressão de um santuário da Nova Era. Se esse excesso não é exatamente a
norma, devendo ser imputado ao desejo de originalidade de seu presidente
fundador, ele não faz outra coisa senão retomar e sublinhar uma tendência geral
iconófila. Em todo o Ocidente, segundo graus de exuberância variáveis, os locais
contemporâneos do universo esotérico (consultórios de médiuns, livrarias, centros)
se apresentam sempre como abrigos de um universo do Kitsch. Na Islândia, eles
exploram as potencialidades figurativas de três dimensões que balizam seu quadro
cosmogônico.
Inicialmente, uma dimensão panteísta deixa livre curso a todas as tentações.
Com efeito, é neste campo que se experimentam as interpretações mais
personalizadas. Segue-se daí que é pouco surpreendente que sejam os indivíduos (e,
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sobretudo, os médiuns) que, em seus consultórios ou livrarias, são os mais inclinados
a alimentar essa dimensão panteísta de todas as formas figurativas possíveis: figuras
(anões de jardim, gnomos, trolls, elfos, feiticeiras sobre vassouras, fadas bondosas,
anjos, extraterrestres, divindades hindus...) objetos e luminárias (pedras, cristais,
totens, bolas, amuletos, cartas, pêndulos...) fotografias de fenômenos paranormais
(auras, óvnis, materializações...) pinturas e croquis de gênios tutelares. Se as peças
coletivas das sociedades psíquicas apresentam habitualmente uma retenção maior
que os recintos privados dos consultórios dos médiuns, quadros de entidades
celestes (geimverar) evocados em termos de seres de luz (ljósverar) são, entretanto,
expostos numa declinação de cores que esgota a riqueza da paleta cromática. Da
mesma forma, e ainda que elas sejam mais iconófobas, as sociedades teosóficas e
astrobiológicas7 expõem também obras feitas por pintura automática, em estilo
simbolista. Trata-se aqui de evocações de um espaço estelar que, entre os segundos,
enriquece uma impressionante coleção fotográfica de galáxias longínquas, expostas
nas salas de sessões. Todas essas pinturas, que exploram abundantemente uma
geografia denominada súmarlanð – tradução literal do summer land dos espiritualistas
anglo-saxões (MACKLINE, 1977) – e que se assemelham às narrativas figurativas de
percursos efetuados no além durante o sonho ou o transe sonambúlico (EDELMAN,
1995) são assim os modos de expressão da concepção panteísta de um mundo
poderosamente habitado de forças invisíveis.
Num objetivo diferente, a segunda dimensão, essencialmente pictórica,
coloca em cena uma Natureza islandesa magnificada. A profundidade dos amplos
espaços, o poder das montanhas e dos elementos naturais (água, gelo, fogo, vento)
são aqui evocados num estilo impressionista que caracteriza os locais mais
amplamente creditados de uma força mística: assim as grandes cascatas e
notadamente Góðafóss, onde os primeiros convertidos teriam jogado seus ídolos
7 As sociedades astrobiológicas, ou sociedade de renovação – Félag Nýalssinna – são herdeiras do
profetismo do professor Helgi Pjeturs (1872-1949) que podemos situar como o similar islandês de um Camille Flammarion.
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pagãos no ano 999, o monte Hekkla, inicialmente pensado como a porta do inferno à
época medieval, a legendária plenária do parlamento Þingvellir, ou ainda o cume
Snæfellsness, do qual Júlio Verne fez iniciar a sua peregrinação ao centro da Terra e
que é, desde então, considerado como receptáculo de energias cósmicas. Ao contrário
das temáticas panteístas, esses quadros ocupam um lugar importante nas peças
comuns, onde eles reafirmam uma identidade ancestral em torno da qual se
encontram os vivos. Assim, as grandes salas das sessões coletivas sempre exibem tais
ilustrações, lembrando uma das origens do esoterismo moderno romântico, aquele
de uma descoberta da Natureza – Naturphilosophie – que foi particularmente forte na
Europa do Norte e que inicia sua história no movimento nacionalista contra a coroa
dinamarquesa na Islândia.
Enfim, a terceira dimensão dos ícones cristãos é, sem dúvida, a mais
transversal, uma vez que ela impregna sem distinções tanto os salões privados
quanto os locais coletivos. As representações mais freqüentes são as do Cristo e da
Virgem Maria. Nas sociedades psíquicas, elas ocupam especialmente um lugar
importante nas pequenas salas reservadas para as sessões chamadas de “círculos de
preces” (bænahringir) no decorrer das quais um punhado de indivíduos reza para os
mortos curarem os vivos. Essas peças, que se parecem às vezes com pequenas capelas
católicas, abrigam igualmente altares onde são dispostos terços, cruzes, velas, ícones,
estatuetas de anjos douradas e ainda a Maria, freqüentemente também adornada com
um par de asas. Se essa iconografia quase católica pode nos surpreender, convém,
entretanto, salientar o quanto ela é profundamente seletiva. Aqui nunca são
representadas as imagens da paixão do Cristo. Não há nenhum traço de seus
sofrimentos nem de sua coroa de espinhos; Jesus não é nunca crucificado e não
sangra, agoniza ou morre. O Cristo que se apresenta é aquele que abençoa, que reza e
cura; trata-se de um Cristo taumaturgo, modelo ideal do médium curador. De igual
modo, Maria não chora o martírio de seu filho. Ela é representada carregando o
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menino Jesus em seu colo ou ainda rezando, figurando a beatitude da felicidade
eterna.
Contra o desespero dos sentidos...
Essas três temáticas ilustram a via figurativa que o ocultismo percorre. Se a
Islândia propõe uma boa ilustração, ela não é certamente a única. O processo é
corrente na maioria das sociedades ocidentais. Ora, curiosamente, a antropologia das
sociedades contemporâneas apreende raramente a atividade figurativa inventiva nos
termos de uma tendência iconófila, antes ela a entende nos termos de um ecletismo
aleatório, engendrado pelo individualismo recente do mundo moderno. Essa postura
testemunha uma tendência a não perceber a profundidade temporal das tradições
esotéricas às quais remonta tal atividade inventiva, mas antes, a observá-la como fato
de uma “geração espontânea” que teria emergido há pouco sobre as ruínas das
grandes religiões históricas8. No entanto, ela carregaria consigo igualmente
pressupostos implícitos, culturalmente inscritos no olhar de nossa disciplina:
enquanto sabemos que a maioria das religiões origina-se de processos sincréticos, no
caso do ocultismo, este seria percebido como signo de uma superficialidade delirante
ou, como observa Mary com relação ao sincretismo em geral, de um “desespero do
sentido” (MARY, 2000). Dessa forma, quando nos debruçamos sobre esse tipo preciso
de material ocidental, a tendência consistiria em transcrever uma tendência iconófila
em decadência superficial e em mimetizar, assim fazendo, a mesma atitude rigorista
que, durante um longo tempo, arvoraram as confissões religiosas oficiais com relação
às imagens oficiosas dissidentes.
8 Essa negação de historicidade, que ressalta Hanegraaff numa leitura crítica da atitude das ciências
sociais com relação aos objetos da Nova Era (HANEGRAAFF, 1996: 380 e seguintes) encontra-se igualmente entre aqueles que observam esses objetos desde as grandes tradições esotéricas. Para estes últimos, que querem distinguir o verdadeiro trigo do joio, trata-se de não confundir a nobreza das tradições gnósticas prestigiosas que desenham as correntes de pensamento esotéricas bastante antigas, com a popularidade das formações ocultistas do século XIX, as quais se assimilariam mais a um esoterismo democratizado, tornado bem de consumo parar um grande público.
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Entretanto, tomado como princípio iconófilo, a via figurativa se mostra como
a ilustração de um tipo distintivo de sensibilidade religiosa. Ela procede desta forma
de saber que se dá pela experimentação, segundo a qual “em favor de revelações
fulgurantes ou de inspiração progressiva, alguns seres recebem o conhecimento pela
via imediata, não-discursiva, dos princípios últimos da realidade do mundo”
(FAIVRE, 1996 I: 339). Na Islândia de hoje em dia, as pequenas cosmologias pessoais
dos médiuns são um bom testemunho dessa modalidade cognitiva, suspeitável de
conduzir às invenções mais surpreendentes. Com efeito, todos se dedicam a essa arte
de remendar imaginário, pelo qual eles confeccionam – com elementos disparates e,
desde agora, saídos de uma globalização de bens espirituais – surpreendentes
universos onde elfos cruzam com espíritos de xamãs norte-americanos, que
trabalham em conjunto com monges tibetanos ou freiras católicas (PONS, 2004).
Contudo, atrás da primeira impressão de bricabraque, no qual tudo parece possível,
uma liberdade mesurada revela codificações implícitas. Com efeito, os médiuns
geralmente fazem prova de uma inventividade que as estruturas ocultistas toleram
enquanto se mantiverem aceitáveis, mas que é refreada assim que se tornam
ameaçadoras para a ortodoxia histórica dos grupos.
Esse afastamento das vaidades pessoais se mede, por exemplo, pela ausência
de retratos de médiuns nos centros, mesmo a título póstumo. Nas peças comuns,
corredores e salas de espera, uma dosagem medida contém todas as pretensões.
Assim, os únicos retratos fotográficos são aqueles de figuras proféticas do século XIX,
guardiões da pura ortodoxia, ou então aqueles de ilustres estrangeiros como Saï
Baba, William James ou Helena Blavatski entre os teósofos. Entre os astrobiologistas,
a única figura autorizada é a do fundador Helgi Pjeturs (1872-1949) cuja fotografia –
cercada de pequenas lâmpadas – se ressalta na sala das sessões. Ainda que seja
possível encontrar exceções, a rejeição aos retratos de médiuns é, entretanto
flagrante, logo que pensamos no uso inversamente rebuscado que é feito nos quadros
privativos dos consultórios pessoais.
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...ao mergulho inventivo
No fundo, essa constatação é de uma grande banalidade. Trata-se de nuançar
a parte do individualismo, lembrando que, no campo religioso como em outros, toda
atividade criadora abre sempre sua via entre uma performance pessoal e as margens
concedidas pelas instâncias estruturantes. Aceitando tomar os médiuns como
artistas, os historiadores da arte consideraram mais os fatos dessa perspectiva.
Assim, os trabalhos de Colbert (COLBERT, 1996) apoiando-se nas obras da
espiritualista americana Harriet Hosmer (1830-1908) e notadamente sobre suas
esculturas do famoso “Puck” – uma criança angelical com asas de morcego, portando
um capuz e sentada sobre um cogumelo – mostram como os médiuns artistas do
século XIX abriram novas vias de expressão sobrenatural, tentando inovações que
permaneceriam em acordo com as categorias clássicas (ainda unânimes) da
iconografia cristã. Nesses termos, resta que é necessário pensar a ‘nebulosa’ do
ocultismo (os médiuns, suas cosmologias, suas obras) ou seja, como o espaço de uma
atividade criadora, uma via inventiva que envia a um tipo distintivo de sensibilidade
religiosa. Ora, todas as formações do século XIX procederam pela reativação dessa
modalidade cognitiva. Em seu notável estudo sobre os primeiros movimentos
americanos, a historiadora Carroll mostra como, para além de suas diferenças, os
Transcendantalists, os New Church, os New Era Swedenborgians, os Millerits, Shakers e
Mórmons reivindicaram um mergulho inventivo no « spiritland » como a via da «
independence of every individual from the spiritual tyranny imposed by established churches
and ministers » (1997, p. 35)*. Da mesma forma, tanto para Paschal Beverly Randolph
(1825-1875) quanto para Andrew Jackson Davis (1826-1910) profetas do
espiritualismo americano antes dos acontecimentos de Hydesville, em 1847, a viagem
interior é o caminho espiritual que todo indivíduo deve experimentar (MELTON,
* N.T.: “independência de todo indivíduo da tirania espiritual imposta por igrejas e ministros
estabelecidos”.
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1994; DELP, 1967; ALBANESE, 1992). Para Davis, que dizia ter sido informado por
Swedenborg e Galileu durante íntimas Odisséias, a temática profética repousa sobre
a idéia de uma peregrinação interior acessível a todos, autorizada pela fusão coletiva
do grupo. É justamente porque se está entre muitas pessoas, no acúmulo das forças
de energias, que cada um pode partir para explorar seu mundo de imagens e de lá
trazer visões que ele vai em seguida partilhar. A forma circular de sessões
mediúnicas de seis a doze pessoas, no máximo, unidas pelas mãos dadas e
fluidificadas pelas pernas descruzadas se impõe então como o diagrama ideal,
símbolo dessa via interior e motor das introspecções pessoais coletivamente
partilhadas.
Percebe-se, portanto, que um traço comum dessas formações ocultistas é, por
assim dizer, a confiança feita ao indivíduo. É ele quem deve fazer prova desta
capacidade inventiva pela qual ele percorre os mundos interiores onde o grupo o
envia só. Ora, esse modelo cognitivo pode ser totalmente reduzido ao processo social
de individualização da modernidade contemporânea? Adotar tal ponto de vista não
seria esquecer as biografias de gnósticos populares e sábios que, em épocas históricas
variadas, se dedicaram a essa mesma modalidade distintiva de experiência religiosa?
Assim, por exemplo, na Alemanha do século XVI, místicos, espiritualistas e
alquimistas construíam teologias heréticas (KOURÉ, 1971) enquanto que, no mesmo
momento, no Frioul italiano, um moleiro delirante reinventava seu cosmos sobre a
massa informe de um queijo (GINZBURG, 1980). Mas não seria tampouco
negligenciar essa disposição específica do mundo reformado, a qual encontramos re-
centrada no coração de uma mística junguiana que conhece uma formidável escuta
em toda a Europa do Norte? Para esse filho de pastor, a exploração do inconsciente
não seria a confrontação a uma alma humana concebida como substrato autônomo,
na qual os homens veiculam o tempo de suas vidas? Fazer a descoberta equivale a
cair num mundo de imagens do interior mais profundo, via regularmente tomada
pelos médiuns islandeses: “Foi então como se, no sentido próprio, o solo cedesse sob
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mim e como se eu fosse precipitado numa profundeza obscura. Não pude evitar um
sentimento de pânico. Mas logo, e sem que eu tivesse atingido ainda uma
profundidade maior, eu me encontrei – para meu grande alívio – sobre meus pés,
numa massa mole, viscosa. Eu estava numa obscuridade quase total. Após algum
tempo, meus olhos se acostumaram à escuridão, de um sóbrio crepúsculo. Em minha
frente, estava a entrada de uma caverna obscura; um anão estava de pé. Ele me
parecia ser de couro, como se ele tivesse sido mumificado. Eu tive que me esgueirar
contra ele para passar pela estreita entrada” (JUNG, 1957: 208).
As disposições culturais da figuração ordinária
A partir de então, como dar conta da pregnância iconófila ocultista no
contexto de uma sociedade luterana protestante? Sem dúvida é necessário supor
alguns laços significantes entre as vias da introspecção inventiva e as do
protestantismo. Mas, antes disso, existem igualmente outros fatores sociais
importantes que precisamos sublinhar, até porque estes recolocam o olhar no campo
ordinário do mundo social.
Assim como o duende Puck de Hosmer, o anão de Jung nos indica, com
efeito, a origem desse mundo de imagens em que logo beberão as formações
ocultistas. Tanto um quanto outro nos enviam às imagens de um folclore nórdico,
que jogou um papel essencial, enquanto suporte de figurações panteístas, e que se
mantém até nossos dias bastante ativo. É necessário pensar aqui no uso feito, já no
século XIX, das fairies pelos Ocultistas da América e da Europa do Norte. Afinal,
paralelamente as encenações da presença de mortos – notadamente pela via da
fotografia – as fairies também foram objetos de representações fotográficas
(SANDERSON, 1973) teatrais (GAFFORD, 1940) esculturais (COLBERT, 1996)
pictóricas e literárias, que não tinham outro objetivo senão fornecer as provas das
dimensões invisíveis. Ora, o problema não é tanto o fato de que o esoterismo
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moderno tenha bebido nesse capital de imagos, mas que esse folclore faça objeto de
uma figuração que ultrapassa os quadros ocultistas e que pode ser encontrada em
todo o mundo social. Finalmente, como não perceber, com efeito, em toda Europa do
Norte, a força não anedótica de uma verdadeira “paixão ordinária” (BROMBERGER,
1998) pelas figurações dos mundos invisíveis, das quais as primeiras expressões são,
sem dúvida, os jardins privados! Na Islândia, as pessoas se dedicam com primor a
essa arte popular da cenografia dos mundos ctônicos figurados por elfos, anões ou
gnomos em miniatura, dispostos em torno das casas. A sensibilidade por mundos
maravilhosos, inscrita na prática cultural de uma jardinagem dominical, dá
igualmente livre curso a uma imaginação prolífica: disposições de fontes, cascatas e
lagos, agenciamento de moinhos e outros acessórios movidos pelo vento, mas
também invenções de apoios ou suportes inéditos, como pequenos seixos de rio
pintados, meio enterrados e figurando todo um povo em tamanho reduzido, ou
ainda, bastões fincados no chão e que evocam colônias do abaixo... Entretanto, a
Islândia não é mais exemplar nesse sentido. Outros países mais ao sul a superam
nesse quesito, mas sempre segundo o recorte reformado que vai da Europa à
América do Norte, passando pelo Reino Unido.
Desde então, é necessário conceber essa tendência iconófila em dimensões
que não são mais estritamente ocultistas, mas que encontramos também inscritas nos
habitus ordinários que testemunham uma disposição cultural para representar o
invisível. Na Islândia, os elfos foram beneficiados particularmente por essa
disposição. Desde as últimas décadas, as pessoas fizeram uso até da cartografia para
espacializar seus mundos invisíveis nas imediações das cidades. Ora, se essas
cartografias têm igualmente um objetivo turístico, elas não se tornam menos
significantes da maneira pela qual a figuração visual é facilmente convocada para dar
conta de um patrimônio invisível. Sem dúvida, é necessário considerar aqui que essa
temática panteísta dos mundos animados, presente na sociedade fora dos grupos
ocultistas, reata e testemunha, apesar de tudo – num espírito de Herder ou de Goethe
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– as raízes longínquas de um romantismo nacional. E, nessa perspectiva, os trabalhos
de Hafstein (HAFSTEIN, 2000) são particularmente esclarecedores. Observando
como os elfos reaparecem regularmente desde a independência de 19449, ele
demonstra o procedimento pelo qual essa sociedade reabilita seu espírito nacional
romântico, que ela proclama numa representação da Natureza autóctone mitificada,
figurada por seres invisíveis que são sinalados com rochas protegidas e estradas
desviadas. Deste ponto de vista, não pairam dúvidas sobre o fato de que, se as
temáticas do esoterismo moderno encontram-se hoje em dia diluídas no social, fora
dos círculos ocultistas, isso se deve, em parte, ao fato do longínquo parentesco
existente entre folclore, esoterismo e espírito nacional romântico. No entanto, ao
mesmo tempo, essas condições históricas não dão conta desta disposição cultural de
figurar o invisível, que se manifesta ainda quando franqueamos o limiar separando
os mundos ctônicos exteriores dos grupos domésticos interiores.
Ao entrar nas casas, as temáticas figurativas deslizam em direção ao registro
de uma representação da ancestralidade. Assim, encontramos, na maioria das casas,
várias paredes dedicadas aos retratos de ancestrais, acompanhados de figurações de
fazendas e terras ancestrais. De igual forma, encontramos, às vezes, em um canto
algumas arrumações, lembrando altares, onde os retratos dos últimos desaparecidos
são rodeados por cruzes, velas e figurinhas de anjos, cujo número cresce com a
aproximação do Natal. Essas diversas instalações testemunham, em todo caso, o
papel concedido aos suportes icônicos na manutenção da lembrança dos mortos.
Com efeito, assim que introduzida na sociedade islandesa, a fotografia desempenhou
um papel de mimesis que ela jamais abandonou. Além dos usos espiritualistas pelos
9 Particularmente por ocasião de trabalhos e obras que devem ser interrompidos, porque os
bulldozers e máquinas de terraplanagem estragam, quando afrontam rochedos onde os elfos supostamente habitam. Os primeiros acontecimentos dessa natureza ocorreram por ocasião dos grandes trabalhos de infra-estruturas nacionais (pós Segunda Guerra Mundial) os quais haviam sido conduzidos por americanos, que se instalaram na ilha no início da Guerra Fria.
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quais, no século passado, faziam aparecer os ancestrais atrás do sujeito10, é preciso
também pensar no papel necrológico concedido às fotografias nos jornais nacionais,
assim como a facilidade com a qual se fotografa o defunto em seu caixão nos
enterros, sendo colocadas, em seguida, nos álbuns de família. Nesse mesmo caminho,
é preciso, sem dúvida, conceber a criação, desde 1987, de um banco nacional de
imagens, das quais uma das óticas é a reunião da totalidade das primeiras fotografias
de islandeses, tiradas durante o século XIX. Aqui, a museografia nacional se
confunde com uma iniciativa cumulativa que procura, por meio de suportes visuais,
representar exaustivamente uma soma de ascendentes invisíveis.
É inútil continuar seguindo ainda mais exemplos para nos darmos conta do
quanto esse uso da fotografia se revela como uma atitude mimética surpreendente
neste contexto luterano. Afinal, ela se opõe, com efeito, à iconofobia histórica do
mundo protestante, para o qual “toda representação, todo drama, toda mimesis eram
repreensíveis; a representação em si era falsa. A imitação era considerada
corruptora” já que ela era ilusão e, portanto, falsidade, o que significava “ir contra
aquilo que Deus criou” (GOODY, 2003: 131). Como demonstraram muito bem os
trabalhos de Besançon (BESANÇON, 1994) a iconofobia protestante não era,
historicamente, de meios-termos: ela afirma uma rejeição veemente a toda e qualquer
forma de mimesis – imagens, espetáculos, teatro, jogos – enquanto cópia mentirosa.
Essa afirmação da iconofobia nos reconduz, desde então, ao paradoxo do
qual partimos, revelando a força de uma paixão figurativa ocultista nesses contextos.
Ora, para a Islândia, esse paradoxo se revela igualmente numa disposição cultural,
diluída fora dos limites dos quadros ocultistas e pela qual as presenças invisíveis são
representadas, sem cessar, no cotidiano ordinário do mundo visível dos vivos.
Assim, como já observamos anteriormente, trata-se de uma atitude bem popular –
10 É preciso ressaltar que essa técnica, totalmente abandonada, conhece um equivalente
contemporâneo nas fotografias de auras. Particularmente estimadas nos meios ocultistas, essas fotos fazem aparecer atrás do sujeito não mais seus ancestrais, mas forças espirituais declinadas em uma paleta cromática.
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uma “religião ordinária”, poderíamos dizer – quando, em meados do Natal, as
tumbas nos cemitérios se iluminam de velas, chamadas de luzes vivas (lífandi ljós) as
quais são financiadas pelas coletividades e não pelo ministério do culto; ou quando,
do mesmo modo, e sem dúvida mais ainda, as formas narrativas de evocação dos
defuntos se apresentam sob um linguajar extremamente imaginário, metafórico,
repousando sobre uma semiótica visual-auditiva (cores, luzes, sorrisos, roupas,
timbres...) que codifica a natureza dos comércios simbólicos entre mortos e vivos
(PONS, 2002).
Ambivalência das sensibilidades religiosas
A contradição concomitante de uma atitude ocultista iconófila num contexto
confessional iconófobo se dilui na ambivalência de uma dimensão costumeira
ordinária, de antemão inclinada a figurar o invisível tanto quanto possível. No
entanto, essa disposição particular – cultural – não esgota a força dos laços entre
ocultismo e protestantismo, que se impõe primeiro como fato histórico. É necessário
lembrar a massiva proporção de protestantes entre as figuras proféticas do ocultismo
e os locais de emergência das principais formações que balizam, até hoje, a paisagem
do esoterismo moderno? Podemos, desde então, supor que existe, tanto no
esoterismo quanto no protestantismo, uma introspecção no íntimo, que é seu traço de
união. Afinal, como não perceber, com efeito, que, na austeridade de um grupo
protestante, reunido por ocasião de um culto, é favorecida uma sensibilidade
religiosa que se exprime sobre o modo da abertura interior, lembrando aquela da via
ocultista. Tanto para um quanto para outro, trata-se sempre de uma relação de
introspecção íntima, seja em direção a Deus, seja em direção a um mundo de
imagens, como a via deixada livre pelo aniconismo dominante. Este conduz a
reconsiderar a fronteira entre essas duas sensibilidades religiosas, não mais as
separando simplesmente, mas, ao contrário, considerando a permeabilidade de seus
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limites respectivos. Lembremos, por exemplo, dos círculos de preces, estes locais de
recolhimento que cresceram em toda Europa e América protestante do século XIX.
Tratava-se de pequenos grupos de cinco a dez pessoas onde, no quadro de uma
comunidade seletiva, partilhava-se o exercício privado de uma prece íntima.
Reivindicando o direito legítimo, no protestantismo, de praticar sua fé fora dos locais
oficiais, esses círculos de prece – formas prototípicas das seitas no sentido weberiano
– conduziam tanto à criação de movimentos religiosos alternativos de tipo ocultista
(PROTHERO, 1993) quanto à criação de Igrejas livres fundamentalistas (WILSON,
1974; PFEFFER, 1974).
Para a Islândia atual, já evocamos a dificuldade em contabilizar o número
desses círculos que dizem respeito à religião ordinária, ou seja, uma forma de
sensibilidade religiosa oriunda tanto do confessional instituído quanto do oficioso
praticado. Mesmo se esses círculos não têm nenhuma existência legal, eles estão,
entretanto, presentes em todos os lugares. Originários de uma sociabilidade antes
feminina, eles engrossam redes de solidariedade e de ajuda mútua que se elaboram
freqüentemente de maneira quase espontânea, em função das necessidades das
circunstâncias sociais. Assim, vemos que eles surgem geralmente por ocasião de
períodos de crise: doenças, acidentes. A natureza do que se pratica aí é ambivalente:
a meio caminho entre a austeridade protestante de uma invocação ao Senhor e o
recurso direto aos mortos, aos quais guiamos, vemos e com os quais discutimos
(PONS, 2002b). Esses locais oficiosos de uma prática híbrida, espiritualista e
confessional, testemunham não somente o deslocamento que podem operar as
sensibilidades religiosas (encontramos neles médiuns e pastores, e a fé protestante
realiza a experiência das aparições) mas também a impossibilidade de discernir o
sentido de seu deslocamento (quem, do ocultismo e do protestantismo, faz aqui a
leitura popular do outro?).
Depois dos objetos, das esculturas e das imagens, a convocação dos espíritos
compõe a última parte da iconicidade ocultista. Descarregando-se da rejeição
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protestante de toda mimesis em matéria religiosa, as sessões mediúnicas reivindicam
o recurso ao espetáculo e à encenação teatral. Para tanto, e como se de longa data elas
tivessem estado preocupadas em manter o laço entre as sensibilidades, as diversas
formações ocultistas da Europa e da América do Norte sempre mantiveram suas
sessões no domingo à noite, a fim de permitir aos adeptos freqüentar, de igual forma,
os cultos no domingo de manhã. Na Islândia, e como ilustra a Sociedade de Magnús,
o jogo de ambivalências entre ocultismo e protestantismo opera notadamente sobre o
registro de uma complementaridade. Assim, a representação das sessões mediúnicas
coloniza e explora as características deixadas livres pela maneira luterana de viver o
rito.
Teatralidades
Após um breve recolhimento ao som da Ave Maria, Magnús felicita a
assistência por ter-se reunido. Ele reafirma a importância de tais reuniões e do que se
faz nelas, argumentando por uma leitura dos escritos de Einar Kvaran (um dos
fundadores, no século XIX), o qual fala sobre os diálogos entre um defunto
desesperado e uma assembléia de vivos, a qual tenta reconfortá-lo. Em alguns
minutos, Magnús requer assim a atenção de um auditório que, a partir de então, está
investido de uma missão. No entanto, ele logo a deixa de lado, apresentando o grupo
para aqueles que estão aí pela primeira vez. O tom é um tanto diferente, com uma
leveza inesperada, deixando para trás a gravidade anterior. Começando pela
médium Sígriður, que já está refeita, ele a descreve como “uma velha pele, mas ainda
muito boa para os contatos!”. Entendendo a provocação e rindo muito, ela responde
de maneira incisiva, fingindo estar contrariada. Mas Magnús continua a fazer o
mesmo com os outros freqüentadores, os quais ele apresenta no mesmo tom
sarcástico, antes de concluir esse preâmbulo com uma série de piadas, algumas de
conotação sexual. A audiência é dividida; se alguns riem bastante, outros
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permanecem mais reservados com relação a essas brincadeiras. Entretanto, e apesar
dos excessos – uma característica de Magnús – não existem invenções. Com relação
às sessões de grupos americanos, Irving Zaretsky (ZARETSKY, 1974: 202) notou esse
mesmo uso liminar das piadas com o objetivo de relaxar o ambiente, criar um bom
humor geral e convocar as energias positivas que facilitam a qualidade das trocas,
assegurando assim que os espíritos que intervirão estarão, eles também, com um
humor favorável. Da mesma forma, essa atitude de relaxamento e de leveza é
reproduzida a cada vez que ocorrem as grandes sessões, episodicamente, nas salas
comunais com um “médium-star”. Não se trata, nunca, de um lugar de aflição, aonde
vamos abatidos, mas antes de espaços de sociabilidade aonde vamos com os amigos,
com a família e filhos, na expectativa de uma boa diversão. Se não se fazem gozações
com os ancestrais, muitas são as brincadeiras e, geralmente, mortos de bom humor
aparecem de bom grado.
Vemos bem aqui a distância que separa esses rituais das práticas
confessionais, uma vez que a busca de um humor jovial (que autoriza o riso) se opõe
à austeridade de um recolhimento solene e sério, característica dos cultos
protestantes. Mas vemos igualmente de que forma Magnús sabe fazer prova de
ambivalências, operando deslizamentos entre as fronteiras de uma oposição
“relaxamento” versus “austeridade”, oposição que relembra aquela sublinhada por
Goody entre “teatro-jogo” e “rito-trabalho”, quando o autor distingue as duas
atitudes cognitivas com relação à imagem e à representação (GOODY, 2003).
Afinal, parece claro que esses rituais ocultistas foram pensados nos termos de
uma retomada e de uma continuidade de uma atividade de representação lúdica que
reata com as origens religiosas da tragédia grega, aquela das formas ancestrais de um
teatro dos mortos (BASTIDE, 1972: 81). Desse modo, desfaz-se o protesto clássico dos
oponentes ao ocultismo – sejam eles positivistas ou religiosos – quando estes
denunciam, desde o século XIX, o caráter ilusionista e espetacular dessas sessões
como a prova de sua falsidade. Afinal, se os protagonistas do oculto – médiuns e
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inspiradores – foram freqüentemente homens de palcos, isso se deve antes a uma
essência propriamente teatral dessas práticas religiosas do que a uma suposta fraude.
Desde os exercícios espirituais dos Transcendentalists, que reataram com Shakespeare
e com a tragédia grega (GAFFORD, 1940) até os teatros terapêuticos do doutor
vienense Jakob L. Moreno – figura intermediária entre Jung e Freud – (BERGÉ, 1998)
passando por célebres atrizes médiuns como Emma Hardinge Britten (OPPENHEIM,
1985) os laços entre ocultismo e teatro se afirmam sobre todos os lados11. Na Islândia,
também o ocultismo se impôs no século XIX pela forma teatral, notadamente, através
de jovens médiuns que re-produziam a imagem reencontrada de Óðin, o deus-xamã
dos Vikings, ou através de jovens médiuns que redigiam por escritura automática as
peças de teatro atribuídas às produções post-mortem dos ancestrais Jónas
Hallgrímsson, H.C. Andersen (século XIX) e Snorri Sturluson (século XIII).
Jogando nesse incessante vai-e-vem entre retenção e diletantismo, Magnús
reacalma seu grupo com um segundo momento de recolhimento musical. As mãos
são tomadas novamente, os rostos abaixados. Um após outro, os participantes
apresentam-se e, num tom de benção anônima, Magnús repete os nomes solicitando
que a luz e a força estejam com eles. Ao fim desse longo momento, a médium
Sígriður parece estar pronta. Os transes, pouco demonstrativos no contexto islandês,
se manifestam ao menos por alguns ruídos e contorções mínimas. Mas os olhos
desempenham um papel fundamental. Se eles permanecem fechados todo o tempo
da sessão, as pálpebras demonstram uma gama de expressões que transfiguram os
rostos em uma máscara: franzidas, distendidas ou mesmo semi-abertas, as pálpebras
mimetizam humores invisíveis. Com um timbre sôfrego, Sígriður empresta então sua
voz para um primeiro espírito, originário do norte do país, e que parece surpreso por
estar aqui. Ajudado por dois acólitos, Magnús o interroga. Pouco a pouco, sua
identidade se revela: trata-se de uma jovem, uma adolescente ingênua e divertida,
11 Os exemplos que manifestam estes laços são inesgotáveis. De passagem, notamos que Leon Rivail
foi, ele também, próximo dos meios artísticos, uma vez que ele fazia a contabilidade de um teatro, durante os anos que precederam sua transformação em Allan Kardec.
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desesperada, engraçada e patética. A troca é truncada, enigmática. Mas compreende-
se, enfim, que ela não havia percebido que estava morta. Magnús lhe diz isso e lhe
informa que ela está numa sessão mediúnica em Reykjavík. Na assistência, todos os
rostos estão voltados sobre a velha mediadora que soluça, agora, respondendo que
ela sabia bem que as coisas já não eram como antes, mas que ela não queria ir
embora. Ela fala em seguida de um acidente, menciona uma criança e desaparece.
Quase imediatamente surge um segundo espírito, muito mais seguro, que se
apresenta como a avó do primeiro espírito. Esta retoma e expõe os fatos: sua neta
morreu num acidente de carro há menos de 17 anos, mas o que ninguém sabia então
era que ela estava grávida. A velha senhora parte, deixando a médium adormecida,
enquanto os vivos ficam em silêncio, numa prece coletiva. Das profundezas dessa
meditação, um dos freqüentadores toma a palavra. Ele se dirige à adolescente, a
convida a ir em direção aos seus e de encontrá-los na sumurlandi (summerland)
também conhecido como himinsborg (cidade dos céus) que ele descreve como um lugar
luminoso, colorido, aquecido e doce.
Logo após essa primeira seqüência, outros espíritos seguirão segundo uma
ordem que já expus em outro momento (PONS, 2005) entre eles, os “espíritos de
sábios”, que são livremente interrogados pelos participantes. Afinal, um outro
aspecto relevante dessas práticas é igualmente seu caráter interativo e participativo.
Se existe, de forma clara, uma representação codificada, ela não é fixa e deixa
espontaneamente um lugar para o espontâneo e para o inesperado. Assim as sessões
mediúnicas se distinguem – notadamente da codificação estrita das missas religiosas
– por esse registro da performance, onde a invenção do roteiro procede de uma ação
coletiva aleatória. Nesse sentido, trata-se de um teatro de improvisação que se exerce
ao longo de um balizamento fixo. Além disso, freqüentando as sessões, os vivos não
sabem jamais se eles irão – ou não – atuar, uma vez que qualquer um pode ser
interpelado pelos mortos sem que ninguém espere. Esta noite em especial, em função
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da força emotiva das primeiras trocas, os espíritos sábios foram amplamente
interrogados sobre a morte de crianças e sobre o estatuto da alma nos fetos.
Cortina
Como todo espetáculo, as sessões mediúnicas são freqüentemente desiguais,
e seu sucesso depende sempre de um coquetel misterioso. Em muitos casos, os
participantes retornam as suas casas sem maiores entusiasmos, pensando na manhã
de segunda-feira e na semana que se inicia. A sessão, divertimento semanal, se
parece então a uma ida ao cinema, quando vamos ver um filme que esquecemos logo
que entramos em casa. No entanto, às vezes, também, sem que se espere, a qualidade
é elevada ao máximo! Por uma dosagem sutil entre a sala, os espíritos, o médium e os
acontecimentos, uma força emotiva nasce na tensão coletiva. Nesses casos, sentimo-
nos deliciosamente febris, ainda um pouco trêmulos, como após havermos vivido
alguma coisa de importante e de esteticamente belo. Aliás, quando isso acontece – e
como acontece! – não voltamos diretamente para casa. Ficamos um pouco, bebemos
café e partilhamos nossas emoções. Explicamos como nos sentimos quando se
aproxima uma presença, como fomos invadidos por uma alteridade num momento
ou noutro. E, além disso, tomam-se algumas disposições, pois, afinal, conhecemos
então o nome de uma adolescente por quem é preciso fazer alguma coisa. E, então,
combinamos de nos encontrar novamente, para um círculo de preces e de telefonar
aos pais da jovem moça...
Nos anos de 1970, o etnólogo africanista Beattie estendeu até o Ocidente a
analogia entre mediunidade e teatralidade. Ele se apoiava notadamente numa série
de nove traços12, que ele encontrou no drama grego dionisíaco, nos cultos dos
12 A prece (1), a obrigação (2), a distração (3), a abstração (4), o uso de máscara (5), os desempenhos
aprendidos (6), uma linguagem específica (7), um frágil status social (8), a veracidade do exercício (9).
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Banyoro Ugandeses e no espiritualismo da Europa e da América do Norte (BEATTIE,
1977). De um ponto de vista formal, a coisa parecia evidente. Entretanto, fazer essa
analogia suporia que a antropologia se libera do olhar singular que ela dirige sobre
as possessões, os transes e as mediunidades, assim que essas têm lugar no Ocidente.
Em 1872, Tylor já havia freqüentado os círculos espiritualistas da sociedade londrina,
procurando aí algumas vias heurísticas para colocar à prova sua teoria animista. No
entanto, ele havia caído numa constatação de fraude e de teatralidade muito
flagrante, considerando que era muita distração para ser sincero (STOCKING, 1971).
Ora, essa relegação no impossível credível é sempre, sem dúvida, o que atravessa um
bom número das análises contemporâneas desses fenômenos. Basta pensarmos na
Nova Era que vemos imediatamente de que forma nossas tradições disciplinares são
prontas a alocar esses objetos nas manifestações desesperadas de um individualismo
pós-moderno. Tomando a via da imagem, da cenografia teatral e da re-presentação,
tentamos identificar uma sensibilidade específica – muito amplamente presente na
sociedade islandesa – a qual desejamos conceber como construída plenamente de
uma atitude religiosa. Essa sensibilidade, que coloca a criatividade pessoal no
coração da démarche, põe muito mais problemas teóricos às ciências sociais e às
autoridades clericais do que aos seus praticantes corriqueiros, os quais se adequam
muito bem.
Referências
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